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Psicose, sintoma, psicopatologia: a clínica contemporânea e suas vicissitudes

RESENHAS DE LIVROS

A soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano

Vera Lopes Besset; Henrique Figueiredo Carneiro (Orgs.)

Rio de Janeiro: Faperj/Garamond, 2009, 289págs.

"O que lembro, tenho". A instigante frase de João Guimarães Rosa pode ser tomada como ponto de partida para a leitura do mais recente livro organizado pela professora Vera Lopes Besset e pelo professor Henrique Figueiredo Carneiro. Podemos dizer que esse lembrar, no texto de Besset e Carneiro, traduz-se pelo tecer, pois é no próprio alinhavo dos textos apresentados no livro que os autores reconstroem, costuram e desvelam as marcas e os fios constitutivos dos discursos contemporâneos sobre a psicopatologia do cotidiano, encaradas à luz da clínica atual.

Ancorado no rigor de sua argumentação, na potencialidade de sua análise e no vasto e profundo conhecimento do tema, o livro refere-se a um conjunto de textos produzidos por autores brasileiros e estrangeiros envolvidos no ensino e pesquisa da psicanálise e da psicopatologia em diversas universidades brasileiras, latinas e europeias, que se colocaram a trabalho no intuito de desvelar suas práticas e demonstrar as incidências da clínica psicanalítica no que tange ao ensino, à pesquisa e à prática da psicopatologia na atualidade.

Sabemos que o tempo presente caracteriza-se por um imperativo categórico do gozo, em que os ideais contemporâneos são marcados por uma lógica do consumo. Da mesma forma, a prática clínica atual tem se deparado com o surgimento de novas demandas e figuras clínicas que frequentemente comparecem, na mídia ou no discurso médico, como "novas patologias". É com base, de certo modo, em tal constatação, que Besset e Carneiro propõem uma abordagem dessas formas de sofrimento psíquico pautada não apenas em uma política de classificação, com sua consequente segregação, mas, antes, em um tipo de construção teórica que leva em consideração um sujeito que não é silenciado pelas políticas universais de saúde que propõem uma solução universal para o sofrimento e o mal-estar atuais. É nesse ponto de partida que o livro encontra sua maior força. Da mesma maneira, a força da obra sedimenta-se no grupo de pesquisadores envolvidos em temas diversos, mas que têm a supremacia da clínica como "motor e mola" dos 13 textos que constituem a presente coletânea.

Vera Besset já é uma autora conhecida nos círculos acadêmicos e psicanalíticos. Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris VII e professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui diversos trabalhos publicados no Brasil e no exterior, dentre eles, a obra coletiva Angústia, em parceria com outros professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Da mesma maneira, o professor Henrique Carneiro, doutor em Psicologia pela Universidade Católica de Madrid, possui larga experiência no ensino e pesquisa em Psicopatologia, além de ser autor de vários trabalhos, dentre eles "Que Narciso é esse? ou Mal-estar e resto". Tais autores, conscientes de que, em geral, o aparato discursivo sobre a psicopatologia tem traduzido o sofrimento psíquico como categoria a ser contabilizada no universo científico, os organizadores, com muita propriedade, evitam as armadilhas de uma visão catalogalizante, atentos às íntimas relações entre saber e poder que se estabelecem e se reproduzem no seio da própria linguagem. Assim, o livro pretende não apenas mapear o território discursivo sobre a psicopatologia e a clínica, mas antes, busca apresentar "o mais vivo da clínica, suas questões, soluções, desafios, impasses e invenções". Da apresentação desses elementos, contribuições e reflexões é que emerge o traço minucioso da psicopatologia atual alicerçada em uma clínica contemporânea que convoca o sujeito a se responsabilizar. Numa perspectiva ampla, o livro é dividido em três partes, autônomas e interdependentes, a saber: Contribuições sobre a psicose; Corpo e sintoma; Atualidades em Psicopatologia.

Na primeira parte do livro, os organizadores propõem uma discussão a partir da clínica das psicoses e o que ela pode ensinar ao Analista hoje. Sabemos que Lacan, em seu seminário intitulado "O Sinthoma", dedicado ao escritor James Joyce, localiza, a propósito da escrita do romancista irlandês, uma solução singular de amarração dos registros Real, Simbólico e Imaginário, cujo efeito não é a produção de sentido. Para Lacan, a arte de Joyce "é uma arte para o que convém o nome de sinthoma". Se Joyce é o paradigma da psicose no último ensino de Lacan, os autores aqui concernidos apoiam-se em tal ensino para fazer valer suas discussões, seja no âmbito de uma prática, seja no âmbito de uma pesquisa teórica propriamente dita. É desse modo que o texto de Jésus Santiago apresenta os novos dispositivos clínico-assistenciais presentes na cidade e que, de alguma forma, os Centros Psicanalíticos de Consulta e Tratamento, ligados aos Institutos de Psicanálise do Campo Freudiano têm se ocupado do sintoma contemporâneo. Para esse autor, a nomeação dos novos sintomas aparece como um modo de situar o gozo do sujeito, e tal nomeação apresenta-se como uma orientação pragmática na direção do tratamento, em função dos efeitos que daí advém. A partir de um caso clínico de psicose é que Santiago vem apresentar o "primado da prática como um ponto de partida da nossa perspectiva clínica" (p. 47), o que garante o dinamismo inerente ao real do sintoma.

