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Musicalidade(s) e ressonâncias psíquicas: variações subjetivas e destinos à pulsão*1 *1 Artigo inspirado na Tese de Doutorado, Psicanálise e Musicalidade(s): sublimação, invocações e laço social, defendida em 2014 no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, Unesp/Assis.

Musicality(s) and psychic resonances: subjective variations and vicissitudes to the drive

Musicalité(s) et réssonances psychologiques: variations subjectives et destins à pulsion

Musicalidad(s) y resonancias psicológicas: variaciones subjetivas y destinos para la pulsión

Musikalität(en) und psychische Resonanzen: subjektive Varationen und Schicksale zum Antrieb

音乐特征和心理共鸣:主体的变化和冲动

Resumos

O presente artigo presta-se a relacionar alguns importantes conceitos da psicanálise, tais como a pulsão invocante, a experiência pática do estranho e as possibilidades de gozo e destinos da pulsão, enredados pela via da Psicanálise Implicada circunscrita ao campo teórico de Freud e Lacan. Tomamos a música como uma enigmática poética do indizível e do inaudito que se articula aquém e além do significante. A experiência musical pode suscitar rearranjos psíquicos, e sua singular função de contágio pode propiciar a transmissão de um real inaudito que mobiliza o campo pulsional, sendo capaz de promover diferentes destinos ao pathos.

Psicanálise; musicalidades; pulsão invocante; pathos


This article intends to relate some important concepts of psychoanalysis, such as the invocatory drive, the pathic experience of the strange, the possibilities of enjoyment and vicissitudes of the drive, based on Psychoanalysis circumscribed by the theoretical field of Freud and Lacan. We comprehend music as an enigmatic poetic of the ineffable and of the unheard that articulates itself short and beyond the signifier. The musical experience can provoke psychic rearrangements, and its unique contagion function can provide the transmission of an unprecedented real mobilizing the field of the drive, being able to promote different vicissitudes to the pathos.

Psychoanalysis; musicality; invocatory drive; pathos


Cet article se donne à articuler quelques de plus importants concepts de la psychanalyse, tels comme la pulsion invocante, l’expérience pathique de l’étrange et les possibilités de jouissance et de destins de la pulsion, par le biais de la Psychanalyse Impliquée circonscripte au champ téorique de Freud et de Lacan. Nous avons compris la musique comme un poétique enigmatique de l’ineffable et l’inouï qui s’articule au-délà du significant. L’expérience musicale peut susciter des réarrangements psychiques et sa fonction singulière de contagion peut pousser la transmission d’un réel inouï qui mobilise le champ pulsionnel, en pouvant promouvoir des différents destins au pathos.

Psychanalyse; musicalité; pulsion invocante; pathos


Este artículo se presta a relacionar algunos conceptos importantes del psicoanálisis, como la pulsión invocante, la experiencia pática del extraño y las posibilidades de goce y los destinos de la pulsión, por medio del Psicoanálisis, circunscrito al campo teórico de Freud y Lacan. Tomamos la música como una poética enigmática del inefable y del inaudito que articula lo más acá y lo más allá del significante. La experiencia musical puede suscitar reordenamientos psíquicos y su función singular de contagio puede proporcionar la transmisión de un real inaudito que moviliza el campo pulsional, siendo capaz de promover diferentes destinos a lo pathos.

Psicoanálisis; musicalidad; pulsión invocante; pathos


In diesem Text geht es darum, verschiedene Begriffe der Psychoanalyse zu erläutern, wie den aufrufenden Antrieb, die praktische Erfahrung des Fremden und die Möglichkeiten des Genusses und das Schicksal des Triebes der Einbezogene Psychoanalyse im theoretischen Bereich von Freud und Lacan. Wir betrachten die Musik als eine rätselhafte Poetik des unsagbaren und des unerhörten, die sich weitgehend über das Bedeutende hinaus artikuliert. Die musikalische Erfahrung kann neue psychische Geweben hervorrufen, und ihre besondere ansteckende Funktion kann eine unerhörte Realität begünstigen, die das Feld der Antriebe beeinflusst, und kann so verschiedene Schicksale des Pathos befördern.

Psychoanalyse; Musikalitäten; Aufrufender Antrieb; Pathos


本文尝试联系几个心理分析学概念,比如冲动,淫欲,发泄对象,冲动,结合弗洛伊德和拉孔的精神分析学理论框架和生活历程,解析这些概念之间的内在关系。我们把音乐当作是超越生命,超越人际关系的一种无法言语同时又超越声音的具有诗性的迷咒,音乐体验可以产生精神环境的重建,音乐的感染力可以帮助传播全新的听觉体验,从而调动人的冲动场,引发心理病症向不同的方向发展。

精神分析; 音乐性; 冲动; 病症


Preliminarmente, convém esclarecer que o tema da pesquisa em psicanálise geralmente é associado ao método clínico propriamente dito, referindo-se à pesquisa realizada a partir de estudos de caso. Todavia, existem também as produções oriundas da “clínica extensa” ou “clínica em extensão”, como sinalizam Herrmann e Lowenkron (2004)Herrmann, F.; Lowenkron, T. (Org.). (2004). Pesquisando com o método psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo., caracterizando as pesquisas que têm como objeto a sociedade, a cultura, as instituições, o trabalho, enfim, os diversos campos pelos quais se faz possível uma compreensão psicanalítica. A psicanálise em extensão circunscreve práticas e pesquisas psicanalíticas da clínica ampliada, e/ou o constructo teórico realizado a partir dos variados campos de atuação do psicanalista.

