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Sofrimento psíquico e trabalho

Psychic distress and work

Sufrimiento psíquico y trabajo

Souffrance psychique et le travail

Psychisches leiden und arbeit

Resumos

O presente artigo aprofunda questões clínico-téoricas relacionadas especificamente ao trabalho docente e ao sofrimento psíquico a ele relacionado a partir da observação clínica e vivência grupal nos atendimentos terapêuticos ocupacionais realizados no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO). Partindo dos estudos acerca da Psicopatologia do Trabalho de Christophe Dejours, do trabalho docente e do relato de um caso clínico, caracteriza a problemática do sofrimento no trabalho, os sistemas de defesa contra este sofrimento, a ameaça à subjetividade do próprio trabalhador, as representações e conflitos vivenciados no trabalho docente, bem como a relação aditiva estabelecida como uma estratégia inconsciente de sobrevivência psíquica.

Trabalho; trabalho docente; adicção; terapia ocupacional


This article discusses theoretical and clinical issues related to work, specifically to the work of teachers and the psychic suffering related to it, based on clinical observation and group experience in occupational therapy at the São Paulo State Public Employee Hospital (HSPE-FMO). Based on the work of Christophe Dejours on psychopathology, of work as a teacher and the report of a clinical case, the present paper characterizes the problem of suffering at work related to the defense systems against such suffering, the threatening subjectivity of the workers themselves, representations and conflicts experienced in teaching, and the addictive relationship established as an unconscious strategy for psychic survival.

Work; teaching; addiction; occupational therapy


El presente trabajo se profundiza en cuestiones clínicas y teóricas, relacionadas al trabajo y específicamente al trabajo docente y al sufrimiento psíquico a el relacionado a partir de la observación clínica y de la vivencia grupal en nuestros atendimientos en terapia ocupacional realizados en el Hospital del Servidor Público Estadual de São Paulo, "Francisco de Oliveira (HSPE-FMO). Partiendo de los estudios acerca de la Psicopatología del trabajo presentados por Christophe Dejours, del trabajo docente y del relato de un caso clínico, se caracteriza la problemática del sufrimiento en el trabajo, los sistemas de defensa contra este sufrimiento, las amenazas a la subjetividad del propio trabajador, las representaciones y conflictos vivenciados en el trabajo docente, así como la relación adictiva que se establece como una estrategia inconsciente de supervivencia psíquica.

Trabajo; trabajo docente; adicción; terapia ocupacional


Cet article présente une étude approfondie des questions clinico-théoriques liées à l'enseignement et à la souffrance psychique qui peut en résulter à partir de l'observation clinique et de l'expérience de groupe en ergothérapie à l'Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO) [hôpital des fonctionnaires de l'état de São Paulo]. Nous partons des études sur la psychopathologie du travail de Christophe Dejours, de l'enseignement et du rapport d'un cas clinique pour caractériser le problème de la souffrance au travail, les systèmes de défense contre la souffrance, la menace à la subjectivité de l'employé, les représentations et les conflits vécus dans l'enseignement, ainsi que le rapport de dépendance établi comme stratégie inconsciente de survie psychique.

Travail; enseignement; dépendance; ergothérapie


Im vorliegenden Beitrag sollen klinisch-theoretische Fragen ganz spezifisch in Bezug auf die Lehrtätigkeit und dem damit verbundenen psychischen Leiden tiefgehend untersucht werden. Grundlage ist die klinische Beobachtung und die Gruppendynamik im Bereich der Beschäftigungstherapie von Gruppen im öffentlichen Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO). Ausgangspunkt sind die Studien zur Psychopathologie der Beschäftigung von Christophe Dejours, die Lehrtätigkeit und der Bericht eines klinischen Falles. Vor diesem Hintergrund wird die Problematik des Leidens bei der Arbeit, die Abwehrsysteme gegen dieses Leiden, die Bedrohung der Subjektivität des Arbeiters, die Darstellungen und erlebten Konflikte in der Lehrtätigkeit, sowie die Suchterscheinungen, die als unbewusste Strategie zum psychischen Überleben entwickelt werden dargestellt.