Aliás, um outro aspecto significativo da obra refere-se ao fato dos textos retomarem o debate teórico-metodológico sobre a psicopatologia do cotidiano e seus desafios, numa apropriação do mais pulsante da teoria psicanalítica, discutindo o pensamento e as ideias básicas de vários estudiosos, mas, de modo específico, as discussões de Freud e Lacan. Merecem também atenção, nessa parte, as mais variadas saídas encontradas pelo sujeito psicótico quando ele se encontra com um Analista e o modo como os analistas colocam-se como parceiros do sintoma de tais sujeitos, sempre na empreitada de fazer com que tal sujeito descubra um "saber-fazer" com o seu sintoma.

Na segunda parte, variados textos de variados autores detêm-se, com perícia, nas discussões sempre atuais a respeito do corpo e seus acontecimentos. De modo geral, os textos direcionam-se pela ideia de Miller (2004) de que, no que diz respeito ao corpo, trata-se sempre de acontecimentos de discurso que deixaram traços. Traços estes que desorganizam o corpo, fazem sintoma nele. É assim que Bastos discute, a partir da obra literária de M. Duras, como o corpo pode ser um importante instrumento de diagnóstico na clínica psicanalítica. Para essa autora, "... ao psicanalista cabe (...) autenticar [no corpo] não o transtorno da ordem vital, mas a substância gozante em busca de consistência e localização do gozo" (p. 145).

Como uma espécie de amarração final dos textos, o livro termina com discussões em torno de temas atuais em psicopatologia. É por esse viés que os organizadores propõem o debate em torno do diagnóstico e tratamento da angústia, o uso dos psicofármacos na abordagem do sofrimento mental, os constantes desajustes apresentados pelo sujeito contemporâneo, sempre tendo o direcionamento da prática clínica como o forte das discussões. Por esse caminho, a professora Marta Ambertín, da Universidade de Buenos Aires, adentra-se no atual e polêmico tema da paternidade. Se as avançadas técnicas em torno da investigação da paternidade têm garantido, com precisão cada vez maior, desvendar as dimensões biológicas e dizer sobre "quem é o pai", tais técnicas, como era de se esperar, são insuficientes para responder "o que é ser um pai", naquilo que diz respeito à sua maior particularidade, que é o que se trata de sua função. Assim, a partir de uma vinheta clínica, a autora discorre sobre a função do pai e seus efeitos na subjetivação. Trata-se, dessa forma, de uma discussão que se pauta na premissa de que a função do pai é a condição para a instauração do destino desejante do sujeito. Nesse mesmo bloco final, há ainda importantes considerações em torno da transexualidade, da adoção e da perversão.

As contribuições da obra organizada por Besset e Carneiro são amplas e variadas. Por se constituir como resultado de pesquisas e da experiência de um grupo de professores-pesquisadores membros do Grupo de Trabalho de Psicopatologia e Psicanálise da Associação Nacional de Pesquisa em Psicologia, a obra constitui-se como leitura imprescindível para estudantes dos mais variados cursos que têm, como um de seus campos de atuação, a psicopatologia, a psicanálise e a saúde mental. Do mesmo modo, interessa a pesquisadores que se debruçam em temas diversos ligados à clínica e à psicopatologia, além de ser um livro que interessa a profissionais desses campos citados e que são diuturnamente confrontados com os desafios que a clínica cotidiana impõe. Podemos pensar, também, que a obra interessa a um público maior: aquele interessado em acompanhar as discussões ligadas à contemporaneidade e aos efeitos subjetivos que ela traz. Assim, se "No osso da fala dos loucos têm lírios", como sustenta Manoel de Barros, no "osso" da clínica e da psicopatologia do cotidiano também os "lírios" podem ser encontrados e, pode-se dizer, esta obra constitui-se como tal.

CÁSSIO EDUARDO SOARES MIRANDA

Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

Rua Calunga, 30/403 - Pampulha

31270-410 Belo Horizonte, MG, Brasil

e-mail: cassio.edu2007@gmail.com

  • Psicose, sintoma, psicopatologia: a clínica contemporânea e suas vicissitudes

    Cássio Eduardo Soares Miranda
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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