Não obstante, como enfatiza Nogueira (2004)Nogueira, L. C. (2004, jan/jun). A pesquisa em psicanálise. Psicol. USP, São Paulo, 15(1-2), 83-106. a partir do que o próprio Freud (1912/1996e)Freud, S. (1996e). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912). já considerava, não é possível pensar a pesquisa psicanalítica apartada da pesquisa clínica, entendendo-se que o que origina a psicanálise é a prática clínica, como práxis, no sentido da produção de um saber que é caracterizado em seu próprio fazer. Por outro lado, em diferentes momentos ao longo de sua obra Freud dedicou--se exaustivamente na elaboração de sua metapsicologia, ou seja, a construção de um arcabouço teórico que fosse capaz de dar sustentação, bases e fundamentos conceituais aos fatos clínicos.

Metapsicologia e psicanálise implicada

Identificamos no percurso teórico de Freud, desde muito cedo e ao longo de distintas passagens, tentativas legítimas que evidenciam uma construção teórica eminentemente clínica alicerçada por uma produção de ordem metapsicológica. Todas elas, num certo sentido, convergem para um ponto comum naquilo em que o pai da psicanálise sinaliza como limite nas possibilidades de construção de sentido e saber, e inclusive do método interpretativo, tal como nos indica precocemente em “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1996a) onde aparece pela primeira vez a noção de objeto perdido (a Coisa). A partir de então, vários momentos distintos de sua obra irão orbitar e empreender, ainda que indiretamente, a problemática que se refere ao limite do saber sobre o sujeito, tal como é evidente em A interpretação dos sonhos (1900/1996b) ao referir--se ao umbigo do sonho como um ponto insondável, caracterizando um para-além do sentido. Mais tardiamente, e até o final de sua obra, podemos entrever um esforço freudiano na perspectiva de situar o sujeito em questão, ainda que implicitamente no seu raciocínio analítico, como acontece em “Cinco lições de psicanálise” (1910[1909]/1996d), bem como em 1915 nos textos “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/1996f) e “O inconsciente” (1915/1996g), delineando aquilo que posteriormente Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). poderá desenvolver a partir da elaboração teórica sobre o registro do real.1 1 Real: um dos registros psíquicos segundo J. Lacan. O real representa o campo pulsional propriamente dito, o campo dispersivo não atrelado aos registros simbólico e imaginário, aquilo que resiste à simbolização. Já os escritos sobre o “Além do princípio do prazer” (1920/1996i), “O ego e o id” (1923/1996k) e as “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise” (1933[1932]/1996m), podem ser lidos como um esforço de criação de uma metapsicologia freudiana, fundamentalmente clínica e, por isso, aberta e atravessada pelo impossível a ser teorizado, pelo real, se nos basearmos no desenvolvimento teórico proposto por Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)..

Por fim, a noção relacionada ao termo metapsicologia encontra-se esboçada também num dos últimos textos de Freud (1937/1996n)Freud, S. (1996n). Análise terminável e interminável. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XXIII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)., em “Aná- lise terminável e interminável”. Ao deparar-se com o problema da compulsão à repetição, Freud se defronta com a complicada questão que o remete à tentativa de compreensão acerca do que poderia ser a subjugação de uma pulsão (Kaufmann, 1996Kaufmann, P. (Ed.). (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.). Ocasião em que o pai da psicanálise externaliza que só restaria, enfim, recorrer à feiticeira, diante dos obstáculos e dificuldades teóricas. Entende-se: “a feiticeira metapsicologia” (Le Gaufey, apud Kaufmann, 1996Kaufmann, P. (Ed.). (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar., p. 341). Nesta perspectiva, a metapsicologia psicanalítica caracteriza um modo de produção e articulação teórica fruto daquilo que a produção racional e intelectual (já estruturada) não é capaz de abarcar. Pela via contrária a um ideário de completude científica, a metapsicologia passa a caracterizar não só um exercício, mas um ato do sujeito (psicanalista), em investigação e criação teórica em Psicanálise. A preservação do lugar e função de fermentação das ideias constitui a metapsicologia, e o seu não fechamento é sua causa e sua própria condição de possibilidade. A feiticeira metapsicologia vem tomar o lugar da observação quando esta é muito deficiente ou impossível; vem então para sugerir hipóteses e fornecer elementos teóricos para a construção de explicações (Kaufmann, 1996Kaufmann, P. (Ed.). (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.). Enquanto a racionalidade clássica pressupõe um fechamento em torno dela mesmo, na medida em que a subjetividade é excluída e subjugada na pretensão de uma totalização de saber, a psicanálise, por sua vez, inclui a noção de vazio e de falta (Lacan, 1959-60/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).) no horizonte de sua ética.

