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A psicopatologia em uma perspectiva daseinsanalítica*1 *1 Este artigo é resultado das investigações realizadas no Laboratório de Estudos de Fenomenologia e da Psicologia Existencial, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (Rio de Janeiro, RJ, Br) e do diretório de Grupos de pesquisas do CNPq: Práticas em psicologia existencial.

Psychopathology in a daseinsanalytic Perspective

La psychopathologie dans une perspective daseinsanalytique

La Psicopatología bajo una Perspectiva daseinsanalítica

Psychopathologie in einer daseinsanalytischen Perspektive

存在分析法角度下的精神病理学

Resumos

A proposta deste texto é apresentar outra possibilidade de compreensão dos sofrimentos denominados psíquicos, por meio às considerações de Heidegger sobre Dasein e Sorge, em Ser e tempo e seu desenvolvimento acerca da psicopatologia, em Seminários de Zollikon. Assim, os fenômenos psicopatológicos passam a ser entendidos como restrição de sentido e estranheza, pela perda da familiaridade com o mundo.

Psicopatologia; daseinsanálise; Medard Boss; Ludwig Binswanger


This paper aims to present a different way of understanding psychic suffering, based on Heidegger’s considerations about Dasein and Sorge in Being and Time and on his thoughts on psychopathology in the Zollikon Seminars. From this point of view, the psychopathological phenomena are understood as a restriction of meaning and a feeling of strangeness, caused by the loss of familiarity with the world.

Psychopathology; Daseinsanalise; Medard Boss; Ludwig Binswanger


L’objectif de cet article est de présenter une autre façon de comprendre les souffrances psychiques au moyen des considérations de Heidegger sur les concepts Dasein et Sorge que l’on retrouve dans son œuvre Être et Temps, ainsi qu’au moyen de ses réflexions sur la psychopathologie recueillies dans les Séminaires Zollikon. Les phénomènes psychopathologiques sont alors compris comme une restriction de sens et une étrangeté, résultats de la perte de familiarité avec le monde.

Psychopathologie; Daseinsanalyse; Medard Boss; Ludwig Binswanger


El propósito de este trabajo es presentar otra posibilidad para comprender los sufrimientos denominados psíquicos mediante las consideraciones de Heidegger acerca de Dasein y Sorge, en Ser y Tiempo y su desarrollo sobre la psicopatología, en Seminarios de Zollikon. Por lo tanto, los fenómenos psicopatológicos empiezan a entenderse como una restricción del sentido y extrañeza por la pérdida de la familiaridad con el mundo.

Psicopatología; daseinsanálisis; Medard Boss; Ludwig Binswanger


Das Ziel dieser Arbeit ist es, eine andere Verstehensweise der sogenannten psychischen Leiden zu präsentieren, beruhend auf Heideggers Überlegungen über Dasein und Sorge, die in seinem Werk Sein und Zeit zu finden sind, sowie aufgrund seiner Betrachtungen über die Psychopathologie, die in den Zollikoner Seminaren enthalten sind. Von dieser Perspektive aus werden die psychopathologischen Phänomene dann als eine Beschränkung der Bedeutung und Fremdheit verstanden, die durch den Verlust der Vertrautheit mit der Welt zustande kommen.

Psychopathologie; Daseinsanalyse; Medard Boss; Ludwig Binswanger


本文的目的是针对心理病痛问题提出另一种可能的解读,这解读基于海德格尔对现实存在(Dasein)和治愈(Sorge)阐述及其在Zollikon研讨会(seminario de Zollikon)上提出的有关精神病理学的存在 (ser)与时间 (tempo)观点。因此,精神病理现象被理解为知觉限制(restrição de sentido)和陌生(estranheza),对熟悉世界的丢失。

