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Sob o pé do castanheiro: histórias que perpassam um Serviço Residencial Terapêutico* * Trabalho desenvolvido a partir do grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Maria Tavares Cavalcanti, consistindo no estudo do material teórico e reflexão sobre Residências Terapêuticas bem como a supervisão do acompanhamento dos moradores e equipe de cuidadores de três Residências Terapêuticas vinculadas ao IPUB. Este estudo foi constituído para dissertação de mestrado intitulada Serviço Residencial Terapêutico: criando espaços de vida, da psicóloga Tania Kuperman Sztajnberg sob orientação da professora Maria Tavares Cavalcanti defendida em agosto de 2012 no Instituto de Psiquiatria da UFRJ/IPUB.

Under the Chestnut Tree: life at a therapeutic residence

Sous le pied de la châtaignier: histoires vécues dans un Service Résidentiel Thérapeutique

Bajo el castañero: historias que atraviesan un Servicio Residencial Terapéutico

Unter dem Kastanienbaum: Geschichten eines therapeutischen Dienstes für betreutes Wohnen

Resumos

A personagem enlouquecida amarrada ao pé do castanheiro de "Cem anos de solidão" serve-nos de metáfora para as amarras que a institucionalização pode propiciar. Como fazer para que uma Residência Terapêutica (RT), por não oferecer as mesmas amarras das instituições psiquiátricas, possa ter a função de um espaço transitório para outro lugar? Para tentar responder esta questão construímos uma aproximação entre o ambiente facilitador e o meio que a RT representa a partir dos conceitos de Winnicott.

Serviço Residencial Terapêutico; desinstitucionalização; psicanálise; Winnicott


The mad man tied to the chestnut tree in One Hundred Years of Solitude can be seen as a metaphor of the ties that institutionalization can engender. What can be done to make a therapeutic residence perform the role of a transitory space for patients, since there they are not tied down as they would be in a psychiatric institution? Based on Winnicott's concepts we tried to answer this question by making a connection between the facilitating environment and the therapeutic residence environment.

Therapeutic residence; deinstitutionalization; psychoanalysis; Winnicott


Le personnage fou attaché au pied d'un châtaignier dans Cent ans de solitude nous sert de métaphore pour les chaines invisibles que l'institutionnalisation peut représenter. Étant donné que la résidence thérapeutique (RT) ne produit pas les mêmes rapports de dépendance que les institutions psychiatriques, comment la configurer pour qu'elle puisse jouer un rôle d'espace transitionnel? Pour essayer de répondre à cette question, nous avons construit une approximation entre l'environnement facilitateur et celui de la RT à partir des concepts de Winnicott.

Service Résidentiel Thérapeutiques; désinstitutionalisation; psychanalyse; Winnicott


El personaje loco atado al castañero del libro Cien años de soledad nos sirve como una metáfora de las amarras que la institucionalización puede propiciar. ¿Como hacer para que una Residencia Terapéutica (RT), por no ofrecer las mismas amarras de las instituciones psiquiátricas, tenga la función de un espacio de transición para otro lugar? Para intentar responder a esta pregunta hemos construído una aproximación entre el ambiente facilitador y el ambiente que la RT representa basado en los conceptos de Winnicott.

Servicio Residencial Terapéutico; desinstitucionalización; psicoanálisis; Winnicott


Die verrückt gewordene Person, an einen Kastanienbaum gebunden, in "Hundert Jahre Einsamkeit", dient uns als Metapher für die Fesseln, welche die Institutionalisierung den Menschen anlegen kann. Wie erreicht man es, dass ein therapeutisch betreutes Wohnen die Funktion einer Übergangslösung zu einem anderen Ort ausübt - zumal es nicht die selben Fesseln wie psychiatrische Einrichtungen anlegt? Um auf diese Frage zu antworten, haben wir eine Annäherung zwischen einem unterstützenden Millieu und dem, des therapeutisch betreuten Wohnens, entsprechen Winnicotts Konzept, ausgearbeitet.


