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O ressentimento: reflexões a partir de um caso clínico

Ressentiment: Reflexionen auf der Grundlage eines klinischen Falls

El resentimiento: algunas reflexiones a partir de un caso clínico

Resentment: reflections on a clinical case

Le ressentiment: quelques réflexions à partir d'un cas clinique

Resumos

A partir de um caso clínico explora-se o tema do ressentimento sob a óptica da psicanálise. Ao abordar aspectos singulares da vida do paciente desenvolvem-se reflexões sobre o tema do ressentimento e as condições de aprisionamento atualizadas nesta história. Destaca-se a contribuição da psicanálise em seus recursos teóricos e técnicos na instauração da escuta do ressentimento.

Ressentimento; psicanálise; clínica psicanalítica; caso clínico


Aufgrund eines klinischen Falls wird das Thema Ressentiment aus der Perspektive der Psychoanalyse untersucht. Bei der Beleuchtung spezifischer Aspekte aus dem Leben des Patienten werden Reflexionen zum Thema Ressentiment und den aktualisierten Bedingungen des Gefangenseins in dieser Geschichte angestellt. Hervorgehoben wird der Beitrag der Psychoanalyse und ihrer theoretischen und technischen Mittel, das Ressentiment herauszuhören.

Ressentiment; Psychoanalyse; psychoanalytische Klinik; klinischer Fall


A partir de un caso clínico se explora el tópico del resentimiento desde la perspectiva psicoanalítica. Al abordar los aspectos singulares de la vida del paciente se desarrollan reflexiones sobre el tema del resentimiento y las condiciones de aprisionamiento actualizadas en esta historia. Se destaca la contribución del Psicoanálisis en sus recursos teóricos y técnicos en la instauración de la escucha del resentimiento.

Resentimiento; psicoanálisis; clínica psicoanalítica; caso clínico


Based on a clinical case the author explores the theme of resentment from a psychoanalytic point of view. Addressing singular aspects of the patient's life, issues related to resentment and situations of imprisonment are discussed. Contributions from psychoanalysis are presented as related to theoretical and technical possibilities for listening in cases of resentment.

Resentment; psychoanalysis; psychoanalytical clinic; clinic case


Cet article examine le thème du ressentiment du point de vue de la psychanalyse à partir d'un cas clinique. En abordant les aspects uniques de la vie du patient, nous développons des réflexions sur le thème du ressentiment et des conditions d'emprisonnement actuelles de son histoire. Nous mettons en évidence l'apport de la psychanalyse, soit ses ressources théoriques et techniques qui permettent réaliser l'écoute du ressentiment.

Le ressentiment; la psychanalyse; la clinique psychanalytique; cas clinique


ARTIGOS

O ressentimento: reflexões a partir de um caso clínico

Resentment: reflections on a clinical case

Le ressentiment: quelques réflexions à partir d'un cas clinique

El resentimiento: algunas reflexiones a partir de un caso clínico

Ressentiment: Reflexionen auf der Grundlage eines klinischen Falls

Thomás Gomes Gonçalves; Clarice Moreira da Silva; Mônica Medeiros Kother Macedo

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS (Porto Alegre, RS, Brasil)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Faculdade de Psicologia A/C Professora Mônica Kother Macedo Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 11, 9 o andar, Sala 926 90619-900 Porto Alegre, RS, Br Fone: (51) 3320-3633

RESUMO

A partir de um caso clínico explora-se o tema do ressentimento sob a óptica da psicanálise. Ao abordar aspectos singulares da vida do paciente desenvolvem-se reflexões sobre o tema do ressentimento e as condições de aprisionamento atualizadas nesta história. Destaca-se a contribuição da psicanálise em seus recursos teóricos e técnicos na instauração da escuta do ressentimento.

Palavras-chave: Ressentimento, psicanálise, clínica psicanalítica, caso clínico

ABSTRACT

Based on a clinical case the author explores the theme of resentment from a psychoanalytic point of view. Addressing singular aspects of the patient's life, issues related to resentment and situations of imprisonment are discussed. Contributions from psychoanalysis are presented as related to theoretical and technical possibilities for listening in cases of resentment.