精神病理学; 存在分析(daseinsanalysis); 梅达德·伯斯; 路德维希·宾斯旺格


Introdução

A psicopatologia é um campo de investigação que se propõe ao estudo dos transtornos mentais, que data do início do século XX. Segundo Paulo Evangelista (2013), em entrevista dada ao Programa Em Foco (2013), produzido pela Universidade Paranaense (Unipar), diferencia-se da psiquiatria por enfocar a compreensão e descrição dos transtornos mentais enquanto esta última, além da preocupação com a descrição, tem como objetivo a intervenção e o tratamento. Os transtornos mentais são identificados, principalmente, por meio da observação do comportamento do indivíduo, considerado inadequado e estranho, e dificilmente podem ser detectados por exames laboratoriais (Britto, 2012Britto, I.A.G.S. (2012). Psicopatologia e análise do comportamento: algumas reflexões. Boletim Contexto – ABPMC, São Paulo, 37, 55-76.).

Apesar de diferentes áreas relacionarem-se com a psicopatologia, entre elas a antropologia, história, filosofia e psicologia, duas têm sido as mais utilizadas para a compreensão desses fenômenos psíquicos: a medicina e a psicanálise. A medicina explica as doenças mentais a partir de disfunções ou alterações orgânicas e se preocupa em enquadrá-las dentro de diagnósticos para poder, a partir deles, realizar a intervenção que busca cessar ou, ao menos, diminuir os sintomas (Schwartzman, 1997Schwartzman, R.S. (1997). Psiquiatria, psicanálise e psicopatologia. Psicologia: ciência e profissão, 17(2), 33-36.). A psicanálise, por sua vez, busca as causas desses transtornos através da constituição da estrutura psíquica de cada sujeito para, a partir desta identificação, realizar a intervenção mais adequada para que o sujeito, que se encontra imerso nos sintomas, possa emergir (Sadala & Martinho, 2011Sadala, G., & Martinho, M.H. (2011). A estrutura em psicanálise: uma enunciação desde Freud. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 14(2), 243-258.). Ambas preocupam-se em pesquisar as causas da doença, encaixá-la em alguma categoria para que assim possa se buscar a melhor intervenção com o objetivo de aproximar--se da cura. Cura, nesse contexto, é compreendida como uma diminuição ou remissão temporária dos sintomas (comportamentos bizarros) apresentados.

O que se pode constatar é que em uma perspectiva que parta do pressuposto de uma interioridade, seja psíquica ou orgânica, as descrições sintomatológicas, as classificações em categorias de diagnóstico e as categorias psicodinâmicas desconsideram o contexto histórico em que determinados comportamentos aparecem de forma mais acentuada. Tem-se como exemplo o surgimento em abundância de crianças com diagnóstico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), de pessoas com depressão, transtornos bipolares, dentre outros diagnósticos tão comuns nos dias de hoje, e que eram impensáveis até algum tempo atrás. Assim, em uma consideração hermenêutica, defendemos que as doenças, como qualquer aspecto da existência, sempre acontecem com base nas determinações próprias de um horizonte histórico, que constitui sentidos.

O uso das descrições psicopatológicas, sem considerar o horizonte em que sentidos se constituem, vem ao encontro da visão de homem que vigora na modernidade. A ciência biológica entende a enfermidade psíquica como sujeição a determinadas condições biológicas, alterando o comportamento por consequência de uma disfunção cerebral; já a ciência psicológica interpreta o fenômeno como um mau funcionamento psíquico. Afirmar, por exemplo, que qualquer pessoa que for criada de forma violenta também se tornará violenta ou, ainda, que um determinado transtorno mental foi causado apenas por esta ou aquela condição vivida, recai em uma tremenda redução da situação do homem. A perspectiva da fenomenologia hermenêutica e existencial traz para a discussão a ideia de que a existência do homem não é algo naturalmente dado, por isso é preciso considerar o horizonte histórico em que o homem se constitui.