Posso estar em um emaranhado, e, logo, libertar-me dele, ou então, tentar colocar as coisas em ordem, de modo a poder, durante algum tempo pelo menos, saber onde estou. Ou, encontrar-me no mar, oriento-me de modo a poder chegar a um porto (numa tempestade a qualquer porto) e, depois, em terra firme, procuro uma casa construída sobre rocha, de preferência a areia, e em minha própria casa que (como inglês) é meu castelo, fico no sétimo céu.

(Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago., p. 145)

Gostaria de iniciar este texto a partir de uma história que não necessariamente representa um hospital psiquiátrico, tampouco um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), mas pode ser considerada uma boa ilustração do processo de institucionalização, onde quer que ele se configure.

A história se passa na cidade fictícia Macondo, criada por Gabriel Garcia Marquez no livro Cem anos de solidão. O livro, de título sugestivo, narra a vida de várias gerações de uma mesma família.

O primeiro casal que dá início a esta história é composto por Úrsula e José Arcadio Buendia, que são os fundadores da província e respeitados por toda a cidade. Ele, o patriarca da família, tinha um temperamento forte e sempre foi bastante excêntrico. Era muito amigo de um cigano e dele comprava objetos que, acreditava, se tornariam grandes invenções. Deste, ganhou de presente um laboratório de alquimia que foi instalado em um quarto de sua casa. Lá, ele passava dias a fio, absorto em suas invenções. Apresentava a todos as descobertas que considerava revolucionárias. Mesmo assim era respeitado, sua bizarrice já não causava tanto estranhamento. Ao contrário, tinha o respeito de todos e podia tomar decisões importantes na comunidade. Certa vez, conseguiu sucesso em uma de suas descobertas:

Aquela descoberta o excitou muito mais do que qualquer das suas empresas descabeladas. Não voltou a comer. Não voltou a dormir. Sem a vigilância e os cuidados de Úrsula deixou-se arrastar pela sua imaginação até um estado de delírio perpétuo do qual não voltou a se recuperar. (Marquez, 2003Marquez, G. G. (2003). Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: O Globo., p. 74)

Neste estado de confusão mental eterna, é tomado por fúria, começa a destruir sua casa e a gritar em um idioma incompreensível, sendo necessários dez homens para segurá-lo e amarrá-lo ao pé do castanheiro no quintal. Mais tarde construíram uma pequena cobertura de sapé para protegê-lo do sol e da chuva. Selava, assim, seu destino, ao pé do castanheiro do quintal, onde viveria por muitos anos. Destacamos do livro duas passagens em que a metáfora em torno desta personagem pôde nos servir.

Mesmo amarrado à arvore, a vida a sua volta segue seu rumo. Um padre que fora chamado de outra cidade para realizar um casamento na família Buendia resolve se estabelecer em Macondo, onde até então se vivia sem a submissão a tradições religiosas. Foi ele quem descobriu que a língua falada por José Arcadio, e que ninguém entendia, era na verdade latim e resolve fazer-lhe visitas com intuito de "infundir a fé em seu cérebro transtornado" (p. 80). Nas conversas em latim, o padre se espantava com a lucidez, como nunca havia visto, com que José Arcadio Buendía percebia as coisas. "(...) perguntou-lhe como é possível que o mantivessem amarrado em uma árvore - Hoc est simplicissimum, respondeu ele - porque estou louco" (p. 81). O padre decide então se afastar para proteger sua própria fé.

Úrsula, esposa e matriarca da família, é quem passa a cuidar de José Arcadio Buendía e para ele traz as novidades dos últimos acontecimentos familiares, ora despejando suas amarguras, ora poupando-o com meias-verdades de notícias que, sob seu ponto de vista, era melhor que não tomasse conhecimento. É num destes encontros, ao se dar conta da passividade que havia tomado conta de seu esposo, que resolve desamarrá-lo, mas para sua surpresa, é sentado ao pé do castanheiro que, mesmo sem cordas, José Arcádio Buendía se mantinha:

Via-o tão manso, tão indiferente a tudo que decidiu soltá-lo. Ele nem sequer se mexeu do banquinho. Continuou exposto ao sol e à chuva, como se as cordas fossem desnecessárias, porque um domínio superior a qualquer prisão visível o mantinha amarrado ao tronco do castanheiro. ( p. 102)

Seguindo para outro quintal

Em um bairro residencial do Rio de Janeiro, numa casa de dois andares com entradas distintas, foi possível estabelecer dois Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).1 1 Atualmente no apartamento térreo vivem nove moradores que antes aguardavam este serviço, há mais de um ano, nas enfermarias de acolhimento à crise Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/IPUB.

