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Anorexia: "uma neurose paralela à melancolia"

Anorexia nervosa: "eine die Melancholie begleitende Neurose"

Anorexia: "A neurosis parallel to melancholia"

Anorexie: "Une névrose parallèle à la melancolie"

Anorexia: "una neurosis paralela a la melancolia"

Resumos

Investiga-se a assertiva freudiana de que "a neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia". Percorreremos a obra freudiana para construir o paralelo entre essas duas afecções. O conceito de narcisismo e o mecanismo de identificação fundamentarão essa aproximação desdobrada nos seguintes pontos: a anestesia sexual, a autodepreciação e o sadismo.

Anorexia; melancolia; identificação; narcisismo


Hier soll die Behauptung von Freud untersucht werden: "die Ernährungsneurose, die sich parallel zur Melancholie äußert ist die Anorexia nervosa". Wir werden das Werk von Freud durchlaufen, um die Parallele zwischen diesen beiden Affekten herzustellen. Der Begriff Narzissmus und der Identifizierungsmechnismus sind die Grundlage dieser Annäherung, die in folgende Punkte unterteilt wird: die sexuelle Betäubung, die Selbstherabsetzung und der Sadismus.

Anorexia nervosa; Melancholie; Identifizierung; Narzissmus


The objective here is to investigate Freud's statement that "the nutritional neurosis which parallels melancholia is anorexia." We studied Freud's writings to construct an equivalence between these two affections. Narcissism and the mechanism of identification are the basis for this discussion on the concepts of sexual anesthesia, low self-esteem and sadism.

Anorexia; melancholia; identification; narcism


Cet article discute l'affirmation freudienne selon laquelle "la névrose alimentaire parallèle à la mélancolie est l'anorexie". Nous examinons l'œuvre freudienne pour construire une parallèle entre ces deux affections. Le concept de narcissisme et le mécanisme d'identification servent de base à cette approximation à partir de laquelle nous élaborons les points suivants: l'anesthésie sexuelle, l'autodépréciation et le sadisme.

Anorexie; mélancolie; identification; narcissisme


Se investiga la afirmación freudiana de que "la anorexia es la neurosis nutricional paralela a la melancolía". Examinaremos la obra freudiana para construir el paralelismo entre esas dos afecciones. El concepto de narcisismo y el mecanismo de identificación fundamentarán esa aproximación, que se despliega en los siguientes puntos: la anestesia sexual, la autodepreciación y el sadismo.

Anorexia; melancolía; identificación; narcisismo


ARTIGOS

Anorexia: "uma neurose paralela à melancolia"* * O presente artigo foi extraído da dissertação de mestrado homônima de Flávia Coutinho Campos Cunha, orientada pela Profa. Dra. Ângela Maria Resende Vorcaro, e defendida em abril de 2012 FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (Belo Horizonte, MG, Br).

Anorexia: "A neurosis parallel to melancholia"

Anorexie: "Une névrose parallèle à la melancolie"

Anorexia: "una neurosis paralela a la melancolia"

Anorexia nervosa: "eine die Melancholie begleitende Neurose"

Flávia Coutinho Campos CunhaI; Ângela Maria Resende VorcaroII

IPsicanalista; Mestre e especialista em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (Belo Horizonte, MG, Br)

IIPsicanalista; Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (Belo Horizonte, MG, .Br)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Flávia Coutinho Campos Cunha Rua Raul Pompéia, 77/201 - São Pedro 30330-080 Belo Horizonte, MG, Br Fone: (31) 3227-5427 e-mail: fcpompeu@gmail.com

RESUMO

Investiga-se a assertiva freudiana de que "a neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia". Percorreremos a obra freudiana para construir o paralelo entre essas duas afecções. O conceito de narcisismo e o mecanismo de identificação fundamentarão essa aproximação desdobrada nos seguintes pontos: a anestesia sexual, a autodepreciação e o sadismo.

