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Sintoma e fenômeno na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian

Symptom und Phänomen in der Psychopathologie von Arthur Tatossian

Symptom and phenomenon in the psychopathology of Arthur Tatossian

Symptôme et phénomène dans la psychopathologie phénoménologique d'Arthur Tatossian

Síntoma y fenómeno en la psicopatología fenomenológica de Arthur Tatossian

Resumos

As noções de sintoma e fenômeno ocupam um lugar central na tradição da psicopatologia fenomenológica. Este artigo tem como objetivo discutir estas noções no pensamento de Arthur Tatossian. Elas contribuem para a construção de um modelo de psicopatologia e de clínica fenomenológica que prioriza a experiência. A liberdade do sujeito é considerada em uma dialética entre autonomia e heteronomia. Modos de assistência regidos sobre a noção heideggeriana de cuidado são desenvolvidos.

Psicopatologia fenomenológica; Arthur Tatossian; sintoma; fenômeno


Die Auffassungen von Symptom und Phänomen nehmen eine zentrale Stellung in der Tradition der phänomenologischen Psychopathologie ein. In diesem Beitrag sollen diese Auffassungen im Rahmen der Konzeption von Arthur Tatossian besprochen werden. Sie tragen zur Gestaltung eines Psychopathologiemodells und eines Modells der phänomenologischen Klinik bei, welche die Erfahrung priorisieren. Die Freiheit des Subjektes wird aus dialektischer Perspektive zwischen Autonomie und Heteronomie betrachtet. Es werden Betreuungsweisen entwickelt, die von der heideggerischen Auffassung von Fürsorge regiert werden.

Phänomenologische Psychopathologie; Arthur Tatossian; Symptom; Phänomen


The notions of symptom and phenomenon have held a central place in the tradition of phenomenological psychopathology. This article discusses these notions in the thinking of Arthur Tatossian, as they contribute to the construction of a model of psychopathology and phenomenological clinical approach that give priority to experience. The subject's freedom is considered in a dialectic between autonomy and heteronomy. Modes of treatment based on Heidegger's notion of care are also developed.

Phenomenological psychopathology; Arthur Tatossian; symptom; phenomenon


Les notions de symptôme et de phénomène occupent un lieu central dans la tradition de la psychopathologie phénoménologique. Cet article a comme but de discuter ces notions dans la pensée d´Arthur Tatossian. Elles contribuent pour la construction d´un modèle de psychopathologie et de clinique phénoménologique qui priorise l´expérience. La liberté du sujet est prise en considération par une dialectique entre l'autonomie et l'hétéronomie. Cet article développe d'ailleurs des modes d´assistance régies sur la notion de soin de Heidegger.

Psychopathologie phénoménologique; Arthur Tatossian; symptôme; phénomène


Las nociones de síntoma y fenómeno ocupan un lugar central en la tradición de la psicopatología fenomenológica. Este artículo tiene por objetivo discutir estas nociones en el pensamiento do Arthur Tatossian. Ellas contribuyen para la construcción de un modelo de psicopatología y de una clínica fenomenológica que prioriza la experiencia. La libertad del sujeto es considerada en una dialéctica entre autonomía y heteronomía. Modos de asistencia regidos por la noción heideggeriana de cuidado son desarrollados.

Psicopatología fenomenológica; Arthur Tatossian; síntoma; fenómeno


ARTIGOS

Sintoma e fenômeno na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian* Endereço para correspondência: Lucas Bloc APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade de Fortaleza Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz 60811-341 Fortaleza, CE, Br. Fone: (85) 9998.2805 e-mail: lucasbloc@yahoo.com.br

Symptom and phenomenon in the psychopathology of Arthur Tatossian

Symptôme et phénomène dans la psychopathologie phénoménologique d'Arthur Tatossian

Síntoma y fenómeno en la psicopatología fenomenológica de Arthur Tatossian

Symptom und Phänomen in der Psychopathologie von Arthur Tatossian

Lucas BlocI; Virginia MoreiraII

IPsicoterapeuta; mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Fortaleza, CE, Br); professor na mesma universidade; pesquisador do APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica Crítica