Key words: Resentment, psychoanalysis, psychoanalytical clinic, clinic case

RÉSUMÉ

Cet article examine le thème du ressentiment du point de vue de la psychanalyse à partir d'un cas clinique. En abordant les aspects uniques de la vie du patient, nous développons des réflexions sur le thème du ressentiment et des conditions d'emprisonnement actuelles de son histoire. Nous mettons en évidence l'apport de la psychanalyse, soit ses ressources théoriques et techniques qui permettent réaliser l'écoute du ressentiment.

Mots clés: Le ressentiment, la psychanalyse, la clinique psychanalytique, cas clinique

RESUMEN

A partir de un caso clínico se explora el tópico del resentimiento desde la perspectiva psicoanalítica. Al abordar los aspectos singulares de la vida del paciente se desarrollan reflexiones sobre el tema del resentimiento y las condiciones de aprisionamiento actualizadas en esta historia. Se destaca la contribución del Psicoanálisis en sus recursos teóricos y técnicos en la instauración de la escucha del resentimiento.

Palabras clave: Resentimiento, psicoanálisis, clínica psicoanalítica, caso clínico

ZUSAMMENFASSUNG

Aufgrund eines klinischen Falls wird das Thema Ressentiment aus der Perspektive der Psychoanalyse untersucht. Bei der Beleuchtung spezifischer Aspekte aus dem Leben des Patienten werden Reflexionen zum Thema Ressentiment und den aktualisierten Bedingungen des Gefangenseins in dieser Geschichte angestellt. Hervorgehoben wird der Beitrag der Psychoanalyse und ihrer theoretischen und technischen Mittel, das Ressentiment herauszuhören.

Schlüsselwörter: Ressentiment, Psychoanalyse, psychoanalytische Klinik, klinischer Fall

O tema do ressentimento é trabalhado neste artigo a partir das complexidades de um processo terapêutico. O caso clínico de Murilo apresenta--se, como afirmam Magtaz & Berlinck (2012), como "porta-voz de um problema de investigação" (p. 71). Por meio da história de vida e da singularidade do processo terapêutico de Murilo, é possível trazer à discussão algumas reflexões sobre o tema do ressentimento, explorado e apresentado pela óptica da psicanálise nas contribuições de Kehl (2004) e Kancyper (2010). A partir das contribuições desses autores foi possível compreender aspectos fundamentais de uma história de aprisionamento daquilo que não foi vivido e suas consequências no impedimento de Murilo em desvencilhar-se de um tempo passado. Nesse sentido, pode-se afirmar que o tema do ressentimento constituiu-se numa "questão enigmática" (Magtaz & Berlinck, 2012, p. 77), a qual orientou um caminho de interrogação a respeito deste caso clínico.

O estudo a respeito do ressentimento conduz a revisitar essenciais contribuições oriundas de Nietzsche, tido como o grande pensador deste tema (Kehl, 2004; Scheler, 2010). Assim, Nietzsche (2010) afirma que o homem do ressentimento não é ingênuo, tampouco sincero e verdadeiro consigo mesmo, sendo que o esconderijo é o seu lugar seguro em um intuito de supostamente diminuir-se e humilhar-se. Como lembra Kehl (2004), Nietzsche pensava que o ressentimento é uma característica dos fracos, o qual "vê em tudo aquilo que o oprime e fere, o 'mal' no sentido moral, e em contrapartida elabora a imagem de si mesmo como 'bom'. Assim, o ressentido, em vez de fortalecer-se e lutar, sente-se moralmente autorizado a demandar do seu opressor que não seja forte" (p. 33). Cabe ressaltar que na visão de ética proposta por Nietzsche, a oposição não é entre bons e maus e, sim, entre fracos e fortes, ou seja, entre aqueles que lutam pelo que desejam e aqueles que se submetem (Kehl, 2004).