Assim, a psicanálise, sobretudo a partir do retorno a Freud efetuado por Lacan (1901-1981), considera definitivamente o vazio (a Coisa/das Ding) como constitutivo do sujeito psíquico, o que, em termos conceituais, se refere ao núcleo do registro do Real (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).) e ao pulsional em si incognoscível (Freud, 1915/1996fFreud, S. (1996f). Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XIV). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).). Importante situarmos também que, para Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., só é possível avançar numa questão tão preciosa e fundamental para a psicanálise, tal como a concepção de das Ding, porque a noção de Coisa (objeto perdido) já está presente em Freud (1985/1996a)Freud, S. (1996a). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. I). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895). em seus textos pré-psicanalíticos.

Por esse viés de entendimento, é pertinente considerarmos toda produção teórica como sendo da ordem do artifício, como possibilidade de forjar sentidos acerca daquilo que está sempre num para além, uma vez que, com a psicanálise, compreendemos que a verdade é sempre não toda (Lacan, 1959--60/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).). É nesta perspectiva que se constituem legitimamente as produções eminentemente teóricas em psicanálise, caracterizando-se a partir de uma clínica em Intensão. O termo Intensão (com s) pressupõe a noção de aumento de tensão remetida à implicação psíquica do pesquisador psicanalítico com relação ao seu objeto de estudo, haja vista que sua produção é constituída pela reflexão teórica e pela sua experiência psicanalítica, (re)situando-o também enquanto sujeito.2 2 A concepção de sujeito na psicanálise refere-se não ao indivíduo em si, à pessoa, mas ao sujeito psíquico (do inconsciente), sendo então equivalente a um modo/momento de subjetivação. (Wine, 1992). Uma clínica em Intensão circunscreve em especial os estudos teóricos (a metapsicologia), delineando-se para além da decifração dos textos uma implicação e uma nova produção pelo psicanalista e pesquisador; de sua implicação à possibilidade da novidade no campo teórico. Por fim:

(...) não é possível ao pesquisador psicanalítico situar a metapsicologia freudiana sem se situar a si próprio. A explicitação do campo metapsicológico acompanha a explicitação da posição do pesquisador psicanalítico. (...) Mais do que estar e ser iluminado pelo forjamento de um novo conceito psicanalítico, o pesquisador psicanalítico é ressituado pelo embaraçamento e pela perplexidade de um novo ato psicanalítico. Assim sendo, o conceito psicanalítico será efeito do ato psicanalítico. (Caon, 1994Caon, J. L. (1994). O pesquisador psicanalítico e a situação psicanalítica da pesquisa. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 7(2), 145-174., p. 167)

Em suma, toda pesquisa em psicanálise3 3 Vale ressaltar a diferença entre pesquisas sobre psicanálise de pesquisas em psicanálise; sendo que a última só é possível de ser realizada por um psicanalista em ato e articulada à sua implicação analítica, fruto de sua função/posição de analista. é clínica, visto que o processo metodológico condizente aos seus postulados re-situa a posição do pesquisador frente ao seu objeto, conduzindo-o a uma nova produção de sentido que é fruto de um ato criativo disparado pelos enigmas e indagações teóricas a partir de sua vivência como psicanalista, pesquisador, e como sujeito.

Se os desdobramentos teóricos da psicanálise vêm fazer frente às lacunas e frestas do discurso explicativo-racional e, sendo nascida parcialmente de outro lugar que não o da razão, então a metapsicologia psicanalítica caracteriza fundamentalmente um exercício e um ato de psicanálise implicada: “(...) nesse caso quem entra em cena é a “feiticeira”, aquela que realiza esse prodígio: fazer alguma coisa com nada” (Le Gaufey, apud Kaufmann, 1996Kaufmann, P. (Ed.). (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar., p. 341).

É a partir dessa perspectiva em psicanálise que sugerimos algumas reflexões acerca das relações entre a(s) musicalidade(s) e o psiquismo.

Musicalidade(s) e ressonâncias subjetivas

A pretensão deste artigo, no qual propomos uma articulação entre psicanálise e música, nos oferece possibilidades compreensivas dignas de valor teórico dentro do campo psicanalítico pela via de uma psicanálise implicada, contribuindo diretamente para reflexões acerca do pathos e do sofrer. Especificamente, propõe-se compreender com alguma profundidade as relações da(s) musicalidade(s)4 4 A escolha pela escrita de a(s) musicalidade(s) está alicerçada a partir da compreensão em psicanálise de que não existe o Um (como A mulher não existe (Lacan, 1966/1998b), assim como não poderíamos falar que existe A música, ou A musicalidade, mas sim, músicas e musicalidades possíveis forjadas a partir de uma estrutura de linguagem. com o psiquismo, bem como situar sua função de contágio e de transmissão de um real inaudito capaz de reverberar em possíveis destinos pulsionais.