Palavras-chave: Anorexia, melancolia, identificação, narcisismo

ABSTRACT

The objective here is to investigate Freud's statement that "the nutritional neurosis which parallels melancholia is anorexia." We studied Freud's writings to construct an equivalence between these two affections. Narcissism and the mechanism of identification are the basis for this discussion on the concepts of sexual anesthesia, low self-esteem and sadism.

Keywords: Anorexia, melancholia, identification, narcism

RÉSUMÉ

Cet article discute l'affirmation freudienne selon laquelle "la névrose alimentaire parallèle à la mélancolie est l'anorexie". Nous examinons l'œuvre freudienne pour construire une parallèle entre ces deux affections. Le concept de narcissisme et le mécanisme d'identification servent de base à cette approximation à partir de laquelle nous élaborons les points suivants: l'anesthésie sexuelle, l'autodépréciation et le sadisme.

Mots clés: Anorexie, mélancolie, identification, narcissisme

RESUMEN

Se investiga la afirmación freudiana de que "la anorexia es la neurosis nutricional paralela a la melancolía". Examinaremos la obra freudiana para construir el paralelismo entre esas dos afecciones. El concepto de narcisismo y el mecanismo de identificación fundamentarán esa aproximación, que se despliega en los siguientes puntos: la anestesia sexual, la autodepreciación y el sadismo.

Palavras claves: Anorexia, melancolía, identificación, narcisismo

ZUSAMMENFASSUNG

Hier soll die Behauptung von Freud untersucht werden: "die Ernährungsneurose, die sich parallel zur Melancholie äußert ist die Anorexia nervosa". Wir werden das Werk von Freud durchlaufen, um die Parallele zwischen diesen beiden Affekten herzustellen. Der Begriff Narzissmus und der Identifizierungsmechnismus sind die Grundlage dieser Annäherung, die in folgende Punkte unterteilt wird: die sexuelle Betäubung, die Selbstherabsetzung und der Sadismus.

Schlüsselwörter: Anorexia nervosa, Melancholie, Identifizierung, Narzissmus

Anorexia: do divino ao patológico

A palavra anorexia é derivada do grego anorektos que significa falta de apetite ou inapetência. Além de portar a definição médica do termo, a anorexia é uma forma de psicopatologia na qual o indivíduo reduz a quantidade de alimentos por meio de uma dieta voluntária (Houaiss, 2001). As primeiras descrições da anorexia foram feitas na literatura teológica entre os séculos V e XVI, nos casos de jovens jejuadoras, reconhecidas, posteriormente, pela Igreja Católica como santas ("santas anoréxicas"). Naquela época, os sintomas da anorexia estavam vinculados ao discurso religioso e eram explicados como milagres divinos ou possessão demoníaca.

Com o desenvolvimento da ciência, a partir do século XVII, o discurso médico voltou-se para casos que apresentavam os sintomas da anorexia. O jejum voluntário deixou de ser um comportamento relacionado ao divino e ao profano e passou a ser abordado como um distúrbio orgânico. Foi apenas na segunda metade do século XIX, mais precisamente com Charles Lasègue, que o diagnóstico de anorexia foi abordado como uma entidade clínica independente. O termo anorexia nervosa, que foi recuperado pela psiquiatria e é utilizado atualmente no DSM IV-TR (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 4ª edição revisada). A formulação da psiquiatria sobre a anorexia nos auxilia a mapear as modalidades nas quais a anorexia é registrada, mas para a psicanálise diagnosticar um caso como "anorexia" não representa muita coisa, se não considerarmos a particularidade de cada caso. A clínica psicanalítica funda-se a partir da rede complexa em que essa manifestação comparece naquilo que é particular a cada sujeito e não por meio da universalização biunívoca entre sintoma e quadro clínico, como propõe a clínica psiquiátrica.

As pistas deixadas na obra freudiana

Ao longo da obra freudiana, encontramos apenas um texto que aborda a anorexia como ponto central. Nos outros, ele apenas faz breve menção ou cita os sintomas relacionados à anorexia, tais como a abulia, a ausência de apetite e de sede.