Arbeit; Lehrtätigkeit; Suchterscheinungen; Beschäftigungstherapie


PRIMEIROS PASSOS

ARTIGO

Sofrimento psíquico e trabalho1 1 Artigo baseado em Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Especialização em Psicopatologia e Saúde Pública, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz.

Psychic distress and work

Souffrance psychique et le travail

Sufrimiento psíquico y trabajo

Psychisches leiden und arbeit

Sarah Rosa Salles Vieira

Prefeitura Municipal de Campinas (Campinas, SP, Br)

RESUMO

O presente artigo aprofunda questões clínico-téoricas relacionadas especificamente ao trabalho docente e ao sofrimento psíquico a ele relacionado a partir da observação clínica e vivência grupal nos atendimentos terapêuticos ocupacionais realizados no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO). Partindo dos estudos acerca da Psicopatologia do Trabalho de Christophe Dejours, do trabalho docente e do relato de um caso clínico, caracteriza a problemática do sofrimento no trabalho, os sistemas de defesa contra este sofrimento, a ameaça à subjetividade do próprio trabalhador, as representações e conflitos vivenciados no trabalho docente, bem como a relação aditiva estabelecida como uma estratégia inconsciente de sobrevivência psíquica.

Palavras-chave: Trabalho, trabalho docente, adicção, terapia ocupacional

ABSTRACT

This article discusses theoretical and clinical issues related to work, specifically to the work of teachers and the psychic suffering related to it, based on clinical observation and group experience in occupational therapy at the São Paulo State Public Employee Hospital (HSPE-FMO). Based on the work of Christophe Dejours on psychopathology, of work as a teacher and the report of a clinical case, the present paper characterizes the problem of suffering at work related to the defense systems against such suffering, the threatening subjectivity of the workers themselves, representations and conflicts experienced in teaching, and the addictive relationship established as an unconscious strategy for psychic survival.

Key words: Work, teaching, addiction, occupational therapy

RESUMÉ

Cet article présente une étude approfondie des questions clinico-théoriques liées à l'enseignement et à la souffrance psychique qui peut en résulter à partir de l'observation clinique et de l'expérience de groupe en ergothérapie à l'Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO) [hôpital des fonctionnaires de l'état de São Paulo]. Nous partons des études sur la psychopathologie du travail de Christophe Dejours, de l'enseignement et du rapport d'un cas clinique pour caractériser le problème de la souffrance au travail, les systèmes de défense contre la souffrance, la menace à la subjectivité de l'employé, les représentations et les conflits vécus dans l'enseignement, ainsi que le rapport de dépendance établi comme stratégie inconsciente de survie psychique.

Mots clés: Travail, enseignement, dépendance, ergothérapie

RESUMEN

El presente trabajo se profundiza en cuestiones clínicas y teóricas, relacionadas al trabajo y específicamente al trabajo docente y al sufrimiento psíquico a el relacionado a partir de la observación clínica y de la vivencia grupal en nuestros atendimientos en terapia ocupacional realizados en el Hospital del Servidor Público Estadual de São Paulo, "Francisco de Oliveira (HSPE-FMO). Partiendo de los estudios acerca de la Psicopatología del trabajo presentados por Christophe Dejours, del trabajo docente y del relato de un caso clínico, se caracteriza la problemática del sufrimiento en el trabajo, los sistemas de defensa contra este sufrimiento, las amenazas a la subjetividad del propio trabajador, las representaciones y conflictos vivenciados en el trabajo docente, así como la relación adictiva que se establece como una estrategia inconsciente de supervivencia psíquica.

