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Morrer pela boca

CONFERÊNCIA

Morrer pela boca* Endereço para correspondência: Sérgio de Gouvêa Franco Rua Napoleão de Barros, 299 04024-002 São Paulo, SP e-mail: sg-franco@uol.com.br

Sérgio de Gouvêa Franco

Psicanalista com prática clínica em São Paulo; Doutor pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (Campinas, SP, Br), com tese recebida com distinção e louvor que virou livro: Hermenêutica e Psicanálise na Obra de Paul Ricoeur; Pós-doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (São Paulo, SP, Br); Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo, SP, Br), onde fez formação em psicanálise; Membro da Associação Universitária em Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Br), onde coordena o programa de Iniciação Científica; Professor de psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP (São Paulo, SP, Br). Autor de artigos publicados no país e no exterior, além de livro e capítulo de livros em coletâneas. Estudou ciências exatas com mestrado em engenharia na Universidade de São Paulo - USP (São Paulo, SP, Br). Estudou também filosofia e religião com um segundo mestrado no Canadá. Foi Reitor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado - Fecap (São Paulo, SP, Br) nos anos 2006 a 2010. Professor do Centro Universitário Senac (São Paulo, SP, Br)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Sérgio de Gouvêa Franco Rua Napoleão de Barros, 299 04024-002 São Paulo, SP e-mail: sg-franco@uol.com.br

Introdução

Michael Fassbender nasceu em Heidelberg, Alemanha, há 35 anos. Pai alemão e mãe da Irlanda do Norte; foi criado em pequena cidade da inglesa Irlanda. Sua performance no filme Um método perigoso, como Jung, pode ter eletrizado pela beleza e pelas posses de seu personagem, ou pode ter produzido repúdio por transar com a paciente Sabina Spielrein. No filme Shame, dirigido pelo negro Steve McQueen, Michael trafega pelos trens do metrô de Nova Iorque, interpretando Brandon e vivendo conflitos marcados pela solidão radical, pela impulsão ao sexo, pela impaciência e pela sofreguidão. Quando olha para a moça desconhecida, à frente, no banco do trem do metrô, os olhares se incendeiam, mas ela desaparece para retornar apenas na última cena do filme... No bar de frequentadores duvidosos, madrugada avançada, Michael/Brandon diz a outra moça sensual, correndo o risco de apanhar do homem que a acompanha: I want to taste you, tocando o seu sexo. To taste em inglês refere-se à comida, a experimentar pelo paladar; misturando sexo e comida, ele quer comê-la.

Dietética e história da alimentação

Desde a Antiguidade, a dietética tem sido considerada importante parte da ciência e da medicina. Visa a alimentação conveniente nos estados de saúde e doença. Até a descoberta da penicilina em 1928, tem papel fundamental no controle de doenças infecciosas e respiratórias. A boa alimentação é uma das principais estratégias para manter e recuperar a saúde, reforçando defesas imunológicas do organismo. Ela se funda nos estudos técnicos: que tipo de coisa é boa para ser ingerida? Como se dá a incorporação necessária dos nutrientes? O processo digestivo é cada vez melhor compreendido em animais e humanos, quer se refira à operação de macroestruturas, quer se refira às trocas entre células e moléculas. A valorização dos legumes e a recomendação de diminuir a ingestão de manteiga ou açúcares estão relacionadas aos progressos da dietética. Nos Spas se ensina a comer devagar, mastigar bem e controlar o ritmo da refeição.

Etnólogos se debruçam sobre as preferências alimentares e sobre os possíveis sentidos simbólicos dos alimentos. As proibições alimentares estão nas origens de nossa civilização. Nos livros bíblicos de Levítico e do Deuteronômio, com cerca de 3.000 anos, aparecem instruções sobre o que comer e o que não comer. No livro do Gênesis a primeira proibição refere-se à alimentação: "não comerás do fruto da árvore" (Gen. 3.3). A proibição "não cozerás o cabrito no leite de sua mãe", repetida várias vezes na Torá, procura evitar um incesto culinário: não se deve colocar mãe e filhote no mesmo caldeirão. Os hábitos culinários nos rementem a fundas experiências de identidade.

