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Os “psicopatas autistas” na idade infantil1 1 Tese de livre docência, entregue para a faculdade de medicina da Universidade de Viena. Tradução de Lorena Kim Richter. (Parte 2)

Harro L.

Descrevemos como segundo caso um menino que apresenta os aspectos essências desse tipo igualmente de forma característica. Mas aqui as relações com o meio ambiente não se encontram tão gravemente alteradas como no primeiro caso. Além disso, os lados positivos dessas crianças são bem ilustrados, a sua autonomia de pensamento, vivência e formulação.

O menino de oito anos e meio é igualmente encaminhado pela escola em função de dificuldades disciplinares incontroláveis. É o terceiro ano que ele vai à escola, precisa repetir o segundo ano, pois no último ano fracassou em todas as matérias escolares. A professora, entretanto, tem a impressão de que “caso quisesse, ele seria capaz”: Frequentemente daria respostas surpreendentemente boas que revelariam uma maturidade muito além de sua idade; amiúde, porém, simplesmente se recusaria a participar, usando muitas vezes as expressões mais grosseiras possíveis, algo que ameaçava destruir a disciplina da turma inteira, por exemplo: “Isso é excessivamente estúpido para mim”; quase nunca trazia os deveres de casa.

As dificuldades maiores são as disciplinares. Na maior parte das vezes não atende às exigências, inclusive, responde com o maior atrevimento de modo que a professora desiste de exigir qualquer coisa dele para não se expor na frente da turma. Se, por um lado, ele não faz o que o meio circundante demanda dele, por outro se mostra inteiramente despreocupado, faz o que passa pela sua cabeça no momento sem considerar minimamente proibições, as consequências de suas ações. Durante a aula ele levanta de sua cadeira, anda de quatro pela sala. Uma das razões do pedido de exclusão, por parte da escola, eram as suas violentas brigas físicas; pequenas razões o levam a uma raiva sem sentido, ele parte para cima de outras crianças mostrando os dentes, as espanca cegamente. O que é especialmente perigoso nesse caso é que na verdade ele não é bom de briga — normalmente essas crianças sabem avaliar bem quão longe podem ir, têm um bom domínio sobre os seus movimentos e, por isso, quase nunca aprontam algo grave.Bem diferente do que no caso de Harro, que é especialmente desastrado (mais adiante ouviremos a respeito), que não tem um bom domínio sobre a sua motricidade, não sabe avaliar aonde ele atinge a pessoa — o que várias vezes resultou em ferimentos de seus opositores. Seria especialmente sensível em relação à troça, mas na verdade ele parece um tanto cômico em muitos sentidos, o que praticamente desafia o outro a caçoar dele!

“Mentiria” bastante — não exatamente para se livrar quando apronta alguma, na maior parte das vezes não se importa com isso — diz a verdade de modo desaforado —, e sim, conta longas histórias fantásticas; quando engata, se envolve cada vez mais com a história, as suas narrações fabulosas se tornam cada vez mais caóticas e sem sentido.

O que chama atenção é a sua independência precoce em alguns aspectos: Desde o segundo ano escolar, quer dizer, desde os sete anos de idade, vai sozinho de trem para a escola em Viena (os pais moram em um vilarejo a mais ou menos 25 quilômetros de Viena. O pai, que quer transformar o seu filho em alguém especial, não dá valor à escola rural e, por isso, o manda para a escola em Viena).

A sua atividade voluntariosa e despreocupada revela-se de modo um pouco sinistro em graves jogos sexuais com outros meninos; ocorreriam verdadeiros atos homossexuais, tentativas de coito!

Em relação à anamnese infantil e familiar parece relevante: Harro é o único filho. O parto foi difícil (fórceps), mesmo assim não foram observados distúrbios que poderiam remeter a danos devidos a traumatismos de parto. O desenvolvimento mental e físico também não indica nada de especial. Enquanto criança pequena não apresentava nenhum comportamento fora do comum, apenas o seu voluntarismo e autonomia já teriam se manifestado desde cedo.

O pai — é ele quem traz a criança — é uma pessoa um tanto peculiar; o menino é muito parecido com ele. Parece ser um pouco aventureiro e inconstante. Saxão da Transilvânia chegou à Áustria via Rússia através de uma longa e perigosa fuga do exército romeno. Profissionalmente é pintor e escultor, atualmente, porém, exerce, em função da necessidade, a profissão de fabricante de escovas (apesar de na época em que nos foi apresentado o menino existir uma grave falta de emprego, o contraste entre os dois empregos é visível!). O pai, que vem de uma família de camponeses, é um tipo claramente intelectual — adquiriu a sua formação cultural por esforço próprio. De seus relatos podemos depreender que não se relaciona com ninguém no vilarejo onde mora e que é considerado uma pessoa excêntrica. Informa ser uma pessoa muito nervosa, “mas que se controla de tal forma que aparenta ser totalmente fleumático”.

A mãe que jamais chegamos a conhecer (tínhamos a impressão de que o pai não desejava isso) seria igualmente “muito nervosa”.

Na família paterna e materna existiriam diversas “pessoas muito nervosas”. Não foi informado nada mais específico.

Questões físicas e fenômenos de expressão

Harro é um menino bastante pequeno (4 cm abaixo da média do tamanho de sua idade), notadamente corpulento e atarracado, de musculatura desenvolvida. Parece um pouco deformado, temos a impressão de as extremidades serem demasiadamente curtas. Em alguns sentidos parece ser “um adulto em miniatura”, principalmente em função dos traços faciais amadurecidos. Muitas vezes o seu olhar parece perdido e ausente, às vezes parece pensativo, nessas horas franze as sobrancelhas, transmite uma gravidade levemente cômica; a sua postura é igualmente peculiar: Ele está inerte, seus dois braços afastados do corpo tal como um homem parrudo ou um lutador. A sua mímica e o seu gestual são pobres; a sua seriedade grave se desfaz raramente — somente quando ri sozinho esboça um riso desajeitado. Frequentemente não sabemos do que está achando graça no momento.

A sua voz se encaixa igualmente bem nessa descrição: É muito grave, parece vir das profundezas, originar-se no ventre. Fala devagar, sem entonação viva. Quando fala, nunca olha para o interlocutor, o olhar se perde em algum lugar lá longe. Com a expressão facial tensa, contraída, busca a formulação adequada para os seus pensamentos e acaba tendo êxito especial nesse sentido, se expressa de forma excepcionalmente madura, certeira, adulta. Não na forma de um gesto, conforme ocorre no caso de algumas crianças, nem através de uma fala pronta adquirida, porém não experimentada, e sim o seu modo de se expressar origina-se em sua própria experiência surpreendentemente madura para uma criança. Temos a impressão de que no momento certo a palavra adequada toma forma. Muitas vezes nem respondeà pergunta, e sim deixa a sua fala fluir, relata as suas próprias experiências, os seus sentimentos; faz uma autoavaliação fora do comum, se avalia de modo atento e crítico ( “sou um canhoto terrível”). Apesar de parecer estar muito distante dos objetos e pessoas — ou talvez justamente por isso —, passa por diversas experiências, possui interesses próprios. É possível conversar com ele como se fosse um adulto, receber uma real instrução por parte dele.