Palabras claves: Trabajo, trabajo docente, adicción, terapia ocupacional

ZUSAMMENFASSUNG

Im vorliegenden Beitrag sollen klinisch-theoretische Fragen ganz spezifisch in Bezug auf die Lehrtätigkeit und dem damit verbundenen psychischen Leiden tiefgehend untersucht werden. Grundlage ist die klinische Beobachtung und die Gruppendynamik im Bereich der Beschäftigungstherapie von Gruppen im öffentlichen Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO). Ausgangspunkt sind die Studien zur Psychopathologie der Beschäftigung von Christophe Dejours, die Lehrtätigkeit und der Bericht eines klinischen Falles. Vor diesem Hintergrund wird die Problematik des Leidens bei der Arbeit, die Abwehrsysteme gegen dieses Leiden, die Bedrohung der Subjektivität des Arbeiters, die Darstellungen und erlebten Konflikte in der Lehrtätigkeit, sowie die Suchterscheinungen, die als unbewusste Strategie zum psychischen Überleben entwickelt werden dargestellt.

Schlüsselwörter: Arbeit, Lehrtätigkeit, Suchterscheinungen, Beschäftigungstherapie

Introdução

Apesar da precariedade das condições atuais do ensino público no Brasil e de casos de violência contra o professor serem questões frequentemente abordadas pela mídia, os aspectos psicopatológicos relativos às condições de trabalho e à saúde mental dos trabalhadores são, até então, pouco estudados e abordados em produções científicas. Entretanto, nos poucos estudos encontrados é possível verificar que a saúde do professor é um debate que se torna cada vez mais necessário, pois trata-se de uma categoria profissional propensa a sofrimento psíquico, principalmente por conviver em seu ambiente de trabalho com conflitos e adversidades relacionados às condições e à organização do mesmo.

No âmbito dos grupos de Terapia Ocupacional realizados no Hospital-dia do Setor de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo "Francisco Morato de Oliveira" (HSPE-FMO) foi possível obter uma percepção cotidiana do trabalho e sua relação com o processo saúde-doença mental. Isto devido ao fato de nesta instituição poder encontrar um número excessivo de servidores públicos, em sua maioria trabalhadores da área da Educação, afastados do trabalho e muitas vezes por causa dele.

Objetivando realizar uma reflexão clínico-teórica acerca do sofrimento psíquico de professores e contribuir com a compreensão das interfaces existentes entre o adoecimento psíquico e o trabalho, este é um estudo acerca da Psicopatologia do Trabalho apresentado por Christophe Dejours2 2 Psiquiatra e psicanalista, diretor do Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação, do Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, França. e do trabalho docente dialogando-os com um relato de caso que suscitou questões psicopatológicas relacionadas ao trabalho em minha prática profissional e a elucidação deste a partir do mecanismo da adicção bem como os desafios clínicos no manejo destas questões.

Trabalho e subjetividade

A Psicopatologia do trabalho, de Christophe Dejours, busca o nexo causal entre determinadas organizações e condições de trabalho e o adoecimento mental. Dejours (1992) pretendeu compreender o sofrimento psíquico no trabalho, os constrangimentos organizacionais e a desestabilização psicológica dos indivíduos. Contudo, partindo do trabalho de campo e estudando situações concretas de trabalho, observou que frequentemente esta desestabilização não ocorria, ao contrário, encontrava o que denominou "um estranho silêncio". Não encontrava os "ruídos" da loucura do trabalho, mas um estado de normalidade.

Partindo deste pressuposto, pelos seus estudos pôde concluir que este estado de normalidade é uma conquista "mediante uma luta feroz entre as exigências do trabalho e a ameaça de desestabilização psíquica e somática" (Dejours, 1999, p. 19), uma vez que para este autor o sofrimento não se manifesta porque os sujeitos buscam ativamente se proteger e defender por meio de mecanismos ou estratégias de defesa.

A patologia surgiria então quando se rompe o equilíbrio e o sofrimento não é mais contornável, ou seja, quando o trabalhador já utilizou todos os seus recursos intelectuais e psicoafetivos para dar conta da atividade e demandas impostas pela organização, e percebe que nada pode fazer para se adaptar e/ou transformar o trabalho.

