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Que boca grande você tem! Articulações sobre os distúrbios da oralidade no autismo*1 *1 Este artigo apresenta elementos discutidos na monografia Algumas considerações sobre os distúrbios da oralidade no autismo apresentada no curso de especialização em psicopatologia e saúde pública para obtenção do título de especialista, em junho de 2013.

What a big mouth you have! On orality disorders in autism

Quelle grande bouche vous avez! Considérations sur les troubles de l’oralité dans l’autisme

Qué boca grande tienes! Articulaciones sobre los disturbios de oralidad en el autismo

Was hast du für ein entsetzlich großes Maul! Artikulationen der autistischen Sprachstörung

你的嘴巴这么大哎!对自閉症患者口語障礙的反思

Resumos

O texto apresenta algumas considerações sobre os distúrbios da oralidade no autismo, no viés da psicanálise, entrelaçando as questões da constituição do psiquismo infantil e a oralidade. Para enlaçar estas questões teóricas e clínicas dois casos são delineados no trabalho. As crianças retratadas apresentam funcionamento autistico onde a primazia oral apresenta-se e o surpreendente enigmático comparece no modo como a oralidade se revela, seja na voracidade ou na indiscriminação oral, instalando a boca exclusivamente no lugar de fenda, buraco que engloba tudo e não se satisfaz.

Infância; autismo; psicanálise; distúrbios da oralidade


The text presents some considerations on orality disorders in autism, from the point of view of psychoanalysis, intertwining issues of the constitution of the infant psyche and orality. To approach these theoretical and clinical issues two clinical cases are presented. The portrayed children present autistic functioning, characterized by oral primacy, and the enigmatic appears in the way orality is revealed, either in voracity or oral indiscrimination, installing the mouth exclusively in place of a, hole that encompasses everything and is never satisfied.

Childhood; autism; psychoanalysis; orality disorders


Le texte présente des éléments sur les troubles de l’oralité dans l’autisme, du point de vue de la psychanalyse, en combinant des questions de la constitution du psychisme enfantile et de l’oralité. Pour combiner ces questions théoriques et cliniques, deux cas cliniques sont développés dans le texte. Les enfants dont les cas sont abordés présentent un fonctionnement autistique où l’oralité est primordiale. Cette oralité revêt un effet de surprise énigmatique, soit par la voracité, soit par l’indiscrimination orale. Celle-ci installe la bouche comme lieu exclusif de fente, trou qui englobe tout et ne satisfait jamais.

Enfance; autisme; psychanalyse; troubles de l’oralité


El texto presenta algunas consideraciones sobre los disturbios de la oralidad en el autismo, en el sesgo del psicoanálisis, combinando las cuestiones de la constitución del psiquismo infantil y la oralidad. Para enlazar estas cuestiones teóricas y clínicas, dos casos son delineados en el trabajo. Los niños retratados presentan funcionamiento autístico donde la primacía oral se presenta y el sorprendente enigmático comparece en el modo como la oralidad se revela, sea con la voracidad o en la indiscriminación oral instalando la boca exclusivamente en el lugar de la ranura, agujero que engloba todo y no se satisface.

Infância; autismo; psicoanálisis; trastornos de la oralidad


Der Text stellt einige Überlegungen der autistischen Sprachstörung vor, durch psychoanalytische Theorie werden die Fragen nach kindlichen psychischen Konstitution und Mündlichkeit verflochten. Um die theoretischen und klinischen Fragen anzuschließen, werden zwei Fälle in diesem Artikel abgezeichnet. Die abbildenden Kinder weisen in der oralen Phase autistisches Funktionieren auf und das Symptom erscheint in der Art und Weise wie die Mündlichkeit sich offenbart, sowohl in der Gefräßigkeit als auch in der oralen Nichtdiskriminierung, sie bringen den Mund ausschließlich an der Stelle des Risses unter, ein Loch, der alles umfasst und nicht genügt.

Kindheit; Autismus; Psychoanalyse; Sprachstörung


本文针对自闭症的口语障碍进行心理分析学解读,結合兒童心理障碍與口語表达能力的問題提出一些思考意见。作者通过两个病例对儿童自闭症的理论与临床实践方面提出自己的观点。文中所提及的二个兒童病例,都是有自閉行為,他们的口语表达能力都严重不足,无论在发音,口型,口齿,他们都无法完成其应有的功能,从而无法满足表达思想的需要。

童年時期; 自閉症; 心理分析学; 口語表达障碍


(...) Uma festa de final de ano no abrigo... uma festa de Natal, várias crianças se divertem entre diversas brincadeiras e guloseimas... lá está ele no canto comendo salgadinhos, tomando refrigerantes e doces... ele come, come... come e só para de comer quando começa a vomitar e evacuar.

