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A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito

IRDI methodology in daycare: prevention for a subject

L’expérience avec la méthode IRDI dans les crèches : prévenir un sujet

Una experiencia con la metodología IRDI en guarderías infantiles: prevenir un sujeto

Die Erfahrungen mit der IRDI Methode in Kinderkrippen: ein Subjekt vorbeugen

婴儿发育风险评估法(IRDI)在托儿所的临床实践:为儿童发育护航

Resumos

A Metodologia IRDI é um dispositivo de avaliação e acompanhamento de bebês de zero a 18 meses na sua constituição psíquica. Foi construído a partir de quatro operações constitutivas: suposição do sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença/ausência e função paterna — que aparecem na relação do bebê com o cuidador. Este artigo visa relatar uma intervenção realizada em uma creche municipal com um bebê de 10 meses que estava com dificuldades na sua constituição psíquica, caracterizado pela ausência dos indicadores esperados e que se presentificaram a partir da intervenção.

Metodologia IRDI; constituição do sujeito; pesquisa e psicanálise; dispositivos clínicos; prevenção


IRDI methodology (Clinical Risk Indicators in Child Development) is a tool for the assessment and monitoring of the psychic constitution of babies from age zero to 18 months. It was established based on four constitutive operations: assumption of the subject, establishment of demand, presence/absence alternation, and paternal function — which all appear in the baby’s relationship with caregivers. This paper reports an intervention carried out in a municipal daycare center with a 10-month baby suffering from psychic constitution problems, as characterized by the absence of expected indicators that appeared following the intervention.

IRDI methodology; subject constitution; research and psychoanalysis; clinical tools; prevention


La méthode IRDI (facteurs de risque du développement de l’enfant) est un dispositif qui permet d’évaluer et de suivre les bébés de zéro à 18 mois quant à leur constitution psychique. Cette méthode est basée sur quatre opérations constitutives: la supposition du sujet, l’établissement de la demande, l’alternance présence/absence et la fonction paternelle — qui surgissent dans le rapport du bébé avec son soignant. Cet article a pour but de faire le rapport d’une intervention réalisée dans une crèche municipale sur un bébé de 10 mois qui présentait des difficultés dans sa constitution psychique, caractérisée par l’absence des indicateurs attendus et qui se sont manifestés qu’après l’intervention.

Méthodologie IRDI; constitution du sujet; recherche et psychanalyse; dispositifs clinics; prévention


La metodología IRDI (indicadores de riesgo para el desarrollo infantil) es un dispositivo de evaluación y seguimiento de la constitución psíquica de bebés de cero a 18 meses. Fue construida a partir de cuatro operaciones constitutivas, que aparecen en la relación del bebé con el cuidador: suposición del sujeto, establecimiento de la demanda, alternancia de la presencia/ausencia y función paterna. Este artículo tiene como objetivo relatar la intervención realizada en una guardería infantil municipal con un bebé de 10 meses que tenía dificultades en su constitución psíquica, caracterizada por la ausencia de los indicadores esperados, indicadores que se hicieron presentes a partir de la intervención.

Metodología IRDI; constitución del sujeito; investigación y psicoanálisis; dispositivos clínicos; prevención


Die IRDI Methode (Risikoindikatoren für die frühkindliche Entwicklung) ist eine Bewertungs — und Überwachungsmethode für die psychische Konstitution von Babys von null bis 18 Monaten. Sie basiert auf vier konstitutiven Operationen: Annahme des Subjekts, Feststellung der Anforderung, Alternanz der Ab — und Anwesenheit und die väterliche Funktion, welche in der Beziehung zwischen dem Baby und dem Betreuer auftreten. Dieser Artikel erläutert eine Intervention in einer städtischen Kinderkrippe mit einem 10 Monate altem Kleinkind. Unsere Analyse zeigt Probleme der psychische Konstitution auf, die Aufgrund der Anwendung der IRDI Bewertungsmethode aufgezeigt werden konnten.