Para este autor, o sofrimento é inerente ao trabalho. Se o indivíduo não encontra possibilidades de superação e transformação desse sofrimento em prazer, este se transforma em fonte de sofrimento patológico. Este último, por sua vez, ocorre quando os trabalhadores não encontram meios de dar vazão a esse sofrimento, pois a maneira como o trabalho é organizado bloqueia as possibilidades de expressão e de negociação.

A clínica e o trabalho docente

Codo (1999) em seu livro Educação: carinho e trabalho argumenta que as preocupações com a saúde do professor, em especial no caso brasileiro, apesar de recentes, indicam que os problemas de saúde que afetam a categoria estão intimamente relacionados a um conjunto de fatores, entre os quais destacam-se: o tipo de trabalho exercido, tendo em vista a responsabilidade pela formação de outros sujeitos; o excesso de trabalho; a precarização do trabalho, à perda de autonomia, à sobrecarga de trabalho burocrático, ao quadro social e econômico e às condições de vida dos alunos.

Para este autor, o que incita e motiva o professor a realizar seu trabalho não é somente uma motivação subjetiva (interesse, vocação, amor pelas crianças etc.), mas relaciona-se também à necessidade real da ação do professor ligada às condições materiais ou objetivas em que a atividade se efetiva. Essas condições referem-se aos recursos físicos das escolas, aos materiais didáticos, à organização da escola em termos de planejamento, gestão e possibilidades de trocas de experiência, estudo coletivo, à duração da jornada de trabalho, ao tipo de contrato de trabalho, ao salário, entre outras.

Os professores estão imersos em um conflito cotidiano entre o que é exigido, o que desejam e o que realmente é possível fazer diante dos obstáculos, das condições e da organização atual do trabalho. Em minha prática profissional pude observar o sofrimento psíquico vivenciado pelos professores manifestado através de sinais e sintomas expressos em desânimo, fadiga, frustração, estresse, depressão, impotência, insegurança, irritabilidade, angústia e, até mesmo, "sensação de enlouquecimento". Muitas vezes foram-me descritos os fatores que potencializam este sofrimento: as relações hierárquicas, a longa e exaustiva jornada de trabalho, a dificuldade de estabelecer o "controle da turma", o crescente rebaixamento salarial e, principalmente, a progressiva desqualificação e o não reconhecimento social de seu trabalho.

O trabalho ocupando uma centralidade na constituição da identidade do indivíduo e implicação na interação social é uma questão frequentemente abordada na clínica de um terapeuta ocupacional, uma vez que é fundamental para este profissional buscar compreender os aspectos do desempenho que estão afetando a capacidade da pessoa de se engajar em ocupações e em atividades. A questão do fazer, dos papéis ocupacionais que o sujeito exerce, a busca de projetos de vida significativos e prazerosos como formas de produção de vida, atuam como ferramentas para a compreensão de como as pessoas se inserem nos diversos espaços que compõem a sua vida e a maneira pela qual interagem e vivenciam suas relações. A partir deste conhecimento o terapeuta pode tornar possível identificar fatores que atuam enquanto protetores e aqueles que representam riscos.

Nos grupos terapêuticos realizados no Hospital-dia do Setor de Psiquiatria do HSPE-FMO pude verificar que muitos professores ali em tratamento, que se encontram afastados do trabalho e muitas vezes por causa do trabalho, não estão realmente dispostos a trabalhar clinicamente ou não estão com vontade de realizar trabalho algum.

O Hospital-dia é encarado como uma sala de espera da vida, um lugar protegido e seguro onde a vida faz uma pausa e os problemas deixam de existir. Apesar de estarem ali buscando tratamento, há uma tendência à estagnação, ao não trabalho e vício ao lamento. Descrevem uma sensação de vazio e permanecem estagnados, não encontrando outras possibilidades de existência e não conseguindo enxergar suas próprias potencialidades.

Muitos professores relataram nos grupos que sentem fobia e pânico ao pensar no retorno à profissão apresentando sensações de medo, taquicardia, sudorese e falta de ar. Outros relataram humor deprimido, estresse, fadiga e esgotamento psíquico e físico. Também foi possível observar além dos sintomas fóbico-ansiosos, somatizações, sintomas e conversões histéricas e relatos de agressividade em sala de aula.