Heidegger (2001)Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes. defende que o homem é mais do que o resultado de determinadas condições somáticas ou psíquicas e, portanto, essa forma de entendê-lo é insuficiente diante da complexidade da existência. Assim, não se pode dizer que certo comportamento determina de modo absoluto a forma de estar no mundo, e que esta forma é consequência apenas das condições somáticas ou das vivências subjetivas. A seguir, serão apresentadas as considerações de Martin Heidegger (1986/2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). sobre suas concepções de Dasein e Sorge, que serão fundamentais para a compreensão da abertura de sentidos operada por Heidegger para a constituição de uma daseinsanálise, aqui dirigida para a possibilidade de outro modo de compreensão dos fenômenos psicopatológicos.

Dasein, mundo, familiaridade e estranheza

Heidegger (1986/2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986)., em sua ontologia fundamental, propõe uma forma de pensar a existência a partir da articulação homem-mundo, de modo inseparável. E, a essa inseparabilidade, em que o homem se apresenta mais originariamente em seus modos de ser, Heidegger vai denominar de Dasein (ser-aí). Este termo foi utilizado por Heidegger (1986/2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). para diferenciá-lo do conceito de homem, tal como compreendido medianamente. Heidegger pretendeu, assim, romper com uma série de ideias sedimentadas na contemporaneidade, uma vez que a palavra “homem” já vem contaminada com sentidos como, por exemplo, animal racional, como se o homem fosse uma coisa dentre as coisas. Para esse pensador, o Dasein não tem nenhuma determinação, nenhuma propriedade essencial, constitui-se por uma negatividade originária, o que significa que ele não é passível de caracterização e não possui nenhuma essência originária, ele é possibilidades.

E porque o Dasein não possui nenhuma característica originária é que ele precisa buscar no mundo os sentidos e os significados que vão permitir que ele se movimente e se comporte. É o mundo que fornece os sentidos e significados para o Dasein. É o mundo que fornece diversos sentidos e significados que serão articulados nos modos de ser. Cada Dasein vai corresponder de modo diferente às orientações do mundo, pois o mundo não determina. No entanto, este demanda sentidos e significados dos quais o homem, pela sua indeterminação originária, se apropria. Mundo é rede de significados e sentidos compartilhados pelos homens, portanto, não é algo imutável. Assim como o Dasein, está sempre em movimento, os sentidos e significados estão em constantes mudanças.

Justamente porque mundo é horizonte de sentidos e significados compartilhados, existem comportamentos que são esperados, que são familiares. O Dasein só responde de forma adequada e só se movimenta no mundo porque há a familiaridade (Heidegger, 1986/2002). Os modos de ser-no-mundo não acontecem pelo instinto, mas pela familiaridade e ocupação. Mundo, então, é exatamente esse espaço com o qual o Dasein precisa paulatinamente se familiarizar, mas que ao mesmo tempo constitui a familiaridade que é a dele, a sua morada. O problema é que essa familiaridade traz consigo a possibilidade da estranheza, uma vez que ela é possibilidade, e não determinação.

Ao mesmo tempo em que o Dasein recorre às referências fornecidas pelo mundo para poder agir, sem que a estranheza torne-se tão presente, essas mesmas referências fazem com que ele se acostume a responder sempre do mesmo modo às solicitações do mundo, esquecendo-se de sua negatividade originária e, portanto, de seu caráter de poder-ser, tomando-se a si próprio como se fosse um ente simplesmente dado. Quando isso ocorre, o Dasein pode passar a se ver como objeto, coisa, tendo sempre os mesmos comportamentos, restringindo suas possibilidades. Ele esquece de sua condição de estar em jogo no mundo, e pode perder-se de si (Casanova, 2009Casanova, M.A. (2009). Compreender Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 123).

Sorge: preocupação substitutiva e por anteposição

Como dissemos antes, o Dasein se dá sempre nas relações, tanto nas relações com os entes intramundanos destituídos de mundo, entes simplesmente dados, como com outros seres-aí. Assim, Dasein é também ser-com, pois está sempre num contexto relacional. Heidegger (1986/2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). diz que Dasein mesmo só ou quando busca o isolamento, é ser-com. O Dasein só pode pensar em isolar-se porque é relação, porque é ser-com. Se assim não fosse, não faria sentido pensar em isolamento porque só pode isolar-se aquele que já está sempre junto com os outros.

