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Cracolândia, por diretrizes convergentes

EDITORIAL

Cracolândia, por diretrizes convergentes

Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

Câmara Técnica de Saúde Mental

A sociedade civil paulista tem sido obrigada a enfrentar nos últimos tempos um novo desafio, para o qual não se sente historicamente preparada, pois desconhece precedentes de tal magnitude: o surgimento de zonas urbanas consagradas ao uso explícito e incoercível de crack, as chamadas "cracolândias".

Embora o fenômeno tenha se expandido para mais cidades do Estado, é na Cracolândia da capital que ocorrem acirrados embates entre os diversos setores da sociedade envolvidos no enfrentamento da questão.

Causou comoções a intervenção policial, realizada no início de 2012, inclusive com o emprego de violência contra a população frequentadora da região.

A abordagem da Cracolândia depende de ações sincrônicas e sinérgicas de vários setores da vida pública, dentre os quais, seguramente, a Medicina e outras categorias profissionais da saúde.

A iniciativa açodada da administração pública não levou em consideração princípios primários de pluralidade. Reduziu, com isso, a complexidade do tema da toxicomania no espaço urbano a um assunto estritamente policial. E, mesmo no campo da segurança pública, o assunto foi reduzido à esfera da criminalidade a ser banida a qualquer custo, ignorando procedimentos humanitários e integrados.

Qualquer intervenção pública na Cracolândia deve considerar a interpretação sanitária do flagelo, para a qual a toxicomania é um transtorno mental passível de tratamento e, consequentemente, merece o respeito que a sociedade deve consagrar a seus doentes.

Pode-se discutir os aspectos legais dos problemas de conduta associados a esses estados patológicos, marca das sociedades contemporâneas. Mas é preciso ir além, é imprescindível desenvolver meios complexos de análise e intervenções capazes de responder às variadas faces do uso e abuso de substâncias psicotrópicas.

Uma ação policial autônoma e intempestiva, que se descola da participação conjunta da saúde, da justiça e da assistência social, ignora a diversidade de situações individuais, e reduz todos os doentes à obscura categoria de criminosos.

Cabe ressaltar que, mesmo na esfera sanitária, está longe de ser atingido o consenso a respeito da atuação pública no uso, abuso e dependência de substâncias. Mas devem ser rechaçadas soluções fáceis e incensadas e, ao mesmo tempo, implementadas iniciativas capazes de compreender de modo mais amplo esse dilema atual.

Como é prática geral na Medicina, faz-se necessário, para um entendimento mais racional desse campo polêmico da saúde mental, uma avaliação prudente e detalhada de cada caso individual. Ou seja, um diagnóstico de cada situação particular antes do encaminhamento das condutas.

O presente debate, justificadamente acalorado, não pode lançar-se apressadamente sobre decisões coletivas que massacram as diferenças clínicas, capitais para a prática médica.

Assim, por exemplo, as discussões sobre a pertinência ou não da internação involuntária tornam-se ociosas se não levarem em consideração os diagnósticos social e clínico corretos para sustentar cada modalidade de tratamento.

A ação pública na Cracolândia não está amadurecida o suficiente para dar respostas efetivas à convivência da criminalidade, com problemas sociais e familiares, uso recreativo de substâncias, quadros de dependência química moderados e graves, até estados psicóticos provocados pelo uso do crack. Cada um desses grupos, para mencionarmos uma lista apenas preliminar, merece tratamentos diversos, assim como a mobilização de setores governamentais distintos.

A diferenciação da população usuária de crack não é mero preciosismo médicosanitário. Nem pretende agir como obstáculo à ação do poder público. Trata-se de assegurar os direitos humanos e à saúde contidos na Constituição de 1988.

As opções terapêuticas, mesmo que não sejam consensuais, derivam do exercício diagnóstico. A eleição de um equipamento ou estratégia terapêutica como principal _ ou única _ para a investida contra o problema é fruto tanto de desinformação quanto de conflitos impertinentes.

Para além de discutir se é necessário internar ou não essa população, urge ponderar sobre a articulação de todas as possibilidades de atuação, desde os consultórios de rua, o albergamento socioterapêutico, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), até as eventuais internações involuntárias, procedimentos já pactuados em instâncias como o Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (CONED), Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e Conselho Federal de Medicina (CFM).

Quanto às internações compulsórias, embora frequentemente defendidas como medidas de saúde e de proteção da vida, própria ou do outro, devem ser alçadas à condição de intervenção estatal sobre os indivíduos. Podem resultar em um perigoso intervencionismo, ao partir do pressuposto de que as ações sanitárias e assistenciais não são capazes de se afirmar, subordinando-as a ditames de ordem externa.

De qualquer modo, como tal modalidade é prevista em lei, o seu emprego parcimonioso, individualizado e pontual é o único uso aceitável.

Temos todos enorme responsabilidade diante desse drama que toca a sociedade e exige respostas à altura de sua dimensão. A Medicina pode oferecer sua colaboração em duas frentes: assegurando a ética, como guardiã das garantias constitucionais e da assistência incondicional às necessidades do ser humano; e implementando a técnica baseada nas evidências médico-científicas e no saber multiprofissional. Não há, portanto, espaço para o voluntarismo terapêutico ou higienista.

À investigação diagnóstica individualizada soma-se a tolerância, o respeito e a insistência como ingredientes para o resgate dos cidadãos usuários e dependentes do crack.

APROVADO NA REUNIÃO DA CÂMARA TÉCNICA DE SAÚDE MENTAL DO CREMESP EM 28 DE JANEIRO DE 2012

HOMOLOGADO NA SESSÃO PLENÁRIA DO CREMESP DE 31 DE JANEIRO DE 2012

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2012
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