IRDI Methode; Konstitution des Subjekts; Forschung und Psychoanalyse; klinische Methoden; Prävention


婴儿发育风险评估法(IRDI-indicadores clinicas de riscos de desenvolvimento infantil)是一种针对0-18个月的新生婴儿的精神健康的评估方法。此方法由4部分组成:(1)婴儿主体意识评估,(2)设立婴儿执行的任务,并评估完成情况,(3) 父亲 角色的在场和不在场的变换,(4) 托儿所保姆所扮演的父亲的功能。本论文记录了专业人员对市立托儿所里一个出生10月的婴儿进行的干预。这个婴儿已经出现了心理障碍问题,在干预过程中,该婴儿的心理障碍和精神发育上的风险得到证实。

婴儿发育风险评估法(IRDI); 主体意识; 心理分析; 临床应用; 预防


Introdução

Pensado por psicanalistas, o Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) é um instrumento utilizado de zero aos 18 meses e está dividido em quatro faixas etárias. Os indicadores representam a tentativa de traduzir sinais de risco em uma linguagem acessível e de organizá-los de modo prático, mediante um formulário. Foi elaborado para que pediatras da rede pública de saúde pudessem incluir essa observação no cotidiano de sua prática clínica. A pesquisa com a Metodologia IRDI tem como principal objetivo detectar a tempo problemas de desenvolvimento e risco psíquico, bem como poder intervir de forma a oferecer outro destino para o sofrimento da criança e de seu entorno (Kupfer & Voltolini, 2005Kupfer, M. C. M., & Voltolini, R. (2005). Uso de Indicadores em Pesquisas de Orientação Psicanalítica: um debate conceitual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 359-364.; Kupfer et al., 2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.. São quatro os eixos teóricos que embasam e organizam tais indicadores de risco. Suposição do sujeito (SS) se refere à capacidade da mãe ou do cuidador de supor no bebê a existência de um sujeito psíquico, ainda que este não esteja constituído. Estabelecimento da demanda (ED) é um eixo que se refere à função que o cuidador tem de interpretar os gestos da criança como um apelo dirigido a ele. Alternância presença/ausência (PA) diz respeito ao período entre a demanda da criança e sua satisfação, período que corresponde a um intervalo de onde pode surgir a reposta da criança. Instalação da função paterna (FP) procura identificar o lugar do terceiro na relação mãe-bebê (Kupfer & Voltolini, 2005)Kupfer, M. C. M., & Voltolini, R. (2005). Uso de Indicadores em Pesquisas de Orientação Psicanalítica: um debate conceitual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 359-364..

Desses quatro eixos teóricos derivam 31 indicadores clínicos, que aparecem nos primeiros 18 meses da criança, e que são dependentes do laço que se estabelece entre o bebê e sua mãe ou substituto (Kupfer, 2007Kupfer, M. C. M. (2007). Metodologia IRDI – uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise. São Paulo: USP. Projeto de pesquisa não publicado, Universidade de São Paulo, SP.), tendo como resultado a instauração de um sujeito psíquico, a partir do qual se organizará o desenvolvimento de uma criança. Na avaliação, a presença desses indicadores indica desenvolvimento, enquanto sua ausência implica risco na constituição psíquica (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.).

De acordo com os pesquisadores que idealizaram o IRDI, o manuseio do Instrumento aguçava a percepção de alguns pediatras para problemas na relação das mães com seus bebês, já servindo de orientação para uma intervenção. Ou seja, o IRDI poderia ser pensado como auxiliar na promoção de saúde mental e não apenas como um instrumento de avaliação e de acompanhamento do desenvolvimento psíquico (Morais, Koizume, Lerner & Kupfer, 2010Morais, A. S. de, Koizume, E. M., Lerner, R., & Kupfer, M. C. (2010). O declínio dos saberes e o gozo da técnica: a psicanálise na formação de pediatras. O declínio dos saberes e o mercado do gozo. Recuperado de http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032010000100007&lng=en&nrm=abn.
http://www.proceedings.scielo.br/scielo....
). Nesse sentido, sua utilização poderia ser ampliada a outros contextos, passando a ser denominado de Metodologia IRDI.