No texto "Um caso de cura pelo hipnotismo" (1892-1893/1969), encontramos um único caso clínico em que a anorexia e a bulimia foram descritas e abordadas como tema principal. Destacamos que Freud, aqui, já nota haver a dimensão melancólica. No entanto, é apenas no "Rascunho G" que Freud propõe o paralelo entre a anorexia e a melancolia.

A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia [itálico nosso]. A famosa anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação), é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. (Freud, 1895/1969, p. 283)

No texto "Luto e melancolia", Freud (1917/2006) voltou a relacionar a rejeição por alimentos à melancolia, uma forma patológica de luto, em que há um quadro de inferioridade, uma diminuição da autoestima e um empobrecimento do Eu. Na época em que estava escrevendo esse artigo sobre a melancolia, Freud pediu a apreciação de Karl Abraham, que também estava interessado pelo tema. Abraham sugere uma estreita ligação entre a melancolia e a fase oral do desenvolvimento da libido.

Apesar desses autores reconhecerem estreita relação entre melancolia e anorexia, eles não a desdobraram suficientemente. Entretanto, a literatura contemporânea reencontra a pertinência dessa correlação (Recalcati, 2000; Fernandes, 2006; Magtaz, 2008), fomentando nossa detenção específica aos textos freudianos. Optamos, portanto, por investigá-la a partir da obra freudiana que, mesmo lacunar quanto à profundidade, indica, no paralelo anorexia-melancolia, importantes contribuições, que desenvolvemos neste trabalho. Avançaremos, a seguir, com o intuito de iluminar a clínica da anorexia, a partir da melancolia.

A incursão acerca da melancolia na obra freudiana

Já em 1893, no "Rascunho B", Freud faz uma comparação entre a melancolia e a depressão periódica, a partir da investigação acerca da vida sexual de seus pacientes. Afirma que, diferentemente da depressão periódica, há, na melancolia, uma anestesia [sexual] psíquica. Um ano depois, no "Rascunho E", Freud continua notando que há, nos casos de melancolia, uma anestesia psíquica. Nas palavras do autor:

Com frequência muito especial verifica-se que os melancólicos são anestéticos. Não têm necessidade de relação sexual (e não têm a sensação correlata). Mas têm um grande anseio pelo amor em sua forma psíquica - uma tensão erótica psíquica, poder-se-ia dizer. Nos casos em que esta se acumula e permanece insatisfeita, desenvolve-se a melancolia. (Freud, 1894/1969, p. 272)

Esse "Rascunho" serviu de base para o que Freud veio a elaborar mais tarde, em 1895, quando propôs a analogia entre a anorexia e a melancolia. Nesse documento, intitulado "Rascunho G" (1895), o autor faz o primeiro estudo mais aprofundado sobre a melancolia, relacionando-a com outras patologias. Além disso, sugere uma correlação entre a melancolia e a anestesia, afirmando que em muitos casos de melancolia há uma história prévia de anestesia [sexual] e que "tudo que provoca anestesia favorece o desenvolvimento da melancolia" (Freud, 1895/1969, p. 283).

A partir dos Rascunhos B, E e G, destacamos que Freud observa, na melancolia, uma anestesia sexual. Supomos que este seja o primeiro ponto de aproximação entre a melancolia e a anorexia. Assim como na melancolia, há um apagamento dos caracteres sexuais secundários na anorexia, além da inibição da função alimentar.

Um ano depois de aproximar a melancolia da anorexia, Freud escreveu o "Rascunho K" (1896), no qual propõe uma aproximação entre a paranoia e a melancolia. No "Rascunho N" (1897), aborda o tema da melancolia a partir da experiência da morte dos pais e propõe duas possíveis consequências da morte de um dos pais: na primeira, há uma autoacusação, que é nomeada por melancolia; na segunda, há uma autopunição de forma histérica, a pessoa passa a apresentar doenças idênticas à pessoa falecida, que ele nomeia por identificação.

