Introdução
Como parte integrante de pesquisa maior que estuda o trauma e a neurose traumática depois de Freud, este artigo discute a narrativa testemunhal de sobreviventes da Shoah,1 a partir da perspectiva da Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche, como uma possibilidade de temporalização da vivência traumática.
Para Laplanche (1996a), a temporalização é o processo contínuo do ser humano que se organiza no tempo, tomando a si mesmo a partir de uma nova perspectiva diante das situações difíceis da vida, tais como perdas e separações. Essas situações exigem uma reordenação dos significantes inscritos por meio do processo de tradução, destradução e retradução, como veremos.
Contudo, a narrativa testemunhal2 também implica na problematização da possibilidade de representabilidade do trauma (Maldonado & Cardoso, 2009; Seligmann-Silva, 2008), pois, diante do pulsional desligado, não é mais possível lidar com o excesso de excitação pelas vias usuais (Cardoso, 2011). Ou, mesmo, que a possibilidade de falar do trauma, usando uma linguagem literária, implique uma distorção das situações vivenciadas (Ornstein, 2010). Seja como for, e frente ao trauma, é preciso tentar metabolizar o excesso.
Transformando o horror em verbo
No caso das vítimas de uma tentativa de genocídio, o laço entre o sobrevivente e a humanidade precisa ser reestabelecido. Além de toda a violência sofrida no próprio corpo, as vítimas do nazismo sofreram perdas significativas durante e após o período de aprisionamento. A perda do nome, da pátria, de familiares, da profissão, da dignidade e dos ideais morais - deixados de lado para poder sobreviver na realidade concentracionária - exigirá que o sobrevivente construa uma nova representação de si mesmo, mais coerente com a vida após a libertação do Lager. 3
Isso será possível pela escrita, onde a pergunta É isto um homem?, de Primo Levi,4 não só intitula seu primeiro e mais famoso livro, de 1947, inaugurando a literatura de testemunho, mas talvez seja a indagação de todo sobrevivente para saber o que lhe restou de humanidade. Assim lemos no seu poema Shemá, 5 logo no início do livro:
pensem bem se isto é um homem/ que trabalha no meio do barro,/que não conhece paz,/ que luta por um pedaço de pão,/ que morre por um sim ou por um não./ pensem bem se isto é uma mulher,/ sem cabelos e sem nome,/ sem mais força para lembrar. (1947/1988, p. 9)
É após a libertação do Lager, segundo Levi (2004), que se reavalia a própria conduta no campo de concentração. Para ele, a ingenuidade havia sido perdida, sentia-se imundo e não poderia mais voltar a ser puro, o veneno de Auschwitz corria em suas veias.
Igualmente, para Semprun6 (1995), algo essencial de si se perdera:
A certeza de que não houvera realmente uma volta, de que eu não retornara realmente, de que uma parte de mim, essencial, nunca regressaria, essa certeza por vezes me habitou, demolindo minha relação com o mundo, com a minha própria vida. (p. 117)
Assim, narrar os horrores se torna premente, sobretudo para recuperar a humanidade. Voltemos a Levi (1947/1988):
A necessidade de contar "aos outros", de tornar "os outros" participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. (p. 7-8)
Um troço do precioso pão, afirma Ornstein (2006), dava acesso a papel e tinta, porque criar era vital, mesmo para aqueles pouco talentosos; transformar em palavra e testemunhar a vivência traumática atuaria como ponte entre o sobrevivente e o outro fora do Lager, representando, assim, o desejo de renascer (Seligmann-Silva, 2008). Para Semprun (1995), apenas a linguagem literária pode transmitir a densidade da vivência do Lager ao transformar o testemunho em um objeto artístico, um espaço de criação ou recriação. Esta ideia, porém, foi contestada por outros sobreviventes e críticos para quem a linguagem literária deturparia a realidade do Lager, interferiria na própria interpretação histórica dos fatos.
Contudo, não se trata apenas da história dos fatos, mas dos fantasmas que os fatos mobilizam em cada um e coletivamente e as possíveis significações que podem ser atribuídas como parte do processo de temporalização, de metabolização do excesso. Ademais, recorrer à linguagem literária não é amenizar a situação traumática, diz Seligmann-Silva (2008), é um auxílio simbólico diante do intraduzível do trauma. É um encontro do trauma com a arte, que tem como foco principal a relação entre ferida psíquica e significação (Hartman, 2003).