A proximidade entre os sons e o ser humano caracteriza distintos modos de subjetivação ao longo dos tempos e, singularmente transmutados em linguagens musicais, o objeto sonoro-musical seduz o homem. Reconhecendo a presença da musicalidade articulada ao desenvolvimento da vida humana ao longo dos tempos, poderíamos afirmar que a música se tornou algo íntimo relacionado a nós mesmos? Tal proximidade desde os tempos primitivos indicaria que a linguagem musical toca naquilo de mais profundo no sujeito? Em termos psicanalíticos, toca naquilo que lhe é mais íntimo e mais estranho, em suma, o inconsciente?

A música é expressão, é também arte e ciência, fundamentalmente constituída a partir de infinitas possibilidades de combinação de sons, pausas e silêncios, implicando a criação de ritmos, melodias, por meio de diferentes timbres e sonoridades. Assim, considera-se que a música se caracteriza pela combinação de vários elementos fundamentais (ritmo, melodia, harmonia e timbre). Salienta-se, enfim, que a música é uma sucessão de sons convergindo para pontos/momentos de tensão, instabilidades, repousos e resoluções que, articulados numa sintaxe própria envolvem cadeias sígnicas e operações que se assemelham à condensação, deslocamento, duplo sentido e figurabilidade (modos de funcionamento do inconsciente), sendo elaborados “(...) racional, técnica, e poeticamente, gerando formas que induzem ao receptor movimentos afetivos correspondentes” (Sekeff, 2009Sekeff, M. L. (2009). Música, estética de subjetivação: tema com variações. São Paulo: Annablume., p. 94).5 5 Importante considerar que a concepção de música que envolve constructos rítmicos e harmônicos pela lógica de tensão e resolução e que remetem aos processos de condensação, deslocamento e figurabilidade, é essencialmente atrelada à música tonal, não necessariamente encontrada na música modal, e sendo até mesmo questionada e abandonada na música atonal e pós-tonal. De acordo Sekeff (2009)Sekeff, M. L. (2009). Música, estética de subjetivação: tema com variações. São Paulo: Annablume. e Zampronha (2007)Zampronha, M. L. S. (2007). Da música, seus usos e recursos. São Paulo: Ed. Unesp., é possível compreendermos que a música é dotada de duas características psicológicas fundamentais: Aconceitualidade e Indução. O aspecto de aconceitualidade se refere à imaterialidade do objeto sonoro, à sua inapreensibilidade, sendo a linguagem musical uma genuína poética do indizível, o que possibilita uma polissemia de sentidos a partir da experiência musical:

Aconceitual, ela é marcada pela ambiguidade; aconceitual, ela é incapaz de determinar a formação de ideias claras e categóricas; aconceitual, ela se pauta pela polissemia (favorecendo múltiplas leituras), e a despeito de ser dotada de sentido (pois significantes são articulados em sua construção e realização), ainda assim a música nada diz, em razão de que sentido não implica em significado. E quanta coisa então se torna pregnante nessa construção/escuta, exatamente porque a música escapa ao significado, muito embora ela pressione... à significação! (Sekeff, 2009Sekeff, M. L. (2009). Música, estética de subjetivação: tema com variações. São Paulo: Annablume., p. 109)

Desse modo, a aconceitualidade, como qualidade singular do objeto sonoro-musical, será indissociável do outro aspecto mencionado, a indução. De forma geral, compreendemos que a partir de sua característica aconceitual a música é fundamentalmente indutiva ao mobilizar ocorrências subjetivas e somáticas. Desse modo:

(...) por se estruturar no tempo, por ser uma arte não verbal, por sua iconicidade e aconceitualidade, ela nunca diz nada. E é falando somente de si que a música se torna capaz de induzir movimentos e de se associar a estados psíquicos nos quais o espaço e o tempo desaparecem ou tomam outras dimensões, movimentos estes que sempre envolvem um efeito direto sobre o ouvinte. (Zampronha, 2007Zampronha, M. L. S. (2007). Da música, seus usos e recursos. São Paulo: Ed. Unesp., p. 33)

Diante disso, é inequívoca nossa convicção de que a música e/ou as musicalidades representam, através de suas variadas qualidades elementares, uma rica e complexa relação correspondente com diferentes aspectos psíquicos fundamentais.

