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A confissão da Capes

EDITORIAL

A confissão da Capes

Plínio W. Prado Jr.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Plínio W. Prado Jr Université de Paris VIII Département de Philosophie 2 rue de la Liberté 93526 Saint-Denis, France e-mail: pliniowprado@yahoo.fr Website de PW Prado Jr http://www.atelier-philosophie.org

O que garante a justiça de uma lei?

Mesmo a lei mais justa no seu princípio, na sua letra e no seu espírito, pode engendrar a pior injustiça na prática. Basta que ela permita que se subsuma um caso particular que não é todavia da sua alçada, que não cai sob a sua jurisdição. Nesse instante ela estará causando um dano, prejulgando o caso e prejudicando-o ipso facto.

Exemplo: pode-se considerar justo em princípio que um país administre os seus investimentos em matéria de formação de professores e de pesquisadores de alto nível, em particular no atual contexto internacional de competição tecnocientífica e econômica. É o que se chama uma política científica.

Nessa perspectiva, um governo promulga uma lei visando assegurar o retorno ao país de seus investimentos, sob a forma de "aplicação" da qualificação adquirida por bolsistas formados no exterior. É a incontornável lógica do "retorno sobre investimento" operando em matéria de política científica. Para garantir a sua força coercitiva, a lei prevê uma pena no caso de infração: em caso de não retorno ao país dos benefícios da qualificação, o bolsista deve automaticamente ressarcir a União do dinheiro investido em sua formação.

O que há de mais justo em princípio?1 1 Tal é o princípio da Resolução Normativa n. 005 do CNPq, de 1987, cujo item 5.7 "fixa, nos casos de bolsas de doutorado no exterior, a obrigatoriedade do bolsista de retornar ao Brasil e aqui permanecer por igual período da bolsa, aplicando os conhecimentos adquiridos com o curso, sob pena de ressarcimento integral dos gastos decorrentes da concessão": http://www.cnpq.br/documents/10157/6267d96b-9278-4f46-bf5a-82d33770f0e3

E no entanto... uma vez posta à obra e aplicada aos casos concretos, a lei não cessa de comprovar a sua inadequação à experiência que ela pretendia enquadrar antecipadamente, predeterminar e prever. Na medida em que a letra da lei se confronta com exemplos singulares e situações imprevistas, a sua aplicação dá lugar, no melhor dos casos, à casuística e à jurisprudência, e no pior (e mais corrente), à injustiça pura e simples.

De onde vem o problema?

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior confessa hoje: ele reside no caráter "grosseiro" dos mecanismos de avaliação, no "automatismo" cego de suas respostas (já prontas, pré-respondidas), no "descuido" dos exames, isto é, na desconsideração para com o caso particular.2 2 Denise de Menezes Neddermeyer, diretora de Relações Internacionais da Capes (Estado de São Paulo, 05/12/2012: ). A diretora de Relações Internacionais reconhece assim a necessidade de "criar mecanismos mais afinados para entender e avaliar por que" tal bolsista não volta ao país; admitindo que "até então, quando recebíamos um pedido de permanência [no exterior], automaticamente dizíamos não". Sublinhado por nós.

Essa mea-culpa equivale a admitir o caráter intrinsecamente vicioso e iníquo de uma legislação em funcionamento há um quarto de século. A Capes se declara decidida de agora em diante a "examinar com cuidado" caso por caso. Tal é o objetivo da nova portaria que, corrigindo a legislação precedente, regulamenta doravante, sob certas condições, a desoneração de ex-bolsistas no exterior que não retornam ao país.3 3 Portaria n. 141, de 28 de setembro de 2012 - "Delibera sobre a excepcional desoneração do ex-bolsista no exterior, do compromisso de retorno e permanência no Brasil ou o deferimento de prazo para este retorno": . Eis o texto que introduz a Portaria: "O Presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, considerando que a permanência de bolsista no exterior, após a titulação, desenvolvendo atividades técnico-científicas, pode ser de grande relevância para o país ou para a humanidade, o que pode ser aferido por comissão de especialistas, justificando a flexibilização ou a supressão da obrigação de retorno imediato sob pena de restituição do investimento feito em sua qualificação, resolve (...)"