IIPsicoterapeuta; Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (São Paulo, SP, Br) e Pós-Doutora em Antropologia Médica pela Harvard University, como pesquisadora Fulbright. É Professora Titular da Universidade de Fortaleza (Fortaleza, CE, Br), Supervisora Clínica credenciada pela Sociedad Chilena de Psicológia Clínica, membro da World Association of Person Centered and Experiential Psychoterapies, membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Br)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lucas Bloc APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade de Fortaleza Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz 60811-341 Fortaleza, CE, Br. Fone: (85) 9998.2805 e-mail: lucasbloc@yahoo.com.br

RESUMO

As noções de sintoma e fenômeno ocupam um lugar central na tradição da psicopatologia fenomenológica. Este artigo tem como objetivo discutir estas noções no pensamento de Arthur Tatossian. Elas contribuem para a construção de um modelo de psicopatologia e de clínica fenomenológica que prioriza a experiência. A liberdade do sujeito é considerada em uma dialética entre autonomia e heteronomia. Modos de assistência regidos sobre a noção heideggeriana de cuidado são desenvolvidos.

Palavras-chave: Psicopatologia fenomenológica, Arthur Tatossian, sintoma, fenômeno

ABSTRACT

The notions of symptom and phenomenon have held a central place in the tradition of phenomenological psychopathology. This article discusses these notions in the thinking of Arthur Tatossian, as they contribute to the construction of a model of psychopathology and phenomenological clinical approach that give priority to experience. The subject's freedom is considered in a dialectic between autonomy and heteronomy. Modes of treatment based on Heidegger's notion of care are also developed.

Key words: Phenomenological psychopathology, Arthur Tatossian, symptom, phenomenon

RESUMÉ

Les notions de symptôme et de phénomène occupent un lieu central dans la tradition de la psychopathologie phénoménologique. Cet article a comme but de discuter ces notions dans la pensée d´Arthur Tatossian. Elles contribuent pour la construction d´un modèle de psychopathologie et de clinique phénoménologique qui priorise l´expérience. La liberté du sujet est prise en considération par une dialectique entre l'autonomie et l'hétéronomie. Cet article développe d'ailleurs des modes d´assistance régies sur la notion de soin de Heidegger.

Mots clés: Psychopathologie phénoménologique, Arthur Tatossian, symptôme, phénomène

RESUMEN

Las nociones de síntoma y fenómeno ocupan un lugar central en la tradición de la psicopatología fenomenológica. Este artículo tiene por objetivo discutir estas nociones en el pensamiento do Arthur Tatossian. Ellas contribuyen para la construcción de un modelo de psicopatología y de una clínica fenomenológica que prioriza la experiencia. La libertad del sujeto es considerada en una dialéctica entre autonomía y heteronomía. Modos de asistencia regidos por la noción heideggeriana de cuidado son desarrollados.

Palavras clave: Psicopatología fenomenológica, Arthur Tatossian, síntoma, fenómeno

ZUSAMMENFASSUNG

Die Auffassungen von Symptom und Phänomen nehmen eine zentrale Stellung in der Tradition der phänomenologischen Psychopathologie ein. In diesem Beitrag sollen diese Auffassungen im Rahmen der Konzeption von Arthur Tatossian besprochen werden. Sie tragen zur Gestaltung eines Psychopathologiemodells und eines Modells der phänomenologischen Klinik bei, welche die Erfahrung priorisieren. Die Freiheit des Subjektes wird aus dialektischer Perspektive zwischen Autonomie und Heteronomie betrachtet. Es werden Betreuungsweisen entwickelt, die von der heideggerischen Auffassung von Fürsorge regiert werden.

Schlüsselwörter: Phänomenologische Psychopathologie, Arthur Tatossian, Symptom, Phänomen

Introdução

A psicopatologia fenomenológica tem como característica fundamental a busca da compreensão do vivido psicopatológico e de suas condições de possibilidade, tendo como principais representantes Minkowski, Binswanger, Strauss, Tellenbach, Blankenburg, Kimura Bin, entre outros. A distinção entre sintoma e fenômeno está no bojo da imersão da fenomenologia no campo psicopatológico e representa uma via de construção e delimitação de um modelo de clínica fenomenológica que se sustenta sobre e na experiência. Um dos principais representantes deste pensamento na contemporaneidade é Arthur Tatossian (1929-1995).