Este seu modo de ser fica especialmente evidente através de seu comportamento durante o teste de inteligência — que será descrito a seguir.

Teste de inteligência

Primeiramente daremos algumas explicações a respeito do método de teste comumente aplicado em nossa seção.

A principal diferença em relação aos métodos usuais (por exemplo, o métodoBinet — do qual assumimos alguns testes) é o fato de o teste ser conduzido de forma bem mais livre, o que importa para nós não é simplesmente o resultado positivo e negativo dos testes isolados — o que, em seguida, resulta em uma avaliação quantitativa —, e sim damos um valor bem maior à dimensão qualitativa. Não se avalia somente os diversos testes isolados de acordo com a sua pontuação, representando essa avaliação na forma de gráficos (de modo que as discrepâncias entre os desempenhos isolados se tornem logo visíveis enquanto as diferenças se perdem em função do número totalizante e uniforme dos quocientes de inteligência), em vez disso, dá-se muita importância à forma como a criança resolve as diversas tarefas, como trabalha, como é o seu ritmo individual, a sua concentração no trabalho e principalmente o seu contato e apelo. A condução do teste se adequa de forma flexível à personalidade da criança e principalmente à forma como a criança estabelece contato — qualquer bom avaliador precisa ser capaz disso. Desse modo precisamos ser muito solícitos com crianças assustadas, inibidas, inseguras. Se necessário, devemos mostrar a elas como começar, ajudá--las. Nesses casos é importante, apesar de por vezes ser igualmente difícil, calcular de forma correta a ajuda que foi oferecida pelo avaliador. Aqueles mais faladores, agitados e facilmente irritáveis, incapazes de estabelecer distância, entretanto, precisam ser freados, conduzidos com rédea curta, forçados a um empenho mais objetivo. Além disso, nos esforçamos igualmente para sermos receptivos diante de interesses especiais de uma criança, permitimos que, vez ou outra, produza livremente, ajudamo-la a encontrar o caminho certo através de perguntas. Através de novas perguntas a auxiliamos a se aprofundar e, no caso de fracassos e falhas especiais, tentamos — por intermédio de perguntas não previstas pelo esquema do teste — apurar as dificuldades até que estas estejam esclarecidas.

Este método de avaliação exige uma experiência muito maior do que os métodos mais esquemáticos com interpretações fixas. Quando, no entanto, este é conduzido de modo eficaz, não é capaz de informar somente sobre o tamanho da capacidade intelectual, e sim, igualmente, sobre funções essenciais da personalidade.

A seguir o processo do teste de Harro L.:

Assim como no caso de Fritz V. — apesar de não ser na mesma intensidade — a condução do teste foi muito penosa. Diversas vezes, quando uma requisição não o interessava, ele se fechava inteiramente, simplesmente ignorava a solicitação; frequentemente muita energia era necessária para fazer com que se empenhasse. Amiúde pensava em qualquer outra coisa e precisava sempre ser chamado de volta. Quando era possível fazê-lo prestar atenção, o seu empenho era bom na maior parte das vezes.

Deixaremos de lado alguns testes isolados que não revelaram nada especialmente significativo e informaremos de modo mais completo sobre os resultados das “perguntas a respeito de diferenças. Aqui, onde ele podia produzir espontaneamente, ele se tornou interessado e animado. Diversas vezes foi necessário delimitar a sua fala, pois esta ameaçava perder-se.

Árvore – arbusto: O arbusto — aqui os galhos crescem diretamente do chão, um em cima do outro de um jeito todo bagunçado, de modo que muitas vezes três ou quatro se embaralham e assim temos um nó de galhos em nossas mãos. A árvore — aqui nasce primeiro o tronco e só depois os galhos, não há essa confusão e têm galhos grossos. Um dia aconteceu o seguinte comigo: Cortei um pedaço de um arbusto, quis fazer um estilingue; corto quatro galhos e tenho um nó* na mão. Quando dois galhos friccionam um no outro então há uma ferida, então eles se fundem.

Escada – escadote: As escadas são de pedra, não se fala em degraus de escada de mão, e sim somente degraus, pois são muito maiores e no escadote são mais estreitos e menores e mais redondos. É bem mais confortável na escada do que no escadote.

Estufa* – fogão: A estufa fica na sala, é um portador de fogo (!) e no fogão cozinhamos.

Lago – rio: Bem, o lago esse não sai do lugar e o lago nunca pode ser tão longo e nunca se ramifica e tem sempre um fim. O Danúbio não pode ser comparado ao lago de Ossiacher na Caríntia, de modo algum.**

Vidro – madeira: O vidro é transparente. A madeira — quando queremos olhar através dela precisamos fazer um buraco. Quando queremos bater numa madeira precisamos bater por um longo tempo até que ela se quebre; apenas um galhinho mirrado quebra fácil. No vidro só precisamos bater duas vezes e ele se quebra.

Mosca – borboleta: A borboleta é colorida, a mosca, preta. A borboleta tem asas grandes, duas moscas cabem debaixo de uma asa. Mas a mosca é muita mais habilidosa e consegue passear em vidro escorregadio e escalar a parede. E tem um desenvolvimento muito diferente! (Agora ele se anima por completo e fala com uma insistência quase exagerada). A mãe da mosca põe muitos ovos numa fresta do assoalho e em seguida, após alguns dias, saem larvas; li sobre isso num livro, quem conta a história é o chão — quase morro de tanto rir (!) quando penso nisso: “Quem está aí? Alguém com uma cabeça enorme com um corpo muito pequeno e uma tromba como um elefante?” E em seguida, após alguns dias, fazem um novo casulo e de repente saem pequenas moscas muito bonitinhas. E depois o microscópio ensina como a mosca consegue subir a parede: “Justamente ontem vi uma, ela tinha garras muito pequenas nos pés e nas extremidades pequenos ganchinhos; quando ela sente que vai escorregar, ela se segura com os ganchinhos”. — E a borboleta não cresce na sala como a mosca. Ainda não li nada sobre ela e também não sei nada sobre (!), mas acho (!) que a borboleta vai demorar muito mais tempo para se desenvolver.

Inveja – avareza: O avarento tem alguma coisa e não quer dar nada e o invejoso quer ter o que o outro tem.