Naturalmente seria ingênuo acreditar que a nova portaria, regulamentando a possibilidade dessa desoneração, resolveria por si só as carências de uma legislação defensável em seu princípio, mas defeituosa na sua letra e desastrosa na sua aplicação. Seria subestimar a extensão e a raiz de um problema mais profundo. Por exemplo: quem poderia garantir, hoje, que o funcionamento vicioso da lei não será simplesmente transferido, reconduzido ao nível da dita "comissão ad hoc de especialistas", prevista pela nova portaria (§ 1° do art. 1)?

O exercício difícil que visa legislar sobre o saber (sobre a sua produção, transmissão, aplicação, invenção) - implicando portanto necessariamente uma determinada política científica e cultural - , já pressupõe representações e reflexos profundamente enraizados quanto à significação da cultura, do saber, do destino de uma nação e de sua finalidade. É sobre o pano de fundo dessas representações que se decide a sorte futura da lei e de suas aplicações, as suas chances.

Convém portanto tomar a medida do desafio e sondar um pouco mais a fundo o problema levantado pela Capes.

Exemplar atípico

Consideremos um caso manifestamente atípico, conforme o princípio metodológico bem conhecido segundo o qual o estudo de um caso singular, atípico, esclarece o funcionamento do caso característico, normal.4 4 Para uma ilustração desse princípio no domínio da psicopatologia, ver S. Freud, Die Traumdeutung, 1900, G. W., II-III, Imago, 1940-1952; A interpretação dos sonhos, trad. pt. R. Zwick, 2 vol. L&PM, 2012. A vantagem aqui do exemplo atípico em questão é que ele é passível de ser conhecido e analisado do interior, pois ele foi experimentado em todos os seus meandros pelo próprio autor destas linhas, durante longos anos.

Sejam os cinco pontos atípicos seguintes:

  1. Um brasileiro beneficia-se em 1987 de uma bolsa de estudos do CNPq de dois anos e cinco meses. Na época dessa atribuição ele já residia e estudava no exterior (França), com família, há 11 anos, tendo saído do Brasil quando a ditadura militar Geisel estava em plena atividade. Ele já se achava portanto relativamente "formado" no exterior, por seus próprios meios.

  2. A bolsa concedida devia financiar a pesquisa, em andamento, com vistas ao

    doctorat ès lettres em filosofia, comumente chamado de

    doctorat d'État; tratava-se de uma formação doutoral

    sui generis, de longa duração (dez anos), especificidade francesa sem equivalente no sistema universitário brasileiro, não correspondendo portanto ao doutorado padrão do CNPq, nem aos seus parâmetros e critérios de avaliação usuais.

  3. Dada a disparidade entre os dois modelos de doutorado, a duração da bolsa chegou ao fim em março de 1990, ao cabo de 29 meses, antes da tese

    d'État ser concluída. Prevendo essa adversidade, o bolsista tentou negociar o seu retorno, com família, ao Brasil em 1989 (o governo Sarney havia sucedido ao fim do regime militar), aproveitando a sua agenda de palestras e de seminários aqui no meio daquele ano. Foi então que ele descobriu, no terreno, o que lhe haviam dito por carta e telefone: que esse retorno era impossível, as portas da universidade brasileira estavam fechadas, nenhuma universidade contrataria um professor sem o doutorado concluído.

    5 5 Data dessa época a publicação do artigo do signatário, "Ser estrangeiro em sua terra" (in O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia, PUC-RJ, janeiro de 1990). O título faz alusão à célebre definição do "ser brasileiro" de Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em linha: .

  4. Em contrapartida, a universidade francesa se propôs nessa época a contratá-lo como professor, apesar do doutorado estar em andamento. Ela garantia assim uma estabilidade material básica para ele e sua família, permitindo-lhe continuar a pesquisar (a se "qualificar"), ensinar e concluir a tese de

    doctorat d'État.