Psiquiatra francês de origem armênia, Arthur Tatossian desenvolveu substanciais contribuições àquilo que tece as relações entre uma psicopatologia fenomenológica e uma filosofia fenomenológica que ecoa no desenvolvimento de uma clínica fenomenológica que envolve não somente a psiquiatria, mas também a psicologia e a psicoterapia. Trata-se de uma implicação fenomenológica de trabalhar primordialmente com a experiência e desenvolver um modo compreensivo de se trabalhar com o paciente, indo além de um caráter puramente aplicativo e meramente metodológico.

A noção de sintoma é central principalmente na medicina e representa muitas vezes a única via de compreensão quantitativa de um sujeito em sofrimento e de referência para um diagnóstico. Com a aproximação histórica da fenomenologia com a psiquiatria, o abandono da atitude natural passou a figurar como elemento central, exigindo um olhar diferenciado sobre as expressões do vivido e uma posição ética de considerar aquilo que o paciente traz. A partir disso, a noção de fenômeno ganhou espaço e trouxe modificações importantes. Este artigo tem como objetivo discutir as noções de sintoma e fenômeno na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian, considerando que estas noções contribuem para o desenvolvimento de uma clínica fenomenológica e para o campo da saúde mental.

A noção de sintoma em psicopatologia e o modelo inferencial de diagnóstico

Um sintoma, considerado somático, sinaliza para um processo somático patológico ligado por uma cadeia causal com o qual é possível inferir a existência de uma doença. Já no sintoma psiquiátrico ou psicopatológico, esta função de remeter a outra coisa é ainda mais exercida. Diferentemente do somático, o sintoma psiquiátrico não permite sair do plano descritivo, pois o vivido do paciente é o objeto por excelência da experiência psiquiátrica, somente atingida pela mediação de aspectos exteriores, vias de expressão desses vividos (Tatossian, 1978/1997a, 1979/2006).

Outro traço diferencial é que o sintoma somático, por remeter-se ao soma, pode significar apenas uma parte da realidade, ou seja, pode significar a independência entre um ou vários sintomas somáticos. Tal independência não se admite no sintoma psiquiátrico ou psicopatológico por sempre atingir seu valor em relação com os outros, ou seja, advém da dificuldade de comunicação e, a partir de referenciais, padrões de normalidade (Tatossian, 1978/1997a, 1979/2006.

A dificuldade de comunicação, por exemplo, ou mesmo a ausência, constitui a noção de sintoma psicopatológico, ele "nasce com a falta de comunicação e as rubricas da semiologia psiquiátrica lhe cataloga diversas formas: se o maníaco apresenta uma fuga de ideias pode-se dizer que sua velocidade 'normal' (para ele) de pensar não é aquela do psiquiatra" (Tatossian, 1979/2006, p. 40). Já o soma "é por excelência propriedade privada e inalienável do indivíduo" (p. 40), independendo da situação ou mesmo do observador.

Situar o sintoma apenas no campo anatomofisiológico é problemático por configurar-se como algo que não é produzido pelo sujeito, impondo-se de modo heteronômico, no qual ele é simples portador e vítima. Tal perspectiva também acaba orientando para o tratamento de um sujeito puramente receptor e passivo. A doença se anuncia no sintoma, sem se mostrar; sinaliza apenas que algo está presente, obrigando a inferências diagnósticas. Se a doença realmente se mostrasse, não haveria necessidade de inferências (Tatossian, 1986, 1993/1997d; 1979/2006).