Heidegger (2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). utiliza a palavra Sorge, que significa cuidado, para referir-se a essas relações do ser-com. Há duas formas de cuidado: a primeira, que Heidegger chama de Besorge, significa ocupação e refere-se à relação do Dasein com os entes simplesmente dados; a segunda, denominada por ele de Fürsorge, significa preocupação e refere-se à relação do Dasein com outros entes que também possuem o seu modo de ser em jogo, a todo momento, ou seja, com os outros seres-aí.

A preocupação (Fürsorge) pode se dar de duas formas. A primeira é a que Heidegger denomina de preocupação substitutiva, onde o cuidado é retirado de um e assumido por outro em suas ocupações. Heidegger (1986/2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). utiliza a seguinte frase: “Ela pode, por assim dizer, retirar o cuidado do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações substituindo-o” (p. 173). Mesmo ao deixar-se ser retirado de sua posição em sua ocupação, esse é o modo de cuidado do Dasein, e isto significa dizer que o descuido é também cuidado.

A outra forma de preocupação é a que se antepõe ao outro com o objetivo de lhe devolver o cuidado. Essa forma de preocupação, ao contrário da substitutiva, pode dar a impressão de desproteção, pois ao pretender devolver ao outro o cuidado que ele precisa ter com ele mesmo, ela precisa deixar esse espaço para que o outro o ocupe. No entanto, é essa forma de preocupação por anteposição, que permite ao outro responsabilizar-se pelo cuidado consigo mesmo.

Outra interpretação dos fenômenos psicopatológicos: daseinsanálise

Com base nessas considerações de Heidegger sobre a existência e o modo de cuidado é que os psiquiatras Medard Boss (1959Boss, M. (1959). Introduction a la medicine psychosomatique. Paris: PUF.; 1975Boss, M. (1975). Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Duas Cidades.; 1977Boss, M. (1977). O modo de ser esquizofrênico à luz de uma fenomenologia daseinsanalítica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanálise, São Paulo, 3, 5-27.) e Ludwig Binswanger (1947/1971Binswanger, L. (1971). Introduction à l’analyse existentielle. Paris: Les Editions de Minuit. (Trabalho original publicado em 1947).; 1955/1973Binswanger, L. (1973). Articulos y conferencias escogidas. (M. M. Casero, Trad.). Madrid: Editorial Gredos. (Trabalho original publicado em 1955).; 1956/1977Binswanger, L. (1977). Três formas da existência malograda. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956).) vão se interessar pela filosofia heideggeriana como um modo possível de compreensão do adoecimento psíquico. Eles defenderam a possibilidade de que a filosofia do Dasein fosse uma fonte de inspiração para a elaboração de outra possibilidade clínica. Assim, Binswanger e Boss inauguraram a daseinsanálise, ou seja, uma interpretação das enfermidades psíquicas com base na analítica do Dasein.

A daseinsanálise vai se constituir em outra modalidade de pensar a psicopatologia, que se inicia pela destruição operada por Heidegger (2001)Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes. dos conceitos utilizados pela tradição. Depois disso, o filósofo inaugura a possibilidade de se pensar a psicopatologia, não por meio da dicotomia soma e psique; homem e mundo, mas por meio de algo da ordem mais original de ser-no-mundo – Dasein.

Ao se assumir uma perspectiva daseinsanalítica não se está defendendo que dever-se-ia ignorar todo conhecimento médico, ou mesmo o conhecimento gerado pelas abordagens comportamentais ou psicanalíticas, mas se afirmando que deve-se requisitar uma nova relação com esses saberes, como Heidegger (2001)Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes. esclarece: “Isto não significa um abandono da ciência, mas, ao contrário, chegar a uma relação refletida, conhecedora com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites” (p. 45). Isto significa dizer que, para se conhecer o fenômeno, é imprescindível estar aberto ao que se mostra. Para isso é fundamental suspender todo aparato científico--tecnológico-explicativo e entender que qualquer teoria científica apresenta apenas uma possibilidade, entre outras tantas, de compreender o fenômeno.