Esses dois pontos, a necessidade de narrar e sua dificuldade concomitante, nos aproximam da problemática da tradução do traumático, da significação para cada sobrevivente após a violência sofrida e a historicização do vivido. Diremos que, em torno de cada vivência traumática, as próprias bases do psiquismo são colocadas em jogo, pois se reeditaria uma situação de total assimetria e passividade, traumática por excelência, mas que, apesar do excesso, é estruturante do psiquismo pelo trabalho de tradução. Trata-se da Situação Antropológica Fundamental, de Laplanche (2003), que funda o inconsciente precisamente em resposta ao trauma, ao sexual que o outro comunica inevitavelmente numa relação desigual como a de um adulto e uma criança. Tal modelo baseado numa desigualdade e no trauma, também se aplicaria na relação entre o algoz nazi e suas vítimas, com a diferença que este último, ao contrário da criança, contaria com mais recursos para iniciar o penoso trabalho de tradução.
No começo era o trauma...
Para Laplanche (1985, 1992), o início da vida está marcado por uma situação originária - a Situação Antropológica Fundamental (SAF) - comum às mais diversas culturas, que confronta adulto-criança. De um lado está o adulto com um psiquismo mais rico - com um inconsciente sexual e seus resíduos da sexualidade infantil -, pois já tem formada a tópica psíquica; e, de outro, a criança, que ainda não tem inconsciente, e conta apenas com montagens instintuais débeis que precisarão do narcisismo do adulto cuidador para se estabelecer.
A criança desperta a sexualidade infantil recalcada do adulto, de modo que o gesto que este dirige à criança é parasitado por esta sexualidade e veicula um sentido desconhecido por ambos, uma mensagem enigmática, uma sedução. Quando se dirige à criança, o adulto não se restringe ao plano do autoconservativo, seus cuidados têm um plus de prazer (Bleichmar, 1994). Assim, a sedução que em Freud estava apenas focada em determinados casos de pedofilia, Laplanche (1992) a generaliza para toda relação adulto-criança.
O infans, por sua vez, será impelido a traduzir a mensagem enigmática. Para fazê-lo, o próprio adulto lhe oferecerá códigos tradutivos disponíveis que, segundo Laplanche (2003), são esquemas narrativos pré-formados, como os complexos de Édipo e de castração, por exemplo, que fazem parte do inconsciente mitossimbólico. Enfim, são recursos simbólicos que a cultura oferece para significar as vicissitudes da sexualidade.
A tentativa de tradução da mensagem, isto é, da substituição de significantes, é difícil, afirma Laplanche (1992), porque sempre deixa atrás de si restos não traduzidos. O resto não traduzido é o irredutível da alteridade (Laplanche, 2007). É o outro interno, que atuará "como agente, objeto-fonte da pulsão, que busca penetrar sem pausa na existência con-sciente" (Laplanche, 2001a, p. 80) e impelirá o sujeito às incessantes novas tentativas de tradução. Será precisamente a falha da tentativa de tradução que funda a tópica psíquica, pois o que escapa à tradução cai no recalcamento e, consequentemente, se opera uma clivagem do psiquismo.
A tradução, diz Laplanche (2003), ocorre em dois tempos, assim como o primeiro modelo de trauma de Freud. O primeiro tempo é da inscrição da mensagem, o segundo é o da revivificação da mensagem no interior do psiquismo como um corpo estranho que precisa ser integrado, controlado. É no après-coup que a temporalização ocorre, pois o vivente "retoma o passado a partir do presente para apontar para um futuro" (Laplanche, 2001a, p. 80), constituindo um saber sobre si mesmo.
Contudo, como se trata de uma situação traumática - de sedução - é preciso considerar as peculiaridades da comunicação da mensagem. Segundo Laplanche (1996b), as mensagens são comunicadas à criança de dois modos, por implantação e por intromissão. A mensagem implantada é aquela que se dá de um modo cotidiano, neurótico, como na cena de uma mulher amamentando a criança. Já a mensagem por intromissão é a variante violenta da mensagem implantada e está situada do lado do fracasso radical da tradução. A mensagem permanece tal como foi intrometida, não é traduzida, fica encravada no psiquismo (Laplanche, 1996b; 2003). Um exemplo desse tipo de mensagem é a veiculada pela cena originária que, segundo Laplanche (2001b), geralmente, é de violência, selvageria, castração e analidade. A mensagem em trânsito na situação traumática, pela violência que lhe é característica, pode ser compreendida como mensagem intrometida; temos aí os horrores da guerra!