Uma criança pequena de 4 anos, sua mãe e a analista estão implicados na cena... a criança passa a mão no chão e passa a lamber as mãos pretas de sujeira... depois observa pedaços de azulejos quebrados no chão... pega um pedaço e em instantes começa a mastigá-lo e assim sucessivamente.

(...) Ela corre, vai para o banheiro, rapidamente pega o sabonete e passa a lambê-lo sem parar.

As questões apresentadas neste trabalho1 1 Este artigo reúne considerações desenvolvidas na monografia apresentada para obtenção do título de Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP sob a orientação da Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz. acompanham o fazer clínico de uma analista de crianças, mais especificamente de crianças que apresentam algum impasse no desenvolvimento. O lugar interrogado pela analista nesses casos: que fazer clínico é esse e como se estabelece a transferência. São questionamentos que perpassam o cotidiano desta clínica onde quer que ela ocorra, seja no consultório, seja nas instituições.

Iniciar este artigo apresentando as inquietações que atravessam a clínica tem um sentido na construção significante que aqui se procurou fazer. As questões analisadas neste trabalho apresentam vinhetas de situações e atravessamentos vivenciados por quem se ocupa efetivamente dessas crianças e embarca nesse universo infantil às avessas. Às avessas, pois é preciso se construir o infantil ali onde aparece o puro ato, o corpo concreto sem extensão simbólica.

A partir desses recortes clínicos situo minha pesquisa trazendo como questão o tema dos distúrbios da oralidade no autismo, no viés da psicanálise, entrelaçando as questões da constituição do psiquismo infantil e a oralidade. Partindo de indagações acerca da oralidade, tracejando os caminhos que possibilitaram compreender o que comparece nessas crianças que, a partir da oferta de várias guloseimas (doces, salgadinhos, balas), não conseguem parar de comer ou as recusam e se fartam lambendo um sabonete.

As crianças delineadas compõem um modo singular de laço social, exibem as particularidades que se desenham em sujeitos com funcionamento autístico. Apresentando o surpreendente enigmático que comparece nestes casos em que a boca fica alocada em lugar diferenciado, uma boca que come incessantemente e come o que não se come. Há sempre um tanto que não se satisfaz, não cessa. Este “tanto” nos convoca a indagar sobre o lugar em que a boca ocupa, questionando que boca é essa que se porta de modo tão diverso? O que tanto estas bocas clamam? Estaria então implicada outra questão que passa pela boca, mas não se encerra nela mesma?

O circuito pulsional e os autistas

As primeiras relações da criança com o mundo são estabelecidas pela oralidade que se constitui como uma fase do desenvolvimento infantil: a fase oral. Nesta, a criança constrói sua relação com o agente materno e posteriormente com os outros ao seu redor, pela boca. É comum nos depararmos com crianças que levam tudo à boca, tateando o ambiente externo por meio da boca.

Silva (2008)Silva, L. C. (2008). Da amamentação aos afetos da vida adulta. Revista Eletrônica da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde da UNIGRAN-Interbio. Dourados, MS, 2(2), 4-8. conceitua fase oral como:

A fase oral se caracteriza como a primeira fase do desenvolvimento da sexualidade infantil estando a satisfação, o prazer relacionado à ingestão de alimentos e a excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal. (p. 7)

As relações objetais são as primeiras relações que a criança estabelece elegendo objetos de amor, sendo o primeiro deles o seio materno. Inicialmente o seio é sentido como parte da criança e, posteriormente, como algo externo a ela. A libidinização do corpo da criança ocorre quando a mãe, ou o agente da maternagem, erogeniza o corpo do bebê, instalando-o no circuito pulsional que ocorre em três tempos.