Seguindo esse viés, uma pesquisa conduzida em Curitiba por Bernardino e Mariotto (2009)Bernardino, L., & Mariotto, R. (2009). Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de centros municipais de Educação Infantil de Curitiba. Congresso Nacional de Educação e III Encontro Sul Brasileiro de Psicologia, Curitiba, PR, outubro. e em São Paulo por Kupfer (2007)Kupfer, M. C. M. (2007). Metodologia IRDI – uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise. São Paulo: USP. Projeto de pesquisa não publicado, Universidade de São Paulo, SP. buscou mostrar as possibilidades de intervenção com o IRDI em creches, sugerindo que uma formação baseada na Metodologia IRDI também poderia orientar o olhar do Educador e favorecer a promoção de saúde mental dos bebês. Para isto foi realizada uma adequação dos indicadores a fim de possibilitar um olhar mais sensível para o bebê na relação com seu educador. Esta pesquisa foi pensada pela importância que a creche e as escolas de educação infantil passaram a ter no cotidiano dos centros urbanos.

O IRDI na Escola Infantil: possibilidades e potencialidades

A pesquisa “O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida” (aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFRGS) foi gestada no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica Interdisciplinar da Infância da Clínica de Atendimento psicológico da UFRGS. O Núcleo é composto por uma equipe multidisciplinar, que discute casos clínicos de crianças que são atendidas na instituição. Nessas discussões, observou-se o quanto a creche é importante como um fator de proteção e/ou desfavorável para a constituição psíquica das crianças. Pensou-se, então, sobre algum tipo de intervenção precoce que pudesse auxiliar a constituição subjetiva das crianças. Desta forma, nosso projeto foi inspirado tanto na pesquisa que utilizou a metodologia IRDI em creches em Curitiba quanto em São Paulo (Mariotto, 2009Mariotto, R. M. M. (2009). Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo, SP: Escuta.; Kupfer, 2007Kupfer, M. C. M. (2007). Metodologia IRDI – uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise. São Paulo: USP. Projeto de pesquisa não publicado, Universidade de São Paulo, SP.).

Iniciamos o acompanhamento semanal de sete turmas do berçário (bebês de 4 a 18 meses) ao longo do ano de 2014. Ao todo, acompanhamos 88 bebês e seus educadores. Desse total de 88 bebês acompanhados, 30 deles apresentavam mais de dois indicadores ausentes. Segundo estudos realizados por Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68., bebês com dois ou mais indicadores ausentes até 18 meses de idades apresentaram risco de constituição psíquica ou problemas de desenvolvimento aos 3 anos de idade. Cabe salientar que “o indicador é como um signo que se relaciona com os demais numa rede discursiva ou em uma lógica simbólica, cuja leitura baseia-se nos eixos teóricos em torno dos quais eles foram construídos” (Kupfer & Voltolini, 2005Kupfer, M. C. M., & Voltolini, R. (2005). Uso de Indicadores em Pesquisas de Orientação Psicanalítica: um debate conceitual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 359-364., p. 360). Com a maioria desses bebês, conseguimos intervir em sala de aula, contando com a parceria das educadoras e da direção das escolas, presentificando os indicadores ausentes, sendo isso suficiente para que os bebês retomassem seu ritmo constitutivo. No entanto, seis deles não responderam à nossa intervenção, recebendo os encaminhamentos necessários para a rede de saúde pública. Quanto à intervenção, parte da equipe se deslocava a fim de acompanhar, por um turno semanal, uma das turmas de berçário participante da pesquisa. Propusemos uma intervenção em serviço, onde nossa presença em ato poderia servir de apoio ao fazer cotidiano do educador. Nesse sentido, brincávamos com os bebês e conversávamos com as educadoras sobre as crianças.