David (2006)David, C. M. (2006). A musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud. Reverso [online]. 28(53), 107-112. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952006000100016&lng=pt&nrm=iso.
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salienta que: “As representações sonoras são as mais arcaicas na ontologia humana”, sendo ligadas diretamente ao surgimento da pulsão antes mesmo do nascimento. Em seu artigo, “A musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud”, ele desenvolve uma articulação teórica com- preendendo a estruturação do psiquismo a partir da inscrição do traço mnêmico sonoro e seu primeiro correlato vivenciado pela criança: o grito. Ainda segundo ele, “a inervação da fala é a primeira via de descarga, ela funciona como uma válvula de escape para regular as oscilações das quantidades somáticas até que se descubra a ação específica”.

Paralelamente à internalização dos objetos (representantes psíquicos), caracteriza-se em sua origem uma inscrição de traços acústicos — pura sonoridade que ainda carece de sentido. O grito do infante constitui-se desde o início como um ponto de referência do que será mais tarde a consciência, caracterizando um elo entre os processos internos e as percepções. Assim, num momento ainda muito primitivo da vida, o recém-nascido tende a vivenciar a experiência do grito como uma possibilidade de descarga pulsional, até que este se transforme em palavra socialmente compartilhada. David (2006)David, C. M. (2006). A musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud. Reverso [online]. 28(53), 107-112. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952006000100016&lng=pt&nrm=iso.
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trilha o caminho de Freud no “Projeto...” de 1895, quando este esboça sobre o complexo do semelhante, Nebenmensch, e a construção do juízo. Além disso, o grito, nesse escrito freudiano, antecipa e entreabre um lugar-chave para a escuta de uma ética da psicanálise atrelada à das Ding, e consequentemente, do sujeito à construção significante em torno desse vazio, em suma, uma criação ex nihilo, como irá propor Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)..

Pela linha de Freud (1985/1996a)Copland, A. (1974). Como ouvir e entender música. Rio de Janeiro: Artenova. acerca desta questão, David (2006)David, C. M. (2006). A musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud. Reverso [online]. 28(53), 107-112. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952006000100016&lng=pt&nrm=iso.
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enfatiza que todo pensamento sugere uma descarga sonora (assim como o grito), e neste sentido a própria atividade do pensamento está diretamente associada a uma dimensão acústico-sonora. Poderíamos ponderar que, a partir do grito, uma das primeiras experiências sonoras produzidas pela criança, ela passará também a musicalizar sua fala na medida em que é atravessada pelo objeto voz6 6 O objeto voz caracteriza um tipo especial de objeto nos primórdios da constituição psíquica, haja vista que ele é um dos representantes do objeto a (objeto causa de desejo, índice da falta e dos restos de gozo), pelas vias do circuito pulsional que engendra o corpo. do Outro7 7 O Outro se refere, na teoria lacaniana, a um índice de alteridade radical que constitui o sujeito psíquico. Considera-se que só há possibilidade de existência de um sujeito a partir do atravessamento pelo Outro (como linguagem e como desejo). parental: a voz materna.

A instauração da pulsão invocante

No que diz respeito à estruturação do psiquismo, em síntese, compreenderíamos que: desde o ventre materno o feto está envolto aos mais diversos estímulos sonoros, como os movimentos do próprio organismo da mãe e, em especial, a voz8 8 A voz na categoria de objeto anteriormente mencionado: uma fala que possui estrutura timbrística, rítmica e melódica, enfim, musicalizada, por isso capaz de se prestar a invocações suscitando a emergência pulsional no sujeito, para o qual a voz e a fala se endereçam. que já se dirige ao futuro bebê. Ao nascer, dado o status traumático de tal ocorrência, sobretudo por conta do bombardeio de estímulos de que a criança é alvo nessas circunstâncias, o grito apresenta-se como pura ação reflexa, uma válvula de escape de uma condição geradora de tensão ao organismo como um todo (aparato biológico e psíquico). De sua ação reflexa externalizada pelo grito, a criança encontrará, em contrapartida e endereçada a si, a voz materna.

Essa voz Outra (pura sonoridade ainda sem significações) e posteriormente sua fala (produtora de sentidos e posteriores significações), em sua essência constitui o que Didier-Weill (1999)Didier-Weill, A. (1999). Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. Rio de Janeiro: Cia. de Freud. entende representar uma legítima sonata materna, expressão que o autor recupera através do ensaio Ódio à música, de Pascal Quignard (1999)Quignard, P. (1999). Ódio à música. Rio de Janeiro: Rocco.. Considerando que toda fala se apresenta numa estrutura rítmica e melódica, a sonata materna caracterizada a partir da musicalidade da voz do Outro (anterior à internalização de sentidos e significados) é para o sujeito pura sonoridade, constituindo traços mnêmicos acústicos. Ou seja, ainda anterior ao recalque originário (mecanismo estruturante do psiquismo) a voz materna dirige-se ao bebê como uma voz que é não apenas emissora de sons, mas fundamentalmente transmissora de afetividades e intensidades, por isso invocante, constituída através de um ritmo e melodia própria. É a partir do atravessamento pela sonata materna que o sujeito psíquico poderá advir, considerando que o objeto-voz em sua condição de objeto a (causa do desejo) instaura o início do circuito pulsional no psiquismo, pela via da pulsão invocante. Em suma, para que o sujeito advenha e se lance ao encontro do Outro é necessário que este seja invocado (chamado à existência), sendo que a instauração da pulsão invocante está diretamente atrelada ao objeto-voz (pura musicalidade enquanto objeto a).