No primeiro tempo, que Freud chamou de ativo, o bebê busca um objeto externo oral — o seio, a mamadeira. A criança vai ao peito e alimenta-se do objeto de fora. No segundo tempo, denominado reflexivo, o bebê toma uma parte do seu próprio corpo como objeto, quando suga o dedo, por exemplo. No terceiro tempo, denominado passivo, o bebê se faz, ele mesmo, objeto do outro se ofertando para ser olhado; é nesse tempo que o bebê se lança para que o outro lhe faça cócegas.

Ao final do terceiro tempo pulsional, algo da representação do desejo se inscreve, ou seja, o bebê dirige-se ao outro como objeto, tracejando a dimensão autoerótica que vai até o outro e volta para o sujeito. Instala-se o jogo de se fazer objeto do outro, de se oferecer para ser fisgado pelo outro e assim a criança é tomada pelo laço social projetando-se para fora. É tempo de fazer-se para o outro, há exemplos que cooperam para a visualização destas situações: um bebê que coloca os pés para cima para que a mãe faça cócegas ou infla a barriga.

É pela passagem por esse circuito que se constitui o aparelho psíquico da criança permitindo que estabeleça vínculos com os outros. Portanto, a partir do momento em que esse circuito se consolidou, a experiência de satisfação, do gozo do Outro será capturada e a criança irá acioná-la em outras situações.

Podemos pensar então o que ocorre com as crianças autistas; estamos falando de tropeços/embaraços na instauração do terceiro tempo do circuito pulsional?

Laznik em seu trabalho de 2004 diz que: “Se isto fracassar, se o terceiro tempo do circuito pulsional não for atingido, nada garante que o autoerotismo não fique desprovido de eros, marca de ligação com o outro. Ora retirando-se eros do autoerotismo se lê autismo” (p. 146).

A importância das primeiras relações objetais na estruturação do psiquismo e na construção relacional que estruturam nos oferecem indícios para compreender que algo nos autistas percorre outro caminho ou se estaciona.

Analisa-se que nos casos de sujeitos com funcionamento autístico o modo como os objetos e as pessoas os interpelam é enigmático, diferenciado e, muitas vezes, essa afetação se desenha com uma sutileza que nos escapa.

Em todos os casos de autismo registra-se um ponto de falha precoce comum a todos: quebra ou descontinuidade no reconhecimento recíproco entre o filho e sua mãe (ou cuidadora), entre a criança menor de 3 anos e os responsáveis pelos cuidados primários e sua inserção social. (Jerusalinsky, 2015Jerusalinsky, A. (2015). Dossiê Autismo. São Paulo: Instituto Langage., p. 30)

Na criança autista não se forma a imagem originária sob o corpo, como imagem unificada que é conferida pelo olhar do agente da maternagem quando erogeniza o corpo da criança. Deste modo a criança autista toma os objetos de investimentos pela incorporação e não suporta perdê-los temendo que seu corpo seja despedaçado.

Rabello em seu trabalho de 2012 expõe que:

Sem a instauração da imagem primordial do corpo, que determina a incorporação como lógica organizadora da relação da criança com o seu mundo, fica inviabilizada a resversibilidade possível da libido do corpo próprio aquela do objeto, deixando como único destino libidinal o ensimesmamento. (p. 6)

A autora diz que na criança autista não há o interesse pela satisfação que pode causar na mãe ocorrendo a ausência de inscrições prazerosas do Outro no corpo. “O impasse apresentado na criança autista: o não estabelecimento da experiência de prazer compulsivo em saborear e ser saboreado pelo outro” (p. 2).

Revela-se, assim, que a articulação entre o espaço psíquico e corporal, a linha que delimita o “eu” e o outro se confunde emergindo um corpo que escapa das inscrições simbólicas e pulsionais que o constituem, ficando um corpo à deriva.

Os distúrbios da oralidade

Como vimos anteriormente, a oralidade se constitui como uma fase do desenvolvimento que precisa ser superada para que a criança caminhe em sua constituição senlaçando-se pelo outro pela eleição de outros objetos.

É absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa nesse primeiro objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na ocasião da escolha definitiva. (Freud, 1910[1909]/1980c, p. 32)

Observa-se, nesses casos de autismo, que de tal modo a criança autista fixa-se nas formas mais primitivas de relação e a oralidade assume sua prevalência, sendo que a boca tem primazia atuando apenas como orifício e não como objeto erógeno que faz ligação, não suportando perder qualquer objeto englobado por incorporação.