Todos estes relatos e alguns casos curiosos de paralisia facial, de amnésia em sala de aula, de caminhadas sonâmbulas até a escola despertaram meu interesse acerca do assunto e evidenciaram a importância de relatar o caráter regredido de alguns sintomas e comportamentos bem como a dimensão melancólica da histeria e neuroses obsessivas.

Sabemos que é o olhar dos pais, o olhar que amorosamente acolhe o bebê é que lhe dá reconhecimento e estabelece uma imagem ideal tanto externa quanto internamente no psiquismo desse indivíduo. Entretanto, sabemos que em muitos indivíduos que apresentam sofrimento psíquico, frequentemente, estes são decorrentes de relações primordiais conturbadas.

É a aproximação entre histeria e a ideia de que a escolha de objeto, na histeria, é regida por uma reivindicação narcísica que relaciona histeria e melancolia, uma vez que esta última, segundo Freud, é uma reação patológica a uma perda que tocou o narcisismo. Green (1974 apud Leite, 1999) sugere que o problema da histeria está na relação entre sexualidade, amor e reações à perda, nas diferentes estruturas do eu. Propõe que o desejo na histeria é mais um desejo narcísico do que sexual e que, sendo assim, a perda atua na histeria como uma ferida narcísica que pode conduzir à depressão com uma diminuição da autoestima.

Magtaz (2008) afirma em sua tese de doutorado que

(...) a histérica vive presa ao passado, a um passado de reminiscências que a deixa fixada, comprometida pela via do sintoma conversivo. O paciente histérico "alimenta-se" desse passado esperando encontrar nele uma possibilidade de refazer uma ilusão (desfeita como uma miragem que desaparece no deserto), algo que garanta um momento ilusório de plenitude anterior à perda do objeto - uma ilusão de gratificação narcisista. (p. 61)

A ação do recalcamento sobre as fantasias proporciona muitas vezes nos indivíduos a angústia traduzida na impossibilidade de poder, da hesitação e do medo constantes que os impedem de prosseguir. Quanto a isso Freud (1926/1976) esclarece que "a angústia neurótica é a angústia por um perigo desconhecido. O perigo neurótico é assim um perigo que tem ainda de ser descoberto" (p. 190).

Nasio (1991) afirma que "o histérico é fundamentalmente um ser de medo que, para atenuar sua angústia, não encontrou outro recurso senão manter incessantemente, em suas fantasias e em sua vida, o doloroso estado de insatisfação" (p. 15). Neste sentido, pode-se concluir que, assim como afirma Berlinck (1997), "a vontade como se sabe, faz parte do ego e talvez seja mesmo a principal expressão desta instância psíquica" (p. 32) e a falta de vontade pode ser a expressão de um ego extremamente frágil, praticamente inexistente.

Segundo Magtaz (2008), mais do que uma perda da libido trata-se de uma estagnação da libido, o que geraria uma insensibilidade ao nível psíquico e corporal. Assim, a dificuldade de dispor-se clinicamente dos pacientes afastados do trabalho e muitas vezes por causa dele, pode estar relacionada a um recalcamento das pulsões e estagnação da libido, que na histeria pode ser compreendido como um recurso para atenuar a angustia, mas que ocasiona medo, impossibilita o desejo, paralisa o sujeito e reafirma o descontentamento histérico.

A adicção de Renata3 3 O nome utilizado neste trabalho é fictício.

Quando Renata chegou ao Hospital-dia se considerava um copo que foi cheio por um conta-gotas, mas que não pode evitar de transbordar. Descobriu o quanto era frágil sua capacidade de conter e elaborar afetos.

Após o esgotamento e frustração gerados pelo trabalho, perdeu o sentido de sua vida e todas as questões que antes não "tinha tempo para pensar" vieram à tona. Fala pela primeira vez sobre o trauma da gravidez indesejada, ainda virgem, de um homem que não amava e o sentimento de obrigação (dela mesma e da família) para casar-se com ele e abandonar seu sonho de fazer uma faculdade.