  5. Nota bene: durante todos esses anos o signatário naturalmente nunca deixou de continuar e de estender suas relações com o Brasil; não apenas no sentido óbvio das relações familiares, pessoais e sociais, mas sobretudo no sentido acadêmico, universitário das relações intelectuais, científicas, de discussão, de intercâmbios e de colaborações (palestras e seminários regulares no Brasil, direção de pesquisas de estudantes brasileiros, supervisão de estágio de professores e pesquisadores brasileiros na França etc.).

E, contudo, apesar desses pontos singulares, não obstante esse itinerário atípico, as diferentes instâncias governamentais brasileiras, se repetindo em eco (auditoria interna do CNPq, Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU)), estimaram justo aplicar, neste caso específico, o modelo padrão que rege o funcionamento habitual das bolsas, com suas regras e critérios de avaliação standards. Repetindo assim, exatamente, o vício de forma e de procedimento que a Capes confessa e critica hoje: amálgamas inadequados, automatismo das respostas, desconsideração do caso particular.

Resultado inapelável: o signatário foi julgado e condenado por "contas irregulares junto à União", intimado pelas instâncias governamentais "a ressarcir a União do dinheiro investido em sua formação, atualizado monetariamente e acrescido de juros de mora".6 6 No momento em que estas linhas são escritas, a quantia em questão, relativa a 29 meses de bolsa, atualizada e acrescida de juros, é do valor de R$ 445.864,41 (Tribunal de Contas da União - 2ª Câmara).

Seria fastidioso entrar em detalhes aqui; ademais, este não é o lugar nem o momento. No entanto, para se tomar brevemente a medida da situação, basta inquirir: qual é a carga da acusação, fundamentalmente? "Não ter dado ao país um retorno das qualificações adquiridas no exterior."

Prova indiscutível disso: o endereço postal atesta que o inculpado não se localiza no Brasil.7 7 Conclusão do Relatório TCU 2012, p. 10: "O destinatário, não localizado no Brasil, continua residindo em Paris - França".

Surge já aí a confusão central, que é de uma outra era, pré-telecomunica-cional: a confusão entre retorno das qualificações e retorno do indivíduo.

Como se queria demonstrar

A principal virtude da evocação aqui deste caso atípico, é que essa experiência permite identificar um problema geral, mais profundo, agindo por trás, para assim dizer, dos vícios de procedimento denunciados pela Capes. Para circunscrever esse problema, examinemos concisamente a noção de retorno, que está no centro da lei em questão e justifica a sua existência propriamente dita.

A razão de ser da lei é: garantir o retorno ao país da qualificação adquirida pelo bolsista no exterior (cf. nota 1). Ora, o texto legislativo, sem nuança, amalgama o argumento ad rem, ligado à coisa de que se trata (a dita qualificação e sua "aplicação" no país), com o argumento ad hominem, concernindo à pessoa (e eventualmente contra a sua boa-fé, a sua seriedade etc.). As análises e os julgamentos ao longo desse processo trazem a marca desse amálgama redutor.

Procedendo assim, o texto da lei confunde e encoraja a confusão do retorno da qualificação com o retorno do bolsista in persona, o retorno do indivíduo. Na verdade, na prática, os juízes e executores da lei desconsideram completamente a questão do retorno da qualificação, para se ater tão somente (e por assim dizer, furiosamente) ao retorno no sentido geográfico, estrito, da pessoa física do bolsista.

Ou seja: na prática, omite-se, esquece-se a razão de ser da lei. A noção de retorno é finalmente reduzida à atestação de volta para casa: retorno do filho ao solo natal, regresso à terra pátria, à mãe gentil. No divertido imaginário dos legisladores e administradores executivos, à lógica econômica do return on investment se sobrepõe visivelmente a Odisseia do espírito (do bolsista): sair (para o estrangeiro) para em seguida retornar (ao solo nacional). O ciclo da viagem fechado, a lei é considerada cumprida. Nenhuma palavra sobre o retorno da qualificação propriamente dita (formação, conteúdos, ensino, colaborações, publicações); manifestamente a questão não é pertinente. Em compensação, se o círculo da odisseia do return não se fecha: ira implacável dos juízes.