Testes de aprendizagem

Devido ao fato de no caso das crianças que estão em observação conosco, problemas de aprendizagem estarem igualmente quase sempre em questão, incluímos propositalmente questões de aprendizagem em nosso método de avaliação. É óbvio, entretanto, que influências do meio social como, por exemplo, um abandono em relação à aprendizagem, têm importância. (Tratando-se do desempenho, será possível não considerar de todo as influências sociais? É um grande engano acreditar que as reações aos testes elaborados por Binet são independentes do meio social do qual as crianças provêm!)

Ler: Ele lê a história com pouco cuidado e com erros, mas se percebe nitidamente que “segue o sentido”, que o conteúdo da história o interessa, que gostaria de avançar mais na leitura e que, por isso, não se importa com os detalhes. Conforme já era de se esperar, considerando a sua maneira de ler, a suacompreensão de texto é igualmente muito boa. Reproduz o que leu de modo correto e com as suas próprias palavras, chega à moral da história que nem estava presente na passagem que ele leu (trata-se de uma fábula sobre uma raposa que é punida pela sua vaidade).

Escrever – ditado: Como era de se esperar em função de sua falta de habilidade, a sua letra é bem ruim; ele sai fazendo garatujas, risca o que escreveu, as suas linhas sobem e descem, o nível da caligrafia varia. A ortografia é razoavelmente boa durante a avaliação, na qual é possível prender a sua atenção. Além disso, quando se chama a sua atenção, ele sabe com muita segurança como se escreve uma palavra. O que, entretanto, é muito significativo é que faz bem mais erros quando copia do que durante o ditado, já que se esperaria que copiar não fosse tão difícil, pois a palavra está diante dele! Mas uma tarefa dessas, tão estreitamente amarrada, simplesmente não o interessa.

Fazer contas: Revela-se aqui, de forma especialmente clara, a “originalidade do autista”. Alguns exemplos:

27 mais 12 é igual a 39; ele explica espontaneamente como fez a conta: “Duas vezes 12 é igual a 24. Três vezes 12 é igual a 36, gravo o 3 (o que ele quer dizer é que 27 é 3 a mais do que duas vezes 12) e continuo”.

58 mais 34 é igual a 92. “Melhor: 60 mais 32, uso sempre as dezenas”.

34 menos 12 é igual a 22. “34 mais dois é igual a 36. Menos 12 é igual a 24. Menos 2 é igual a 22, isso me veio à cabeça mais rapidamente do que qualquer outra coisa”.

47 menos 15 é igual a 32. “Ou adicionamos um 3 e adicionamos igualmente um 3 ao que deve ser tirado, ou primeiro tiramos 7 e depois 8.”

52 menos 25 é igual a 27. Duas vezes 25 é igual a 50 e mais 2 é igual a 52.25 mais 2 é igual a 27”.

Um problema matemático (considerem que o menino tem oito anos e meio é está na segunda série do ensino fundamental): Uma garrafa com uma rolha de cortiça custa 1 xelim e 10 groschen*. Só a garrafa custa um xelim a mais que a rolha, quanto custa cada um dos dois? Após mais ou menos cinco segundos, ele dá a solução correta e quando solicitado explica: “Se a garrafa custa 1 xelim a mais que a rolha então precisamos deixar de lado o xelim e os 10 groschen permanecem. Sendo assim devo dividi-los por 2 e, desse modo, a rolha custa 5 groschen, a garrafa custa 1 xelim e 5 groschen”.

Independentemente de quão interessante nos parece ser este domínio notável dos números, revela-se aqui o outro lado do método de trabalho do autista: De modo algum todas as questões matemáticas são solucionadas de forma correta, no caso de algumas delas o sistema que ele monta para a solução do problema é tão complicado — mesmo sendo muito original — que, no fim, ele acaba se enganando e obtém um resultado errôneo. Porém, ele nem pensa em aplicar os métodos usuais ensinados na escola como subtrair primeiramente as dezenas e depois as unidades.

Chegamos aqui a uma conclusão importante: A dificuldade dos autistas de mecanizar, a impossibilidade de pensar da forma apresentada pelos adultos, resumidamente, deaprender com estes e, ao invés disso, extrair tudo somente de suas próprias experiências e pensamentos, revela-se — também entre os mais inteligentes desse tipo —, em muitas ocasiões, como falha!

Há aqui igualmente a elucidação da pergunta: Como um menino tão inteligente não foi capaz de alcançar a meta de ensino de sua turma necessitando agora repetir a segunda série? No grupo escolar ele apresenta dificuldades diferentes daquelas presentes na avaliação individual, na qual foi possível considerar o seu modo de ser recluso e dar espaço às suas produções originais e espontâneas. Em nossa seção nós mesmos pudemos observar o quão mais fraco era o seu desempenho no grupo escolar. Pois neste o que importa é prestar atenção na palavra do professor, que se dirige a todos, e fazer justamente aquilo que este pede. Mas ele não é capaz de nenhuma das duas coisas. Perde-se em seus pensamentos e se entrega aos seus próprios problemas, na maior parte das vezes não sabe o que está acontecendo no momento. Das aulas absorve apenas aquilo com que tem uma afinidade especial e o elabora à sua própria maneira. Devido ao fato de, conforme informa a escola, quase nunca saber quais são os seus deveres e, apesar dos esforços do pai, também não fazer os trabalhos indicados em casa, não é de se admirar que, mesmo na presença de seu indubitável dom, igualmente reconhecido pela escola, não foi capaz de alcançar a meta de ensino da turma no ano anterior.

Comportamento na seção e tratamento pedagógico

Também no caso de Harro L. é possível explicar todas as peculiaridades de seu comportamento através de suas relações limitadas com o meio ambiente. Durante toda a sua permanência na seção, ele continua um estranho. Jamais o vemos participar de um jogo coletivo, na maior parte das vezes o vemos num canto, absorto em um livro — algo incomum para a sua idade, normalmente as crianças são tomadas pela paixão pela leitura somente a partir dos dez anos de idade! —, totalmente alheio ao barulho e movimento em torno dele. As outras crianças o consideram estranho em função de sua aparência e a imponência ligada a esta (crianças têm um faro especialmente apurado para tal!), mas tratam-no com certa distância tímida e têm as suas razões para isso: Diante de qualquer provocação das crianças ele parte para cima delas, de modo brutal e sem nenhuma consideração. Não gosta de brincadeiras, mesmo quando não é ele o alvo, não tem nenhum senso de humor.

Quando confrontado com exigências, pode acontecer de ele se opor de forma atrevida, respondendo: “Nem morto farei isso” e quando concede autoridade suficiente ao educador para não ousar comportar-se assim, fica resmungando em voz baixa.