Dentre os moradores desta RT, o histórico de tratamento e/ou internações em enfermarias era comum a todos. Muito precisou ser reestabelecido, dos pertences ao desejo de se morar em uma casa, muito trabalho foi feito.2 2 Os pacientes eram acompanhados por equipe do grupo de pesquisa e supervisão do IPUB/UFRJ. Para este estudo serão utilizados os dados obtidos na participação do acompanhamento de uma das RTs do IPUB e entrevistas realizadas com duas assistentes sociais que são referências para a moradia. Cito então situações de sujeitos que perpassaram esta RT.

Marilena,3 3 Os casos clínicos serão apresentados com nomes fictícios a fim de preservar a privacidade e o anonimato dos envolvidos. moradora desta RT,4 4 Marilena era interna da enfermaria do IPUB e a passagem para a RT foi descrita no artigo Cavalcanti & Sztajnberg. Setembro de 2010, p. 457-468. foi casada com um americano com quem teve um filho e viveu por alguns anos nos Estados Unidos. É ela quem nos conta que, em meio a uma crise, pediu ajuda ao consulado brasileiro e voltou para o Brasil, contra a vontade da família. Família essa com quem perdeu o contato até que ele fosse reestabelecido pela equipe de serviço social do IPUB.

Marilena discursava sobre a vontade de sair da RT. Chegou a sair de casa e a passar um tempo nas ruas do centro do Rio, mas retornou para a RT após internação. Em busca de outro lugar para morar, encontrou em um recorte de jornal um destes anúncios que oferecem possibilidades de casa própria acessível a qualquer orçamento. Explicávamos para ela outros gastos que teria, caso saísse da RT, mas ela respondia enfrentando nossas ressalvas e desconfianças com contas e argumentos, mostrando--nos que seu benefício e os milhões que dizia possuir, dariam para pagar tudo que precisasse. Neste momento, não foi possível escutá-la para compreender que a casa que lhe foi dada por direito, não foi de fato construída por ela ao seu modo. A "casa" que Marilena nos dizia que queria era a que poderia pagar.

Acompanhada por três integrantes da equipe seguiu para a reunião com o funcionário da imobiliária. Os valores das casas e a necessidade de depósito foram apresentados. Ao fim, Marilena concluiu que não teria dinheiro para comprar o apartamento e que iria voltar para a casa da sua família.

Marilena nunca mais voltou a falar na compra do apartamento, entretanto, passou a questionar mais a respeito do uso do seu dinheiro. Fazia acusações de que seu benefício e todos os seus milhões estavam sendo roubados. Questionava a casa, os moradores e a equipe.

Sempre recusou usar seu dinheiro para qualquer finalidade destinada à casa, queria apenas comprar roupas, bijuterias e coroas carnavalescas que ostentava em qualquer saída. Com o que só se via dentro de casa, ela não parecia se importar: para a falta de lençol, dormiria sem; se não houvesse sabonete, bastaria água e para alguma compra coletiva a recusa era imediata. Mediávamos a relação de Marilena com a equipe de cuidadores e os outros moradores, apontando que o que parecia urgência para todos à sua volta, não era para Marilena. Entretanto, como não cuidar dela e como fechar os olhos para as necessidades? Como em uma RT é possível que cada morador construa a sua própria casa? Temos uma equipe capaz de propiciar isso?

Ocorreram algumas mudanças na equipe e Marilena mudou de referência. Ela mesma escolheu uma assistente social para se tornar sua Acompanhante Terapêutica (AT). Em comum acordo passaram a controlar juntas todo o dinheiro que Marilena recebia e seus gastos, através de um caderno onde tudo era anotado e assinado. Marilena passou a receber o seu dinheiro integralmente. As duas discutiam juntas sobre como este dinheiro deveria ser usado, mas caberia à própria Marilena o seu uso. Marilena estipulou seu gasto mensal que incluía um valor, definido por ela, destinado à compra de presentes para enviar ao seu filho.