No século XX, as ideias de Nietzsche são discutidas a partir de uma óptica cristã pelo filósofo Max Scheler. Ao definir o ressentimento como um envenenamento a si próprio tendo causas bem definidas e consequências, Scheler (2010) salienta a persistência desta atitude mental em virtude da repressão de certas emoções. Essa repressão leva a uma constante tendência do sujeito à atribuição de juízos de valores, assim como a possuir uma constelação afetiva marcada por sentimentos como vingança, ódio, malícia, inveja, impulso para prejudicar uma outra pessoa, entre outros. O autor afirma que a principal fonte de ressentimento é o desejo de vingança. Scheler (2010) compreende esse desejo como uma reação de defesa, tendo sido precedido por um ataque ou uma injúria. Uma importante contribuição decorrente da leitura que Scheler (2010) apresenta a respeito do ressentimento corresponde à ênfase dada à impossibilidade de uma reação imediata frente ao agravo e à injustiça experienciados. Dessa forma, o ressentido, em seu afã de vingança, denuncia um contra-ataque que ficou adiado e nunca renunciado, sendo alimentado pela raiva e provocando, segundo Kehl (2004), a impossibilidade do esquecimento.

A história de Murilo - intensas perdas e competições

Murilo, jovem adulto, é o caçula de três irmãos e mora com a namorada. Chega à primeira sessão dizendo que buscou tratamento a partir de queixa desta sobre sua depressão. Conta que perdeu os pais ainda na adolescência, não sabendo dizer precisamente que idade tinha quando estes morreram. Em diferentes sessões relata ter 13 ou 14 anos quando seu pai morreu, e não sabe precisar sua idade por ocasião da morte da mãe. Confunde-se, mencionando ter na época "13, 14, 15, 16, 17 ou 18 anos". Tampouco sabe dizer quanto tempo se passou entre a morte do pai e a morte da mãe. Comete um ato falho em sessão, ao mencionar que seus pais morreram há dois anos. Em relação à morte da mãe, lembra estar numa praia quando ligaram dizendo que ela estava muito mal no hospital, mas não sabe se era verão ou inverno. Tem dificuldades em lembrar coisas e organizar seu tempo. Por vezes chega com uma hora de antecedência à sessão e confunde o dia no qual é atendido. Conta da irritação da namorada frente a seus esquecimentos sobre eventos que ocorreram recentemente.

Com a morte dos pais, Murilo passa a receber duas pensões, considerando que em decorrência disso administra valores em dinheiro, tendo dificuldades por não estar acostumado a tal situação. Começa um curso em uma universidade na qual sempre teve vontade de estudar, porém não consegue concluir os estudos, pois aos 24 anos perde o direito às pensões, ficando impossibilitado de pagar as mensalidades. A partir disso, seu irmão do meio, mais velho, e cuja idade Murilo não sabe precisar (fica em dúvida se têm 17 ou 18 anos de diferença), passa a receber as pensões integralmente, por ser portador de uma deficiência que o impede de trabalhar. Por ter acreditado que o irmão dividiria as pensões com ele, manifesta um grande rancor quando isso não ocorre.

Murilo decide morar no exterior por alguns anos. No seu retorno ao Brasil, conclui um curso técnico que se assemelha, em parte, ao curso de graduação do qual teve de desistir. A partir desse momento, as atribuições de inferioridade e superioridade passam a ser recursos de classificação das diferentes situações de sua vida. Recusa-se a aceitar qualquer emprego, avaliando a inferioridade destes em relação ao que considerava ser sua superioridade, ou seja, nada estava à sua altura, por possuir uma formação técnica e fluência em inglês. Percebe, porém, que na manutenção dessa postura, acabaria passando fome, decidindo, assim, "submeter-se" às oportunidades de emprego que surgiam.

Após essa decisão, Murilo passa por 15 empregos, incluindo o trabalho atual que foi obtido por intermédio de sua namorada. Ele permaneceu, no máximo, cinco meses em cada emprego. Segundo ele: Sempre foi assim: ou eu saía porque não achava bom ou eu era demitido.... Começa o trabalho no qual já se mantinha há dez meses na mesma época em que inicia a terapia. Assim, na manutenção desse trabalho, Murilo experiencia ganhos como férias e bonificações, após ter trabalhado o período de um ano. Esta condição de manutenção de seus investimentos foi um tema frequente em seu processo terapêutico.

Murilo conta que seus pais brigavam muito, sendo que o pai brigava com a esposa por causa do consumo abusivo de álcool dela, e sua mãe brigava com o marido, pois este chegava em casa muito tarde. Conta ele que: Às vezes quando meu pai chegava à noite e eu já estava dormindo, podia ouvir os gritos do quarto deles, daí a minha mãe chamava a mãe dela pra tentar acertar as coisas entre eles dois... era muito ruim.