Com isso, Freud já indica uma relação da melancolia à identificação e à autocrítica, assunto que irá retomar no texto "Luto e melancolia". Neste, Freud esclarece a natureza da melancolia a partir de uma comparação com o luto normal. Afirma que a melancolia assemelha-se ao luto por apresentar um estado de ânimo doloroso, assim como uma supressão do interesse pelo mundo externo, da capacidade de amar e uma inibição geral das capacidades de realizar tarefas. No entanto, destaca que não encontramos no luto uma característica marcante da melancolia: a depreciação do sentimento-de-Si [Selbstgefühl].1 1 De acordo com a nota de rodapé publicada na edição de 2006, o termo Selbstgefühl foi traduzido por "sentimento-de-Si". 2 Isso nos remete ao texto de 1914, "À guisa de introdução ao narcisismo", no qual distingue dois tipos de escolha de objeto: o tipo veiculação sustentada e o tipo narcísico. Supomos que este seja o segundo ponto de aproximação entre a melancolia e a anorexia.

Ao salientar essa característica Freud esclarece que enquanto no luto o mundo fica pobre e vazio, na melancolia é o próprio Eu que se empobrece. Constatamos que essa característica é frequentemente percebida nos casos de anorexia e se manifesta por meio de censuras, críticas e insultos produzidos contra si mesmo.

Ao ouvir as múltiplas autorrecriminações produzidas pelos melancólicos, Freud teve a impressão de que as acusações mais graves não se referem à própria pessoa, "mas que - com significantes modificações - se aplicam perfeitamente a uma outra pessoa que o doente ama, amou ou deveria amar" (Freud, 1917/2006, p. 107). Então, o que acontece nos quadros de melancolia é que, em um primeiro momento, as autorrecriminações eram direcionadas ao objeto amado e, em momento seguinte, foram retiradas desse objeto e se voltaram contra o próprio Eu.

Freud explica que, primeiramente, há a escolha de uma pessoa como objeto da libido, mas, em função de uma decepção ou ofensa proveniente da pessoa amada, essa libido é retirada. Contudo, em vez de seguir um processo normal, no qual a libido se dirige a outro objeto, o que surge é o direcionamento dessa libido para o próprio Eu. A libido passa a ser utilizada para produzir uma identificação do Eu com o objeto abandonado. Nas palavras de Freud, "a sombra do objeto caiu sobre o Eu" (Freud, 1917/2006, p. 108). Isto é, a perda do objeto transforma-se em uma perda de aspectos do Eu e "o conflito entre o Eu e a pessoa amada transformou-se num conflito entre a crítica ao Eu e o Eu modificado pela identificação" (Ibid.).

Supomos que a identificação ao objeto seja o terceiro ponto de aproximação entre a anorexia e a melancolia. Entretanto, mais que um dos pontos em comum, consideramos a hipótese de que a identificação ao objeto é o mecanismo responsável ou a condição de possibilidade da autodepreciação e da anestesia, que, como vimos, são também pontos comuns entre a anorexia e a melancolia. Portanto, a relação entre tais pontos não seria horizontal ou equivalente. Podemos pensar, talvez, que a partir da identificação narcísica, a anestesia, a autodepreciação e, como veremos adiante, o sadismo são produzidos.

Dando continuidade ao seu raciocínio, Freud afirma que, diferentemente do luto, o qual se dá após a morte de uma pessoa amada, o desencadeamento da melancolia abrange todas as situações por meio das quais os elementos antagônicos de amor e ódio se inserem na relação com o objeto.