No livro de Levítico há uma clara exortação à separação: "fareis distinção entre o animal puro e o impuro" (Lev. 20.25). A proibição desvela um medo primitivo, o medo de se tornar impuro. Antes mesmo de um sentimento de culpa, há um sentimento de horror, um sentimento de ser penetrado, de ser contaminado pelo mal. Não se deve comer animais impuros para que algo fundamental não se perca. O homem antigo teme ser contaminado, envenenado, perder a pureza pela invasão. Em um momento com fraca separação entre o físico e o ético, encontramos um substrato de horror e um medo vago de retaliação. O tabu traduz o horror de ser infectado, de se tornar impuro e se perder. Não se deve comer certos tipos de alimentos para não destruir a dimensão propriamente sagrada da existência: "não comerás do fruto da árvore."

Em cada cultura estabelecem-se prescrições sobre o alimento com implicações nas relações sociais, saúde, mitos e variados sentimentos; tudo associado à sobrevivência ou à inanição. A pesquisa dos hábitos e da vida privada, que teve primeiro destaque acerca da vida dos gregos antigos, foi também estendida aos medievais e modernos. Os resultados dessa pesquisa indicam que, entrando aparentemente pela porta do fundo, como o estudo de um detalhe em um relato de sonho, a estes estudos abre-se um mundo de possibilidades de compreensão do humano na análise da comida e dos hábitos de alimentação.

A alimentação tem sido estudada em cada grupo social. O modo de se alimentar é um indicativo da classe a que se pertence. O que sobra na mesa do rico alimenta, por meio do lixo, o pobre que disputa com cães o que comer: superalimentação de uns e escassez de outros. A análise dos hábitos de alimentação mostra a mudança de posição nos banquetes dos gregos, e depois dos romanos: da posição deitada para a refeição sentada a partir da alta Idade Média. Sabemos que não apenas a comida mobiliza, mas também a falta de alimentação move a humanidade. A falta do que comer engendra guerras e horrores de guerra. O atraso das técnicas agrícolas aumenta os índices de mortalidade. Ficam estabelecidas as relações propriamente econômicas da comida, da falta de alimentos, da tecnologia, da demografia e dos tempos de paz ou guerra. Formulam-se questões. De que morrem as pessoas? De fome? De problemas digestivos decorrentes de má alimentação? De doenças endêmicas que prosperam em organismos enfraquecidos pela desnutrição?

As pesquisas dietéticas avançam, os desequilíbrios são condenados... Relações calóricas são estabelecidas, proporção de glucídios, de protídeos e dos lipídeos fica recomendada. Busca-se também a proporção adequada de vitaminas e minerais. A dietética não se refere, no entanto, apenas ao comer e ao beber. Refere-se a um modo de viver, a um jeito de afastar o mal, aproximar a saúde e estender a vida indefinidamente. O que fica anunciado em uma dietética, neste regime ético/estético, é um bem factível de ser encontrado. Para a dietética é possível achar saúde plena e duradoura. Se quisermos dizer, a dietética quer afastar a morte: viver bem, para sempre. A dietética se funda em uma moral. Apregoa uma vida moderada, temperada como um bom prato de comida. "A virtude está no meio", seguindo o ensino de Aristóteles. A felicidade para o Estagirita é resultado de uma vida equilibrada, equilibrada pela razão. Trata-se de um conhecimento especializado, refinado, sobre o corpo e sobre o bem viver. Une ciência e ética aplicadas. No curso da história de nossa civilização a dietética muda, mas segue propondo um jeito que não seja de morrer, mas de salvar-se pela boca.

O fracasso da dietética

Tudo seria bem mais simples se fosse possível seguir a dietética, seguir o regime e manter a higiene. O que se observa, entretanto, é a inobservância sistemática, repetida, contumaz, das regras de cada época. A abstinência recomendada fracassa. O fruto proibido é comido. Fica desvelado que estamos diante de um estilo que busca o que não se pode alcançar. A dieta seria a tentativa de ir além: além da condição limitada, finita, propriamente humana do humano. Ao menos em suas formas mais radicais, a dietética pretende erradicar todo o desamparo.