O pai morre no banheiro, após mais uma noite fora de casa. Murilo afirma que sempre teve uma relação muito boa com ele e que os dois eram muito companheiros. Sua relação com a mãe sempre foi marcada por brigas. Quando seu pai morre, passa a temer a morte da mãe e diz: Eu dormia na cama com ela e ficava cheirando ela, eu queria ficar com o cheiro pra poder me lembrar dela quando ela morresse, eu pegava na mão dela pra ter uma lembrança... foi bem triste, é claro que eu queria que ela vivesse mais, mas depois da morte do meu pai, eu sabia que ela ia ser a próxima, mas não sabia que ia ser tão breve.

Murilo não vê razão em pensar sobre a morte dos pais, principalmente quanto à morte do pai. Ele refere: É, é triste, fico lembrando dessas coisas do meu pai, mas eu não gosto, sabe? Não gosto muito de ficar lembrando das coisas, não gosto de ser tomado pela emoção, não gosto de ficar pensando que ele morreu. Considera que: Cada vez que eu fico pensando nele, me dá um vazio. Eu sou um vazio e estou num vazio e eu não quero ter esse vazio em mim, me dá muita saudade e posso ficar depressivo e não quero, pra que vou querer isso, pensar até ficar com depressão? Gosto de manter as boas lembranças. Que vai me adiantar ficar pensando na morte deles? A vida é assim. Fico com saudades deles, choro, mas é tudo consciente, depois tenho que seguir em frente e seguir a vida... Na vida de Murilo há uma figura de extrema importância, sua madrinha, Ana. Sua madrinha foi a responsável por cuidá-lo uma vez que sua mãe bebia, sendo uma pessoa importante para ele, representando uma fonte de afeto e zelo.

Depois da morte dos pais, os irmãos de Murilo se distanciaram. O irmão mais velho se mantém afastado dos demais e, assim como seu pai, possui também uma família fora do casamento, sendo alcoolista como a mãe. O paciente conta que o irmão estava prestes a ser revelado como jogador por um grande time de futebol, porém algo aconteceu impedindo-o de seguir a carreira. Murilo afirma desconhecer o motivo pelo qual o irmão não conseguiu realizar seu sonho, apenas relata que sempre o admirou por conseguir vencer e se destacar. Junto aos relatos sobre a admiração do pai sobre seu irmão, surge seu ressentimento: Meu pai ia aos treinos, ficava lá torcendo pelo meu irmão, ficava xingando, mandando ele treinar mais, se dedicar mais. Lembro de estar do lado do meu pai e ele dando toda a atenção e olhares para o meu irmão. Comigo foi muito diferente, ele nem notava, não me incentivava, não me dava dicas, quando eu jogava futebol isto não passava de um simples jogo. Já em relação ao irmão do meio, Murilo é quem se mantém afastado pela questão das pensões. Considera-o perturbado e paranoico, incomodando-se com as demonstrações de frieza do irmão em relação à morte dos pais.

É na relação de Murilo com o irmão que recebe as pensões que ficam mais evidentes as formas de ele expressar seu ressentimento. Pode-se considerar que essa relação ocupou na dinâmica do paciente uma representação de catalisador de sentimentos também direcionados a outros objetos de sua história. Ao relatar a inveja e ao considerar uma grande injustiça o fato do irmão ser o único beneficiário da pensão, outros personagens se tornam alvo de seu ressentimento. Queixa-se de não ter sido ensinado pelos pais em relação a administrar valores financeiros e das reclamações da namorada por ter de mantê-lo financeiramente. Murilo afirma que não tinha dinheiro para nada e, caso precisasse, tinha de pedir ao irmão, fosse para comer ou para eventuais saídas noturnas. O ressentimento produziu importantes ressonâncias no campo transferencial, principalmente no que se referiu ao tema do valor. Contrariado frente às combinações próprias ao enquadre, em uma ocasião, ao realizar o pagamento, Murilo tirou da carteira uma nota de uma moeda estrangeira que sempre carregava consigo e, estendendo-a ao terapeuta, diz: Toma essa nota para ti, pode ficar com ela, são mil rúpias, o número é alto, mas não vale nem um real, vale menos que um chiclete aqui. Pode-se compreender este valor estrangeiro que adentra o espaço de escuta como a atualização de sentimentos vingativos oriundos daquilo que para ele representava o pouco ou nada ofertado pelas figuras de sua história. Impedido de uma reação no momento das combinações próprias ao enquadre, é no tempo final da sessão que surge o ódio do paciente mediante a nota à qual atribui valer menos que um chiclete aqui.