Magtaz (2008)Magtaz, A. C. (2008). Distúrbios da oralidade na melancolia. Tese de doutorado em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo. fala de como a boca fica situada nesses casos de distúrbios da oralidade: “A boca era exigida, o tempo todo, como zona erógena e não conseguia cumprir outras funções orais de natureza não sexual. A oralidade da linguagem e da escrita” (p. 69). A autora destaca os distúrbios da oralidade como “Distúrbios provenientes da relação entre eu e o objeto: uma relação de amor, de extrema dependência e também ódio que se manifesta pela sintomatologia clínica” (p. 14).

Pontua ainda os distúrbios da oralidade como sintomas da melancolia, e as condutas que se apresentam nessas patologias do excesso seriam “defesa contra um vazio inapreensível gerado pelo desfazimento da ilusão de gratificação narcisista” (p. 66).

A autora diz que a melancolia é pensada como uma retirada dos investimentos dos objetos, considerando que o desejo do melancólico seria destruir o objeto, incorporando-o, comendo-o nos casos de distúrbios da oralidade. “A introjeção do objeto de amor constitui uma incorporação do mesmo, acompanhando a regressão da libido ao nível oral canibalesco. Introjetando o objeto perdido, o melancólico na realidade está chamando-o à vida, instalando-o em seu ego” (p. 71).

Expostas as contribuições teóricas proponho a amarração desse conteúdo teórico com os recortes clínicos descritos no início do texto que nos permitiram alinhavar os efeitos clínicos nos arranjos psíquicos que se visualizam nos autismos.

Cenas clínicas

Apresento dois fragmentos clínicos da história analítica de, K e S, que portam em seus sintomas o supreendente enigmático ilustrado pela relação que estabelecem com a oralidade. K na voracidade e S na indiscriminação oral. Os nomes dos pacientes foram alterados respeitando a privacidade dos mesmos.

K – Que boca grande você tem

K chega ao meu consultório com 4 anos, assustado e apreensivo, não recusa o contato, mas o faz cuidadosamente. K foi institucionalizado após o nascimento. Acredita-se que sua mãe era moradora de rua, usuária de drogas e seu pai desconhecido.

As profissionais do abrigo descrevem-no como uma criança muito agressiva, batendo nas outras crianças e com condutas estereotipadas como balançar-se, comer excessivamente e comer as próprias fezes em momentos de intensa desorganização.

Em nossos primeiros contatos, K tinha um olhar desconfiado e balan- çava-se a maior parte do tempo, não apresentando brincadeira simbólica, não se lançando aos brinquedos. Ao longo das sessões, quando propus alguma intervenção no sentido de impedir que ele fizesse algo, seja com palavras ou segurando-o, emergia uma intensa agitação que comparecia em ataques direcionados a mim, com tapas, beliscões, mordidas e arremessa objetos do consultório em mim e no chão. Quando a desorganização acentuava, também comia as fezes.

Em muitas situações a voracidade oral compareceu; ele comia todas as bolachas do consultório, não era possível negociar, ele tinha que comer tudo. Diante de alguma intervenção que o impedisse de comer tudo, ele se atirava sobre mim de modo agressivo. Havia sempre comida à disposição para que se acalmasse. As educadoras do abrigo traziam na mochila um pacote de bola- chas para garantir a volta para casa.

Nessas situações de desorganização a palavra parecia não ter acesso a ele, não lhe chegava, a primazia era da boca como orifício não erógeno, ou seja, que não faz ligação. Nessas situações a comida o apaziguava, ele tinha que comer tudo.

S – Uma boca para a mamãe

S, está com três anos e meio quando chegou ao meu consultório. A mãe tinha questões em relação ao diagnóstico do filho enfatizando que, apesar de ele ter recebido diagnóstico autista, entende que ele tem apenas problemas de linguagem. S não falava.

O pai de S não aparecia no discurso da mãe quando perguntei sobre a figura paterna ela o desqualifica o tempo todo dizendo “Somos só eu e S. Por meu filho eu mato e morro”. Incluir o pai nesta história era impossível, pois a mãe interceptava qualquer tentativa de contato. Ele não tinha lugar no discurso materno.