Não estabelece relações humanas mais próximas — nem com uma criança, nem com um adulto da seção. É possível fazê-lo interessar-se por alguma coisa, é estimulante conversar com ele, mas ele jamais é afetuoso, meigo, alegre — da mesma forma como também não é possível aproximar-se dele de modo afetuoso, se soltar e relaxar ao seu lado.

Toda a sua motricidade expressa isso: A sua rigidez e inabilidade geral (porém, sem a presença de sintomas neurológicos patológicos, sem que seja de alguma forma espástico) combina com a sua mímica escassa e rígida. As suas dificuldades ficam especialmente claras na aula de educação física: Mesmo que, vez ou outra, seja controlado pelas ordens daquele que lidera o grupo, mesmo que se esforce muito para realizar um exercício da forma “correta”, este não flui, nem é belo. Ele jamais segue de fato o ritmo do grupo, jamais o movimento se dá de modo natural e espontâneo — e, por isso, belo — através da coordenação e motricidade total adequadas. Ao invés disso, temos a impressão de ele conseguir realizar somente aquilo para o que naquele momento dirige toda a sua vontade consciente, de ele movimentar somente músculos isolados. O que pode ser dito em relação a várias reações suas, vale igualmente aqui: No caso dele nada se dá de modo natural, e sim somente intelectual.

Mas dessa forma foi possível obter, através de paciente exercitação, a melhora de muitas habilidades práticas suas. Assim como todas as outras crianças desse tipo, Harro era especialmente inábel — e também rebelde — justamente no caso dos pequenos atos cotidianos como, por exemplo, o de se lavar. Foi uma luta árdua ensinar-lhe esse tipo de modos sociais.

No caso das crianças “normais”, a aquisição dessas inúmeras habilidades práticas, o domínio das exigências da vida cotidiana, não são um problema. Tudo isso elas copiam dos adultos, aprendem praticamente sozinhas. É o que os educadores esperam. No caso dessas crianças, porém, surgem repetidamente conflitos consideráveis especialmente referentes a este ponto: Os educadores não entendem que essas “obviedades” precisam ser ensinadas com muito esforço para estas crianças. Ao invés disso, ficam impacientes e irritados; as crianças não estão à altura justamente destas exigências — não é possível dizer se o erro consiste mais na inabilidade motora ou na compreensão insuficiente da situação real, de qualquer modo, ambas as coisas estão sempre presentes. Além disso, se incomodam em especial com exigências pessoais enquanto que é bem mais fácil elas se interessarem intelectualmente — ou atrair os interesses delas nesse sentido. Por isso, não é de se admirar que as crianças autistas respondam justamente a exigências tão pequenas e óbvias com negativismo e maldades, que há grandes conflitos principalmente nesse sentido.

Em termos pedagógicos, qual a melhor forma de se lidar com essas dificuldades? No primeiro caso já foi relatado que se obtinha o maior êxito quando se “desligava os afetos” aparentemente, quando se assumia uma atitude impessoal e “objetiva” de dar ordens. Aqui, no caso de Harro L., desse menino bem mais inteligente e com menos transtornos de caráter, tornou-se viável um modo de proceder que na maior parte dos autistas tem êxito: O menino obedecia mais quando a exigência aparentemente não se dirigia individual e pessoalmente a ele, e sim quando, ao menos na linguagem falada, era expressa de modo genérico, impessoal, enquanto lei objetiva que está acima tanto da criança como do educador (por exemplo, “isso sefaz assim”, “agora todos precisam...”, “um menino inteligente tem que...”)

Outro ponto importante: Crianças “normais” adquirem os hábitos sociais necessários sem que tenham de fato consciência disso — elas aprendem de modo inconsciente, instintivo. Porém, são justamente essas relações, que se dão através do instinto, que se encontram alteradas nas crianças autistas; dito de modo extremo, estes seres humanos são autômatos de inteligência. Sendo assim, a adaptação social também precisa se dar através do intelecto, eles precisam aprender tudo através da razão. Tudo tem que ser explicado e enumerado para eles (o que seria um grave erro educacional no caso de crianças normais), eles precisam aprender as pequenas ocupações cotidianas como se fossem tarefas escolares e solucioná-las de modo sistemático. No caso de algumas dessas crianças (que, no entanto, eram um pouco mais velhas que Harro L.) alcançou-se uma inserção quase sem atritos na medida em que se estabeleceu um cronograma exato no qual estavam enumeradas detalhadamente todas as ocupações e obrigações do dia — começando com a hora de levantar. Quando as crianças recebiam alta, levavam esse tipo de “cronograma”, que — por precisar estar adaptado à realidade prática doméstica — era elaborado com a ajuda dos pais, para casa. As crianças tinham que prestar contas regularmente sobre o cumprimento do cronograma do dia, às vezes também mantinham um diário a respeito. As crianças se sentiam firmemente atadas a essa “lei objetiva”. Sabe-se que muitas delas são pedantes em vários sentidos, apresentam traços de caráter que beiram à neurose obsessiva — essas características puderam ser úteis para a inserção.

No caso de Harro L. também foi possível alcançar, naturalmente na presença de muitos esforços e conflitos, uma inclusão cada vez melhor. Ele se adaptou igualmente cada vez mais às exigências das aulas em grupo. Inclusive soubemos, alguns meses após ter recebido alta, que ele estava bem melhor na escola. Depois, infelizmente, não soubemos mais nada sobre ele (parece que os pais se mudaram).

As dificuldades dessas crianças de se adaptarem instintivamente às situações podem, conforme foi exposto, ao menos ser parcialmente compensadas através do intelecto. Quanto maior o dom intelectual, maior o êxito nesse sentido. Entretanto, o caráter do autista não está presente somente em crianças intelectualmente muito dotadas, e sim, igualmente no caso das pouco dotadas, inclusive mentalmente inferiores. É evidente que nesses casos era bem mais difícil alcançar uma adaptação. A seguir, outro caso como exemplo.

Ernst K.

O menino de sete anos e meio também é encaminhado para observação pela escola em função de graves transtornos de comportamento e aprendizagem.

Deve-se destacar na anamnese que o parto e o desenvolvimento foram normais. Ernst é filho único. Começou a falar um pouco mais tarde (as primeiras palavras com um ano e meio), além disso, o menino não teria articulado de modo correto algumas palavras (gaguejar), agora, entretanto, falaria especialmente bem, “como um adulto”.

Desde pequeno teria sido uma criança muito difícil que não obedecia nem à mãe condescendente, nem ao pai rígido. Quase não daria conta das exigências comuns do dia a dia; a mãe acredita que ele é muito inábil em termos práticos, por isso teria bem mais dificuldades em vários sentidos do que outras crianças. Desse modo, ainda seria preciso vesti-lo, pois sozinho demoraria horas e erraria muitas coisas, só teria aprendido a comer por conta própria recentemente, até hoje não teria modos, sujaria tudo com comida. A mãe, entretanto, acredita que há igualmente muita maldade envolvida quando ele não cumpre exigências.