Neste modelo, infere-se por comparação com configurações presentes na memória e em manuais. Então, o diagnóstico psiquiátrico se faz a partir dos sintomas e o mais preocupante é que se apreende no sintoma mais do que o próprio sintoma ou do que o paciente poderia verbalizar, funcionando muitas vezes por ensaio e erro (Tatossian, 1993/1997d, 1979/2006). Além disso, o modelo inferencial repousa sob a ideia de que "a atividade clínica tem por única finalidade aquela de permitir a passagem entre semiologia e nosologia, tais quais elas são sedimentadas nos tratados e nos manuais" (Tatossian, 1989, p. 1). Neste sentido, há uma transposição de um modelo que rege o diagnóstico somático sobre o diagnóstico psicopatológico (Tatossian, 1994).

Os sintomas são uma parte minoritária da massa de informações percebidas pelo clínico no contato com o paciente e o modelo inferencial gera limitações à prática clínica por realizar muitas vezes uma filtração drástica daquilo apresentado pelo paciente, sendo o sintoma apenas um índice deste problema. Tatossian (1994) questiona o modelo inferencial, critica sua utilização única, pautada sempre em parâmetros probabilísticos e puramente sintomáticos, e procura outro modelo que possa dar conta do processo diagnóstico e seja realizável: o modelo perceptivo.

O modelo perceptivo/tipológico: do diagnóstico à terapêutica

Tatossian (1994) propõe a saída de um modelo de diagnóstico clínico inferencial/sintomático para um modelo perceptivo/tipológico. As entidades diagnósticas não seriam mais inferidas a partir do sintoma, mas percebidas globalmente a partir da compreensão de um diagnóstico que está sempre em statu nascendi no sintoma e com o sintoma. Trata-se de um modelo em que a atividade clínica aparece como "uma atividade propriamente perceptiva e o reconhecimento das entidades psiquiátricas como um fenômeno fundamentalmente expressivo" (Tatossian, 1989, p. 6).

Os elementos semiológicos ou nosológicos não são competência do fenomenólogo justamente por ele buscar se abster de todo prejulgamento e por não se interessar pelo "sintoma, mas pelo fenômeno, não pelos doentes, mas pelas maneiras de viver" (Tatossian, 1985/1997c, p. 181). Segundo Tatossian (1989), o "conteúdo material do sintoma importa menos que a forma que ele assume, ou seja, o modo do vivido global, o estilo de vida essencial, cuja percepção direta assegura o diagnóstico" (pp. 6-7). Então, não se diagnostica, por exemplo, a esquizofrenia ou a depressão, mas antes a esquizofrenicidade ou a depressividade como modos de vida global que se apresenta ao clínico e que podem ter um sintoma incorporado a este estilo global de ser: "o distúrbio do paciente é percebido não depois e a partir do sintoma, mas com e no sintoma" (Tatossian, 1994, p. 93). Tal compreensão permite o distanciamento de uma compreensão precoce, preconcebida e estática do sujeito.

No diagnóstico perceptivo, os tipos de doentes mentais são reconhecidos antes mesmos das próprias doenças, estabelecendo, dessa forma, um quadro tipológico. Então, se o reconhecimento de entidades diagnósticas é de natureza originalmente perceptiva e expressiva, o número destas entidades é necessariamente baixo, pois dificilmente se poderiam conceber centenas de estilos de vida diferentes (Tatossian, 1989). Diante desta consequência e antes de buscar em um dos dois modelos a validade exclusiva de um ou do outro, Tatossian procura definir o lugar e a legitimidade de cada modelo. Para ele, é bem provável que o modelo perceptivo esteja mais correntemente sendo utilizado na cotidianidade da clínica, mesmo que muitas vezes seja utilizada a linguagem do modelo inferencial. No entanto, é antes o equilíbrio, que varia de acordo com circunstâncias, meios e objetivos, entre os dois modelos, que pode levar a clínica psiquiátrica a uma racionalidade científica autêntica (Tatossian, 1989).

Diante da questão do diagnóstico, Tatossian (1989, 1994) assume um posicionamento crítico de questionar a rapidez e a precocidade do diagnóstico e a postura muitas vezes estática da psiquiatria. Trata-se de um processo diagnóstico que se dá de acordo com o movimento experiencial do sujeito e o sintoma ocupa um lugar acessório, sinalizador de algo que desperta maior interesse ao fenomenólogo, o fenômeno, e impulsiona um possível modelo fenomenológico de diagnóstico que é puramente processual, se dá sempre no encontro com o clínico e busca, sobretudo, compreender o modo de funcionamento do paciente, muito antes de qualquer enquadramento.