Vários são os exemplos da transgressão: ideais religiosos e médicos são quebrados. A lepra é um bom exemplo do passado, destaca Foucault. Doença visível que expõe horrores e úlceras. Há um conjunto de contraexemplos: loucos, libertinos, suicidas, que colocam em questão a ficção de um sujeito completo, feliz e condizente. Lepra, peste negra, doenças venéreas, sífilis, tuberculose e, mais recentemente, o câncer, o que estas doenças todas de amplo espectro social mostram é que não é possível sustentar a imagem de um homem completamente saudável e apartado da doença. Nem toda a dieta, associada a exercícios físicos e moderação, poderá conduzir a isto. Todo homem é marcado pela fissura. Não caminhamos apenas para o ideal, caminhamos para a quebra do ideal. A incompletude é permanente e constitutiva. Há sempre algo que coloca em xeque a perfeição visada em nossa sociedade tecnológica.

O trabalho de Henrique Figueiredo Carneiro aponta o exemplo atual. A AIDS é a forma mais evidente hoje do fracasso das abstinências. Algo irrompe no corpo de forma brutal e a busca do prazer é feita de um modo que fica colocada a possibilidade de entrar em contato com o vírus. A vida racional fracassa, a busca desesperada coloca em descoberto o lado sombrio da existência. Fracassa a explicação e o controle. A dietética falha, a arte de viver acaba e gasta-se a saúde em busca de algo que não se pode atingir. A única forma de se eliminar este risco é destituir o humano de sua própria condição humana.

Neste contexto, podemos ver quais são os buracos tão presentes, ao mesmo tempo tão escondidos, em nossa cultura? A exclusão não será o recurso para a sobrevivência do ideal? Podemos incluir o lado sombrio? Não será a dietética uma concepção de vida desapegada da noção de morte, um programa de prazer e vida completamente livre dos sofrimentos? Neste sentido, romper com a dietética não seria finalmente humanizar o humano?

Por que é que não se segue a dieta? Porque voraz ele ou ela não se saciam: querem sempre mais, transgridem; quebra-se, triunfa a paixão sobre a recomendação. Que sintoma é este, entrecruzamento do pessoal e do social, que desborda em todos estes distúrbios da oralidade, da adição e da insaciabilidade? Pathos: o corpo chora esta loucura toda. Como conter sua destrutividade? Dietética fracassada, acompanhada de sentimentos de insuficiência, fragilidade e vazio. Alguma expectativa de recompor a potência? Olá Brandon.

Oralidade e suas perturbações

Da perspectiva psicanalítica não se trata de falar apenas em alimentação: o que é melhor comer ou o que é melhor não comer, o que sustenta a saúde ou o que adoece. Nem pensar o clínico, superegoicamente, regular o que a anoréxica ou a bulímica comem ou deixam de comer. O que está em questão é a oralidade e suas perturbações. O alimento nos leva, pela via da oralidade, aos fundamentos psíquicos, às primeiras fases do desenvolvimento sexual, aos primeiros investimentos do eu. As perturbações da oralidade falam de relações de amor desastradas, de dependência extrema, de ódio e de narcisismos. Se vamos tocar o tema da ética da oralidade temos de lembrar a compulsão, a adição e as organizações ou desorganizações perversas. Falar em oralidade é refletir sobre diferenciação e sobre a dificuldade de diferenciação do sujeito e seus objetos.

Em fevereiro de 1915, Freud manda um artigo sobre melancolia para Abraham. O médico alemão, 21 anos mais moço que Freud, devolve com a sugestão de que a melancolia está profundamente ligada às questões da oralidade. Ideia que Freud incorpora parcialmente ao seu texto publicado em 1917, mas escrito em 1915, praticamente ao mesmo tempo em que escrevia o livro sobre narcisismo. A conexão de "Luto e melancolia" e "Introdução ao narcisismo" é evidente. A expressão "agente crítico" aparece em ambos os livros, no primeiro referida à melancolia e no segundo à paranoia. Em 1923, em "O ego e o id" a expressão "agente crítico" vira "superego", ou "supereu", dependendo da preferência da tradução, e a melancolia, podemos dizer, pode ser descrita como um conflito entre o eu e o supereu, entre o ego e o superego.