Jamais se entendeu com outras crianças, nunca foi possível ir a um parque com ele, pois imediatamente se envolvia em brigas físicas, batia cegamente nas crianças e pronunciava graves xingamentos. Desde que entrou para a escola, as coisas teriam piorado muito. Provoca a ira da turma, todos partem para cima dele, caçoam dele, batem nele sem que ele possa se defender. Ele próprio, porém, não se retira, na maior parte das vezes gera os conflitos. Pratica maldades repetidamente, belisca os outros, faz cócegas, os espeta com a caneta-tinteiro.

Gosta de contar histórias fantásticas nas quais sempre exerce um papel importante e heróico, conta para a mãe que foi elogiado pelo professor na frente de todos ou coisas desse tipo.

Se ele é inteligente ou não, é difícil de avaliar. Antes de entrar na escola havia a certeza de que seria um excelente aluno, pois fazia comentários tão sábios em relação a tudo, era um observador muito original. Além disso, teria aprendido “totalmente sozinho” a contar até vinte e várias letras. Na escola, entretanto, estaria fracassando por inteiro; por pouco não teve que repetir a primeira série (conforme tivemos que constatar, não se justifica nem um pouco ele ter passado de turma), mas agora, na segunda série, não teria mais nenhum desempenho segundo a visão dos professores. A mãe, todavia, acredita que isso só acontece por ele não prestar atenção, só querer brincar. Ao invés de obedecer e responder da forma correta, voltaria sempre a discutir com os professores. Por exemplo, sobre como deve se segurar a caneta-tinteiro.

Em geral teria a tendência de se intrometer em tudo dos outros, detalharia tudo, seria “muito minimalista”: Certas coisas precisariam estar sempre exatamente no mesmo lugar, acontecer exatamente da mesma forma, caso contrário, faria um escândalo. Como um todo, seria muito contraditório; em algumas coisas seria especialmente desleixado, incapaz de se acostumar a qualquer tipo de ordem, em outras, por sua vez, seria de um minimalismo pedante, cheio de dúvidas e complicações.

Família

Diz-se que o pai seria muito nervoso e irritável. A sua profissão é auxiliar de alfaiate. Apesar de conhecermos o menino há anos, vimos o pai somente uma única vez. Parece ser claramente individualista e excêntrico. A mãe não gosta de falar sobre a realidade doméstica, percebe-se, entretanto, que esta não tem como ser harmoniosa, principalmente por causa do gênio complicado do marido.

A mãe é uma mulher inteligente e muito simpática que leva uma vida bastante difícil. Relata ser muito nervosa, sofre de dores de cabeça, é muito sensível — principalmente em termos psíquicos. Tem muita dificuldade de aceitar que o seu filho, nitidamente o seu único conteúdo de vida, é tão estranho e que fracassa em tudo; tenta sempre defendê-lo quando se trata de assuntos escolares, luta desesperadamente contra a sua transferência para a escola especial.

O restante da família não parece apresentar nenhuma peculiaridade. As informações a respeito disso são escassas.

Aparência e comportamento

Ernst é um menino alto (12 cm acima da média de sua idade), porém muito magro e delicado; a sua postura não é firme, seus ombros são caídos. O seu rosto é bonito e exibe traços finos, a única coisa que o deforma são as orelhas grandes, um pouco salientes e mal formadas. Apresenta grande vasolabilidade, quando fica encabulado ou excitado exibe manchas muito vermelhas e bem delimitadas no rosto e grandes gotas de suor no nariz.

O seu olhar é muito característico, parece totalmente perdido, nada o prende, não se dirige a objetos — na maior parte das vezes, está muito longe.Principalmente em função disso parece que o menino “acabou de aterrissar no mundo”. A voz também se encaixa nisso. É aguda, um pouco nasalada e arrastada, mais ou menos assim como o piadista caricatura o nobre degenerado (por exemplo, o imortal conde Bobby*). A impressão cômica, caricata gerada pela sua voz é reforçada pelo seu modo de falar. O menino fala sem parar e sem ser perguntado, tudo o que faz é acompanhado por explicações complicadas, ele justifica por que razão está agindo dessa ou daquela forma; precisa compartilhar de imediato com os outros tudo o que percebe independentemente de se o comentário se encaixa na situação presente ou não. Muitas dessas “observações a parte” de fato soam bem — ele não apenas as articula como um adulto, e sim, muitas vezes, estas revelam igualmente uma boa capacidade de observação. Opõem-se a isso, porém, de modo drástico as suas habilidades práticas. O seu empenho é totalmente insuficiente diante das exigências mais simples. Apesar de descrever todo dia detalhadamente as tarefas do dia enquanto se levanta e veste, na hora de executá-las esquece ou confunde aquilo que descreve tão bem em termos teóricos e exibe uma inabilidade ridícula.

Quando se encontra num grupo que precisa obedecer a uma ordem em comum, ele se comporta de forma impossível. Principalmente na aula de educação física, ele destoa completamente do grupo, não apenas por ser especialmente inábil no que tange à atividade motor, e sim por não ter nenhuma compreensão no que diz respeito à disciplina ou qualquer solicitação. Sempre atrapalha, tanto faz se está aborrecido e se queixando ou se começa a falar de modo inocente: “Sim, já entendi, já sei”.

Até o último dia de sua permanência na seção, continua um estranho, vaga entre as crianças sem de fato participar das brincadeiras destas, no máximo corrige uma ou outra; de súbito está envolvido em uma enfurecida briga física seja porque alguém caçoou dele — pois ele é o objeto adequado para a zombaria, todo o seu ser praticamente provoca isso — seja por ele mesmo ter dado motivos para tal: Ele é um garoto bastante maldoso, belisca e empurra as crianças às escondidas, destrói os seus jogos. Quando as crianças menores choram ou o educador se aborrece, isso apenas o estimula a praticar novas maldades.

Ele mesmo torna a sua vida difícil através de todas as suas complicações e dúvidas infinitas. Quando alguma coisa é somente um pouco diferente do que ele imaginou ou está acostumado, ele fica perdido, há longos debates e mesmo quando não existe a intenção de se envolver, o educador tem muitas dificuldades de freá-lo. Mas ele também tortura a si mesmo através de seu pedantismo obsessivo, não consegue se conformar quando algo é diferente do que espera (um exemplo: Ele pediu um pulôver de Natal; por não ter sido possível realizar este desejo, ele ganhou uma camisa excepcionalmente bonita e, além disso, um brinquedo: Ficou inconsolável em função desse “erro”, nem olhou para os presentes; durante toda a época de Natal estava infeliz)

Teste de inteligência e tentativa de aprendizagem

Mesmo que as suas observações soassem muito elaboradas e, por vezes, fossem de fato assertivas, todo o seu comportamento revelava tamanho transtorno de adaptação em relação às exigências do mundo, que de antemão não se esperava bons desempenhos em relação à inteligência. Foi o que aconteceu.