O cuidado (Sorge) e a relação médico-paciente

O modo como se lida com o homem, na psiquiatria, decorre da forma como ele (o homem) é tomado, ou seja, como ente simplesmente dado e, logo, sujeito às leis naturais. Assim, se certas condições forem estabelecidas, determinados resultados serão esperados e, se todos os procedimentos forem levados à risca, também serão alcançados. Bastaria seguir, exatamente, o passo a passo com relação às medicações corretas e/ou técnicas psicoterápicas para que o paciente saísse do estado de sofrimento. Quando o paciente não responde da forma esperada, procura-se imediatamente uma falha, seja com relação à prescrição de medicamentos, seja com relação à obediência por parte do paciente na administração da medicação. Em conclusão, se os resultados não ocorreram no sentido previsto, ou foi erro do profissional ou foi do paciente. As verdades ditadas pela ciência nunca falham, logo por algum motivo técnico ocorreu a falha. A esse modo de lida com o outro, cuidado, Heidegger (2002)Heidegger, M. (2002). Ser e tempo – parte I. (11ª ed.) (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho obra original publicado em 1986). vai denominar, como vimos, de preocupação substitutiva.

A preocupação substitutiva pode causar a impressão de que o outro está sendo protegido, quando, na verdade, ele está sendo retirado de sua posição na ocupação. Isso pode ser necessário em alguns momentos, como durante um surto psicótico ou em qualquer momento em que a pessoa encontra-se fragilizada ao ponto de não conseguir responder ou dar conta de suas tarefas cotidianas. Nas internações psiquiátricas isso costuma acontecer: existe uma equipe para cuidar do paciente, administrando suas medicações, levando as refeições, monitorando sua pressão arterial, enfim, preocupada com o bem-estar do internado. No entanto, ao fazer isso, o paciente desresponsabiliza-se por lembrar-se de suas medicações, de cuidar de sua comida e mesmo de decidir o horário de suas refeições. É importante refletir sobre quais momentos a preocupação substitutiva faz-se necessária e por quanto tempo esta deve permanecer a fim de que, diante da necessidade temporária de tutela, não se a prolongue a ponto de retirar do paciente a possibilidade dele cuidar de si mesmo (Feijoo, 2011Feijoo, A.M.L.C. (2011). A existência para além do sujeito: a crise da subjetividade moderna e suas repercussões para a possibilidade de uma clínica psicológica com fundamentos fenomenológico-existenciais. Rio de Janeiro: Via Veritas/Edições IFEN.).

A relação de cuidado com o Dasein deixa, então, de ser a busca pelo desaparecimento de sintomas e passa a ser a retomada de sentido em suas relações com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

A psicopatologia: familiaridade, estranheza, restrição

Dado o caráter de negatividade da existência, a familiaridade e a estranheza estão sempre presentes na existência. É na familiaridade com o mundo, articulando sentidos, que o Dasein pode se comportar. No entanto, é pelo seu próprio caráter de indeterminação que a estranheza sempre pode se anunciar. Quando a familiaridade se perde, a estranheza se manifesta. Segundo Binswanger (1956/1977)Binswanger, L. (1977). Três formas da existência malograda. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956)., a clínica psiquiátrica dar-se-ia em uma tentativa de recomposição da familiaridade dos sentidos sedimentados. Para Binswanger (1955/1973)Binswanger, L. (1973). Articulos y conferencias escogidas. (M. M. Casero, Trad.). Madrid: Editorial Gredos. (Trabalho original publicado em 1955)., a loucura é justamente a perda da familiaridade, dos sentidos sedimentados, ou seja, para ele é nisso que o impróprio se apresenta. É a loucura que inviabiliza a articulação de sentidos possíveis, uma vez que reduz, encurta os projetos existenciais. Nos transtornos existenciais é visível o modo como o comportamento, frente ao que naturalmente (familiar) ocorre, manifesta-se em um total estranhamento. Há uma perda de sentido e, consequentemente, de familiaridade.

