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Sobre o futuro das revistas científicas, mais ainda

Um novo momento se inicia na historia da Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental. A versão impressa que coexiste há bastante tempo com a versão on-line, a partir deste primeiro número de março de 2017, deixará de ser publicada. Além disso, haverá mudanças na forma de submissão de artigos para a revista que a partir de agora será feita através do sistema Scielo ScholarOne.

Trata-se de um processo que não tem nada de automático, mas, ao contrário, exige uma série de adaptações, iniciadas desde o final do ano de 2016, que nos convocam para um posicionamento diante das novas tarefas.

Tais mudanças, que não são meramente burocráticas, refletem um processo cultural mais amplo que vem se operando há tempos e que traz consequências para o modo como entendemos o mundo editorial. A transformação, por exemplo, das noções de revista, de autoria, e de propriedade em relação à obra, indicam a urgência de um debate que acompanhe a velocidade com que tais mudanças se processam, permitindo um reposicionamento crítico em relação ao tema.

Berlinck, em dois editoriais publicados no ano de 2016, já nos convocava para tal debate. Fato que se refletiu, também, na escolha da temática do nosso último congresso, “A questão da qualidade no método clínico”, além da proposta, nesse mesmo período, de uma reunião de editores — infelizmente não efetivada, em função de seu falecimento.

Dada a importância do tema, proponho uma breve retomada de alguns pontos ali apresentados.

O futuro já presente

No editorial intitulado “O futuro das revistas científicas” (março, 2016), chama a atenção para o fato de que na década de 1960 o sucesso de uma publicação era medido pela tiragem impressa, ou seja, partia-se da suposição de que quanto maior a tiragem e melhor a distribuição de uma revista, maior seria o número de leitores e, consequentemente, o sucesso de uma publicação. Nesse caso o editor, muitas vezes, se via diante de dificuldades oriundas de distribuições nem sempre bem-sucedidas.

A atualidade internáutica, vai modificar não apenas a noção de tempo (Virilio, 1983Virilio, P. (1983). Guerra pura – a militarização do cotidiano. São Paulo, SP: Brasiliense.), mas, também, a noção de espaço, transformando as ideias tradicionais de biblioteca, acervo físico e tiragem impressa. Como nos alerta Berlinck (2016)Berlinck, M. (março, 2016). Editorial. O futuro das revistas científicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(1), 11-15., “(...) as bibliotecas se transformaram em centros de busca e informação de textos existentes na web” (p. 11). Os portais de conteúdo tendem a se tornar dominantes em relação a proposta de revista, ou, ainda, de periódicos. O formato de revista, articulado à noção de periodicidade, tende a mudar radicalmente em função, por exemplo, da proposta de fluxo contínuo de chegada de artigos nos portais. As mudanças criam uma maior facilidade de acesso a textos não impressos, construindo-se uma infinidade de redes de bibliotecas.

A temporalidade da publicação se transforma, visto que a noção de periódico é relativo ao aparecimento de algo que emerge em intervalos regulares e descontínuos. O mais importante passa a ser o artigo postado, articulado, por sua vez, ao autor e ao tema, que são as referências fortes para a busca. É interessante considerar que essas mudanças não são sem efeitos para as ideias de autoria e de edição, visto que os trabalhos escritos, revistos e publicados, confundem-se aqui com produtos cuja demanda é produzida pelo novo mercado editorial.

Esse fenômeno esclarece o destaque, cada vez maior, dado ao chamado fator de impacto e a crescente relevância da frequência relativa das citações de artigos. Segundo as palavras reveladoras de Berlinck (2016)Berlinck, M. (março, 2016). Editorial. O futuro das revistas científicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(1), 11-15., a citação deixou de “(...) ser uma referência impressionista e [passou] a ser [simples] medida.” (p. 12). Tal situação promove o que denomina de “sociedade das citações mútuas” que acaba por deixar de lado novos trabalhos ao não estimular a descoberta de novas produções. Outro aspecto do chamado fator de impacto é que ele exclui de seus registros os leitores anônimos. Nesse sentido, é possível verificar que a RLPF é objeto de inúmeras consultas em seu portal (cerca de um milhão em 2015) fato desproporcional em relação ao pequeno fator de impacto, cerca de 0,21, segundo o Scientific Journal Ranking (SJR).

O que se destaca é que o fator de impacto é um mero indicador de difusão que, na realidade, acaba por revelar “(...) uma perversa política de produtividade apoiada apenas no número de publicações” (Berlinck, 2016Berlinck, M. (março, 2016). Editorial. O futuro das revistas científicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(1), 11-15., p. 13), situação que amplia a existência dos portais com a produção de artigos “mais do mesmo”. Considero que tal fato convoca o aumento da responsabilidade do trabalho dos pareceristas, assim como da edição e revisão de textos, no sentido da revalorização de artigos que sejam, de fato, relevantes e originais.

Como resposta a esse delicado momento, outro ponto destacado no referido editorial, é a ideia adotada pela RLPF de publicação de artigos e resumos em vários idiomas, com a qual se visa combater, por um lado, o que Berlinck denomina de “inglês pobre”, no qual inúmeros trabalhos são escritos e, por outro, o fato de que a publicação de “(...) artigos somente em inglês é retrógrada, pois ignora autor e leitor leigo nessa língua (...)” (p. 13). Considera que a suposição de que “(...) o inglês seria a única língua confiável, do ponto de vista científico, talvez represente uma visão correta para o exclusivo ‘clube da citação’, mas, ignorando a complexidade linguística do mundo e os avanços tecnológicos da tradução”, [sendo, portanto,] “eminentemente restrita e tacanha”(p. 13).