Uma vez tendo de abdicar do objeto, mas não podendo renunciar ao amor pelo objeto, esse amor refugia-se na identificação narcísica, de modo que atua como ódio sobre esse objeto substituto, insultando-o, rebaixando-o, fazendo-o sofrer e obtendo desse sofrimento alguma satisfação sádica... o sujeito tortura seus entes queridos com sua doença, pois o estado mórbido dirige-se à pessoa que desencadeou o distúrbio nos sentimentos do doente, e esta normalmente se encontra no seu círculo mais próximo. (Freud, 1917/2006, p. 110; grifos nossos)

Supomos que há aqui um quarto ponto de aproximação entre a melancolia e a anorexia: o sadismo que acontece a partir de uma via indireta de autopunição. O sujeito acaba por torturar as pessoas mais próximas através do seu estado mórbido. Anestesiado, ele mobiliza o sofrimento alheio, valendo-se da morbidade em que ameaça se dissolver. Na maior parte dos casos, quem se preocupa e sofre com o emagrecimento excessivo e com a recusa do anoréxico em se alimentar é a família, que acaba procurando alguma forma de tratamento para o transtorno.

O percurso feito até aqui nos permite destacar, em um primeiro momento, quatro pontos de aproximação entre a melancolia e a anorexia:

1) A anestesia sexual;

2) a depreciação do sentimento de si;

3) a identificação ao objeto perdido;

4 o sadismo.

Apesar dos pontos de aproximação destacados, é possível perceber que há melancólicos não anoréxicos, bem como anoréxicos não melancólicos e, ainda, anoréxicos claramente melancólicos. Tornar-se-ia, portanto, necessário distinguir o que os diferencia, já que a identificação ao objeto perdido e seus efeitos (anestesia, autodepreciação e sadismo) rondam tanto a anorexia quanto a melancolia. Contudo, a importante distinção entre a melancolia e a anorexia não será alvo deste artigo. Neste trabalho, temos a intenção de investigar os pontos de aproximação entre elas. Freud retomou a discussão acerca da melancolia depois da introdução do conceito de narcisismo. Acreditamos, portanto, que este seja o conceito pivô na articulação da anorexia à melancolia.

A sombra do objeto: a identificação na melancolia e na anorexia

Inicialmente, Freud considerou a identificação intimamente relacionada à fase oral ou canibalística. Em 1913, no texto "Totem e tabu", escreveu sobre a horda primeva e as relações dos filhos com o pai nesse sistema. De acordo com o autor, certo dia os filhos se uniram para matar e devorar o pai e, através do ato "de devorá-lo, realizavam a identificação com ele" (Freud, 1913/1969, p. 170).

Além dessa referência, poucos meses antes da elaboração de "Luto e melancolia", Freud acrescentou um trecho ao texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", no qual descreveu a fase oral ou canibalesca como protótipo da identificação.

Vale notar certa ressonância entre os termos que Freud se serve nos textos de 1913 ("Totem e tabu"), de 1905 ("Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", com nota acrescentada em 1915) e em "Luto e melancolia" (1917). Trata-se da incorporação do objeto através do desejo de devorá-lo, produzindo uma identificação. Nos interessa investigar a concepção relacionada à melancolia desenvolvida no texto "Luto e melancolia".

Nesse texto de 1917, Freud esclarece a natureza da melancolia a partir de uma comparação desta com o luto normal. A partir da perda do objeto, o luto e a melancolia apresentam algumas características em comum: um ânimo doloroso, uma suspensão de interesse pelo mundo externo, pela capacidade de amar, uma inibição em realizar tarefas. No entanto a depreciação do sentimento de si, que se manifesta por meio de censuras e insultos produzidos contra si mesmo, é percebida apenas nos casos de melancolia.

O melancólico apresenta um Eu desvalorizado, merecedor de autopunições e castigos. Essas características se manifestam de forma despudorada. O melancólico não faz esforço para disfarçar tais propriedades, ele se exibe diante dos outros com suas autorreprovações e lamentações.