Com o objetivo de ilustrar uma parte da nossa experiência com a metodologia IRDI em creches, selecionamos um caso acompanhado pelas autoras deste trabalho. Trata-se de um dos casos em que a intervenção no âmbito escolar foi suficiente para que o menino retomasse seu processo constitutivo. Para o relato desse caso, foram utilizados como base os diá- rios de campo escritos depois das visitas semanais e as conversas com as educadoras e com a coordenação da escola, além da leitura de cenas vivenciadas por nós em sala de aula e uma entrevista com os pais.

Pré-venir um sujeito?

O primeiro contato que tivemos com o bebê Marcos1 1 Nome fictício escolhido pelas pesquisadoras a fim de preservar a identidade do participante. nos convocou a pensar sobre seu comportamento. Chorava muito e somente se acalmava quando parte de seu corpo tocava parte do corpo de um adulto. Preferia não olhar no rosto das pessoas e não se interessava pelos outros bebês, tampouco pelos objetos utilizados por eles. Tinha muita dificuldade de se tranquilizar e, às vezes, mesmo dormindo no colo, continuava soluçando.

Na primeira marcação com o IRDI, realizada quando Marcos estava com 11 meses, apenas os indicadores 14. A educadora percebe que alguns pedidos da criança podem ser uma forma de chamar a sua atenção (SS e ED) e 22. A criança aceita alimentação semissólida, sólida e variada (ED) estavam presentes. Este último indicador se ausentou posteriormente.

Os indicadores ausentes eram: 15. Durante os cuidados corporais, a criança busca ativamente jogos e brincadeiras amorosas com a educadora (ED); 16. A criança demonstra gostar ou não de alguma coisa (ED); 17. Educadora e criança compartilham uma linguagem particular (SS e P/A); 18. A criança estranha pessoas desconhecidas para ela (P/A); 19. A criança possui objetos prediletos (ED e P/A); 20. A criança faz gracinhas (ED); 21. A criança busca o olhar de aprovação do adulto (ED).

Destacam-se as operações constitutivas do eixo estabelecimento da demanda (ED) e do eixo alternância presença/ausência (PA) como fundamentais para o entendimento do caso. O eixo ED permite que as manifestações do bebê se enlacem em uma trama afetiva que possibilita sua transformação em um apelo endereçado. Pelo estabelecimento da demanda, corpo e satisfação pulsional podem ser costurados. Marcos somente demonstrava desespero, um choro constante e monocórdio. Só se tranquilizava quando o corpo de um adulto, acoplado no seu, oferecia-lhe uma percepção de sua existência. Cada vez que a educadora se desgrudava dele, o desespero retornava. Quanto ao eixo alternância presença/ausência, este é considerado nodal para a constituição do sujeito, pois é o espaço que se estabelece entre a demanda e sua satisfação, bem como obriga a criança “a desenvolver um dispositivo subjetivo para a simbolização [da ausência materna]” (Kupfer et al, 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68., p. 53). A alternância das idas e vindas da mãe dizem da existência da operação da função paterna na mãe, o quanto a função paterna pode ser apresentada ao bebê e incidir sobre ele. Não víamos a alternância operando em Marcos. Esse eixo pode ser sustentado a partir da alienação e da separação (Lacan, 1957/1995Lacan, J. (1998b). O estádio do espelho como formador da função do Eu. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949).) que são dois movimentos constituintes do bebê na relação ao desejo do Outro.

Segundo Lacan (1957/1995)Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957)., a alienação é uma operação fundante do sujeito pois permite que o bebê se objetalize ao desejo do Outro, possibilitando uma primeira torção subjetiva em direção ao processo cons-titutivo. A partir da alienação, o pequeno sujeito decodifica, ancorado nos enunciados identificantes (Aulagnier, 1990Aulagnier, P. (1990). Um intérprete em busca de sentido. São Paulo, SP: Escuta.) oferecidos pelos pais, caminhos identificatórios que poderá percorrer rumo à subjetivação. A suposição, realizada pelos pais, de que ali há um sujeito, enlaça o bebê na alienação ao desejo do Outro. Mas para que de fato o sujeito surja, o bebê precisa iniciar o processo de separação (Lacan, 1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) que, de certa forma, é precipitado pela incidência da Metáfora Paterna na mãe, que impede que ela se sinta completa na relação com o bebê. Assim, a separação é sustentada por uma instância paterna que, se bem ainda não aparece diretamente para a criança, já tem efeitos na mãe, quando esta considera que o bebê não a completa.