Na primeira sessão de S a mãe permaneceu dentro da sala. Percebia dois olhos enormes avaliando minuciosamente cada conduta que eu tinha com a criança e uma boca enorme pronta para engolir tudo à sua volta. S se aproximava, olhava e sentava no meu colo. Penso que ele sentaria em qualquer colo, não parecendo uma escolha pelo meu colo, mas sim daquele que estava na sua frente. S apresentava comportamentos ritualizados, como enfileirar os carrinhos, isolamento social e não sustentava o contato visual.

Em muitos momentos nas sessões iniciais ele virava de costas e ficava organizando os carrinhos, não aceitando qualquer aproximação minha e, quando eu tentava, me afastava e me batia.

Enquanto ela falava S me olhava, pegava os brinquedos e virava-se de costas. Eu falava com a mãe o tempo todo, dando voz ao que estava se passando na sala.

Nas sessões S passou a comer pedaços de azulejo que encontrava no chão e passava a mão no chão para lamber a sujeira que ficava em suas mãos. Também corria ao banheiro e lambia o sabonete, muitas vezes sem parar. Oscilava em momentos em que convocava meu olhar a se fixar nele e se ocupar dele comendo o sabonete e em outros que parecia estar se deliciando com o sabonete e alheio ao resto, incluindo o meu olhar.

Articulações sobre os distúrbios da oralidade e o autismo

Indagações perpassavam as cenas analíticas desses sujeitos constantemente. O que estaria em jogo nessas cenas da voracidade de K e da indiscriminação de S? O que tanto estas bocas procuravam?

Essas bocas estavam de prontidão para comer tudo aquilo que estives-se à sua frente, uma boca aberta o tempo todo, boca que não se fecha. Incitando-nos a pensar Que boca grande você tem. Seria esse movimento uma tentativa de preencher um vazio devastador que se apoderava deles, cada qual com as suas peculiaridades?

Comer, para K, seria um ato que não poderia ser evitado? Seria o não dito que comparece na voracidade de K ao comer? S se apressaria em lamber o sabonete e mastigar os azulejos como puro ato sem extensão simbólica?

Indagadas essas questões proponho pensar que o que está em jogo é algo da relação que essas crianças estabelecem com os outros e que se evidencia pela boca. Dito de outra maneira, não é por fome que eles incorporam alimentos e objetos, e sim por um modo de construir sua relação com os objetos e com os outros onde a primazia é oral, da boca, trazendo como questão um vazio devorador que se expressa por meio dos distúrbios da oralidade.

Retomando as histórias vividas por K e S interrogo que constituição psíquica se apresenta nessas crianças. O que foi possível a eles constituir do ponto de vista psíquico para lidar com tais angústias? Que corpo é esse que portam já que a imagem unificada parece não ter sido constituída?

De que modo foi possível a eles construir uma relação com o Outro?

Articulou-se que essas crianças, ao não completarem o terceiro tempo do circuito pulsional, vacilam no direcionamento ao outro. Sinalizando não terem passado pelas primeiras experiências afetivas de constituição do psiquismo, vivenciando situações de desamparo precoces com as quais não tinham recursos psíquicos para suportar. K e S carregam as marcas dessas primeiras trocas com os agentes da maternagem. Essas marcas evidenciam que a experiência do corpo parece ter ficado apenas no registro da necessidade, sem o tempo do autoerotismo.

Podemos visualizar tais questões com o recorte utilizado no início do texto, em que K está na festa e come compulsivamente até passar mal e seu corpo colocar um limite expulsando o excesso que não para de transbordar. A imagem que se presentifica é de um saco sem fundo. Diante da possibilidade de um vazio devastador ele come voraz e ininterruptamente até ser esvaziado pelo corpo, ficando em estado de completa exaustão.

O paciente que devora tudo o que aparece em seu caminho, sem discriminação. Ao mesmo tempo, sem descanso, devora e evacua tudo aquilo que é absorvido vorazmente. Não haveria então a possibilidade de uma digestão mental na mania, Ela é um puro agir sem pensamento. (Magtaz, 2008Magtaz, A. C. (2008). Distúrbios da oralidade na melancolia. Tese de doutorado em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo., p. 76)

Na cena dos azulejos S parece estar alheio aos outros, não se afetando pelo que seu comportamento causa, demonstrando saborear os azulejos, sujeira e o sabonete. Em alguns momentos S parecia estar sozinho ali na sala em seu banquete de azulejos e sujeiras e, em outros momentos, sugeria estar se deliciando em ver a aflição que tais comportamentos me causavam. “Invadido por uma excitação, o sujeito não consegue, por esse motivo, esvaziá-la em um lugar: ele mesmo ‘se’ esvazia” (Laurent, 2012, p. 22).