Isso mostra de maneira flagrante, como um lapso, que os legisladores, juízes e executores da administração não estão preocupados na verdade com o "retorno de qualificações à universidade brasileira". Mais obcecados pelo retorno da pessoa, eles pouco se importam com o espírito da lei.

O brasileiro que permanece fora é manifestamente vivido pelo funcionário local como uma afronta; sua permanência no exterior é sentida como um ultraje, uma conduta injuriosa: antinacional, antibrasileira, antipática - imperdoável. Daí o despeito e a hostilidade que proliferam nos relatórios desses processos, contaminando as suas análises e os seus julgamentos.

Isso transparece claramente nas cartas oficiais endereçadas ao signatário ao longo destes anos. Sob o jargão jurídico-burocrático, insiste um tom autoritário-militar, incivil, insultante, ameaçador. O seu tema implícito é: todo cidadão - todo pesquisador, todo professor e, finalmente: todo aquele que se destaca - é culpado até prova do contrário. A longa tradição romana e moderna do princípio de presunção de inocência é assim soberbamente ignorada.

Eis como a Administração Pública trata os seus doutores, seus professores, seus cientistas, seus pesquisadores, seus escritores; os que são supostos "educar o Brasil", pensá-lo, exprimi-lo, contribuir para melhorá-lo, cultivá-lo, construí-lo.8 8 "Precisamos educar o Brasil. / Compraremos professores e livros, / Assimilaremos finas culturas... se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens / por que motivo eles se ajuntaram..." (Carlos Drummond de Andrade, "Hino nacional", Brejo das almas, 1934). Como se eles fossem antes de mais nada culpados de serem instruídos, de saberem ler e escrever.

Mas isso atesta também, ao mesmo tempo, que o signatário já tinha sido julgado de antemão, estruturalmente, previamente, prejulgado e prejudicado antes mesmo do processo começar. Este, seguindo burocraticamente as normas da Administração, não fez mais do que confirmar o que já havia sido decidido antecipadamente, desde sempre.

Uma questão então se impõe: de onde vem essa sentença, de qual lugar se enuncia o veredito, o pronunciamento?

Se destacar é, no Brasil, "ofensa pessoal". A declaração é atribuída a Antonio Carlos Jobim. A fórmula concorda em todo o caso com a experiência. Ela reenvia a uma longa história, a dois séculos de tentativas entre nós de circunscrever, analisar e pensar um "complexo" que teria a ver com uma ferida narcísica nacional, uma ausência de autoestima nativa, constitutiva.

Está fora de cogitação aqui, evidentemente, abordar esse problema intrincado e intrigante, difícil, obscuro, amplamente impensado ainda. (Para abordá-lo, o primeiro gesto seria começar imperativamente por desenredar o problema, separando-o da ganga de estereótipos através dos quais opinião e mídia brasileiras acreditam apreendê-lo.) Retenhamos apenas a hipótese de um efeito colateral que concerne ao nosso assunto: o de uma operação de denegação através da qual um narcisismo nacional ferido se metamorfoseia em valorização nacionalista intensa, rejeitando simultaneamente o que está fora ou é de fora.

Transposta em matéria de política cultural e científica, essa operação constitui a receita perfeita para o desastre. Toda representação de uma ciência enraizada geograficamente e enquadrada nacionalmente, todo fantasma de uma ciência nacional, é insustentável epistemologicamente e inquietante politicamente (cf. a biologia "soviética" de Lysenko ou a física "ariana" de Lenard e Stark).

A legislação sobre a qual estamos falando se ocupa de um "objeto" que tem um estatuto especial, que não é um objeto como outro qualquer, posto que se trata do conhecimento - não apenas no sentido estrito do entendimento científico, mas no sentido amplo e incondicional do trabalho do espírito: a faculdade crítica de julgar, de ousar pensar por si mesmo, de acolher o impronunciável, de elaborar a ideia de destinação humana ou de infinito, o pensamento, a arte, a criação.