A estranheza, junto ao vazio de determinações, pode abrir a possibilidade de o Dasein responder ao modo do surto. Não conseguindo desvelar outros sentidos, ele também não consegue retomar por completo a familiaridade com o mundo e, então, surgem os comportamentos estranhos, bizarros, que caracterizam os transtornos mentais. Os transtornos existenciais, extravagância, excentricidade e amaneiramento, vão caracterizar-se, então, pela perda da familiaridade que se mostra através da estranheza (Binswanger, 1956/1977)Binswanger, L. (1977). Três formas da existência malograda. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956).. Binswanger (1947/1971)Binswanger, L. (1971). Introduction à l’analyse existentielle. Paris: Les Editions de Minuit. (Trabalho original publicado em 1947). irá propor uma daseinsanálise que tentará rearticular a familiaridade perdida de modo que os projetos existenciais possam se articular.

Boss (1977)Boss, M. (1977). O modo de ser esquizofrênico à luz de uma fenomenologia daseinsanalítica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanálise, São Paulo, 3, 5-27. entende o adoecimento como um modo de ser, no qual o ser-aí se encontra numa condição de maior restrição de possibilidades. Isso muda a forma de se trabalhar e compreender a pessoa neste estado de restrição dos sentidos, que deixa de ser feita a partir de um “saber” em relação a um diagnóstico ou mesmo em relação a uma doença. Não há uma doença a ser investigada ou tratada, mas um doente, alguém cuja existência mostra-se marcada por um acirramento das restrições. Na verdade, o foco já não é mais a intervenção propriamente dita, senão o acompanhamento do fenômeno como este se mostra, a fim de que — na sustentação dos sentidos que aparecem — novos modos de correspondência possam emergir (Boss, 1975Boss, M. (1975). Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Duas Cidades.).

É a partir da relação estabelecida com a pessoa que a compreensão sobre seu modo de se relacionar e corresponder às solicitações do mundo em geral pode ser compreendida, incluindo o modo como ela se relaciona com seu adoecimento. Cada pessoa constitui-se como um modo singular de se relacionar com o mundo, e isso pode ajudar a compreender o fato de pacientes, com uma mesma patologia, ou seja, que receberam o mesmo tipo de diagnóstico, apresentarem comportamentos distintos. Poder acompanhar cada pessoa, sem esperar seu enquadramento em um diagnóstico, é o que permite a abertura de um espaço em que cada um possa mostrar-se em seu modo de ser possível no momento e na compreensão dos sentidos e significados que estão em jogo naquela situação.

Cardinalli, em seu texto A saúde e a doença mental segundo a fenomenologia existencial (2011, p. 112), discorre sobre a “compreensão daseinsanalítica das experiências saudáveis e patológicas”, ressaltando que na doença também há saúde, pois em ambos os modos-de-ser as características existenciais estão presentes como possibilidades. O que ocorre é que nas doenças as possibilidades se apresentam no modo de privação. É o desvelamento da possibilidade do fazer ou sua ausência, que indica o quanto o homem encontra-se são ou doente. Quando ele não consegue movimentar-se no mundo a partir destas possibilidades, quando ele se vê preso a apenas uma possibilidade (o que normalmente traz algum sofrimento), a fenomenologia vai entender que este ser-aí se encontra em um estado de maior restrição e, portanto, doente.

Para Boss (1959)Boss, M. (1959). Introduction a la medicine psychosomatique. Paris: PUF., doença é restrição de possibilidades. É preciso que haja o desvelamento de sentidos para que o Dasein possa perceber outras possibilidades e, assim, movimentar-se. Por isso não é no discurso em si que se ouve de um paciente, não é o seu conteúdo, que irá apontar para uma patologia ou não. O importante é perceber como o sentido do discurso se articula com a experiência da pessoa, se esta se encontra em uma restrição, impedindo, assim, que a pessoa veja outras possibilidades que se abrem diante dela. É nessa liberdade de movimentar-se no mundo, a partir de um leque de possibilidades, que se poderá perceber se o Dasein se encontra em liberdade ou em restrição.