E o que foi possível construir com esses sujeitos?

Os efeitos do trabalho: o desdobramento e a descolagem do corpo

K – Uma boca para falar

Após algum tempo de atendimento K conseguiu brincar de cócegas, de cantar músicas e, posteriormente, com os brinquedos do consultório. Passou a me convocar para brincar com ele, seja pegando no meu braço, seja mesmo apontando para o que queria, escolhendo do que queria ou não brincar.

Uma marca importante desse processo foi o combinado sobre quantas bolachas poderia comer; inicialmente não era possível combinar nada, ele tinha que comer todas e aos poucos foi possível regular este gozo combinando duas, uma até os momentos em que pôde escolher se queria comer ou não, ocupando-se com outras coisas, como falar e cantarolar.

A boca desliza e passa a atuar como objeto de ligação, com palavras, beijos, bolinha de sabão, ocorrendo um deslocamento de sua posição subje-tiva; para de ser o saco sem fundo e pode se preencher com outras coisas.

As palavras agora tinham um lugar e a boca passou a ser um destes lugares para falar.

S – Na sua boca mando eu

Ao longo dos atendimentos S se aproximou mais, possibilitando a abertura ao outro, brincando de cócegas, se oferecia para ser alvo das cócegas. Também foi possível a eleição de objetos para brincar como brinquedos diversos e as músicas.

Ao longo dos atendimentos S passa a usar a boca para cantarolar e dar risadas. Não procurava mais azulejos e sabonetes. Passou a se ocupar da minha boca, escolhendo os momentos em que eu podia falar e os momentos em que eu não podia falar. Quando eu me atrevia a falar no momento inoportuno, ele tapava-me a boca com um beliscão e só parava quando eu me calava. Entro nesse jogo permitindo que aquele sujeito, que era devorado pela mãe, se ocupe de minha boca e possa me autorizar, ou não, a falar.

Outro passo importante foi pensar os caminhos possíveis para ajudar S a ganhar mais autonomia em suas atividades de vida diária o que permitiria maior espaçamento na relação com a mãe. Essa proposta foi efetivada com a mudança dele para uma escola que pôde ajudar concretamente essa dupla a se descolar. E também foi possível pensar na inserção de um Acompanhante Terapêutico na rotina familiar.

Conclusões

Nesses atendimentos apresentam-se, cada qual a seu modo, a questão de um corpo que a princípio não se enlaça com o outro ou, quando o faz, é de maneira embaraçada, oscilando em períodos em que nada querem do outro e períodos em que querem colar no outro.

K e S marcam suas relações com o outro pela intensidade, a intensidade do amor e do ódio, o devorar, morder, comer. A fala não se consolida nesses casos, a boca não porta essa possibilidade de comunicação com o outro, estabelecendo-se no lugar de fenda, buraco que engloba tudo evidenciando que a oralidade se desenha por outro percurso, se estaciona.

O espaço analítico permitiu que outros desdobramentos fossem possí-veis. Assim construímos, tecemos outras possibilidades para essas bocas, possibilidades que incluam um modo de falar de seus desejos com todas as singularidades que um desejo comporta.

Essas condições clínicas nos colocam a repensar a infância, o infantil. Somos convocados a reinventar nosso fazer clínico, ser criativo, flexível e aprender a enxergar as minúcias que se apresentam. Aprendemos a considerar as sutilezas que esses sujeitos nos convidam a ver, olhar para além do que está posto, o que transcorre nos bastidores quando abrimos espaços, brechas para que essas crianças possam existir e se aproximar a seu modo, mesmo que a nós pareça distante. É um trabalho árduo, difícil, mas com certeza instigante e apaixonante.

Referências

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  • Silva, L. C. (2008). Da amamentação aos afetos da vida adulta. Revista Eletrônica da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde da UNIGRAN-Interbio Dourados, MS, 2(2), 4-8.
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    Este artigo reúne considerações desenvolvidas na monografia apresentada para obtenção do título de Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP sob a orientação da Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz.
  • Financiamento/Funding: A autora declara não ter sido financiado ou apoiado / The author has no support or funding to report.

Editado por

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Cecília Magtaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2016
  • Aceito
    28 Ago 2016
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