A concepção da pulsão invocante como estruturante do psiquismo nos sugere a definição de que Invocare, em latim, remete ao apelo, ao chamamento, um chamado ou uma invocação para que o sujeito possa advir (Vives, 2009Vives, J-M. (2009, jun.). Para introduzir a questão da pulsão invocante. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 12(2). Recuperado de: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142009000200007&lng=en&nrm=iso.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Didier-Weill (1999)Didier-Weill, A. (1999). Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. Rio de Janeiro: Cia. de Freud., na esteira de Lacan (1964/1998a)Lacan, J. (1998a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., considera que a pulsão invocante possui o atributo de invocação da subjetividade (ou o chamamento do sujeito psíquico), sendo transmitida e estruturada inicialmente pela voz materna. Desta feita, compreende-se que é essa musicalidade da fala que suscita a emergência da pulsão invocante no psiquismo, de onde se inaugura todo o circuito pulsional propriamente dito. Nesse caso, o sujeito, enquanto processo de subjetivação inconsciente, é convocado a (ex)-sistir. Tal (ex)-sistência, assim definida, deve-se ao fato de que originalmente a musicalidade da voz materna é pura exterioridade, e na medida em que o Outro causa o sujeito por meio de sua invocação a música passa a constituir-se como extimidade (estranho-íntimo) do sujeito psíquico. Nesses termos Didier-Weill (1998)Didier-Weill, A. (1998). Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa. corrobora a afirmação de Lacan (1964/1998a)Lacan, J. (1998a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). quando este último aponta que a pulsão invocante se apresenta como “(...) a mais próxima da experiência do inconsciente” (p. 102) e, circunscrito à questão musical, identificamos o seu correlato que se caracterizará como uma pulsão de escuta (Didier-Weill, 2014Didier-Weill, A. (2014). Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa.).

A partir da invocação do sujeito psíquico e a ocorrência do recalque originário, a musicalidade invocadora (pulsão invocante) se tornará uma musicalidade inaudita (recalcada), havendo uma equivalência entre o objeto perdido (a Coisa) como uma musicalidade perdida. Neste sentido, no que se refere a uma mudança de posição psíquica que empreende que de invocado o sujeito passe a invocante (capacidade desejante), a pulsão invocante sofre um reviramento (em função do recalque originário) expressando-se como uma espécie de pulsão de escuta (Didier-Weill, 2014Didier-Weill, A. (2014). Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa.).

De acordo com Didier-Weill (1999)Didier-Weill, A. (1999). Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. Rio de Janeiro: Cia. de Freud., a experiência musical favorece uma escuta do indizível, do imaterial e principalmente do inaudito (pulsão invocante/pulsão de escuta). Diante disso, a expectativa de reencontrar a musicalidade perdida (a Coisa) em sua dimensão de objeto a será sempre renovada a cada escuta musical, na esperança do sujeito musicado encontrar a nota azul,9 9 “Nota Azul”: noção esboçada por Delacroix em carta dirigida a Chopin. A “nota azul” em psicanálise, conceituada por Didier-Weill (2014), pressupõe uma nota objetivamente ausente, porém, subjetivamente presente, enquanto suposição do sujeito psíquico a partir de experiências musicais (pulsão invocante/pulsão de escuta). sendo essa busca e suposição de o sujeito psíquico o que caracteriza o reviramento da pulsão invocante em pulsão de escuta (Didier-Weill, 2014Didier-Weill, A. (2014). Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa.). Por isso, posteriormente estruturado como sujeito do inconsciente, ao pensarmos na relação com os objetos-sonoros, o canto e a música é que são essencialmente invocantes, constituindo modos de prazer e de gozos pela via da fruição estético-musical. Assim, se prestam à invocação muito mais adequadamente que a fala ou a escrita, dado sua relação metapsicológica articulada à Coisa (objeto perdido/musicalidade perdida) e ao objeto a (reencontro com o objeto causa de desejo).

Nesse sentido, considera-se que a instauração da pulsão invocante pela voz do Outro caracteriza uma forma especial e singular de transmissão do e no real (pulsional) pela via do contágio musicante (invocante).