Recorremos às concepções do psicanalista Donald Winnicott para o respaldo deste estudo por considerar que sua extensa elaboração sobre desenvolvimento emocional primitivo (1945) poderia nos servir para pensar estes pacientes comprometidos pelo transtorno mental. É possível encontrar outros estudos sobre o complexo tema dos SRTs em bibliografias da Saúde mental, da Reforma Psiquiátrica e da psicanálise fundamentada na obra de Lacan,5 5 Alguns exemplos podem ser encontrados no Cadernos do IPUB, n. 22, 2006. Ou no texto de Figueiredo & Frare, março de 2008, p. 82-96. no entanto, a partir da experiência clínica e de estudos teóricos, elucidamos as apreciações de Donald Winnicott por considerar que a contribuição de sua teoria sobre a construção do processo criativo pode ser útil para novas elaborações sobre o dispositivo em questão.

Estamos supondo que a RT fornece uma condição de sustentação - holding(1960) - contínua, constante, por meio de um ego auxiliar propiciado pela AT que promoveu assim, um padrão referência, que não pôde existir antes.

Ser conhecido significa sentir-se integrado ao menos na pessoa do analista. É disso que é feita a vida do bebê, e o bebê que não teve uma única pessoa que lhe juntasse os pedaços começa com desvantagem a sua tarefa de autointegrar-se, e talvez nunca consiga, ou talvez não possa manter a integração de maneira confiante (...) Na situação transferencial durante a análise de um paciente psicótico, temos a mais clara prova de que o estado psicótico de não integração tinha o seu lugar natural num estágio primitivo do desenvolvimento emocional do indivíduo. (Winnicott, 1945/2000, p. 224)

Winnicott desenvolveu uma teoria do desenvolvimento emocional primitivona qual a mãe do infans adentra um estado de preocupação materna primária (1956/2000) - conceituação construída por ele - que lhe permitiria uma identificação fusional com sua criança não só para poder atender suas necessidades como também para "filtrar" os excessos que o ego incipiente do bebê não teria condições de absorver e que seriam vividos como invasões traumáticas. Sua função seria, então, a de sustentar no tempo e no espaço - holding - essa continuidade a fim de que uma totalização dos núcleos do eu (1945/2000) possa se dar. Configura-se, assim, uma integração benigna. Caso o ambiente falhe nessa tarefa, surge a ameaça de desintegração que obriga a formação de defesas, sendo a dissociação psicótica uma delas. Para este autor, a loucura derivaria de um ambiente inconsistentemente bom e mau causando um efeito perturbador.

(...) no início, um simples contato com a realidade externa ou compartilhada precisa ser feito, em que o bebê alucina e o mundo se apresenta, com momentos de ilusão do bebê em que as duas coisas são vistas como idênticas, o que de fato jamais são.

Para que essa ilusão se dê na mente do bebê, um ser humano precisa dar-se ao trabalho de trazer o mundo para ele num formato compreensível e de um modo limitado, adequado às suas necessidades, por esta razão não é possível um bebê existir sozinho, física ou psicologicamente, e de fato é preciso que uma pessoa específica cuide dele no início. (Winnicott, 1945/2000, p. 229)

Essa organização do meio em que a moradora está inserida, equivaleria ao que Winnicott nomeia como reparação do fracasso ambiental primitivo (1962/1982). Fracasso esse que para ele pode justificar uma tentativa de reparação por meio de um ambiente facilitador. Estamos propondo que a Residência Terapêutica propiciaria essa nova possibilidade de inserção social.

À guisa do que foi nomeado acima como Preocupação Materna Primária(1956/2000) - mãe que funciona como um escudo protetor - o substituto materno na figura desta acompanhante protege das invasões (caos), o excesso que não pode ser absorvido pelo psiquismo imaturo. Cria-se, assim, por um manejo adequado, promovido por esta figura, uma alternativa que possibilita gerar uma nova ação psíquica permeada pelo processo de identificação via a experiência compartilhada. Descongela-se, desta maneira, o fracasso anterior criando uma nova alternativa de funcionamento para o sujeito.