Considerações finais

No atual contexto histórico, que Heidegger (2007)Heidegger, M. (2007). A questão da técnica. Scientiæ studia, 5(3), 395-398. chama de Era da Técnica, marcado pela crença nas certezas e na verdade corretiva, busca-se o tempo todo encontrar conclusões definitivas acerca de qualquer fenômeno, pois se acredita que só assim se alcançará uma verdade absoluta. Essa é a forma das ciências naturais entenderem os fenômenos, e é também o modo com que a maior parte das pessoas pensa. Essa forma de entender o fenômeno permite uma segurança, traz um conforto, já que, diante de algo que já se tem conhecimento absoluto, pode-se encontrar qual é causa e o que resolve qualquer problema. No caso de um paciente psiquiátrico e um profissional de saúde mental, por exemplo, essa forma de entender o Dasein como ente simplesmente dado permite que o profissional já saiba o perfil do paciente e, a partir disso, saiba, também, os métodos que devem ser usados e os que devem ser evitados, o tratamento a oferecer e o caminho que levará a uma melhora. O profissional sente-se mais autorizado, o paciente mais tranquilo e confiante, pois está com um profissional que sabe o que deve fazer, e as demandas institucionais são prontamente atendidas.

O problema é que muitas vezes ao partir de uma generalização, que é necessária para que se tenha esse conhecimento prévio, perde-se de vista o que se tem a frente, o que se mostra. Apenas quando se olha o fenômeno sem tirar conclusões, sem demarcar suas causas ou defini-lo, é possível vê-lo realmente, em lugar de buscar a confirmação ou exclusão de teorias já existentes. Quando isso acontece, não se encontram respostas exatas, nem se tem um caminho determinado previamente para traçar. O caminho é acompanhar o que se mostra e as possibilidades que se abrem. Muitas vezes isso não é tão confortante quanto a confirmação de uma teoria já pronta, por isso é mais difícil manter-se neste posicionamento. Mas acompanhar o caminho que se abre é mais do que chegar a uma conclusão, é desvelar sentidos e abrir possibilidades. Seja no dia a dia, ou no atendimento clínico, é necessário atenção para abandonar esse modo de pensar, próprio das ciências naturais, e poder sustentar um olhar sobre as coisas que não as aprisione em definições. Só dessa forma será possível ver o fenômeno como este se apresenta e, então, poder compreendê-lo.

Para pôr em prática uma daseinsanálise em uma perspectiva clínica, torna-se fundamental lembrar a importância do acompanhar o outro, pois atualmente tende-se a esquecer dessa modalidade de estar com o outro. Esse esquecimento decorre do movimento hegemônico em busca de intervenções eficazes que já consigam determinar de imediato o que é o fenômeno que se apresenta. Na existência, quando se está à frente de uma pessoa com um discurso confuso, ou que conta uma história que parece impossível, não cabe definir imediatamente se é um surto ou qual o diagnóstico compatível, pois isso promoveria o afastamento do fenômeno. O diagnóstico correto não é suficiente para a compreensão do sentido do adoecer daquela existência. Esse só poderá ser desvelado a partir do acompanhamento daquele que sofre. É preciso manter-se aberto para o que se encontra à nossa frente, compreendendo que qualquer diagnóstico é só mais uma das formas possíveis de interpretar o fenômeno.

Referências

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  • Unipar – Universidade Paranaense. Em Foco (2013). Em Foco com Paulo Evangelista – Psicopatologia Fenomenológica [Programa de televisão]. Paraná: Unipar.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho faz parte do diretório de Grupos de Pesquisas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq / This work is part of the Research Groups directory of the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
  • Citação/Citation: Silva, J.N., Feijoo, A.M.L.C. de, Protasio, M.M. (2015, junho). A psicopatologia em uma perspectiva daseinsanalítica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 280-291.
Editors do artigo/Editors: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2014
  • Aceito
    13 Jun 2014
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