O contágio musical: “o estranho” e os destinos da pulsão

A concepção de contágio representa uma possibilidade de delimitar o que refere ao modo como somos afetados pelo mundo que nos cerca, enfatizando--se uma compreensão metapsicológica em psicanálise. Freud (1921/1996j)Freud, S. (1996j). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XVIII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921). em “Psicologia de grupo e análise do ego” já discute nesse texto os “efeitos de contágio” a partir da obra de Le Bon (Psychologie des foules, 1855). Encontramos em Wine (1992)Wine, N. (1992). Pulsão e inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. e da mesma forma em Herrmann (2006)Herrmann, F. (2006). Andaimes do real: psicanálise da crença. São Paulo: Casa do Psicólogo. um aclaramento desta acepção circunscrevendo-a metapsicologicamente enquanto função psíquica: função de contágio. Segundo Wine (1992)Wine, N. (1992). Pulsão e inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., as obras da sublimação e/ou quaisquer criações podem desempenhar uma função de contágio naquilo que diz respeito às suas possibilidades de tocarem/provocarem outros sujeitos (laço social). Recuperando o ensino de Lacan no seminário 20, Mais, ainda, de onde a autora articula essa noção, e refletindo sobre o estatuto do gozo, nos explica:

(...) ao conceber a sublimação como uma forma de gozo, gozo oferecido ao Outro, o gozo ganha valor de contágio, e não de troca. Por via da sublimação, o gozo é dom, para Lacan, e seu dom é o de poder provocar gozo num outro. (...) Por meio do Outro, a linguagem, o significante novo presta o serviço de aliviar as tensões em outros corpos, ou seja, fazê-los gozar. (Wine, 1992Wine, N. (1992). Pulsão e inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 161)

A partir do contato com obras de criação, independente de status e va- loração social destas, a função de contágio será sua marca maior, reverberando no sujeito-receptor e produzindo, por fim, algum gozo (modalidades de gozo) e/ou satisfações possíveis. Compreenderíamos então que determinado sujeito, ao contemplar uma obra/criação estabelece uma relação peculiar com tal objeto, em razão de suas características de contágio e a própria realidade psíquica/fantasia do admirador, de forma que somos conduzidos a reconhecer que esses objetos criados figuram como objeto a para o sujeito enlaçado pela obra: objetos que causam o desejo (Azevedo, 2007Azevedo, R. M. de (2007). Vestígios do impossível: refletindo sobre música a partir da psicanálise (Dissertação de Mestrado em Psicologia), UENF, Campos dos Goytacazes/RJ, 175 p.).

No caso da música, dada sua dimensão imaterial e inapreensível, esta constitui uma modalidade de expressão privilegiada no que diz respeito à invocação da subjetividade, bem como propicia ao sujeito ouvinte desde vivências psíquicas que remetem ao sentimento oceânico (Freud, 1930[1929]/1996lFreud, S. (1996l). O mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XXI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930[1929]).), vivências de paz e bem-estar, como também genuínas sensações de estranhamento e descentramento do sujeito psíquico.

Temos com Freud (1919/1996h)Freud, S. (1996h). O “Estranho”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XVII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919). a compreensão de que o “estranho” vivenciado a partir do contato com obras criadas, na realidade tem relação inconsciente com aquilo que é há muito tempo familiar e já conhecido pelo sujeito. Assim, ao contrário da discriminação consciente em que identificamos algo estranho como uma coisa estrangeira/desconhecida de si mesmo, a dimensão psíquica de tal vivência pática (o estranhamento) remete a algo que é muito familiar, porém não reconhecido (recalque), sendo esta a condição metapsicológica para que o elemento do estranho figure como essencial em meio aos demais sentimentos de obscuridade, medo e/ou terror. Propomos uma aproximação entre as distintas concepções (o estranho e o contágio) e sinalizamos que o efeito de estranhamento na subjetividade deve-se ao fato de que, pela via do contato (função de contágio), o objeto contemplado e sua dimensão estética simbólico-imaginária suscitam o retorno do recalcado e, por isso, ocorre o sentimento de estranhamento no espectador da obra.

Ademais, considerando as ligeiras menções que Freud (1919/1996h)Freud, S. (1996h). O “Estranho”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XVII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919). faz entre o estranhamento associado ao sentimento de desamparo e à repetição, e da mesma maneira os desenvolvimentos efetuados por Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., atualizamos o status metapsicológico do sentimento de estranheza enfatizando que este envolve, num nível inconsciente, mais do que o retorno do recalcado, engendrando o real da pulsão. Assim, “o estranho”, enquanto pathos, está, também, diretamente associado ao além do princípio do prazer (Freud, 1920/1996iFreud, S. (1996i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XVIII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).) e por isso à Coisa (das Ding) (Lacan, 1959-69/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).). A iminência do desamparo e, em algumas circunstâncias, a compulsão à repetição atestam a relação do estranho com o objeto perdido. Sendo a Coisa o núcleo do real que se presentifica numa relação de extimidade (estranho-íntimo) para com o sujeito, então “O estranho” de Freud (1919/1996h)Freud, S. (1996h). O “Estranho”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. XVII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919). mantém ligação com as dimensões da Coisa (das Ding) reformuladas por Lacan (1959-60/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).. Nesse sentido, o sentimento de estranheza, a partir do contágio com obras criadas, evidencia não só o retorno do recalcado como também o retorno e/ou a emergência do real, a pulsão em sua força dispersiva, além de sua iminência diante da alteridade representada pelo objeto/artifício.