Ernst é desconcentrado num grau especialmente elevado: Não em função de distrações externas (atenção passiva), e sim principalmente a sua atenção ativa se encontra alterada. Durante a prova, como em tantas outras ocasiões, parece que acabou de aterrissar no mundo, não está nem um pouco presente, não está em sintonia com a reação correta, fica perdido diante da maior parte de exigências e tem um desempenho muito baixo mesmo quando se procura estabelecer uma relação estreita com ele através do olhar e da palavra.

O seu desempenho é especialmente característico na hora das perguntas a respeito das diferenças.

Alguns exemplos:

Mosca – borboleta: A mosca tem asas como vidro, das asas da borboleta pode se fazer seda (parece que se refere ao brilho sedoso!), ambas são coloridas, a borboleta morre quando esfria e na primavera ela se torna uma lagarta e vira novamente uma borboleta, primeiro se torna um casulo — este é inteiramente prateado. Em seguida são relatadas algumas experiências com traças no quarto e vermes na sopa que não tem mais nada a ver com a pergunta.

Rio – lago: No rio a água corre e no lago fica parada e por cima tem lama verde.

Madeira – vidro: O vidro quebra mais fácil e a madeira não; o vidro é uma massa, a madeira é úmida de modo sucoso, há um marco* no meio; quando queima, a madeira se torna cinzas, o vidro se dilata e depois derrete.

Escada – escadote: O escadote fica torto e a escada fica assim e em cima tem algo desse tipo (“desenha” os degraus através de gestos), a escada tem uma superfície para pisar, o escadote degraus.

Criança – anão: O anão é pequeno, a criança grande, o anão tem uma aparência bem diferente, o anão tem uma carapuça, mas essa é vermelha, a criança tem uma touca.

Encontramos aqui novamente as peculiaridades da “inteligência autista”. Os desempenhos são melhores nos momentos nos quais a criança pode produzir de modo espontâneo, e piores quando esta precisa seguir um caminho bem determinado e prescrito, principalmente quando deve reproduzir o que aprendeu. O saber acerca do mundo nasce principalmente da experiência própria e não a partir daquilo que a criança assimilou e aprendeu de outros. Isso torna os desempenhos dos mais dotados especialmente originais e fascinantes, entre os menos dotados com distúrbios mais graves, as respostas, porém, são mais absurdas do que valiosas, as informações adquiridas através de experiências casuais não tocam o cerne da questão. É assim também no caso da expressão verbal: Em situações mais favoráveis ouvimos formulações especialmente acertadas e autônomas; nas menos favoráveis as expressões, em alguns casos neologismos, são mais abstrusas do que satisfatórias.

Em relação a Ernst K., predominam os lados negativos (consideremos que ele é no mínimo um ano e meio mais velho do que Harro L., o menino apresentado anteriormente). O desempenho em relação às perguntas a respeito das diferenças é o melhor que obtém. Este revela observações e experiências autônomas. No caso das outras exigências, principalmente das escolares, essa inteligência, porém, revela fortemente o seu avesso: Quando alguém é somente capaz de experiências originais, quando é somente “ele próprio” e não faz parte do mundo estabelecendo uma relação de troca mútua com este, então não consegue aprender, não é capaz de assimilar o que os outros lhe apresentam enquanto saber e habilidade prontos, não é passível de ser “mecanizado” através do exercício e do hábito.

Por isso, todos os psicopatas autistas têm dificuldades significativas de mecanização. Enquanto os mais inteligentes entre eles acabam, por fim, superando as dificuldades, os com distúrbios mais graves fracassam inteiramente na escola — numa medida maior do que necessariamente indicaria a sua inteligência formal. Ernst K. faz parte desses casos menos favoráveis. O seu desempenho é deplorável em todas as matérias. Só consegue fazer contas a partir da experiência concreta (conta, naturalmente de forma bem habilidosa e veloz, com os dedos e, desse modo, muitas vezes simula um saber que não tem). A leitura é muito lenta, muitas vezes troca letras; juntar os fonemas é muito difícil para ele. Comparadamente, a compreensão de texto é um pouco melhor. O seu maior fracasso é na hora de escrever: Assim como quase todos os autistas, o menino, tão inábil no que diz respeito à motricidade, tem uma escrita horrível; a caneta- -tinteiro não obedece, fica presa ou espirra tinta; sem se preocupar “ele faz correções” à medida que escreve novas letras em cima das antigas, risca tudo. Ora escreve com letra maior, ora com letra menor. Mas a forma não é o pior de sua escrita. Já na hora de copiar, quando com muito esforço reproduz uma letra após a outra, faz muitos erros. Na hora do ditado, então, não é possível entender o significado de quase nenhuma palavra. Letras são omitidas, inseridas ou mudadas de lugar, algumas letras são tão deformadas que não são reconhecíveis.

Diante desse desempenho é quase impossível entender que após o primeiro ano escolar, o menino pôde passar para o segundo ano. A razão parece residir no seguinte fato, que pôde igualmente ser observado durante o teste: O tempo inteiro faz intervenções na forma de perguntas, começa a falar de outras coisas, dá estímulos e tudo isso, vez ou outra, soa bem e camufla relativamente bem o seu fracasso diante de um olhar mais superficial. É possível imaginar que um professor da primeira série, na qual ainda não conhece tão bem os seus alunos, tenha considerado o menino inteligente em função de sua falação, tenha justificado o mau desempenho somente através da falta de atenção e esperado por uma melhora.

Já durante o teste ficou claro que a dificuldade da ortografia se baseava principalmente no fato de ele ser incapaz de decompor as palavras isoladas em letras, que não compreendia a sua constituição por elementos isolados. Por isso, fizemos uma tentativa de instruí-lo através do método global, quer dizer, renunciamos à soletração, lhe ensinamos a ler e escrever a palavra como um todo. Isso foi igualmente árduo e trabalhoso. Pois além das dificuldades especiais para escrever, existiam as dificuldades mais gerais relacionadas à aula que se deviam ao seu distúrbio de contato. Não queremos entrar em maiores detalhes. De qualquer forma ficou claro que agora o menino fazia um pouco mais de progresso. Efetivamente o investimento pessoal do educador foi especialmente grande — naturalmente era necessário instruí-lo em separado, em um grupo maior não seria possível obter, de modo algum, a sua concentração no trabalho. Mas já naquela época ficou evidente que o menino não poderia ser educado, de forma alguma, em uma escola normal, que a transferência para a escola especial não poderia ser evitada. Por a mãe sentir isso como uma grande degradação da criança, tentou-se novamente a escola pública. No final do segundo ano letivo, porém, acabou sendo necessária a sua transferência para outra escola. Agora, dois anos depois, frequenta a terceira série da escola especial. Lá não faz parte, de maneira alguma, dos melhores alunos. De todo modo, tem mais dificuldades na escola do que aqueles tipos que compõem a maior porcentagem dos alunos especiais — aquelas crianças primitivas, incapazes de abstração, mas bem passíveis de mecanização e voltadas para a vida prática.