Aportes sobre o narcisismo a partir de um caso clínico

Em seu livro Resentimiento terminable e interminable, Kancyper (2010) explora o ressentimento como aparece em diversas obras literárias, tais como Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Sándor Mrai e Alberto Camus. O autor aborda questões próprias ao ressentimento, tais como remorso, rancor e vingança, sejam elas referentes à literatura ou à clínica psicanalítica. Em relação à clínica, Kancyper (2010) afirma que o ressentimento seria um resquício ativo e poderoso, advindo de um trauma precoce na vida do sujeito que acabara por obstaculizar o processo de narcisização. Não se constituindo suficientemente um "Sua Majestade, o bebê" e sim um "Sua Majestade, o ressentido".

O sujeito ressentido, segundo o autor, seria por sua vez um credor arrogante e vingativo que acaba por esperar o inalcançável, porém não pode desfrutar daquilo que é possível. Dessa forma, pode-se considerar que o trauma precoce na vida de Murilo tenha relação com suas vivências com a mãe. Murilo revela que sua namorada sempre lhe disse achar estranho o fato de ele se lembrar de muitas coisas sobre o pai e quase nada sobre a mãe. Perguntado em sessão, sobre o motivo de poucas memórias em relação à mãe, Murilo responde: Talvez as memórias em relação a ela sejam mais traumáticas, mais pesadas, o que me lembro é dela alcoolizada, de encontrar bebida espalhada pelo quarto. Não foi nada fácil.

Kancyper (2010) salienta que o ressentimento pode ser interminável quando for utilizado no sentido de uma defesa, como tentativa de não aceitar a possibilidade de admitir a perda do irrecuperável. Nessa condição, o ressentimento pode representar "o único e último vínculo possível com os objetos primários e sua renúncia significaria o desmoronamento definitivo da ilusão e da aceitação de que, real e efetivamente, os ditos objetos se perderam para sempre" (p. 169). Seria a dificuldade de Murilo em lembrar que idade tinha quando seus pais morreram uma tentativa de se recusar a perceber que seus pais estavam mortos e, assim, constatar seus sentimentos frente a estas perdas? Kancyper (2010) coloca, no bojo da questão do ressentimento, os mecanismos da clivagem e da desmentida, afirmando que, além da angústia de castração, estão em jogo outras angústias mais primitivas, como a angústia de desvalimento e de morte.

Segundo Kehl (2004) o ressentimento não é um conceito da psicanálise, mas pertence ao campo dos afetos, sendo pouco explorado nos estudos psicanalíticos. Segundo a autora, o ressentido se instala no lugar de vítima, ocupando um lugar de queixoso no qual não se arrepende, apenas acusa, tendo uma reivindicação incerta, pois não luta para recuperar aquilo que cedeu e sim para que o outro reconheça o mal que lhe fez. Assim, em tal dinâmica, o ressentido não busca uma reparação e, sim, uma vingança, que é sempre adiada, preferindo gozar na fantasia do que executar. A autora assevera que "o ressentido traduz a falta como prejuízo cuja responsabilidade é sempre de um outro contra quem ele dirige insistentemente um rosário de queixas e acusações" (Kehl, 2004, p. 43). Kancyper (2010) afirma que o analisando ressentido se mostra sedento por uma vingança reivindicatória, assim o analista pode representar na transferência um pretérito ofensor, podendo o analisando se desfazer do processo analítico como um triunfo sadomasoquista, por mais que isso custe seu progresso na análise e sua saúde psíquica, e o autor ressalta que o ressentido "prefere se vingar do que se curar" (p. 169).