Em "Totem e tabu", Freud trata da ingestão como um mecanismo para promover a identificação. Na versão de 1915 de "Três ensaios...", ele confirma a ideia de que a identificação se dá pela incorporação oral. Identificação é um caminho para a escolha de objeto, mas na melancolia há uma regressão do amor à identificação, com o fim do objeto como tal. Melancólicos e depressivos têm os mesmos sintomas, com uma diferença: no melancólico há recriminação radical de si que não aparece no luto normal. Sabemos que o melancólico não consegue fazer o trabalho que finalmente o desprenderia do objeto perdido. Ele não consegue abandonar o que já perdeu. O melancólico é um Narciso que devora seus objetos. Para compreender o homem dos lobos, Freud lança mão da análise de sua fase oral. Em outros tantos lugares, ele pensa a oralidade e suas perturbações.

Ego ainda em formação, na fase oral o investimento e a identificação são indistinguíveis. O ego se defende como pode, como sempre, de pulsões e investimentos. Sabemos que quando alguém é obrigado a desistir de um objeto, o que ocorre frequentemente é uma alteração do ego que poderia ser descrita como a instalação do objeto perdido dentro de si. Ou seja, apela aos mecanismos típicos da fase oral para dar conta da perda, pela introjeção e pela incorporação. O ego ludibria o id tornando-se parecido com o objeto perdido. Podemos dizer que o ego é um precipitado de investimentos libidinais abandonados. O ego conta a história dos amores, dos investimentos e das perdas. Há uma profunda relação entre ego e id. O ego tenta aplacar o id, tornando-se parecido com os objetos que o id perdeu. Lembramos a citação algo espirituosa de Freud, simulando uma fala entre ego e id: "Olhe, você também pode me amar; sou semelhante ao objeto" (em "O ego e o id").

Este mecanismo de decaimento do amor à identificação, típico da melancolia, estudado cuidadosamente por Freud em "Luto e melancolia" e entendido com uma função mais ampla em "O ego e o id", tem função clínica importante. Desconfio que tenha também importante papel para entender as relações sociais. A melancolia e o narcisismo grassam livremente. Engolem-se objetos, incorporam-se os outros como se fossem carne, leite ou sobremesa. Estamos na festa de Babete! Frente ao vazio gerado pelo fim da gratificação narcísica, há irritação, há depressão, atuações e comilança voraz de todos os tipos. Para encher o vazio, come-se, mas não se pode, por meio da boca, evitar a melancolia no fim das gratificações.

A criança e sua alimentação

O que sacia um bebê é a combinação de alimento e afeto. Além da boa nutrição, a mãe tem de se tornar um lugar de aconchego. Estes cuidados iniciais todos são de grande importância para a constituição do ego. Em A criança e o seu mundo, de 1964, Winnicott dá instruções para mães com bebês pequenos. Neste livro aparentemente simples, pensa a importância da alimentação. Alimentação é presença. "Em qualquer período da história" - ele afirma - "uma mãe levando uma vida saudável, terá facilmente pensado a alimentação do bebê como uma simples relação entre ela própria e seu filho." Depois que as crianças pararam de morrer de diarreia e vômitos provocados por germes, foi ficando mais claro, para médicos, especialistas e também para as mães, a dimensão propriamente emocional da alimentação.

No começo, a mãe adapta-se de tal modo às necessidades e à dinâmica do bebê, que este tem a ilusão de que o seio materno está sob seu controle. A onipotência é a sua experiência. O bebê cria o seio imaginariamente: cada vez que o seio lhe é oferecido, o bebê o cria ao mesmo tempo. Graças aos cuidados maternos, o bebê sente que é ele quem cria os objetos que lhe são oferecidos. É a criatividade primária que dá origem à criatividade na vida adulta. Esta criatividade primária não é apenas beleza e harmonia. Há agressividade também, ataques vorazes são desfechados contra o seio, com eles a mãe suficientemente boa lida sem retaliar e sem masoquismos.