Tais mensagens ficariam no psiquismo como signos de percepção e, ao não se inscreverem, ficariam à deriva. Diferentemente dos restos, ou representações-coisa, resultantes do fracasso parcial da tradução, que podem ser recapturadas mais tarde, no processo analítico, por exemplo, os signos de percepção precisam de uma construção para que possam ser entramados no psiquismo (Bleichmar, 1994).
Diante da mensagem intrometida, que compõe o terreno do traumático propriamente dito, o trabalho incessante de tradução trava. O trauma elimina as defesas psíquicas normais (Laplanche, 1985) e empobrece o psiquismo na tentativa de conter o pulsional disruptivo, como apontou Freud em "Além do princípio do prazer" (1920), o que deixa a pessoa sem condições de dominar a mensagem imposta pelo outro.
Entretanto, Laplanche (2003) questiona se haveria mesmo a possibilidade do sujeito ser tomado por tais mensagens sem nenhuma condição de traduzi-las. Vimos que o imperativo para narrar o trauma vivenciado pelos sobreviventes da Shoah propõe justamente este questionamento. Diante da impossibilidade de tradução e dever de tradução, qual é o destino psíquico possível para a mensagem intrometida, para o excesso de alteridade?
A temporalização e a narrativa: tecer o texto, um lugar para o traumático
Para Laplanche (1996c), a pulsão de tradução provém do mais intraduzível, há um imperativo "deves traduzir porque é intraduzível" (p. 53). Isto é, se na constituição do psiquismo o excesso da mensagem funda a vocação à tradução, precisamente para organizar o traumático, toda situação posterior que ameace pelo excesso convocará o sujeito a "testemunhar" tal excesso por meio de novas traduções que, mesmo falhas e recalcadoras, permitam a sobrevivência psíquica.
Para Bleichmar (1994): "O que não é possível de ser historizável deverá encontrar um modo de ligação e de ressimbolização se pretendermos que o objeto não fique sempre entregue à compulsão de repetição, quer dizer, ao exercício da pulsão de morte" (p. 61). A autora chama a atenção para o fato de que nas situações de traumatismo grave, geralmente os traumatismos históricos, como a Shoah, por exemplo, é o imaginário coletivo que ajudará a metabolização de vivência individual ou o recalcamento. Assim, produções da cultura, como os julgamentos e condenações dos responsáveis, as medidas políticas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a criação de fundações e associações, são recursos a serviço da tradução. O mesmo vale para as produções da literatura, arte, cinema, que resultam do trabalho de metabolização do trauma, que o traduzem.
As construções em análise também permitem lidar com a mensagem intrometida, pois a representação pode ser tecida com o auxílio do analista na busca de sentidos. Nesse contexto, o não traduzido pode, après-coup, ser traduzido ou parcialmente traduzido e o já traduzido poderá ser destraduzido para propor, na sequência, novas traduções menos rígidas.
No caso de uma paciente de Bleichmar (1994), sobrevivente da guerra, a análise propiciou um espaço para que os enigmas pudessem ser propostos e que as representações pudessem ganhar novas ligações, menos obturantes. Dessa maneira, o trabalho de tradução do traumático tornaria possível a constituição, para a paciente, de uma história de si mesma, pois, apesar do trauma estar marcado pela impossibilidade de metabolização, consideramos que há sempre, em algum nível, algum tipo de tradução possível7 pois, do contrário, uma paralisação do psiquismo impediria a criação de qualquer narrativa. A criação será possível precisamente porque o sobrevivente, mesmo reeditando a situação antropológica fundamental - isto é, como vítima na mesma posição que a de uma criança frente ao excesso de alteridade -, por se tratar de um adulto, também dispõe de uma gama ampla de defesas e de traduções já realizadas ao longo da sua vida, que lhe permitirão, também pela escrita e denúncia, realizar metabolizações dos horrores vividos. E, assim, atenuar seu sofrimento.