A noção de fenômeno em psicopatologia e sua origem heideggeriana

A conversão da experiência do sintoma àquela do fenômeno não é simples nem fácil para o clínico, que geralmente está habituado com representações da ciência natural, atravessadas por manuais de diagnóstico e modelos de tratamento que englobam, sobretudo, a experiência do sintoma. Isto limita o campo de compreensão do sujeito e produz um processo terapêutico também limitado por somente se orientar sobre aquilo que o paciente traz como sintoma.

Segundo Tatossian (1993/1997d), "a experiência do fenômeno se faz sempre contra o curso espontâneo da vida humana, já que exige o abandono da atitude natural" (p. 215). A conversão implica também em sair de uma simplificação restrita ao sintoma em uma análise causal e previsível para uma compreensão do fenômeno em busca de uma análise essencial. Isto significa uma modificação que vai de uma priorização do diagnóstico à terapêutica, da patologia mental, pensada apenas como teorização, à clínica. O modelo inferencial cede lugar ao modelo perceptivo no sentido de uma percepção do modo de ser global do sujeito que se manifesta em cada um dos fenômenos percebidos (Tatossian, 1993/1997d).

O interesse dos fenomenólogos é pelo fenômeno e Tatossian utiliza principalmente a forma que Heidegger o define. Em seu principal livro, Ser e tempo (1927/1997), Heidegger conceitua inicialmente fenômeno sugerindo que se mantenha o significado de fenômeno como "o que se revela, o que se mostra em si mesmo" (p. 58). Sendo assim, a fenomenologia se definiria como "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo" (p. 65). Nesta perspectiva, Heidegger se refere ao modo como a fenomenologia compreende, prioriza e lida com aquilo que emerge em um contexto científico.

A descrição ocupa um lugar fundamental por se estabelecer "a partir da própria coisa" (Heidegger, 1927/1997, p. 65), em uma determinação a partir do modo em que os fenômenos se dão, sobrepondo a ideia de um simples procedimento metodológico. Como ser dos entes, não há nada "atrás" do fenômeno sobre o qual a fenomenologia se interessa. Há, na verdade, um fenômeno que pode se velar e aí se situa a necessidade da fenomenologia: "A fenomenologia é necessária justamente porque, de início e na maioria das vezes, os fenômenos não se dão. O conceito oposto de 'fenômeno' é o conceito de encobrimento" (Heidegger, 1927/1997, p. 66). A fenomenologia clínica atuaria no sentido de desvelar aquilo que está encoberto, o fenômeno.

Por um lado, o fenômeno é muito menos que o sintoma na capacidade de se mostrar, por se colocar sob a forma e estilo de vida do paciente e por não ter valor como índice que permitiria inferir a existência de uma doença. Mas, por outro, ele é muito mais que o sintoma, no sentido da amputação da experiência, por distanciar-se de tudo aquilo que está presente e que não se configura como característica intrínseca do paciente e está ligado, por exemplo, a aspectos culturais ou situacionais. Ele comporta o constituindo e o constituído, a manifestação externa e suas significações como condição transcendental de possibilidade (Tatossian, 1986, 1996). Então, a psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian evidencia um fenômeno que se apresenta na clínica como modo de ser global do sujeito, como funcionamento que, ao perder o movimento, está fadado a um quadro psicopatológico. A ênfase sobre o fenômeno significa um olhar sobre a experiência, que se apresenta fenomenologicamente e no contexto clínico.