Aos poucos, à medida que o bebê cresce, a mãe vai se discriminando do bebê e deixando de promover esta adaptação tão completa e perfeita às necessidades de seu filho. O bebê vai descobrindo que o mundo existe antes e apesar de suas necessidades. Quando ele tem uma boa experiência de onipotência no início da vida, suporta mais tarde a frustração de sair do centro do mundo. Como um dia achou que criou o mundo, conseguirá aceitar depois que o mundo já estava lá, antes dele. Trata-se do árduo trabalho rumo à realidade. Se tudo der certo, o bebê fará a passagem de um mundo subjetivamente concebido para a realidade objetivamente percebida e socialmente construída. É o desmame físico e emocional.

Se este raciocínio estiver certo, surge o viver criativo e uma sensação de estar vivo. Trata-se de um espírito que é o reverso do espírito depressivo, esquizoide. Em vez de tudo parecer sem graça e sem força, prevalece o sentimento de que a vida vale a pena. A imaginação ocupa um lugar fundamental. Em jogo uma sensação de criar aquilo que esta bem à frente. Mas quando a criança não tem esta experiência, pode ser que o destino seja outro. Aparece uma falsa criatividade e um controle manipulativo da situação. A vida fútil e entediada aparece. A realidade é vivida apenas como privação. Como não houve uma suficiente experiência com a onipotência poderá ocorrer a exacerbação da onipotência na vida adulta.

Aqui estamos ante a diferença entre poder esperar e participar do processo secundário, ou perder toda a esperança no futuro, entrar em desespero e ficar na primariedade. É regredir aos ataques vorazes que pretendem aplacar todo desconforto. A boca sai atrás de algo que diminua a angústia, quer seja a droga, quer seja o outro reduzido a si mesmo, narcisicamente devorado. Distúrbios da oralidade, melancolia em vez de alegria de viver. Fim da capacidade de elaborar as perdas. Como pensa a convocatória deste Congresso estamos fazendo a passagem pelo "canibalismo e pela antropofagia" é o fim "da ética da oralidade, entendida como os limites da liberdade sobre práticas orais". Está lançada a diferença entre a civilização e a barbárie.

Luta pelo reconhecimento

Em 1996, Axel Honneth sucedeu Jurgen Habermas em seu posto na Universidade de Frankfurt; poucos anos depois, em 2001, assumiu também a direção do Instituto de Pesquisa Social. Seu nome se liga à teoria crítica fundada, décadas atrás, por Max Horkheimer e se liga ao nome de Theodor Adorno que também dirigiu o Instituto. Habermas atenuou a crítica à racionalidade dominante e instrumental demonizada por Horkheimer e Adorno. Honneth dá mais um passo. Seguindo a proposta de Habermas de construir o pensamento social em bases intersubjetivas, Honneth defende a ideia que a base da interação social é o conflito, que se expressa na luta por reconhecimento - nome de sua tese de livre docência. Ele se volta à compreensão da experiência do desrespeito social, da experiência do ataque à identidade pessoal ou coletiva e ao estudo de todas as reações que este desrespeito e ataque promovem. Como restaurar o reconhecimento mútuo ou desenvolvê-lo em bases melhores?

Honneth se debruça sobre os estudos de Hegel e sobre o pragmatismo de Georg Mead. Na medida em que se aprofunda, começa a discutir temas como autonomia e ligação afetiva, simbiose e autoafirmação e não escapa à psicanálise. Começa a olhar para os relacionamentos doentios para ver se entende quais seriam as condições para uma bem-sucedida ligação entre as pessoas. Descobre a vida pulsional e o infantil e enriquece sua psicologia social com estes elementos. Com Freud, Spitz, Bowlby, Winnicott e outros, pensa as relações iniciais mãe-bebê. Reconhece que a privação grave da dedicação materna leva a distúrbios de comportamento. O bebê humano desenvolve em seus primeiros anos de vida uma disposição para trocas interpessoais; estas experiências são esclarecedoras das ligações emocionais posteriores. O que ocorre antes da fala é de grande importância para a vida social posterior. Honneth vai explorar assim as consequências políticas deste potencial social da psicanálise que se preocupa com o ambiente.