O que ganha relevo, em contraposição, é a importância da interna-cionalização dos periódicos articulada à valorização da presença das dife-rentes línguas e culturas no campo científico, assim como o livre acesso dos artigos que promove a difusão do saber.

Em síntese, podemos dizer que o futuro das revistas cientificas estaria na dependência direta da apropriação dos novos instrumentos tecnológicos, com a finalidade de difundir o saber. Deve-se, porém, preservar tanto a qualidade quanto a originalidade das produções, além de viabilizar a expressão das diferenças culturais que atravessam o chamado conhecimento científico.

Já no segundo editorial, “Rankings e outras medidas”, escrito para a revista de junho de 2016, Manoel destaca o fato de a RLPF se encontrar no 169º da lista mundial de 247 periódicos em Psicologia Clínica. E ainda, que segundo o Scientific Journal Ranking (SJR), no ranking das revistas de Psicologia Clínica da América Latina, a Latino ocupa, nada menos, do que o segundo lugar.

O ranking aponta para um tipo de realidade que tem sua importância num determinado contexto, situando um dado periódico em relação a um conjunto de revistas. No entanto, não se deve deixar de reconhecer que a clínica nos revela uma outra realidade, nem sempre valorizada pela ciência tradicional. Como a RLPF estimula a produção de artigos cujo eixo é o método clínico, vemo-nos premidos a relativizar as formas instituídas de avaliação, visto que a experiência do pesquisador/autor e o caso a caso ganham aqui maior relevância.

O que é um autor?

Nesse sentido é bastante oportuna e atual a indagação foucaultiana (Foucault, 1969/1983Foucault, M. (1983). Qu’est-ce qu’un auteur?. Conferência pronunciada na “Sociedade Francesa de Filosofia” em 22 de fevereiro de 1969. Republicada na Revista francesa Littoral, 9.) sobre “o que é um autor?” que chama a atenção para o esmaecimento ético do autor como fundamento da escrita contemporânea marcada, eminentemente, como uma prática.

Dentre as razões que destaca para tal estado de coisas, a primeira encontra-se, por um lado, na impossibilidade de tratar o nome do autor com uma descrição claramente definida. Por outro, também uma impossibilidade de tratá-lo como um nome próprio comum. O autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos, no sentido tradicional de um descobridor, inventor. Esse ponto leva a interrogar a chamada relação de apropriação (como saber que há obra?) assim como a relação de atribuição. Por último, a pergunta quem fala? torna-se relevante devido às incertezas quanto a posição do autor no campo discursivo.

A ideia de autor se constrói num momento forte da individualização na história das ideias, momento em que começam a se realizar, também, as pesquisas de autenticidade e de atribuição.

Devido a impossibilidade de uma análise mais ampla dessa importante conferência no contexto deste editorial, destaco, apenas, o ponto em que Foucault (1969/1983)Foucault, M. (1983). Qu’est-ce qu’un auteur?. Conferência pronunciada na “Sociedade Francesa de Filosofia” em 22 de fevereiro de 1969. Republicada na Revista francesa Littoral, 9. sublinha a função autor (mais do que a ideia de autor) considerando que esta “(...) é portanto característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (p. 9).

Em nossa cultura, o discurso não era originariamente um produto, mas, essencialmente, um ato. Gesto carregado de riscos antes de ser um bem tomado num circuito de propriedades. Um dos eixos de manutenção desse debate, seria, então, interrogar em que medida, na atualidade, um discurso se caracterizaria como portador da função autor? Ou, ainda, na medida em que os discursos, textos e livros tornam-se meros produtos o que de fato, ainda, seria a chamada função autor?

Pode-se afirmar que quando se instaurou o regime de propriedades de textos, com suas regras sobre os direitos do autor, sobre as relações de autores-editores e os direitos de reprodução, verifica-se que a transgressão própria ao ato de escrever “(...) tomou cada vez mais a postura de um imperativo próprio à literatura” (Foucault, 1969/1983Foucault, M. (1983). Qu’est-ce qu’un auteur?. Conferência pronunciada na “Sociedade Francesa de Filosofia” em 22 de fevereiro de 1969. Republicada na Revista francesa Littoral, 9., p.10). Nesse sentido, a articulação entre escrita e ato talvez seja um caminho imprescindível na atualidade.

Referências

  • Berlinck, M. (março, 2016). Editorial. O futuro das revistas científicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(1), 11-15.
  • Berlinck, M. (junho, 2016). Editorial. Rankings e outras medidas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(2), 211-213.
  • Foucault, M. (1983). Qu’est-ce qu’un auteur?. Conferência pronunciada na “Sociedade Francesa de Filosofia” em 22 de fevereiro de 1969. Republicada na Revista francesa Littoral, 9
  • Virilio, P. (1983). Guerra pura – a militarização do cotidiano. São Paulo, SP: Brasiliense.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2017
  • Aceito
    17 Mar 2017
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