O conhecimento nesse sentido lato é evidentemente irredutível à condição de objeto, coisa ou instrumento, à mercadoria contabilizável e comercializável segundo a lei do valor, confinada na função miserável de maximizar o ganho, otimizar a relação investimento/benefício (return on investment), aumentar a produtividade e a competição econômica.9 9 A reflexão sobre o advento do "grande mercado do conhecimento", no contexto mundial do "liberalismo cognitivo", encontra-se no centro do livro O princípio de universidade, do signatário; publicado atualmente em francês e em alemão, ele será lançado em português no Brasil este ano. Versão eletrônica (em francês) disponível em linha: http://www.editions-lignes.com/LE-PRINCIPE-D-UNIVERSITE,190.html

Ele é o que, por definição, não é apropriável, e por conseguinte nunca poderia se tornar propriedade particular de "sujeito" algum, estado, nação ou organização. Ele é constitutivamente sem fronteiras, intrinsecamente sem pátria.10 10 Jean-Luc Godard parodia a lógica do retorno (sobre investimento) - que nossas legislações em matéria de política científica tanto afeiçoam - propondo justamente, como medida para tirar a Grécia da atual crise financeira, uma reavaliação da noção de dívida: que se considere com efeito a nossa dívida para com a civilização grega, e se taxe doravante, em proveito da Grécia, o uso da conjunção " logo", legado do racionalismo grego. De modo que, cada vez que numa decisão política, num discurso oficial ou numa negociação diplomática se recorrer a ela ("Nós lhe emprestamos dinheiro, logo você deve nos reembolsar com juros" etc.), um imposto será pago para a Grécia ("Jean-Luc Godard: 'Film is over. What to do?'", The Guardian, Tuesday 12 July 2011: < http://www.guardian.co.uk/film/2011/jul/12/jean-luc-godard-film-socialisme>).

Não se pode nem mesmo dizer que ele seja patrimônio do humano: ele é antes isso que, no humano, é mais do que humano.

Uma legislação tratando do conhecimento é portanto um assunto, um desafio importante demais para ser deixada entre as mãos exclusivas dos legisladores, dos políticos e empresários que os cercam, de seus administradores executivos e de todo o cortejo administrativo de diretores técnicos, magistrados, peritos, auditores federais, relatores ministeriais, procuradores e subprocuradores gerais.

Para pretender realmente à justiça e à legitimidade, para estar à altura do desafio do mundo de hoje, ela exige ser estudada, pensada, trabalhada e discutida no seio de uma Comissão especial, multidisciplinar, contando com a colaboração de personalidades vindas do mundo da Ciência e das Humanidades, cientistas, filósofos, psicanalistas, antropólogos, historiadores, escritores, pensadores.

É difícil evitar a impressão geral de que, sob o álibi de controlar e defender as contas da Nação, legisladores, juízes e executores administrativos parecem, no caso atípico evocado, estar implicados num ajuste de contas pequeno, de ordem pessoal: um acerto de contas com o brasileiro que permaneceu fora, que mora no estrangeiro, o brasileiro que deu certo no exterior. Mas nessa medida, eles estarão cometendo, no instante de julgar e de condenar, uma espécie de delito seu particular.

Não é necessário convocar aqui a meditação kafkiana sobre o Processo, a Lei, o Julgamento, o Veredito, a Administração.

Parafraseemos antes uma escritora judia-ucraniana-brasileira (que todos os funcionários implicados nesses processos deveriam conhecer): Nós precisamos de uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos faltosos, e que na hora em que o legislador legisla, o juiz condena e o executivo executa, eles não estão mais simplesmente promulgando e cumprindo (fazendo cumprir) a lei, punindo um culpado, mas podem estar cometendo o seu delito particular, longamente guardado.