O tema da diferenciação mãe-bebê, estudado por Winnicott, mostra a importância do outro e da cooperação para constituição do eu e da subjetividade. A vida começa com dependência absoluta. Há parceria e interação. Só aos poucos é que se dá a discriminação, pelo caminho que leva à dependência relativa e à perda da onipotência. Este processo de desligamento da criança de sua mãe, que inclui agressividade é uma luta diz Honneth, uma luta por reconhecimento. Há uma transicionalidade que vai permitindo a criança ir substituindo a mãe por objetos e finalmente cair nas relações de mútua dependência da vida social. O que fica claro é que, como nunca é possível fazer uma passagem completa a esta vida social objetivamente construída, os componentes subjetivos estão sempre muito presentes nas interações sociais. Quando as coisas vão bem, ou relativamente bem, temos criatividade e confiança. Mas em nenhum ser humano as coisas vão completamente bem. Nunca o ser humano supera completamente o medo de ser abandonado e não consegue se entregar completamente aberto à experiência de viver. A conquista é sempre parcial; em alguns casos estas conquistas simplesmente não se estabelecem.

O que Honneth está dizendo é que as relações sociais, marcadas pela subjetividade, têm uma memória inconsciente das vivências iniciais de fusão e desfusão com a mãe. As costas de cada um em sua experiência social, durante a vida toda, há este desejo de estar fundido com outra pessoa. Caso este sentimento não tenha sido educado por uma experiência de desilusão e separação, o que temos são vetores de conteúdo patológico com grandes implicações sociais e políticas. Há por aí elementos que permitem identificar o que se poderia chamar de um masoquismo e sadismo sociais. Não havendo a capacidade de se desligar de uma autonomia egocêntrica ou de uma dependência simbiótica - temas centrais de nosso pensamento sobre a oralidade - as trocas sociais se desarmonizam em relações rígidas ou violentas, onipotentes e agressivas, onde o outro deixa de ter autonomia como objeto e é devorado; desaparece todo reconhecimento verdadeiro. Claro que Honneth vai acrescentar outros elementos não intersubjetivos em sua análise. Seria uma besteira tentar explicar tudo a partir das relações mãe-bebê, mas algo aqui está dado.

Honneth é uma contribuição que enriquece a crítica de Adorno à indústria cultural, sempre importante em um momento voltado ao consumismo sem limites: eu, o outro, a cultura e o prazer, tudo sendo consumido vorazmente. No instante da intensificação da modernidade, há o que poderíamos chamar de uma perversão das relações sociais. Devido a intensas forças e intensos interesses econômicos, sofremos uma verdadeira coerção que vai na direção do consumo do outro e de si mesmo. Consumo canibal, violento, doente. Vivemos o que Richard Sennett, o professor da London School of Economics, chama de a corrosão do caráter. Tanto mais vulneráveis a esta coerção social e a esta corrosão de caráter estamos quanto menos experimentamos este processo de ilusão e desilusão iniciais. Tanto mais vulneráveis estamos quanto menos alcançamos o equilíbrio que evita devorar o objeto ou expulsá-lo de nossas vidas. Só criativa vivência permitirá ter o outro a conveniente distância, sustentando o objeto sem devorá-lo e sem se identificar simbioticamente com ele.

Conclusão

Não temos a pretensão de dar conta de fenômenos psíquicos e sociais tão complexos. Apenas nos colocamos na Ágora, dizendo algo na praça pública, junto com colegas da Psicopatologia Fundamental. A Psicopatologia Fundamental se interessa por esta experiência complexa, trágica e inesgotável que é a experiência de estar vivo. Sabemos que pathos nos visita e, além de sofrer, nos faz rir e desejar viver. A Psicopatologia Fundamental dá mostra que prospera, oferecendo espaço para articular e parcialmente elaborar a riqueza humana, sem nunca sustentar uma palavra final sobre ela.

Assim acabamos... Seguimos nos trens de Nova Iorque, como Brandon no filme Shame, olhando para lá e para cá, olhando as mulheres e a vida. Esperamos com paciência o alimento e o amor... Até aqui. Obrigado.

Referências

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* Conferência pronunciada no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, de 5 a 9 de setembro de 2012 em Fortaleza, CE, Brasil.

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    Sérgio de Gouvêa Franco
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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