A necessidade de Marcos se acoplar ao corpo do outro, remete-nos à noção de imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1992Dolto, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo, SP: Perspectiva.). Para a autora, imagem inconsciente do corpo é o todo vivido relacional de um sujeito, constituindo-se como testemunha das inscrições libidinais do corpo na relação com o Outro primordial. A imagem corporal muda em função das castrações que humanizam as pulsões. Para ser eficaz, tem que haver efeito nos dois polos da relação. Para que tenha um poder humanizante, quem oferece a castração precisa apostar na mudança subjetiva do bebê, a partir da qual este passa a ampliar seus relacionamentos e ser inserido, gradativamente, no mundo dos adultos. Para que uma castração não tenha consequências patogênicas, ela terá de necessariamente passar pela linguagem, garantindo, para a criança, a partir da mediação da palavra, a satisfação pulsional que está sendo interditada pelo adulto. Para que as castrações operem como tal, é necessário que intervenham em um momento no qual “as pulsões tenham encontrado o prazer necessário ao narcisismo fundamental” Dolto (1996Dolto, F. (1996). Seminário de psicoanálisis con niños 1. Mexico: Siglo XXI., p. 47) e que o bebê esteja inserido em uma situação triangular que o destitua de ser o objeto absoluto de satisfação materna. O narcisismo fundamental é o herdeiro do desejo dos pais pela vida desse bebê, funda o sujeito, inaugurando a constituição subjetiva diferenciada e se relaciona ao efeito da castração umbilical (Dolto, 1992Dolto, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo, SP: Perspectiva.).

Segundo Dolto (1996)Dolto, F. (1996). Seminário de psicoanálisis con niños 1. Mexico: Siglo XXI., a primeira castração humanizante que o filhote humano precisa ultrapassar é a umbilical. Para ela acontecer, os pais precisam supor um sujeito ali, renunciando ao bebê imaginado e aceitando o estatuto civil e diferenciado desse novo ser. Do lado do bebê, é necessário que ocorra um deslocamento da existência fetal para outra em que as vias respiratórias são acionadas. Essa castração servirá de matriz para as castrações futuras. Nesse momento primordial, mãe e bebê transformam os comportamentos biologicamente preestabelecidos em comportamentos com algum sentido afetivo. Assim, a castração umbilical será a castração do fusional. Frequentemente, as pessoas que tiveram dificuldades no acesso à castração umbilical não constituíram seu duplo. Sentem-se aterrorizadas quando não podem estar fusionadas. Precisam de “um segundo corpo, o do outro, do qual pegam a parte que imaginam que lhes falta para poder enfrentar o perigo” (p. 57). A autonomia não pode ser alcançada, pois o sujeito se sente na iminência de ser mutilado e não se reconhece como tal. Parece-nos que, em Marcos, havia uma fragilização da castração umbilical, ela ainda não havia se efetivado.