Romântica e idealizadora, Renata acreditou que talvez seu marido pudesse fazê-la feliz, no entanto, se frustrou mais uma vez. Havia casado com um sujeito que nunca viria a amá-la como uma princesa em um conto de fadas, pelo contrário, seu relacionamento sempre foi permeado por muita agressividade e falta de diálogo.

Assim, foi possível observar que a estratégia inconsciente de sobrevivência psíquica, adotada por Renata naquele momento, foi refugiar-se em seu trabalho. A dependência deste se revela como uma procura desesperada por não depender mais de seu marido, cuja presença se tornou insuportável, para ser feliz. Diante dos alunos sua mente ficava vazia, limpa e sentia um prazer intenso, um estado sublime de êxtase.

A relação que Renata passa a estabelecer com seu trabalho pode então ser considerada como aditiva na medida em que é uma tentativa de passar sem o outro, evitando a intersubjetividade vivida como insuportável. O objeto de investimento, seu trabalho, passa a funcionar segundo o modelo da perversão: ele é efetivamente desconsiderado em sua alteridade e reduzido a simples e controlável objeto de gozo. Gozo este impossível de ser encontrado internamente.

O outro existe para Renata, mas não é ninguém. Mais do que uma coisa, é a presença material de seus alunos que a excita, que cria sensações de prazer. Segundo Le Poulichet (1995, apud Allouch, 2003, p. 7), "o adicto torna-se incessantemente o que se incorpora, para que o Eu tenha, enfim, a ilusão de se fechar em suas próprias bordas e de resistir a uma abertura mortal". Renata experimenta assim, uma sensação de continuidade de ser, escapando a um caos interno.

O que torna a estratégia adictiva paradoxal é que na ânsia por não depender do outro, corre-se o risco de se passar a depender de forma primária de um objeto externo, do qual a pessoa se torna escrava. Vale ressaltar que é exatamente este o sentido primitivo do termo "adicto" (Santi, 2009). O conflito e o ódio à realidade fez Renata buscar a única situação que lhe poderia ser satisfatória.

No entanto, é possível pensar a adicção como uma alternância de sensações de vazio e de apaziguamento. McDougall (1999) afirma que ao contrário do objeto transicional, "os objetos da necessidade aditiva não conseguem proporcionar por mais do que um breve período o reconforto exigido e aquilo que oferecem raramente é suficiente para a criancinha desesperada e enfurecida que sobrevive nesses pacientes" (p. 108).

Ainda segundo esta autora, a fantasia megalomaníaca infantil revela que o objeto primário nunca foi reconhecido no adicto como não pertencente ao ego, isto é, nunca se colocou diante do ego, como objeto não ego, outro. Como consequência, seu luto não pôde ser realizado, simbolizado e introjetado.

A angústia da perda do objeto primário invade o ego e o imobiliza, levando a pessoa a sentir-se incapaz de encontrar alívio sozinha, ou seja, sem o uso de um objeto a ser incorporado vorazmente. Renata conta que nunca se sentiu plena; a sensação prazerosa após ministrar as aulas era logo substituída por uma sensação de esvaziamento.

O esgotamento, a frustração e a falta de sentido e vontade vivenciados por Renata quando esta chega ao Hospital-dia estão, a meu ver, primeiramente relacionados à perda de seu objeto de amor, o trabalho.

Segundo M. Torok e N. Abraham (1995 apud Magtaz, 2008), a incorporação seria a capacidade de recuperação mágica do objeto da adicção que é colocado no mesmo lugar do objeto perdido, impedindo a experiência da ausência do objeto. O vazio não transformado em ausência necessita ser "curado" instantaneamente, compreendendo uma reparação narcísica: recuperação de objetos perdidos que eram constitutivos de si. Sendo assim, a perda não pode ser considerada como perda e, no caso de Renata, após frustrar-se com seu trabalho, substitui a relação adicta que estabelecia com ele por outra relação adicta ao seu tratamento e às compras.