O fenômeno como experiência fenomenológica clínica

O fenômeno "é diretamente dado na experiência psiquiátrica, na condição de que ela se faça experiência fenomenológica" (Tatossian, 1979/2006). A experiência fenomenológica pretende apreender o modo de ser global do sujeito, as significações dos comportamentos e dos vividos (Tatossian, 1986). Então, contrariamente a uma concepção habitual, "a experiência aqui não é um ponto de partida do trabalho psiquiátrico, mas uma meta, não é um terminus a quo, mas um terminus ad quem. É neste sentido que a fenomenologia é uma 'escola da experiência'" (Tatossian, 1986, p. 129). Ou seja, nesta concepção, a experiência vai além do ponto de partida para a compreensão de uma psicopatologia, ela está sempre em movimento, se transforma e traz novos elementos para uma compreensão do vivido do paciente. A fenomenologia não se fecha em elementos pré-dados, ela vai se compondo com a experiência, vai "aprendendo" com a experiência, e o fenômeno se mostra em uma experiência fenomenológica clínica.

Na experiência fenomenológica, parte-se da compreensão da existência de uma liberdade que permanece, o que por si só já a torna uma experiência potencializadora. A psicopatologia fenomenológica possui a capacidade de integrar o problema da liberdade como fundamento enquanto que uma teoria pautada por elementos técnico-instrumentais pouco permite que a liberdade apareça - exclui, em vez de permitir o aparecimento da liberdade (Tatossian, 1986).

Tatossian (1993/1997d) considera que um distúrbio psicopatológico não pode jamais ser totalmente heteronômico, há uma parte da autonomia, da liberdade, que persiste, até mesmo em casos de psicose grave. Segundo ele, "não há jamais a loucura integral e o louco permanece um sujeito" (p. 217). Trata-se de um vivido que significa os comportamentos, é o "modo de ser do indivíduo, por trás do qual não há nada a buscar ou a supor" (p. 132).

Pela fenomenologia, Tatossian (1993/1997d) considera que a psiquiatria se engaja na via do fenômeno, o que a leva ao problema da terapêutica, assumindo, a partir disso, uma posição de reguladora crítica das psicoterapias existentes na busca por recolocá-las no caminho de um projeto adequado à experiência do fenômeno. Em uma orientação para o sintoma, não é difícil definir a tarefa terapêutica ou mesmo psicoterapêutica, já que a doença já está localizada no sintoma e naquilo que produz, isolando claramente o homem, que não é mais que o portador. Como pura técnica, a terapêutica passa a ter como pressuposto o condicionamento heteronômico do vivido e do comportamento, pouco importando sua origem (Tatossian, 1986, 1993/1997d).

Tatossian possui o mérito de sempre considerar a liberdade como elemento central no tratamento, como possibilidade do sujeito, como implicação de um lugar fenomenológico que o clínico deve assumir como quem busca uma compreensão e, de certa forma, uma facilitação na busca da maior autonomia para o paciente. Discutir a liberdade nos leva na direção do cuidado presente na relação clínica e dos modos de assistências na clínica fenomenológica.

O cuidado e modos de assistência na clínica fenomenológica

A forma como Tatossian (1984/1997b, 1993/1997d) discute e incorpora a questão do cuidado tem origem naquilo que Heidegger chamou de Ser-com (Mitsein) e, mais precisamente, o que ele descreve como Preocupação (Fürsorge). Cuidar ou tratar é concebido como uma forma de se ocupar do Outro, de estar-com, de se preocupar com o Outro (Tatossian, 1993/1997d). Esta é uma compreensão presente em toda a obra de Tatossian e um modo de fazer clínica que tem no cuidado com o Outro seu fundamento.

Heidegger (1927/1997) compreende que o Ser-com é próprio da constituição do homem como ser-no-mundo e o cuidado faz parte da essência do Dasein, estando presente em toda atitude e situação de fato e constituindo-se sempre como ocupação e preocupação, dois modos básicos do cuidado. É sobre a noção heideggeriana de preocupação como algo fundante e constitutivo do Dasein como Ser-com que Tatossian pensa uma clínica fenomenológica.

A noção de cuidado ocupa um lugar importante na obra de Heidegger e isto está diretamente ligado ao entendimento de que o Dasein está sempre no-mundo, enraizado em uma estrutura de significações e em um contexto de relações. O ser do homem é cuidado em um sentido ontológico, ou seja, somos cuidado, o que permite uma abertura de um campo de sentido como possibilidades de constituição que, nesta compreensão, vai além de uma simples atitude psicológica protetora, pois é justamente este cuidado que possibilita tal atitude (Sá, 2002).