Há, portanto, nos casos de melancolia, uma identificação do Eu com o objeto abandonado. A libido recolhida no Eu foi utilizada para produzir uma identificação do Eu com o objeto perdido, ou seja, "a sombra do objeto caiu sobre o Eu". Nesse processo, o objeto perdido retorna para o Eu e o divide em duas partes: uma instância especial passa a julgá-lo criticamente e a agir com crueldade e severidade em relação à outra parte do Eu que introjetou o objeto. Tal mecanismo é fundamental para a compreensão da especificidade da identificação na melancolia, assim como na anorexia.

Freud aponta alguns aspectos que possibilitam esse tipo de processo identificatório: uma forte fixação no objeto de amor e, ao mesmo tempo, uma fraca resistência e aderência do investimento colocado no objeto. Mas, para que isso aconteça, é necessário que o objeto tenha sido escolhido numa base narcísica,2 * O presente artigo foi extraído da dissertação de mestrado homônima de Flávia Coutinho Campos Cunha, orientada pela Profa. Dra. Ângela Maria Resende Vorcaro, e defendida em abril de 2012 FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (Belo Horizonte, MG, Br). "de forma que - ao se defrontar com obstáculos - o investimento de carga depositado no objeto possa regredir ao narcisismo" (Freud, 1917/2006, p. 108).

A partir daí a identificação narcísica com o objeto torna-se um substituto do investimento anteriormente depositado, permitindo que - apesar do conflito

com o objeto de amor - não mais seja preciso renunciar à relação amorosa em si. Essa substituição do amor depositado no objeto por uma identificação com o objeto é um mecanismo de grande importância para as afecções narcísicas. (Freud, 1917/2006, p. 108)

Com tal afirmação, Freud introduz o conceito de identificação narcísica. Declara que a identificação é uma etapa preliminar à escolha objetal. "O eu quer incorporar esse objeto e para tal, em conformidade com a fase oral, ou canibalística, do desenvolvimento da libido, deseja devorá-lo"3 3 Na nota introdutória desse texto o editor inglês esclarece que, nesse artigo, Freud não utiliza o termo "introjeção", embora já o tivesse utilizado no primeiro dos artigos metapsicológicos. Ao desenvolver o tema da identificação no texto "Psicologia de grupo", utilizou a palavra "introjeção" em vários momentos. (Freud, 1917/2006, p. 109).

Lembramos que a identificação ao objeto corresponde ao terceiro dos quatro pontos de aproximação entre a melancolia e a anorexia. Supomos que esse processo de identificação ao objeto permitirá o surgimento dos outros três pontos de aproximação: a anestesia, a depreciação do sentimento de si e o sadismo.

1) Da anestesia - Relembramos que a anestesia foi notada por Freud desde os Rascunhos B, E e G, em que afirma haver, nos casos de melancolia, uma anestesia sexual. No entanto, ele esclarece que essa característica (a anestesia) pode acontecer em outras afecções e por isso podemos considerá-la presente em alguns casos de anorexia. Enquanto há na melancolia uma ausência de apetite sexual, há na anorexia uma perda de apetite, que estaria referenciada tanto na vertente alimentar quanto na vertente sexual, como nos casos das jovens, nas quais a sexualidade não teria se desenvolvido. Esses casos apresentam uma tentativa de manter o corpo infantilizado, por meio de uma recusa do desenvolvimento sexual (apagamentos dos caracteres sexuais secundários).

Por que o mecanismo de identificação narcísica pode produzir uma anestesia sexual? Conforme vimos, o processo de identificação narcísica faz com que a libido liberada retorne para o Eu, ou seja, a libido é reinvestida no próprio Eu. Supomos que tanto na melancolia quanto na anorexia há esse tipo de investimento libidinal no Eu e uma escassez de investimento nos objetos. Supomos também que há, nesses casos, um problema econômico que poderia se dar de duas maneiras:

1) Um investimento exacerbado no Eu;

2) pouca energia disponível para investimento.