A própria AT relata na entrevista o quanto foi difícil aceitar que Marilena gastasse tamanha quantia no envio de presentes para o filho, mas conseguiu entender que na caixa de correio Marilena empacotava a possibilidade de restabelecer com este filho algum vínculo. Era ela quem estipulava o valor e escolhia suas compras. Com o restante do dinheiro as duas compraram colchão, lençóis e ainda juntam dinheiro para outras necessidades. Não era preciso concordar com o uso que Marilena fazia de seu próprio dinheiro. Acolher e compreender o significado que este uso tinha para ela abriu caminho para que, estabelecida a confiança, a AT pudesse apresentar novas alternativas das quais, paradoxalmente, Marilena pôde se apropriar. Passava a haver uma sintonia entre aquilo que era apresentado pela AT como necessário para Marilena, o que ela própria desejava e o que a possibilitava estar na casa.

A AT decide protegê-la dos olhares alheios, dizendo-lhe como se vestir e se comportar em alguns lugares, mostrando-lhe como a olhavam e a tratavam quando saía para fazer compras ou ia ao banco, coberta de tantas bijuterias e coroas. Hoje, Marilena ainda as usa, apenas para os passeios ao IPUB. Para outras saídas ela consegue vestir-se da maneira que acredita adequar-se à ocasião. As duas saem juntas para fazer as compras conforme o relato da AT:

Ela vai comprar roupa, eu sento e ela escolhe. Ela só me pergunta: 'estou bonita, com esta quantidade de brilho?' Eu respondo sinceramente e ela aceita (...) acho que ela queria isso, alguém que pudesse acompanhá-la e a pudesse orientar para que ela pudesse se mostrar assim como todos nós, pessoas comuns.

Observamos nesta vinheta um movimento no sentido de saída da marginalidade, da condição de exclusão habitual em que vive o paciente com transtorno mental. Marilena exercita, na construção compartilhada com a AT, uma experiência que a inicia num funcionamento mais condizente com os padrões sociais convencionais e menos bizarros do que seu padrão anterior, graças aquilo que lhe é apresentado por esse mediador com o ambiente representado pela referência institucional. Essa prática por um lado aponta um lugar idealizado que se espera destes pacientes, por outro, introduz um protótipo que pauta uma aproximação a uma possibilidade de que não se sintam tão estranhos, mas o mais próximo possível de uma "pessoa como as outras". Se conseguirmos nos adaptar ao lugar de referência para estes sujeitos - ou adentrarmos o estado de preocupação materna primária, segundo Winnicott - não tomamos decisões por eles, mas servimos de "reguladores", e emprestamos um anteparo para a realidade sem freio que não é possível absorver. Ainda segundo Winnicott:

É especialmente no início que as mães são vitalmente importantes, e de fato é tarefa da mãe proteger seu bebê de complicações que ele ainda não pode entender, dando--lhe continuamente aquele pedacinho simplificado do mundo que ele, através dela, passa a conhecer. (Winnicott, 1945/2000, p. 228)

Por conta própria Marilena decide economizar seu dinheiro. Ela deixa claro que não tem intenção de ficar na RT, mas, hoje, também faz compras de objetos de uso comum aos moradores e cuidadores. Está atenta e acusa novos gastos e investimentos necessários à manutenção, compara preços para uma maior economia, mesmo que, muitas vezes, tenha de ser lembrada de que não está sozinha e que as decisões em uma casa devem ser compartilhadas.

Ressalto ainda outra fala da entrevista com a assistente social que nos faz refletir: "a gente cuida destas pessoas e acaba virando quase da família, mas eu não quero esta relação. (...) se eu tiver esta relação eu não vou cuidar, eu vou paparicar e o que eu quero é cuidar".

Winnicott aponta que, inicialmente, a relação de cuidado entre mãe-bebê exige da mãe um cuidado como forma de devoção em relação ao bebê. Parece que a AT reconhece esta necessidade de cuidar, que depende não só de uma identificação consciente, mas também profundamente inconsciente e intuitiva. Entretanto, a AT também reconhece que em um segundo momento, a partir do sucesso deste cuidado, possa haver um distanciamento em que se abrem novos caminhos e um espaço para se criar. "Paparicar" talvez fosse a impossibilidade de sair deste primeiro estágio de devoção em contraponto ao "cuidado" mencionado, em que se abre espaço para a diferenciação.

Na mesma casa de Marilena morava Paulinho, porém os dois têm história e percursos bem diferentes.