Trata-se de uma preocupação que é própria do ser humano, ainda que esta possa aparecer de forma deficiente, representada pela indiferença, pelo desleixo e pela despreocupação (Inwood, 1999/2002; Sá, 2002; Tatossian, 1984/1997b, 1993/1997d). Na compreensão de Tatossian (1984/1997b, 1993/1997d), este termo heideggeriano pode ser traduzido como solicitude ou mesmo mutualidade, mas ele prefere utilizar a palavra assistência, por excluir uma possível ressonância afetiva que seria pouco adequada. Ou seja, além dos modos de preocupação deficientes, existem modos de assistência que são fundamentais e, segundo Sá (2002), são de grande importância para uma reflexão clínica, caminho este que o próprio Tatossian segue.

A partir dessa compreensão, Tatossian (1993/1997d) discute duas formas positivas de assistência. Na primeira, o outro é expulso do seu próprio lugar e a assistência se esforça em retirar do outro suas preocupações. É um modo de assistência substitutivo que pode ser exemplificado pela hospitalização, pela escolha não criteriosa da medicação e por uma terapêutica puramente biológica escolhida pelo psiquiatra. Em termos de psicoterapia, acontece quando se provoca a perda de mecanismos supostamente presentes no paciente, impondo-se à revelia de sua vontade. Tal assistência é chamada por ele de "substituinte-dominante"1 1 . Tradução do original francês: substituante-dominante. por colocar o outro em dependência e sujeição, uma espécie de opressão, um cuidado substitutivo.

Heidegger (1927/1997) fala de um modo de preocupação que substitui o outro, que assume suas "ocupações": "Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado" (p. 174). Sá (2002) compreende que este é um modo comum em diversas formas de terapia que estão sempre em busca de uma teoria ou de uma técnica que possa dar conta do existir humano.

Na segunda forma de assistência, há a possibilidade de uma assistência que busca restituir autenticamente os poderes da existência do paciente, de ajudar o outro a tornar-se lúcido e livre, de convidá-lo a se fazer como possibilidade. É o que Tatossian (1984/1997b, 1993/1997d) denomina, em francês, de uma assistência "dévançante-libérante" e que optamos por traduzir, diante da dificuldade linguística, como um tipo de assistência antecipante-liberante. Partimos do sentido posto por Tatossian de um modo de assistência que tem sempre como objetivo levar o outro adiante, potencializá-lo em um trabalho, que parte da crença na potencialidade desse outro e na liberdade que, de diferentes formas, está sempre presente.

Esta é uma compreensão eminentemente heideggeriana, que discute outro modo de preocupação que já não visa tanto substituir o outro, mas sim antepor o outro, colocá-lo diante de suas possibilidades e devolver o cuidado que lhe é próprio (Heidegger, 1997; Sá, 2002). Segundo Heidegger (1997), "essa preocupação que, em sua essência, diz respeito ao cuidado propriamente dito, ou seja, à existência do outro e não a uma coisa que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em seu cuidado, transparente a si mesmo e livre para ele" (p. 174). Este é um modo de cuidar do outro no sentido de se colocar como possibilidade, uma preocupação autêntica e um modo do ser-com em que há uma "abertura dialogante" do clínico para as possibilidades desse outro que é o paciente (Sá, 2002).

A distinção desses dois tipos de assistência não se confunde com as questões propriamente da técnica em psicoterapia, pois estes tipos de assistência podem ser desenvolvidos de uma forma ou de outra, independente da técnica (Tatossian, 1993/1997d). Ou seja, é uma compreensão que se situa no fundo da composição dos modelos de clínica que, independente da abordagem, possuem uma forma de assistir o outro.