Começamos a brincar muito com Marcos. A primeira coisa que nos ocorreu foi tentar fazer uma marcação do corpo. Em uma das manhãs, Marcos estava chorando muito. Vê que a pesquisadora Andrea estava sentada no chão e vai em sua direção, sentando em seu colo, como se ela fosse um sofá. Olha para uma bola, então Andrea a pega e faz com que ela suba pela perninha, barriguinha e se detenha no nariz, sempre falando de forma musicada as partes do corpo que a bola percorria. A bola dava um “pulinho” no nariz e recomeçava o circuito. Marcos ficou muito interessado nessa brincadeira, mas esperava passivamente o retorno da ação de Andrea. No momento seguinte, depois de fazer o circuito, Andrea oferecia a bola para ele e ele a jogava. Com isso, Andrea perguntava “cadê a bola?!”, e Marcos a encontrava com o olhar. Andrea pegava a bola e recomeçava, sempre com ele em seu colo. Depois de algumas repetições da brincadeira, Marcos olha para o lado e percebe que outra pesquisadora — Monique — estava filmando. Ela é introduzida na interação. Passamos a brincar os três: Andrea oferece a bola para Marcos, ele a joga para Monique e, em seguida, Monique joga a bola na direção de Andrea e Marcos; Andrea a pega, entregando-a para Marcos a fim de que ele recomesse a brincadeira. Depois de alguns ciclos, ele sai do colo de Andrea, vai para um canto da sala, senta-se e fica contemplando os outros bebês e a educadora. A partir dessa intervenção, Marcos nos convoca a pensar sobre duas operações constitutivas — o surgimento do duplo (Freud, 1919/1990Freud, S. (1990b). El ominoso (Trad. J. Etcheverry, Vol. XIV). In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919).) e a transição do Complexo de Desmame para o Complexo de Intrusão (Lacan, 1990Lacan, J. (1990). Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função psicológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1938).).

Freud (1914/1990aFreud, S. (1990a). Introducción del narcisismo (Trad. J. Etcheverry, Vol. XIV). In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914).; 1919/1990bFreud, S. (1990b). El ominoso (Trad. J. Etcheverry, Vol. XIV). In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919).) trabalha o conceito do duplo a partir do fenômeno do estranhamento. Coloca que o duplo deriva do período constitutivo do narcisismo, mas que, na superação desse momento, o duplo deixa de ser signo de segurança e se torna um “estranho que anuncia a morte” (Freud, 1914/1990aFreud, S. (1990a). Introducción del narcisismo (Trad. J. Etcheverry, Vol. XIV). In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914)., p. 235). O duplo comporta uma dialética que se refere, ao mesmo tempo, à gênese do eu e à ameaça de desaparecimento pela constatação da diferenciação eu/outro. Conforme comentado em outro trabalho (Ferrari & Piccinini, 2010Ferrari, A., & Piccinini, C. A. (2010). Função materna e mito familiar: evidências a partir de um estudo de caso. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 13(2), 243-257.) seria o momento no qual a criança tem à sua frente a escolha entre se manter objetalizado ao desejo do Outro ou continuar o caminho rumo à subjetivação.

Será que há alguma relação entre o brincar na marcação do corpo de Marcos e o despertar do olhar para uma cena onde outros brincam? A partir da noção de Complexos, Lacan (1938/1987)Lacan, J. (1987). Os complexos familiares. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1938). explica a transformação da cria humana em sujeito. Os complexos, para o autor, se referem a organizadores constitutivos que reproduzem o choque do filhote humano no encontro com a realidade. Nesse sentido, o complexo é dominado por fatores culturais e se manifesta pela carência do bebê na relação com o outro. Sendo os complexos sucessivos, eles precisam ser sublimados para que o seguinte possa surgir. A introdução do filhote humano na cultura e na especificidade de determinada família, se dará pela vivência de três complexos fundamentais — o complexo de desmame; o complexo de intrusão e o complexo de Édipo. Para que os complexos possam operar é necessário que eles sejam encarnados em personagens cotidianos na relação com o bebê. A primeira torção subjetiva pela qual o bebê passa é o complexo de desmame. Este é independente da interrupção da amamentação propriamente dita e consiste na imposição ao bebê do “reconhecimento” da necessidade do outro para sua sobrevivência. Ademais, tem como característica a prematuridade do nascimento, assim como a dependência primordial e absoluta dos cuidados e do desejo deste outro em questão. Este é o momento da frustração (Lacan, 1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) já que a mãe, por suas presenças e ausências, introduz o bebê à estrutura simbólica. Será que estávamos assistindo à passagem do complexo de desmame ao complexo de intrusão, pela possibilidade de reconhecimento do outro semelhante encarnado na figura do irmão? Pensamos que ainda não se trata do complexo de intrusão propriamente dito. O outro ainda não é considerado um rival, lembrando que, para Lacan (1938/1990)Lacan, J. (1990). Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função psicológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1938). o complexo de intrusão é o momento de reconhecimento da existência de outros semelhantes que rivalizam pela atenção do adulto. Da rivalidade com o outro, por identificação, surge o ciúme e, secundariamente a este, a agressividade, correlacionada à identificação narcisista (Lacan, 1948/1988aLacan, J. (1990). Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função psicológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1938).). Dessa forma, tem-se como consequência a formação da tríade eu/outro/objeto. Não nos parece que Marcos estabeleça, ainda, uma rivalização com seus outros semelhantes, mas uma contemplação, por uma identificação pré-especular, que poderá permitir o surgimento dos fenômenos decorrentes do complexo de intrusão.