É que a criação permite tolerar, de algum modo, o intraduzido. Um exemplo interessante disso é encontrado na escrita de pacientes psicóticos e borderlines. Embora não se trate essa forma de escrita - mais descritiva e menos simbólica, pois a forma se sobrepõe à significação - de uma tradução efetiva, possibilita uma nova posição subjetiva, uma tomada de si, "uma apropriação da alteridade radical interna" (Cardoso, 2002, p. 214) pela distância do outro interno que possibilita.
Por outro lado, a narrativa testemunhal, afirma Ornstein (2010), permite a construção dos espaços memoriais, que auxiliam o processo de luto, pois erguem simbolicamente uma lápide para os mortos. É também pela narrativa que se tem a possibilidade que os mortos sejam redimidos historicamente, pois se convoca no presente as vozes que foram caladas pela história.
Ora, esse é um aspecto relevante quando se trata da narrativa testemunhal, poder falar de si, mas também dos que morreram. Pelo seu alcance comunicacional, o testemunho é um assistente de tradução tanto para as vítimas diretas do nazismo como para a humanidade. O imperativo de testemunhar, segundo Kirschbaum (2007), além da missão de educar as novas gerações e alertá-las para que o horror da Shoah não torne a acontecer é, para os sobreviventes, uma dívida com os que morreram. E cita Semprun (1995): "Talvez seja preciso às vezes falar em nome dos naufragados. Falar em nome deles, no silêncio deles, para devolver-lhes a palavra" (p. 138).
E falar em nome dos mortos significa tentar responder ao enigma que sua morte também formula. Temos, assim, o excesso vindo das mensagens dos algozes, ao estilo polimórfico perverso e, por outro lado, a mensagem que a morte das outras vítimas impõe. É que o enigma do outro não cessa e, para o enlutado, o sobrevivente, a mensagem nunca pode ser compreendida o suficiente. Não há luto, segundo Laplanche (1996d, p. 128), sem as questões "o que ele queria?"; "o que teria dito?" e, acrescentamos, "por que eu sobrevivi?". Somente os bons morreram, responde Levi (2004).
O luto relança o sujeito à dimensão da alteridade. Assim, lidar com o enigma do outro é lidar com o estranho em si, que sempre impulsionará o processo de tradução-destradução-retradução. Segundo Hage (2005),
a mensagem deixada de herança pelo morto, presença viva do morto no psiquismo do sobrevivente, gera a dor própria do luto; e o trabalho de luto, por seu lado, realiza-se à medida que o sobrevivente chega a traduzir a mensagem. Trata-se de um processo em que a tradução e a temporalização são contemporâneos, de tal forma que o trabalho de luto conduz à produção de uma narrativa: através dele, a história vivida com o objeto perdido acha-se reescrita. (p. 285)
É a tradução da mensagem do outro morto que também permite que a história vivida com este possa se tornar passado. Mas, devemos considerar que a morte dos companheiros no Lager estava marcada pela intensa ambivalência dentro do universo concentracionário, a demanda de tradução da mensagem do morto torna-se bastante problemática e produz mais culpabilidade que o conflito comum ao luto. Em Os afogados e os sobreviventes, Levi (2004), por exemplo, narra sobre o fato de ter sobrevivido, quando tantos outros morreram:
Você tem vergonha porque está vivo no lugar de outro? E, particularmente, de um homem mais generoso, mais sensível, mais sábio, mais útil, mais digno de viver? (...). E só uma suposição ou, antes, a sombra de uma suspeita: a de que cada qual seja o Caim do seu irmão e cada um de nós (...) tenha defraudado seu próximo, vivendo em lugar dele. É uma suposição, mas corrói; penetrou profundamente, como um carcoma; de fora não se vê, mas corrói e grita. (p. 70-71)
Em abril de 1987, quando Levi morre - um suicídio, para muitos -, Wiesel8comenta: "Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois" (Rossi, 2012, p. 8).
Para o sobrevivente de tentativas de genocídio, o trabalho de luto torna-se ainda mais penoso, pois implica, segundo Laplanche (1996d), num trabalho intenso de tecer e retecer, traduzir e destraduzir os significantes enigmáticos do outro, isto é, ligar e desligar a pulsão. Assim, testemunhar sobre o horror, na tentativa de traduzi-lo, é também reavivar o que há de excesso na ambivalência da relação com o outro morto dentro do contexto do trauma social.
Para finalizar...