Enquanto que em relação a esse menino ainda foi possível ter dúvidas se era especialmente inteligente ou débil, há numerosos casos de crianças claramente mentecaptas nas quais encontramos igualmente, de modo evidente, as características típicas do psicopata autista: O distúrbio de contato com os seus fenômenos de expressão significativos como o olhar, a voz, a mímica, o gestual e a motricidade, as dificuldades de disciplina, as maldades, o pedantismo e estereotipias, a qualidade de autômato da personalidade como um todo, a escassa capacidade de mecanização e, comparadamente, um desempenho espontâneo relativamente melhor. No caso dos mentecaptos, as anormalidades descritas são mais extremas, pois não há o contrapeso das funções de personalidades normais.

Quem conhece um grande número de casos desse tipo — quando se tem acesso a um material ambulatorial maior, estes não são tão raros assim e, para aquele que tem experiência, normalmente são reconhecíveis à primeira vista — não tem como não perceber uma admirável semelhança com diversos transtornos de personalidade que, sem dúvida alguma, se formaram por causa de um distúrbio cerebral, seja em função de um trauma de parto ou uma encefalite infantil (esses dois quadros têm como consequência os mesmos distúrbios tanto em termos anatomopatológicos como funcionais).

Acima de tudo, os autistas e os mentecaptos com distúrbio cerebral compartilham estereotipias claramente significativas: Saltar, debater-se, rodar em torno de si próprio e rodar e girar objetos (muitas vezes com espantosa habilidade), o balanço rítmico, por exemplo, com o tórax. Além disso, encontramos lá e cá as maldades pulsionais que também no caso dos maiores mentecaptos parecem ser tão requintadas (e que são igualmente apresentadas pelos pais como prova de inteligência de seus filhos), pois estas crianças sentem tão bem o que na situação momentânea seria o mais incômodo (a bica de água é especialmente popular, mas também o ato de jogar coisas pela janela, mesmo quando esta é aberta somente por um instante.) As agressões pulsionais contra o mundo ao redor são igualmente características para ambos os quadros: beliscar, morder e arranhar. Principalmente aqueles que sofrem de distúrbio cerebral se destacam por sua “maestria” em cuspir, pois em função da hiperventilação, presente na maior parte das vezes, eles têm “material” suficiente à sua disposição! Mas igualmente o distúrbio de contato, diversas vezes descrito, com os seus fenômenos característicos de expressão, é encontrado de forma bem semelhante em diversos indivíduos que sofrem de distúrbio pós-encefalítico.

Muitas vezes não é fácil distinguir em termos de um diagnóstico diferencial se nesses casos se trata de um distúrbio congênito (“psicopatia autista”) ou da consequência de um distúrbio cerebral adquirido. São essenciais: a anamnese (parto e nascimento, doença que envolve febre alta acompanhada de torpor, letargia, vômitos ou até espasmos, “fraisen”,* em algum momento) e principalmente sintomas neurológicos (sinais de uma paresia espástica, que às vezes só se manifesta de modo sutil, fala disártrica, gaguejar, sintomas referentes à musculatura ocular, isto é, estrabismo) ou sinais vegetativos (a salivação elevada que segundo a nossa experiência não se encontra ausente em quase nenhum indivíduo que sofre de distúrbio cerebral, brilho aumentado dos olhos que, ao lado de outras causas difíceis a serem apreendidas, constitui a base do “olhar encefalítico”, sudorese muito intensa), por fim, distúrbios endócrinos, principalmente a obesidade (prevalece cada vez mais a opinião — também em virtude das pesquisas de O. Gagels — que distúrbios endócrinos frequentemente são causados por distúrbios cerebrais primários — isso se aplica principalmente a distúrbios da hipófise). De alguma forma fazem igualmente parte dos distúrbios endócrinos os distúrbios de ordem trófica (uma capacidade elevada de distender as articulações, principalmente as articulações dos dedos, saliência aumentada da parte central da face — os processos alveolares se tornam grandes e grosseiros, a gengiva se torna hipertrófica, grossa. É especialmente impressionante quando podemos observar como crianças de uma beleza élfica que sofreram uma encefalite, de repente passam a ter um rosto totalmente deformado três, quatro ou cinco anos após a doença!). Como exemplo faremos uma descrição breve de um outro caso.

Helmuth L.

O menino é o quarto filho de seus pais que são pessoas bem comuns. Nasceu sete anos após o terceiro filho, quando a mãe já tinha 41 anos. No parto quase se asfixiou, precisou ser ressuscitado durante um longo tempo. Logo após o seu nascimento teve um “ataque espasmódico”*, nos próximos dias os ataques se repetiram mais duas vezes, depois disso não mais. O seu desenvolvimento foi atrasado. Começou a andar e falar somente no final do segundo ano de vida, mas depois aprendeu a falar relativamente rápido, quando pequeno já falava “como uma pessoa grande”.

Sempre foi gordo de forma grotesca; apesar da dieta rígida e controlada pelo médico — ele nem tem muito apetite — engordava constantemente. Quando o conhecemos há seis anos — na época ele tinha 11 anos — tinha o peito muito gordo e ancas especialmente salientes; esse estado permanece até hoje (recentemente o revemos). Até hoje existe uma criptorquidia bilateral (há mais ou menos um ano o rapaz se masturba muito!) Desde a infância mais tenra, o menino é tratado com preparados hormonais, principalmente com hormônios tireoidianos e hipofisários, sem que houvesse alguma mudança em relação à obesidade e à criptorquidia. As articulações são especialmente passíveis de distensão. Quando lhe damos a mão, temos a sensação de ele nem possuir ossos, como se a mão fosse de borracha; tem genuvalgo e pés chatos; apesar de não apresentar um fluxo salivar acentuado, tem uma salivação claramente aumentada — quando fala, ouvimos bolhas de saliva estourarem em sua boca.

A sua aparência é grotesca; acima do corpo gordo, da grande face com bochechas caídas há um pequeno crânio (podemos considerá-lo quase como microcéfalo) com olhinhos bem juntos. O seu olhar parece perdido e ausente, às vezes, entretanto, resplandece de forma maliciosa. Conforme já se esperava em função de sua aparência, ele é extraordinariamente inábil. Fica parado no grupo, tal um colosso imóvel. É incapaz de pegar uma bola lançada para ele, mesmo quando se procura facilitar as coisas. Nessa hora — e quando ele próprio tenta jogar a bola — os seus movimentos parecem extremamente cômicos. A expressão grave e imóvel que o seu rosto exibe naquele momento é especialmente ridícula. Diz-se que tinha desde pequeno essa falta de habilidade para todas atividades práticas e que permanece assim até hoje.