Em outra manhã Marcos estava no colo de Paula (pesquisadora). Monique estava filmando uma cena das crianças brincando. Marcos, no colo de Paula, percebe o visor da filmadora e fica olhando. Depois de uns segundos, olha a cena que está sendo filmada e olha novamente o visor. Repete este movimento várias vezes. Paula começa a conversar com ele sobre o que aparece no visor da filmadora e o que se remete para a cena que está sendo filmada. Continua muito concentrado olhando o visor e direcionando seu olhar à cena. Podemos pensar que o incessante olhar voltado à cena de outros semelhantes brincando com a educadora desencadeia um movimento identificatório para a gênese do eu. Em um primeiro momento, a captura do seu interesse pela cena pode ser pensada como o acionar da “transformação produzida no sujeito quando assume uma imagem” (Lacan, 1949/1998bLacan, J. (1998b). O estádio do espelho como formador da função do Eu. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949)., p. 97). Talvez o olhar aos outros semelhantes desencadeie a gênese da falta, pouco vivida na díade com a mãe, e ensaiada na relação com os colegas durante seu período na creche.

Depois de alguns momentos, Marcos sinaliza que quer sair do colo de Paula. Quando esta o coloca no chão, chora e vai em direção a uma das educadoras que está sentada. Marcos senta a seu lado com seu corpo tocando o dela. Imediatamente para de chorar. Olha para Paula que lhe joga uma bola e ele a devolve. Ficam brincando com a bola até a educadora se levantar do chão quando, imediatamente, ele começa a chorar. Levanta e vai atrás da educadora. Como a pesquisadora Andrea estava sentada no caminho, ela o convida a sentar em seu colo, ao mesmo tempo em que lhe oferece a bola. Com isso, para de chorar. Esta tenta conversar olhando para ele, mas ele não lhe dá muita atenção. Fica olhando para Monique com a filmadora e, então, atira a bola na direção dela, animando-se ao ir buscá-la sozinho. Novamente olha, pelo visor da filmadora, os colegas brincando com a educadora. Mo- nique começa a nomear os colegas e o que eles estão fazendo, enquanto ele olha ora para o visor ora para a cena.

A educadora o convida a desenhar junto com eles. Não vai, começa a chorar. O que se precipita aqui? O reconhecimento do outro? O discernimento da dependência absoluta, própria do complexo de desmame? Marcos enxerga Andrea sentada e vai novamente na direção de seu colo. A educadora chama Marcos novamente e Andrea decide acompanhá-lo. Ambos pegam um giz de cera. Marcos decide ficar no colo de Andrea olhando os colegas brincarem com a educadora. Interessa-se por uma abelhinha, então, Andrea começa a brincar manejando o brinquedo em volta do menino, como uma abelha voando, o que finaliza com um beijinho no nariz de Marcos. Depois de algumas repetições, ele mexe o rosto em direção à abelhinha para que a abelhinha dê um beijo no nariz, oferecendo-se para ela. Depois de vários recomeços da brincadeira, e de vários “pedidos”, posicionando seu rosto para que a abelhinha viesse, ele se afasta do corpo de Andrea e começa a brincar junto aos colegas, interessando-se pelo brincar dos demais bebês, resolvendo engatar-se na brincadeira de colocar e jogar giz de cera de dentro de um pote. Ficou o resto da manhã tranquilo junto aos outros bebês.