A mesma paixão e dedicação antes destinadas ao trabalho foram depois de um tempo destinadas aos grupos, aos profissionais e mesmo aos medicamentos que passou a ingerir. Quanto às compras, dizia que quando falava em comprar tinha a sensação "de água na boca" chegando a "tremer de vontade".

Neste sentido, é possível pensar que este sentimento de vazio e insatisfação constante é consequência da ausência do objeto que antes lhe trazia alívio, e pela incapacidade de ficar só e habitar uma solidão serena. Esta sensação de vazio sempre a acompanhou, no entanto, antes, ele era preenchido pela sensação de prazer e desprazer proporcionados pelo seu trabalho.

Foi somente a partir da elucidação da relação estabelecida por Renata e seu trabalho como aditiva que o caso pôde ser compreendido e reflexões acerca do manejo clínico puderam ser realizadas. O objetivo de seu tratamento passou a ser a capacidade de deprimir e quando isso aconteceu, Renata pôde pedir ajuda pela primeira vez e contar que não é mais o que era antes, mas que desejava voltar a ser.

Este foi um ponto muito importante no tratamento de Renata, uma vez que segundo Fédida (1999 apud Magtaz, 2008) "a descoberta depressiva do vazio durante o tratamento é um ponto de apoio da cura". Para este autor,

(...) a boca é a cavidade que inaugura o vazio. Tem-se fome de fala e ela expõe uma voracidade. O vazio se impõe no tratamento analítico pela fala ávida e pelo agir desenfreado. O vazio, portanto, instala-se com sua fala e o analista não deve, de maneira nenhuma, desprezá-lo ou preenchê-lo. Deve, sim, jogar com ele. (p. 157)

Considerações finais

Compreender a função psíquica do trabalho e seus efeitos sobre a saúde mental significa, portanto, dar visibilidade a todos os aspectos subjetivos mobilizados no ato de trabalhar. É impossível considerar o trabalho como um espaço de neutralidade subjetiva e social, uma vez que as exigências do trabalho são uma ameaça ao próprio trabalhador e as relações de trabalho, dentro das organizações, frequentemente despojam o trabalhador de sua subjetividade, excluindo o sujeito e fazendo do homem uma vítima do seu trabalho.

Uma intervenção eficaz estaria, portanto, relacionada a uma compreensão do indivíduo em sua totalidade, considerando sua história de vida, contexto sociocultural em que está inserido, papéis ocupacionais que exerce, bem como sua estrutura psíquica e maneira de estabelecer relações e vivenciar afetos, dando importância ao conteúdo simbólico do trabalho, as relações subjetivas do trabalhador com sua atividade, o desgaste gerado pelo trabalho e os efeitos sobre a saúde física e mental dos indivíduos.

Sarah Rosa Salles Vieira

Terapeuta Ocupacional pela Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Br); Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Br); Terapeuta Ocupacional da Prefeitura Municipal de Campinas (Campinas, SP, Br).

Av. Anchieta, 200

13015-904 Campinas, SP, Br

e-mail: sarah_sallesvieira@yahoo.com.br

Recebido/Received: 13.11.2013/ 11.13.2013

Aceito/Accepted: 20.1.2014 / 1.20.2014

Financiamento/Funding: A autora declara não ter sido financiada ou apoiada / The author has no support or funding to report.

Conflito de interesses/Conflict of interest: A autora declara que não há conflito de interesses / The author declares that has no conflict of interest.

Citação/Citation: Vieira, S. R. S. (2014, março). Sofrimento psíquico e trabalho. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(1),114-124.

Editor do artigo/Editor: Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/ University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

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  • 1
    Artigo baseado em Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Especialização em Psicopatologia e Saúde Pública, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz.
  • 2
    Psiquiatra e psicanalista, diretor do Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação, do
    Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, França.
  • 3
    O nome utilizado neste trabalho é fictício.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Aceito
      20 Jan 2014
    • Recebido
      13 Nov 2013
    Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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