Quando escutamos o rapaz falar, ficamos surpresos, pois soa muito inteligente. Quando fala igualmente mantém a sua expressão imóvel grave, fala devagar, de modo quase escandido, repleto de compreensão e superioridade; com frequência usa palavras incomuns, às vezes uma linguagem poética, outras vezes combinações incomuns (além disso, é verdade que — segundo informações da mãe — se interessa principalmente pelo gênero lírico). Visivelmente não percebe o quanto não se insere neste mundo, caso contrário não iria, sem mais nem menos, se apresentar de tal maneira, muito menos na frente de outras crianças. Não é de se admirar que desde sempre as outras crianças o achincalharam da pior maneira, que as crianças corriam atrás dele na rua e o escarneciam — principalmente porque ele se aborrecia deliciosamente, era tomado, de imediato, por uma grande raiva sem, porém, conseguir agir contra esses moleques ágeis, parecendo, assim, apenas mais ridículo ainda com todo o seu desamparo e ira. Esta também acabou sendo a razão pela qual a mãe o encaminhou para as aulas individuais. Mal ou bem ele conseguiu chegar a quinta série do ensino fundamental.

O seu conhecimento escolar é muito variado, a sua ortografia é excelente, jamais comete erros, tem igualmente um estilo razoavelmente bom; em contraposição, as suas habilidades matemáticas são bem pequenas, falta-lhe êxito não apenas na hora de fazer contas de forma mecanizada, e sim, principalmente, quando precisa resolver problemas matemáticos. O quão inadaptado ele é, o quão pouco sabe a respeito da vida real, só se percebe quando se faz perguntas sobre coisas bem comuns da vida prática; nessas horas fracassa de modo extremo, dá respostas totalmente insignificantes, muitas vezes, porém, de modo um tanto pedante. A mãe tem razão quando diz que ele só se movimenta em esferas superiores. Isso, entretanto, não o impede de cometer todo tipo de maldades contra as pessoas de sua convivência e as crianças (Principalmente quando ele ainda era menor, gostava de quebrar, esconder coisas etc.).

Teria sido especialmente pedante desde pequeno, diz-se que fazia grandes escândalos quando, vez ou outra, alguma coisa estava fora do lugar.

Teria determinadas cerimônias em tudo que faz. Daria importância central às suas roupas, não toleraria o menor sinal de poeira nestas, lavaria as suas mãos com muita frequência, observaria o seu corpo e as funções deste com exatidão. Tiranizaria muito o seu meio entorno através de seu pedantismo, assim como teria sido desde sempre muito pouco acessível em termos pedagógicos.

Muitos aspectos dessa descrição nos lembram os casos anteriormente apresentados: O jovem é um “autômato autista”, apráxico e com distúrbios na esfera instintiva, tem relações muito limitadas com o mundo e as exigências deste, não estabelece relações autênticas com as pessoas, é cheio de pedantismos e maldades.

Existem, entretanto, indícios claros de que todo o transtorno de personalidade aqui presente se baseia em um distúrbio cerebral aparentemente causado por traumatismo de parto: a anamnese (asfixia durante o parto, ataques de cãibra), o distúrbio endócrino, a hipersalivação como sintoma vegetativo, o transtorno apráxico que neste grau tão elevado parece indicar um distúrbio neurológico.

Por ora gostaríamos de afirmar que há casos onde um distúrbio cerebral pode gerar em vários aspectos um quadro bem semelhante àquele apresentado pela “psicopatia autista”, isto é, um transtorno constitucional presente a partir de formas um tanto semelhantes já entre os ascendentes.

Referências

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  • Bleuler, E. (1930). Lehrbuch der Psychatrie, 5. Aufl. [Compêndio de Psiquiatria, 5a ed.]. Berlim: Springer.
  • Hamburger, F. (1939). Die Neurosen des Kindesalter[As neuroses da idade infantil]. Viena: Urban & Schwarzenberg.
  • Heinze, H. (1932). Z. Kinderforsch. 40[Jornal para pesquisa infantil].
  • Jaensch, E.R. Grundformen menschlichen Seins[Formas básicas do ser humano]. Berlim: Elsner.
  • Jaensch, E.R. Der Gegentypus [O anti- tipo]. Leipzig: Johann Ambrosius Barth.
  • Jung, C.G. Psychologische Typen [Tipos psicológicos]. Zurique e Leipzig: Rascher.
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  • Klages, L. (1936). Die Grundlagen der Charakterkunde [A fundamentação da teoria do caráter]. Leipzig: Johann Ambrosius Barth.
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  • Schneider, K. (1934). Die psychopathischen Persönlichkeiten [As personalidades psicopatas]. Leipzig e Viena.
  • Schröder, P. (1931). Kindliche Charaktere und ihre Abartigkeiten, mit erläuternden Beispielen von Heinze[Caracteres infantis e os seus desvios com exemplos elucidativos de Heinze]. Breslau: F. Hirt.
  • Schröder, P. (1938). Mschr. Psychatr. 99 [Mensário psiquiátrico].
  • 1
    Tese de livre docência, entregue para a faculdade de medicina da Universidade de Viena. Tradução de Lorena Kim Richter.
  • *
    A criança diz que tem um steiligen nó na mão. Não fica claro qual o sentido dessa palavra nesse contexto. Em alemão o termosteil (steilen na declinação acusativa) significa íngreme. No dialeto austríaco, por vezes, se dizsteilig/steiligen ao invés desteil/steilen. (N. da T.)
  • *
    Fogão para aquecer a casa no inverno. (N. da T.)
  • **
    No caso da comparação entre lago e rio, a criança fala em dialeto austríaco. (N. da T.)
  • *
    Groschen – centavos – moeda austríaca. (N. da T.)
  • *
    Graf Bobby, figura cômica e fictícia vienense. Segundo outras fontes tratar-se-ia de um conde um tanto decadente. As piadas a seu respeito costumam se referir à sua estupidez e ingenuidade. (N. da T.)
  • *
    Moeda alemã. (N. da T.)
  • *
    Termo usado na Áustria e Sul da Alemanha que se refere a espasmos em crianças pequenas. (N. da T.)
  • *
    No original: Fraisenanfall, vide nota anterior. (N. da T.)
  • Citação/Citation: Asperger, H. (2015, setembro). Os “psicopatas autistas” na idade infantil. (2a Parte). Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,18(3), 519-539.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    8 Out 1943
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