No cenário da clínica, segundo Kehl (2004), as queixas do ressentido trabalham contra a associação livre, obstaculizando a implicação subjetiva do paciente no processo. Dessa forma, o ressentido dirige ao analista um discurso que pode conduzir a análise a um beco sem saída. Kancyper (2010) ressalta que o sujeito ressentido apresenta um difícil problema técnico, pois possui uma implacável necessidade de vingança que acaba por ser uma manifestação regressiva e repetitiva de um narcisismo tanático que tem no comando um eu ideal combativo e arrogante, o qual constantemente ataca o enquadre. Todavia, quando a escuta psicanalítica está em exercício, abre-se espaço para analisar o que ocorre na cena transferencial, possibilitando, então, a Murilo, questionar suas convicções. Neste movimento de abertura para um novo jeito de se ver e olhar para sua história, pode ocorrer o que Kehl (2004) aponta como a saída do lugar de vítima. A condição de indagar-se sobre sua responsabilidade quanto ao que o faz sofrer permite ao paciente pensar e implicar-se no processo de reflexão sobre aquilo que lhe compete com o que se passa, mesmo que suas queixas encontrem validação no contexto e na realidade. Ou seja, ao reconhecer a realidade factual, mas não aprisionando-se nas razões, é possível fazer surgir as manifestações de um sujeito de Inconsciente que poderiam estar encobertas pelas queixas em demasia e pela persistente culpabilização externa.

Após cinco meses de tratamento, encontra-se em uma fala do paciente a identificação de uma mudança em relação à sua posição de queixoso, ilustrando a condição necessária ao pensar-se de forma mais implicada: Sou muito cagão, tenho medo de entrar nas coisas, não espero saber se vai dar certo ou não, já logo me antecipo e nem faço, para não me deparar com a frustração, mas cada vez mais eu vejo que, para ganhar a medalha, para chegar ao pódio, eu tenho que entrar na batalha, entrar no jogo. Nessa fala de Murilo, é possível identificar as contribuições de Kehl (2004) sobre a reivindicação do ressentido no sentido de que seja reconhecido seu valor sem a necessidade de ser colocado à prova. É como o desejo de ganhar um jogo, mas sem a necessidade de implicar-se nas intrincadas exigências que ele demanda.

Kancyper (2010) aponta que a ressignificação pode ser uma saída para o sujeito ressentido, uma vez que "a ressignificação não é o descobrimento distinto de um evento que se esqueceu e sim uma tentativa, por meio de interpretação, construção e historicização de extrair uma compreensão nova do significado desse evento enigmático e ocultado" (p. 190). Murilo possuía um carro, um bem material de que não podia usufruir, pois não tinha dinheiro para arrumá-lo e retirá--lo da garagem da casa do irmão que recebia as pensões, e pelo qual nutria grande ressentimento. Kancyper (2004) define o ressentimento com as palavras de um analisando seu que comparava esse afeto a um carro atolado no barro, pois quanto mais se acelera, mais ele se afunda e menos se mexe, acabando por ser uma situação equivalente a um beco sem saída. Murilo inicia uma sessão contando que finalmente consegui tirar o carro da garagem do meu irmão, finalmente parece que as coisas começam a dar certo, parece que estou finalmente andando para frente ao invés de como sempre na minha vida, de ter andado para trás.

Em relação a uma estrutura psicopatológica, é possível fazer somente aproximações e comparações, pois a configuração afetiva típica do ressentimento pode marcar lugar no campo de diversas manifestações psicopatológicas. Nesse sentido, Kehl (2004) estabelece uma comparação da dinâmica do ressentimento com os elementos presentes na melancolia, uma vez que em ambas é possível detectar a perda de autoestima. Ressalta a autora, porém, que, na primeira situação, nas condições próprias ao ressentimento, o empobrecimento do amor-próprio fica encoberto pela necessidade de reconhecimento, marcado pelo desejo de não precisar "trabalhar" para demonstrá-lo, pois ele deveria ser evidente por si mesmo. Ainda sobre as diferenças entre o ressentimento e a melancolia, a autora refere que a destrutividade e o ódio do ressentido em relação ao objeto são menos radicais e irredutíveis do que no melancólico.