Na concepção de Tatossian (1993/1997d), na verdade, o cuidado com os doentes mentais se desenvolve entre estes dois modos de assistência e as circunstâncias. O estado clínico do paciente direciona para uma combinação sucessiva ou simultânea, mas, para Tatossian, o essencial é que, minimamente, a liberdade se mantenha aberta ao paciente para aquilo que ele é, subjetividade ou possibilidade de subjetividade. Ainda que Tatossian não situe tal questão no campo da técnica psicoterápica, ele acena para a possibilidade de que algumas psicoterapias ditas existenciais sucumbam à tentação de serem pedagógicas e de quererem revelar o próprio sentido da vida, quando, na verdade, o que importa é o sentido da vida que somente o sujeito pode conhecer (Tatossian, 1993/1997d).

A distinção entre uma orientação para o sintoma ou uma orientação para o fenômeno não se situa na natureza psíquica ou biológica das técnicas utilizadas, mas sim naquilo que se refere à liberdade do paciente e correlativamente à concepção de cura. Na psiquiatria do sintoma há uma imposição da cura ao paciente, enquanto a psiquiatria do fenômeno busca comportar, ao menos em parte e de forma decisiva, uma espécie de autocura sobre a qual o paciente é o principal agente e parte integrante do processo de tratamento e da compreensão do que considera como cura. Trata-se de dois polos da psiquiatria que devem situar sua ação de acordo com o grau de circunstâncias. A acuidade das manifestações do comportamento, que acabam não permitindo elucidações sobre o seu sentido, a apreciação do grau de liberdade do comportamento ou do vivido, ou mesmo a proporção entre autonomia e heteronomia são circunstâncias que devem ser levadas em consideração (Tatossian, 1993/1997d).

Considerações finais

As noções de sintoma e fenômeno ocupam um lugar central na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian. Ao adotar um posicionamento crítico, Tatossian, além de questionar um modelo vigente e que culmina em uma prática que tende a uma tecnificação da prática clínica, pensa um modelo de clínica que se propõe a ser fenomenológica e a considerar o sintoma como índice que sinaliza para aquilo que é prioritário na psicopatologia fenomenológica: o fenômeno.

A busca do fenômeno está ancorada na noção de experiência e representa um posicionamento ético de sempre considerar o funcionamento do sujeito e permitir a expressão desse sujeito. Trata-se de uma leitura que sempre parte do próprio sujeito e se situa na interseção da experiência que se mostra e aquilo que o clínico possui como atitude natural.

Através do contato constante com o paciente e do desenvolvimento de uma prática regida pela ética e pelo cuidado com o outro, é possível se desenvolver um modelo de clínica fenomenológica que compreende que o paciente possui potencialidades e que o vivido não pode ser reduzido à experiência psicopatológica. Tatossian aproxima a fenomenologia e a psiquiatria sem construir um modelo rígido de psicopatologia e de clínica fenomenológica, pois sempre está voltado para aquilo que ele considera como o "a mais" que a fenomenologia traz para a clínica: o vivido.

Virginia Moreira

APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica.

Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade de Fortaleza

Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz

60811-341 Fortaleza, CE, Br

e-mail: virginiamoreira@unifor.br; virginia_moreira@hms.harvard.edu

Recebido/Received: 28.3.2012 / 3.28.2012

Aceito/Accepted: 15.6.2012 / 6.15.2012

Financiamento/Funding: Esta pesquisa é financiada pela Funcap - Fundo Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fortaleza, CE, Br) / This research is funded by the Funcap - Fundo Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fortaleza, CE, Br)

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Conflito de interesses/Conflict of interest: Os autores declaram que não há conflito de interesses / The authors declare that has no conflict of interest.

* Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado de Lucas G. Bloc, "Introdução à Psicopatologia Fenomenológica de Arthur Tatossian", no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza - Unifor, sob a orientação da professora doutora Virginia Moreira e subvencionada com recursos da Funcap - Fundo Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fortaleza, CE, Brasil).

Parte do presente estudo foi apresentado no XII Congresso Norte Nordeste de Psicologia, em Salvador, no dia 13 de maio de 2011.

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  • Endereço para correspondência:
    Lucas Bloc
    APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade de Fortaleza
    Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz
    60811-341 Fortaleza, CE, Br.
    Fone: (85) 9998.2805
    e-mail:
  • 1
    . Tradução do original francês:
    substituante-dominante.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      28 Mar 2012
    • Aceito
      15 Jun 2012
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