Ao visitar a casa, era possível encontrar Paulinho, que se aproximava querendo conversar ou mostrar algum novo objeto que havia comprado. Paulinho tinha bastante dificuldade em lidar com o dinheiro e costumava ser acompanhado em suas compras.

Paulinho nunca passou por um período grande de internação, mas fazia tratamento e tinha o IPUB como uma forte referência. Morava com um familiar, porém sua indicação para a RT considerou os relatos de que em sua casa sofria abusos, maus-tratos e precisava de muitos cuidados. Segundo dados da entrevista, sem estes cuidados e alguém que estivesse junto dele, acabava ficando sujo e sem se alimentar, além de não conseguir se defender em situações em que não estava de acordo com o que dele e com ele era feito. Diagnosticado com retardo, frequentava a oficina do Ateliê da vida no IPUB onde também lhe providenciavam banho, roupas e comida.

Paulinho tem uma irmã que é sua curadora e recebe por ele a pensão deixada pelo pai. Em acordo possível, esta irmã passou a se responsabilizar por alguns dos gastos necessários e a entregar-lhe uma quantia combinada com a equipe. Este acordo financeiro retornava para a equipe em vários dos nossos encontros e discussões.

O dinheiro que Paulinho passou a receber deu início a uma infindável lista para as suas necessidades. O que - para os cuidadores - nem sempre era fácil de ser compreendido, já que na maior parte do tempo não era na obtenção dos objetos da lista que encontrava o fim de suas buscas. Na verdade, parecia se interessar pelo movimento que estas buscas lhe causavam. Para cada objeto havia uma conversa, pesquisa de opinião, saída para compra. Mostrava a nova aquisição para todos que encontrasse e, assim, conferia se, ao olhar externo, o valor dado à sua compra se confirmava, até que após todo o processo, podia se beneficiar do prazer de presentear, o que o permitiria reiniciar todo o percurso.

A quantia recebida possibilitava que Paulinho morasse em uma RT, mas tornava--se cada vez mais insuficiente tanto para as necessidades concretas da vida quotidiana quanto para abrir caminho para o movimento de compras e trocas que lhe permitia morar da maneira que inventara. Por outro lado, havia dificuldade em intervir nesta quantia, por compreender que este dinheiro permeava a relação entre Paulinho e a irmã, promovendo um elo concreto de um vínculo que era frágil, fragilidade esta com a qual Paulinho dificilmente poderia lidar.

Paulinho sempre desejou a proximidade com sua família e a possibilidade de sair da RT. Começou a passar os finais de semana com o irmão, mas voltava muito mal e bastante nervoso. Houve suspeita de que estaria sofrendo abuso de algum vizinho. Protegido pela equipe, suas visitas foram suspensas e ele mesmo procurou uma tia que passou a frequentar.

Temos a oportunidade de acompanhar nessas experiências vividas por Paulinho o quanto um ambiente pouco facilitador (1963/1982), expressão de Winnicott, produz efeitos devastadores na constituição subjetiva. A mediação promovida pela equipe da RT e o continente oferecido pela casa foram fundamentais para fazê-lo deslizar dessa posição idealizada que o fazia buscar contato com a família, mas que o expunha a uma violência repetida. Como uma estratégia para dar conta das experiências traumáticas, refugiava-se no isolamento narcísico e construía um imaginário dissociado da realidade. Precisava habitar esse "outro" mundo fantasioso em que sua família o acolheria com afeto.

A vida de um novo morador em uma RT requer da equipe disponibilidade e tempo para muitos cuidados, tanto com relação ao paciente quanto na articulação de toda a rede de apoio da casa e dos outros dispositivos de saúde que deverão auxiliá--lo nesta nova jornada. O uso que cada morador fará deste novo espaço é particular e isto demanda que alguém lhe ofereça a possibilidade de estar acompanhado. Alguém que inicialmente possa servir como modelo, um elo estável que dará continuidade ao cuidado, mas que em um segundo momento tenha a possibilidade de se distanciar. A RT funcionaria nesse padrão; então, para o sujeito, como uma transição de um cuidado inicialmente absoluto para seguir na direção de um estado em que a vivencia como um objeto provedor, mas limitado.