Os aspectos que marcam importantes diferenças entre a condição da melancolia e do ressentimento referem-se ao lugar ocupado pelo objeto e ao destino dado aos sentimentos de hostilidade. A identificação com o objeto perdido e odiado presente na melancolia faz com que as recriminações e ataques dirijam-se ao próprio Eu. Assim, na melancolia o trabalho de luto não alcançado faz com que o empobrecimento do Eu se imponha (Freud, 1917/1969). Ao assinalar a condição do sujeito no ressentimento, Kehl (2004) constata que, na dinâmica própria ao ressentimento, "o sujeito parece querer expulsar de si toda a responsabilidade em relação às causas de seu sofrimento. Ele preserva a convicção de sua integridade projetando as representações do mal no mundo à sua volta" (p. 41).

No que tange à relação do paciente com seu irmão, constata-se o horizonte fantasmático do ressentido, proposto por Kehl (2004), no qual sempre está uma figura de um usurpador. Segundo a autora, "não se pode dizer exatamente que o ressentido tenha perdido um objeto; o que ele perdeu foi um lugar. A posição de vítima passiva desde onde ele formula suas queixas sugere que o lugar perdido não teria sido, a seu ver, um lugar conquistado e, sim, um lugar que, de direito, deveria ser seu" (p. 44).

Datas confusas, horários trocados e esquecimentos são manifestações que, escutadas no campo transferencial, possibilitaram construir, no processo de escuta, novas possibilidades de Murilo pensar-se e implicar-se na singularidade de sua história. Surge seu desejo de crescer e ser reconhecido, mas também o reconhecimento de que, para tanto, precisará aceitar o convite a pensar sobre a dor do que não teve e que lhe usurpa a condição de ser um sujeito ativo. Preso nas teias do ressentimento, Murilo fica imobilizado, passivo, queixoso e impedido de saber sobre si e sobre o outro. Na repetição de uma história na qual acredita não ter sido tomado como objeto de investimento amoroso dos pais, fica aprisionado na queixa a respeito do que o outro não lhe dá, sem poder assim construir ou identificar condições que o aproximem de seu desejo. Os prejuízos de suas vivências no campo da alteridade encontram, nos recursos ofertados pela psicanálise, a possibilidade de sair do circuito do (re)sentir e inaugurar condições de investimento no devir.

Thomás Gomes Gonçalves

Psicólogo; Mestrando em Psicologia Clínica no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Br); Membro provisório do Centro de Estudos Psicanalíticos - CEPdePA (Porto Alegre, RS); Membro da Association Française pour la Reconnaissance du Déni de Grossesse.

e-mail: gomes.thomas@gmail.com

Clarice Moreira da Silva

Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Br); Membro Efetivo da Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Porto Alegre, RS, Br).

e-mail: claricems@gmail.com

Mônica Medeiros Kother Macedo

Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Porto Alegre, RS, Br); Professora da Faculdade de Psicologia - FAPSI da mesma universidade; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Fundamentos e Intervenções em Psicanálise do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.

e-mail: monicakm@pucrs.br

Recebido/Received: 3.9.2012/ 9.3.2012

Aceito/Accepted: 7.11.2012 / 11.7.2012

Citação/Citation: Gonçalves, T. G.; Silva, C. M. da & Macedo, M. M. K. (2013, set.). O ressentimento: reflexões a partir de um caso clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(3), 387-397.

Editor do artigo/Editor: Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and source are credited.

Financiamento/Funding: Os autores declaram não ter sido financiados ou apoiados / The authors have no support or funding to report.

Conflito de interesses/Conflict of interest: Os autores declaram que não há conflito de interesses / The authors declares that has no conflict of interest.

  • Freud, S. (1969). Luto e melancolia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917).
  • Kancyper, L. (2004). Ressentimento e remorso: estudos psicanalíticos São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Kancyper, L. (2010). Resentimiento terminable e interminable Buenos Aires: Lumen.
  • Kehl, M. R. (2004). Ressentimento São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Magtaz, A. C. & Berlinck, M. T. (2012, mar.). O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. XV, n. 1, 71-81.
  • Nietzsche, F. (2010). Genealogia da moral São Paulo: Companhia de Bolso.
  • Scheler, M. (2010). Ressentiment Wisconsin: Marquette University Press.
  • Endereço para correspondência
    Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
    - Faculdade de Psicologia
    A/C Professora Mônica Kother Macedo
    Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 11, 9
    o andar, Sala 926
    90619-900 Porto Alegre, RS, Br
    Fone: (51) 3320-3633
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Set 2012
    • Aceito
      07 Nov 2012
    Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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