No que se refere à experiência da música e/ou o atravessamento da subjetividade pelas musicalidades, enfatizamos que a busca pela nota azul constituída pela via da pulsão invocante/pulsão de escuta, pressupõe uma abertura do psiquismo a um índice alteritário representado pelo estranhamento do objeto sonoro-musical. Enfatizando o caráter alteritário inerente à nota azul, Didier-Weill (1999)Didier-Weill, A. (1999). Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. Rio de Janeiro: Cia. de Freud. comenta:

Em contrapartida, a experiência me ensina que se quisesse dela me apoderar cantarolando-a ou cantando-a à minha moda, seria em vão esperar que ela me pudesse oferecer o que me prometia de significância: a alteridade se assenta de tal modo nessa nota que ela não pode me encontrar e eu não posso encontrá-la a não ser que me venha de uma exterioridade absoluta, sobre a qual não posso ter domínio algum. (p. 33)

As aproximações entre a nota azul e a alteridade corroboram nossas articulações ao considerarmos a escuta musical como possibilidade genuína de estranhar-se, supondo com isso uma mediação de contato com a Coisa (das Ding), de onde, a partir daí, processos de subjetivação irão ocorrer: desde uma resposta sintomática até vicissitudes outras que possam ser da ordem de processos e/ou atos criativos, ou simplesmente do desfrute de gozos possíveis fundamentais para os destinos do pulsional.

A partir do exposto, conjecturamos que, por meio de vivências/experiências musicantes, neste modo de implicação do sujeito, a somar as alterações de variadas funções psíquicas, concomitantemente no registro inconsciente, o próprio sujeito é posto em causa. O sujeito-musicado está, no sentido estrito da psicanálise, implicado na escuta e na experiência musicante/invocante. Nesta perspectiva, consideramos que a música pode figurar como disparadora de aberturas psíquicas, que podem proporcionar o deslizamento e a criação de novos significantes capazes de (provisoriamente) representar a pulsão.

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  • 1
    Real: um dos registros psíquicos segundo J. Lacan. O real representa o campo pulsional propriamente dito, o campo dispersivo não atrelado aos registros simbólico e imaginário, aquilo que resiste à simbolização.
  • 2
    A concepção de sujeito na psicanálise refere-se não ao indivíduo em si, à pessoa, mas ao sujeito psíquico (do inconsciente), sendo então equivalente a um modo/momento de subjetivação. (Wine, 1992Wine, N. (1992). Pulsão e inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.).
  • 3
    Vale ressaltar a diferença entre pesquisas sobre psicanálise de pesquisas em psicanálise; sendo que a última só é possível de ser realizada por um psicanalista em ato e articulada à sua implicação analítica, fruto de sua função/posição de analista.
  • 4
    A escolha pela escrita de a(s) musicalidade(s) está alicerçada a partir da compreensão em psicanálise de que não existe o Um (como A mulher não existe (Lacan, 1966/1998bLacan, J. (1998b). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).), assim como não poderíamos falar que existe A música, ou A musicalidade, mas sim, músicas e musicalidades possíveis forjadas a partir de uma estrutura de linguagem.
  • 5
    Importante considerar que a concepção de música que envolve constructos rítmicos e harmônicos pela lógica de tensão e resolução e que remetem aos processos de condensação, deslocamento e figurabilidade, é essencialmente atrelada à música tonal, não necessariamente encontrada na música modal, e sendo até mesmo questionada e abandonada na música atonal e pós-tonal.
  • 6
    O objeto voz caracteriza um tipo especial de objeto nos primórdios da constituição psíquica, haja vista que ele é um dos representantes do objeto a (objeto causa de desejo, índice da falta e dos restos de gozo), pelas vias do circuito pulsional que engendra o corpo.
  • 7
    O Outro se refere, na teoria lacaniana, a um índice de alteridade radical que constitui o sujeito psíquico. Considera-se que só há possibilidade de existência de um sujeito a partir do atravessamento pelo Outro (como linguagem e como desejo).
  • 8
    A voz na categoria de objeto anteriormente mencionado: uma fala que possui estrutura timbrística, rítmica e melódica, enfim, musicalizada, por isso capaz de se prestar a invocações suscitando a emergência pulsional no sujeito, para o qual a voz e a fala se endereçam.
  • 9
    “Nota Azul”: noção esboçada por Delacroix em carta dirigida a Chopin. A “nota azul” em psicanálise, conceituada por Didier-Weill (2014)Didier-Weill, A. (2014). Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa., pressupõe uma nota objetivamente ausente, porém, subjetivamente presente, enquanto suposição do sujeito psíquico a partir de experiências musicais (pulsão invocante/pulsão de escuta).
  • Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior – Capes / The research was funded by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior – Capes.
Editores do artigo/Editors: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    8 Out 2015
  • Aceito
    19 Dez 2015
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