Neste ponto cabe a indagação: será que temos quem possa se responsabilizar por todos estes cuidados? Quem esteja disponível a este primeiro momento de relação fusional que Winnicott nos apontou como sendo um período necessário à constituição do sujeito para a entrada nas relações sociais e, assim, poder se afastar deste lugar de ligação absoluta?

Para Paulinho, foi decidido em equipe - mas não por unanimidade - que se tentaria sua mudança para a casa da sua tia em outro bairro do Rio de Janeiro. Segundo relatos da assistente social que efetivou a mudança, foram feitas visitas em que esta tia o recebeu junto com a equipe de forma bastante acolhedora. Paulinho, muito animado, em pouco tempo já estava em sua companhia.

Mesmo deixando a RT, Paulinho continuou presente em nossas reuniões. Ele frequenta o hospital-dia do IPUB, onde faz tratamento quase que diariamente e busca com bastante frequência alguns membros da equipe da RT, pedindo para voltar. Sua irmã também busca a equipe dizendo que seu irmão não está sendo bem cuidado, que não tem onde deixá-lo e que ele deveria voltar para a RT.

Em reunião, uma outra assistente social da equipe aponta que os próprios pacientes do IPUB lhe indagam, de maneira jocosa, do porquê ele ter deixado a RT para morar em um bairro que consideravam de classe mais baixa. A mesma assistente social marca as dificuldades em efetivar esta passagem, se a instituição com a qual ele tem referência o recebe acreditando que a mudança teria sido pior para ele. Winnicott (1963) nos aponta então no texto "Os doentes mentais na prática clínica", qual deveria ser a função do tratamento para pacientes psicóticos e qual o lugar do terapeuta que ele indica que deveria, mesmo que assumido por outro profissional, ter a função de assistente social:

Eu penso em cada assistente social como sendo terapeuta, (...) sua função mais importante é a terapia do tipo que é sempre conduzida pelos pais na correção de falhas relativas à provisão ambiental. O que fazem esses pais? Eles exageram algumas funções paternas e as mantêm por um período de tempo, de fato, até que a criança tenha utilizado e esteja pronta para ser dispensada deste cuidado especial. O cuidado especial se torna entediante, uma vez que sua necessidade tenha passado. (p. 204)

Mas por que Marilena, Paulinho e tantos outros estão em um Serviço Residencial Terapêutico e precisam dele? Hoc est simplicissimum - poderíamos responder -porque estão loucos!

Muitos dos nossos moradores da RT passaram a vida sem se deparar com um lugar no qual pudessem existir à sua maneira. Ao transformar as RTs efetivamente em lugar de passagem, ou seja, ao construir a sua clínica apontando sempre para outras possibilidades que não apenas a própria RT, isso não caracteriza um abandono, é uma direção. Oferece-se, desse modo, um ambiente facilitador para que o morador possa criar seu próprio jeito de estar em algum lugar, seja ele a RT ou outro.

Na verdade, o que a RT propicia é uma transicionalidade, um espaço potencial (no dizer de Winnicott (1951/2000), sob a forma desse trabalho terapêutico que visa criar maiores relações com a realidade externa, ampliando as trocas, bem como estruturando e consolidando os laços sociais. Por transicionalidade entende-se a conquista da circulação entre o dentro e o fora, um terceiro "lugar", uma área intermediária onde, pela via da fantasia, se "fabrica" a realidade - mais um paradoxo das concepções winnicottianas - através de uma mobilidade criativa que desdobra a plasticidade do funcionamento subjetivo e facilita a percepção da realidade objetivamente percebida. Justo o oposto à fixidez em que o asilamento originariamente imobiliza o sujeito, uma defesa da qual o sujeito lança mão que o faz reagir repetitivamente quando não pode, por falta de espaço e de oportunidade na relação mãe-bebê, se dar ao luxo de criar nada.

Paulinho encontrou quem apostasse que ele poderia sair da RT, mas talvez não tenha encontrado um olhar que constituísse um chão para que pudesse erguer sua própria morada. Em sua saída para uma casa, continuou errante à procura de um lugar. Parece continuar em sua busca e pode ser que esta seja a sua forma de morar. Marilena pode ter encontrado um olhar de quem acreditava que ela tinha outras escolhas, e mesmo continuando na RT, encontrou paredes não mais tão destrutivas e onde pôde morar. A AT proporcionou um espaço potencial e Marilena conseguiu se transpor do lugar de dependência para construir e criar um lugar possível para viver.