  • Endereço para correspondência:
    Plínio W. Prado Jr
    Université de Paris VIII
    Département de Philosophie 2
    rue de la Liberté
    93526 Saint-Denis, France
    e-mail:
    Website de PW Prado Jr
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    Tal é o princípio da Resolução Normativa n. 005 do CNPq, de 1987, cujo item 5.7 "fixa, nos casos de bolsas de doutorado no exterior, a obrigatoriedade do bolsista de retornar ao Brasil e aqui permanecer por igual período da bolsa, aplicando os conhecimentos adquiridos com o curso, sob pena de ressarcimento integral dos gastos decorrentes da concessão":
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    Denise de Menezes Neddermeyer, diretora de Relações Internacionais da Capes (Estado de São Paulo, 05/12/2012: ). A diretora de Relações Internacionais reconhece assim a necessidade de "criar mecanismos
    mais afinados para entender e avaliar por que" tal bolsista não volta ao país; admitindo que "até então, quando recebíamos um pedido de permanência [no exterior], automaticamente dizíamos não". Sublinhado por nós.
  • 3
    Portaria n. 141, de 28 de setembro de 2012 - "Delibera sobre a excepcional desoneração do ex-bolsista no exterior, do compromisso de retorno e permanência no Brasil ou o deferimento de prazo para este retorno": .
    Eis o texto que introduz a Portaria: "O Presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, considerando que a permanência de bolsista no exterior, após a titulação, desenvolvendo atividades técnico-científicas, pode ser de grande relevância para o país ou para a humanidade, o que pode ser aferido por comissão de especialistas, justificando a flexibilização ou a supressão da obrigação de retorno imediato sob pena de restituição do investimento feito em sua qualificação, resolve (...)"
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    Para uma ilustração desse princípio no domínio da psicopatologia, ver S. Freud,
    Die Traumdeutung, 1900,
    G. W., II-III, Imago, 1940-1952;
    A interpretação dos sonhos, trad. pt. R. Zwick, 2 vol. L&PM, 2012.
  • 5
    Data dessa época a publicação do artigo do signatário, "Ser estrangeiro em sua terra" (in
    O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia, PUC-RJ, janeiro de 1990). O título faz alusão à célebre definição do "ser brasileiro" de Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em linha: .
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    No momento em que estas linhas são escritas, a quantia em questão, relativa a 29 meses de bolsa, atualizada e acrescida de juros, é do valor de R$ 445.864,41 (Tribunal de Contas da União - 2ª Câmara).
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    Conclusão do Relatório TCU 2012, p. 10: "O destinatário, não localizado no Brasil, continua residindo em Paris - França".
  • 8
    "Precisamos educar o Brasil. / Compraremos professores e livros, / Assimilaremos finas culturas... se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens / por que motivo eles se ajuntaram..." (Carlos Drummond de Andrade, "Hino nacional",
    Brejo das almas, 1934).
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    A reflexão sobre o advento do "grande mercado do conhecimento", no contexto mundial do "liberalismo cognitivo", encontra-se no centro do livro
    O princípio de universidade, do signatário; publicado atualmente em francês e em alemão, ele será lançado em português no Brasil este ano. Versão eletrônica (em francês) disponível em linha:
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    Jean-Luc Godard parodia a lógica do
    retorno (sobre investimento) - que nossas legislações em matéria de política científica tanto afeiçoam - propondo justamente, como medida para tirar a Grécia da atual crise financeira, uma reavaliação da noção de
    dívida: que se considere com efeito a nossa dívida para com a civilização grega, e se taxe doravante, em proveito da Grécia, o uso da conjunção "
    logo", legado do racionalismo grego. De modo que, cada vez que numa decisão política, num discurso oficial ou numa negociação diplomática se recorrer a ela ("Nós lhe emprestamos dinheiro,
    logo você deve nos reembolsar com juros" etc.), um imposto será pago para a Grécia ("Jean-Luc Godard: 'Film is over. What to do?'",
    The Guardian, Tuesday 12 July 2011: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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