Na primeira forma, há uma inibição que produz um excesso de investimento, uma erotogeneidade, em uma função específica, como a função sexual ou alimentar. Poderíamos supor aqui que, na anorexia, haveria uma erotogeneidade da função alimentar, que produziria uma hipertrofia da função sexual. O anoréxico deixa de comer porque o comer ganha uma significação sexual, levando a uma hipertrofia da sexualidade secundária. Em virtude disso, ele pode prescindir da sexualidade propriamente dita, o que se manifesta pela ausência de apetite. Ele não apresenta um investimento na sexualidade genital porque "embriagou" o narcisismo de sexualidade.

Na segunda forma, que qualificaria os casos mais graves de anorexia, há uma supressão do afeto, acarretando uma redução significativa da energia disponível e, consequentemente, uma inibição generalizada. Tanto a função sexual quanto a função alimentar estariam, nos casos de anorexia, inibidas por não haver energia disponível para investimento.

2) Da autodepreciação -- - Se retomarmos o processo de identificação, que acontece nos casos de melancolia, veremos que há uma divisão no Eu em duas partes: uma parte se identifica ao objeto perdido e a outra parte se coloca contra esta, julgando-a criticamente, agindo com crueldade e severidade. Uma parte do Eu foi modificada pela identificação ao objeto, pela introjeção deste e, por isso, inclui o objeto perdido.

Esse mecanismo pode ser constatado através dos insultos, punições, críticas e depreciações que os melancólicos e anoréxicos produzem contra si mesmos. Freud nota que não há uma correspondência dessas autodegradações com a realidade. Supomos que o par sadismo/masoquismo, proposto por Freud, possa nos ajudar a iluminar esse mecanismo de autopunição, autodegradação e autodepreciação, frequentemente presentes nos casos de anorexia.

No texto "O problema econômico do masoquismo" (1924/2007), Freud fornece sua mais completa elaboração a respeito do masoquismo. Ele distingue três formas de masoquismo: masoquismo erógeno, masoquismo feminino e masoquismo moral.

Destacamos aqui o masoquismo moral, pois pensamos que este seria o masoquismo presente nos casos de anorexia, porque ele diz respeito à relação entre o Eu e o Supereu, incluindo os ataques que este último produz contra o primeiro. O Supereu conserva algumas características como a severidade, a tendência a exercer o controle e punir, caracterizando-o como uma instância extremamente dura, severa com o Eu.

Freud consegue compreender o despudoramento das autodepreciações presentes nos casos de melancolia. Conclui que isso se dá porque as autocríticas, assim como as autoacusações e as autodepreciações do melancólico, não se referem a ele mesmo, mas a outra pessoa, ou seja, ao objeto perdido. Essa característica também se apresenta em alguns casos de anorexia, e isso é decorrente deste mesmo mecanismo.

Vimos que, no processo de identificação ao objeto, há uma cisão do Eu: uma parte dele se identifica ao objeto e a outra parte se coloca contra esta, julgando-a criticamente e agindo com crueldade e severidade contra ela.

Trata-se, pois, por meio da identificação ao objeto, de: em vez de insultá-lo, insultar-se; em vez de rebaixá-lo, rebaixar-se; em vez de fazê-lo sofrer, fazer-se sofrer, obtendo, assim, alguma satisfação sádica. Supomos que os casos de anorexia que apresentam essas características, possuem um Supereu "feroz" voltado contra o próprio Eu. Conjeturamos também que há, nesses casos, um excesso de investimento libidinal no Eu, "mal administrado", produzindo um desarranjo econômico, que pode se manifestar como o "não comer", uma inibição alimentar.

3) Da via indireta de autopunição: o sadismo - O último ponto de aproximação proposto entre a melancolia e a anorexia é o sadismo, que se dá por uma via indireta de autopunição. Segundo ele, o estado mórbido do melancólico é dirigido à pessoa que desencadeou "o distúrbio nos sentimentos do doente, e esta normalmente se encontra no círculo mais próximo" (Freud, 1917/2006, p. 110). Percebemos essa característica em alguns casos de anorexia, como quando os familiares ou as pessoas mais próximas se sentem desesperados diante de tanta magreza e recusa alimentar.

