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Uma genealogia de infames

A geneology of "infamous men"

RESENHAS DE LIVROS

Uma genealogia de infames* * Agradeço á minha orientadora, professora Ana Teresa A. Venâncio, pela leitura e sugestões dadas na revisão do texto desta resenha.

Renata Prudencio da Silva

Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil

Lília Ferreira Lobo

Rio de Janeiro: Lamparina, 2008

Inválidos, incapazes, excluídos, aleijados, deformados, alienados, mentecaptos, doentes ou simplesmente degenerados são algumas das categorias que Lília Lobo resume na ideia de sujeitos infames, aos quais atribui a característica da invisibilidade histórica. Ao enfocar suas trajetórias a autora acredita revelar parte da história de nosso país: a da constituição das categorias de deficiência no Brasil. O livro versa sobre sujeitos que atravessaram as adversidades de sua época e que, por não possuírem voz, tiveram suas histórias esquecidas: crianças, escravos, deficientes.

Lília Lobo parte do Brasil Colônia, atravessa o período imperial e chega à fase republicana, mas trata-se de um trabalho que mais do que considerar os fatos históricos em seus contextos procura utilizar estes mesmos fatos como um instrumento de análise do presente. Segundo a autora, a deficiência como a conhecemos hoje, não existiria como coisa em si, o que não quer dizer que ela não possa ser interrogada. Deste modo, toma a investigação histórica como meio de desmantelar a naturalização daquilo que hoje chamamos de deficiência, analisando seus modos de institucionalização, ou seja, tomando-a como um acontecimento e ressaltando sua faceta social.

No esforço de descolar a categoria de deficiência dos sentidos que lhe atribuímos contemporaneamente, Lília Lobo utiliza os trabalhos de Michel Foucault, principalmente sua noção de genealogia, para fazer ranger estruturas que há muito se acomodaram. O uso da genealogia implica em construir sua investigação sobre as práticas que revelam os modos de conhecer e de agir dos indivíduos em relação aos seus objetos. Estas práticas, acionadas nos mais diversos contextos institucionais, operariam sobre os comportamentos destes indivíduos, e, segundo Lília Lobo, estes dispositivos das relações de poder caracterizariam os modos pelos quais homens governam outros homens. Portanto, por intermédio da análise destes dispositivos poderíamos entender como a deficiência teria sido objetivada em modos específicos de agenciar a própria deficiência. O fio central para construir esse entendimento é o de analisar como diferentes expressões da anormalidade se transformaram em imagens da deficiência.

Para a autora é possível observar no caso do Brasil quatro diferentes eixos de formação histórica de padrões de anormalidade, que também servem para balizar a organização do livro: 1) a história das monstruosidades e a produção dos corpos com a teratologia e com a produção de degenerados, abordado no capítulo um; 2) o ideal eugênico e sua aplicação na sociedade, onde vemos o controle preventivo sobre o perigo social da procriação no capítulo dois; 3) a história do corpo que desenvolve no capítulo três e que vai desde o que a autora chamou de descartabilidade do corpo escravo até o corpo assujeitado do operário burguês e 4) o modo pelo qual se engendrou a formação dos processos de institucionalização e de construção dos primeiros estabelecimentos especializados, no início do século XX, que tomam como objeto a figura da criança anormal, desenvolvidos nos capítulos quatro e cinco.

Lília Lobo demonstra que a produção destes cenários se fez a partir de discursos eruditos e científicos, inspirados em teorias europeias, mas como revela a autora, aqui recepcionados de modo particular. Assim, torna visíveis aqueles indivíduos tomados como objetos por tais saberes, em um esforço de humanizar estas histórias, localizando as vidas e os corpos de carne e osso que atravessam estes registros. É assim que Lília Lobo nos apresenta seus personagens, tais como as representações dos selvagens brasileiros, dos índios canibais, bem como da figura do idiota, todos subjetivados ora a partir da perspectiva da monstruosidade, ora da degenerescência e da teratologia.

Conhecemos assim a figura de Brite Fernandes, mentecapta e aleijada, e suas desventuras com o tribunal inquisitorial em Olinda, arrolada em um processo de denúncias, culpas e torturas. Em uma articulação sagaz, Lília Lobo vincula o esquadrinhamento inquisitorial ao tribunal eugênico, que chama de "tribunal de todos os desvios", responsável pelo julgamento de doentes mentais, cegos e surdos-mudos ou desviantes de outra ordem como prostitutas e onanistas. Um novo mecanismo de poder seria então instituído no Brasil a partir das práticas da medicina social dos séculos XIX e XX, responsável por introduzir uma ação normalizadora da sociedade, partindo da medicalização do hospital e se direcionando às famílias, quartéis, escolas e fábricas.

Ao se dedicar à significação da deficiência dos negros e escravos, Lília Lobo traz à tona o corpo massacrado de personagens como Teresa Cabinda, a rainha escrava que, acusada de adultério, é mandada ao Brasil e que teve como infortúnio maior que a senzala o trabalho na moenda do engenho, que levou seus dois braços.

Por fim observamos os momentos de instituição dos primeiros estabelecimentos especializados como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Instituto dos surdos-mudos, bem como a emergência do Pavilhão-Escola Bourneville, seção destinada às crianças internadas no Hospital Nacional de Alienados, importante espaço de instauração da prática médico-pedagógica considerada como um marco no processo de psiquiatrização da infância.

É com meticulosa investigação e levantamento de fontes, como teses médicas, artigos em periódicos e mesmo registros inquisitoriais, que Lília Lobo delineia as trajetórias destes sujeitos infames em suas vidas marcadas pela má fama de categorias de anormalidade, e infames também pelo esquecimento de suas biografias pela história.

Lília Lobo parte da perspectiva do campo de saberes em que se insere como psicóloga, deixando transparecer o lugar e o momento de onde fala, ultrapassando, por vezes, a norma e a pretensão de isenção do ofício histórico, mas mantendo-se fiel à sua paixão nas relações que constitui e pelas quais é constituída, investindo no entendimento e implicação de seu espaço e de sua intervenção no mundo.

RENATA PRUDENCIO DA SILVA

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense - UFF (Niterói, RJ, Brasil); mestre e doutoranda em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).

Rua Vereador Maurício de Sousa, 77 - Fonseca

24110-539 Niterói, RJ, Brasil

e-mail: renata.prudencio@gmail.com

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    Agradeço á minha orientadora, professora Ana Teresa A. Venâncio, pela leitura e sugestões dadas na revisão do texto desta resenha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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