Pressupomos, desse modo, a escritura um trabalho de tradução, uma forma de ligação da pulsão anárquica do traumático. Mas, trata-se de uma tradução que, pela sua natureza sempre inacabada, impulsiona o psiquismo a um movimento de destradução para propor novas traduções - aqui o sentido sublimatório -, mais elaboradas, mais eficientes. Por outro lado, vimos, a escrita pode reatualizar o trauma, deixando o psiquismo inundado pelo pulsional desligado, expondo-o à compulsão à repetição.
Esta é, pois, a duplicidade potencial da escrita, a concomitante elaboração e reatualização do traumático, o que nos permite assinalar uma analogia com a duplicidade do sintoma por constituir-se simultaneamente como defesa e como satisfação.
Além da tradução do enigma do outro na situação traumática e do enigma da morte dos pares, o sobrevivente de uma atrocidade também vai se reaver com a exigência de novas retraduções das traduções antigas, principalmente daquelas relacionadas à construção dos laços com outros seres humanos fora do Lager. Como já apontamos, Laplanche (1996d) afirma que, frente a novas situações, tais como perdas ou mesmo o processo analítico, por exemplo, o ser humano sente-se impelido a traduzir e retraduzir, e, ao fazê-lo, pode fazer um luto da representação perdida de si mesmo, bem como dos laços amorosos e crenças, todos construídos anteriormente ao trauma. O que resta depois do Lager... É isto um homem?
Na realidade, trata-se de um luto de si mesmo e do outro que não pode sobreviver, o que impõe um trabalho, segundo Laplanche (1996d), semelhante ao trabalho de Penélope, de tecer e destecer, enquanto espera a volta de Ulisses. Assim, o trabalho do luto seria, continua o autor, o fio de ligação com o objeto perdido, que não é rompido, mas tecido e retecido dando origem a novas traduções, de modo que a ausência do outro possa ser incorporada na vida atual do enlutado. Contudo, mesmo que a narrativa e suas versões abram novas possibilidades de rearranjos dos investimentos libidinais, como suportar uma existência de certa forma sustentada na ausência dos que se foram, das vítimas do horror?
Por outro lado, a produção literária, como assistente de tradução, é facilitadora do luto de uma coletividade, pois as múltiplas perdas, decorrentes de catástrofes, como a Shoah, não têm rituais culturalmente sancionados que facilitem o início do luto, como nas perdas comuns, afirma Ornstein (2010). Na chamada arte memorial, a literatura e os locais memoriais ocupam um lugar de destaque, como meios que possibilitam um luto tardio. Esse seria precisamente o caso dos sobreviventes de genocídio que assistiram à morte de milhares de seus companheiros e, somente mais tarde, quando puderam ser ouvidos, lhes foi permitido enterrar seus mortos e um pouco de si mesmos. "Eu precisaria de várias vidas para contar toda essa morte. Contar essa morte até o fim, tarefa infinita" (Semprun, 1995, p. 43). Para o sobrevivente, escrever e reescrever sobre suas vivências em Buchenwald era mergulhar em um interminável trabalho de "luto da memória" (p. 183).
As traduções, assim como os fios de Penélope, vão se ligando e formando uma trama que se tece, ligando e desligando, criando e recriando. Gabriel Garcia Márquez (2003) também recorre à imagem da mulher solitária que tece de dia e desmancha à noite, em Cem anos de solidão. Amaranta bordava sua própria mortalha e, segundo sua crença, quando finalizasse seu sudário morreria. Por isso, como Penélope, bordava de dia e desmanchava à noite. E o fazia "não com a esperança de vencer deste modo a solidão, mas, ao contrário, para sustentá-la" (p. 145).
É na trama de traduções-destraduções-retraduções que, possivelmente, se constrói a narrativa. Processo esse que não se dá sem dificuldades, pois, quando uma tradução antiga é desfeita, o afeto se desliga da representação e se tem a angústia. Assim, tecer e retecer as próprias vivências, seja na escrita, na música, na pintura ou em uma análise, não se faz sem dores, mas possibilita em algum nível que o sujeito possa tecer uma nova representação de si mesmo, que comporte o que ele foi antes do trauma, o que ele é e o que projeta para si mesmo no futuro. Trabalho incansável esse, o de Penélope, de Amaranta, e de tantos outros, que exige constantes teceduras tradutivas.