José Arcadio Buendía no romance épico de Garcia Marquez havia perdido a oportunidade de criar, soltou-se das amarras do lado de fora, mas ficou refém dentro. Perdeu seu laboratório de alquimia, onde fabricava sua própria existência, e recebeu em troca tudo que passou a acreditar que era preciso: telhado para chuva e cuidados.

Até então, sabemos onde estão nossos moradores, e não sabemos que caminhos irão tomar, de maneira que só tenho como terminar este texto remetendo-me ao destino de José Arcadio Buendía: dada a premonição de um de seus filhos de que seu pai estaria morto em pouco tempo, resolveram tirá-lo do pé do castanheiro. Fora arrastado, pois sete homens não deram conta de lhe carregar. Não por oferecer alguma resistência, mas por todo peso que havia adquirido ao longo dos anos. Para que se mantivesse em casa e não retornasse ao castanheiro, precisou ser amarrado à cama, de onde não mais saiu, até que em pouco tempo acabou falecendo. A inércia aniquila o potencial criativo presente em todo sujeito, condenando-o a uma alienação mortífera.

Agradecimentos

Aos que abriram as portas da casa: ao grupo de pesquisa do IPUB, pelas reflexões e por não desistir de dar continuidade e possibilitar o trabalho. A todos os moradores, principalmente os que demos lugar neste estudo e os que ganharam lugar com ele.

Referências

  • Cadernos do IPUB, Editora Contra Capa/UFRJ/IPUB, 22, 2006.
  • Cavalcanti, M. T. , & Sztajnberg, T. K. (2010, setembro). A arte de morar... na Lua: a construção de um novo espaço de morar frente à mudança do dispositivo asilar para o Serviço Residencial Terapêutico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 13(3), 457-468.
  • Figueiredo, A. C. , & Frare, A. P. (2008, março). A função da psicanálise e o trabalho do psicanalista nos Serviços Residenciais Terapêuticos. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 11(1), 82-96.
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  • Winnicott, D. W. (2000c). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).
  • Financiamento/Funding: As autoras declaram não ter sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.
  • Citação/Citation: Sztajnberg, T. K., & Cavalcanti, M. T. (2014, junho). Sob o pé do castanheiro: histórias que perpassam um Serviço Residencial Terapêutico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(2), 265-278.
  • Editor do artigo/Editor: Profa. Dra. Ana Cristina Costa de Figueiredo e Profa. Dra. Andréa Máris Campos Guerra
  • *
    Trabalho desenvolvido a partir do grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Maria Tavares Cavalcanti, consistindo no estudo do material teórico e reflexão sobre Residências Terapêuticas bem como a supervisão do acompanhamento dos moradores e equipe de cuidadores de três Residências Terapêuticas vinculadas ao IPUB. Este estudo foi constituído para dissertação de mestrado intitulada Serviço Residencial Terapêutico: criando espaços de vida, da psicóloga Tania Kuperman Sztajnberg sob orientação da professora Maria Tavares Cavalcanti defendida em agosto de 2012 no Instituto de Psiquiatria da UFRJ/IPUB.
  • 1
    Atualmente no apartamento térreo vivem nove moradores que antes aguardavam este serviço, há mais de um ano, nas enfermarias de acolhimento à crise Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/IPUB.
  • 2
    Os pacientes eram acompanhados por equipe do grupo de pesquisa e supervisão do IPUB/UFRJ.
  • 3
    Os casos clínicos serão apresentados com nomes fictícios a fim de preservar a privacidade e o anonimato dos envolvidos.
  • 4
    Marilena era interna da enfermaria do IPUB e a passagem para a RT foi descrita no artigo Cavalcanti & Sztajnberg. Setembro de 2010, p. 457-468.
  • 5
    Alguns exemplos podem ser encontrados no Cadernos do IPUB, n. 22, 2006. Ou no texto de Figueiredo & Frare, março de 2008, p. 82-96.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2013
  • Aceito
    20 Jul 2013
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