Ao retomarmos, mais uma vez, as elaborações freudianas acerca da identificação narcísica, vimos que a partir da perda do objeto escolhido, o melancólico precisa abdicar do objeto, mas não pode abandonar o amor por ele. Isso faz com que o amor se refugie na identificação narcísica. O que era sentido como amor, se transforma em ódio. Existe, portanto, um conflito de ambivalência. Freud afirma que o estado mórbido do melancólico é dirigido à pessoa que desencadeou o distúrbio.

A diversidade clínica dos casos de anorexia nos permite pensar que teríamos, nessa afecção, tanto casos que apresentam uma via indireta de autopunição quanto casos em que essa via não se apresenta.

Nos casos em que há uma via indireta de autopunição, as outras pessoas são incluídas na economia psíquica: há um direcionamento de uma demanda a outras pessoas. O anoréxico provoca horror no outro, em virtude de sua magreza, e apresenta uma passividade diante dos sintomas relacionados ao transtorno. Ele se posiciona de forma a constringir o outro a cuidá-lo; o outro toma a função que, necessariamente, é a de autoconservação. Poderíamos dizer: o outro faz a outroconservação.

Consideramos que os casos mais graves de anorexia seriam aqueles em que não há uma via indireta de autopunição, ou seja, o outro não é incluído na economia psíquica do sujeito. Nesses casos, haveria uma ruptura com o objeto e o sujeito ficaria imerso no seu narcisismo. Ele não necessitaria e não se importaria com o outro. Supomos que esses casos apresentam um investimento narcísico maciço, capaz de levar à morte.

Tendo como referência os pontos de aproximação da anorexia com a melancolia e, ao mesmo tempo, levando em consideração os pontos de distanciamento entre elas, seria possível pensar em uma melancolização nas estruturas psíquicas?

Ângela Maria Resende Vorcaro

Rua Paul Bouthilier, 353 - Mangabeiras

30315-010 Belo Horizonte, MG, Br

Fone: (31) 3264-4665

e-mail: angelavorcaro@uol.com.br

Recebido/Received: 30.10.2012/ 10.30.2012

Aceito/Accepted: 19.1.2013 / 1.19.2013

Financiamento/Funding: As autoras declaram não terem sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.

Citação/Citation: Cunha, F. C. C. & Vorcaro, A. M. R. (2013 junho). Anorexia: "uma neurose paralela à melancolia". Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(2), 232-245.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Conflito de interesses/Conflict of interest: As autoras declaram que não há conflito de interesses / The authors declare that has no conflict of interest.

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  • Endereço para correspondência:
    Flávia Coutinho Campos Cunha
    Rua Raul Pompéia, 77/201 - São Pedro
    30330-080 Belo Horizonte, MG, Br
    Fone: (31) 3227-5427
    e-mail:
  • *
    O presente artigo foi extraído da dissertação de mestrado homônima de Flávia Coutinho Campos Cunha, orientada pela Profa. Dra. Ângela Maria Resende Vorcaro, e defendida em abril de 2012 FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (Belo Horizonte, MG, Br).
  • 1
    De acordo com a nota de rodapé publicada na edição de 2006, o termo
    Selbstgefühl foi traduzido por "sentimento-de-Si".
    2
    Isso nos remete ao texto de 1914, "À guisa de introdução ao narcisismo", no qual distingue dois tipos de escolha de objeto: o tipo
    veiculação sustentada e o tipo
    narcísico.
  • 3
    Na nota introdutória desse texto o editor inglês esclarece que, nesse artigo, Freud não utiliza o termo "introjeção", embora já o tivesse utilizado no primeiro dos artigos metapsicológicos. Ao desenvolver o tema da identificação no texto "Psicologia de grupo", utilizou a palavra "introjeção" em vários momentos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      30 Out 2012
    • Aceito
      19 Jan 2013
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