Foi uma intensa manhã trabalhando com ele. Mas continuávamos preocupadas. Em uma conversa com a educadora e a coordenação da escola, resolvemos marcar uma entrevista para conversar com os pais de Marcos. Essa decisão também se mostrou acertada quando, na hora do almoço, Marcos cuspia qualquer grão que entrasse na sua boca. Abria a boca, a educadora lhe dava a colher cheia de comida e ele cuspia. Depois pegava um grãozinho de cima da mesa, o colocava na boca e cuspia novamente. Um dos poucos indicadores que estava presente na primeira avaliação tinha se ausentado. Esse indicador é importante, pois se relaciona ao eixo alternância presença/ausência (Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.. Segundo os mesmos autores, o indicador 22 (a criança aceita alimentação semissólida, sólida e variada), relaciona-se à efetivação do estabelecimento da alternância e do ritmo. Segundo Dolto (1992)Dolto, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo, SP: Perspectiva., aceitar alimento sólido ou semissólido pode ser um efeito da castração oral, momento no qual a mãe deixa de ser a única interlocutora do desejo da criança e a impulsiona ao campo da cultura, pela possibilidade de compartilhar o alimento com outros semelhantes. Assim, nos perguntamos se o fato de Marcos recusar o alimento poderia ser lido como uma recusa à diferenciação com o outro, o que estava inicialmente sendo esboçado.

Os indicadores da metodologia IRDI serviram, também, para conversar com os pais. Para Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. F., Molina & Lerner, R. (2009, março). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am.Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68., o lugar de um sujeito, embora único, depende das ações e das atitudes que o cuidador realizou na primeira infância, sem as quais esse lugar a ser ocupado pode claudicar.

O olhar das pesquisadoras frente às ausências dos indicadores no menino atentou-as para uma possível dificuldade no exercício das funções paterna e materna. Dessa forma, em articulação com a coordenação da escola, marcamos uma conversa com os pais a fim de conhecermos um pouco da rotina e das práticas dos mesmos com Marcos. No decorrer da conversa, a mãe contou que Marcos dormia no meio do casal e que ainda o amamentava no peito à livre demanda, inclusive durante a noite. O pai se incomodou quando a orientadora da escola sugeriu que fosse diminuída a amamentação, bem como tivesse uma rotina em relação a isso. Ademais, a mãe nos conta que é muito difícil deixar o menino na creche. Ela diz entender o filho porque também era muito ligada à sua mãe quando pequena. Conta que enquanto ele está acordado, ela não consegue sequer ir ao banheiro, pois cada vez que ela se afasta, Marcos chora. Não se despede dele quando ela necessita sair, espera Marcos se distrair para fugir dele, do contrário, o choro é intermitente. Estava claro para nós como a alternância presença/ausência e o estabelecimento da demanda estavam vacilando na relação de Marcos com sua mãe.

Combinamos então que ela se despedisse cada vez que fosse se afastar do filho, indicando-lhe onde iria e afirmando que voltaria em breve, ou seja, que colocasse em palavras a experiência de afastamento, e tolerando o choro de Marcos nessa separação. Igualmente, combinamos com o pai que apoiasse sua esposa nessas separações. O pai, durante toda a entrevista demonstrou-se muito incomodado com nossas colocações. Ao contrário, a mãe se sentiu apoiada, podendo explicitar seu sofrimento.

Pensamos que as intervenções com Marcos também tiveram efeito a partir da conversa que tivemos com seus pais, tocando no lugar da instância paterna. Se os indicadores relativos à alternância presença/ausência não estavam operando em Marcos, isso se dava porque a instância paterna estava desapropriada de voz, parecendo não estar encarnada em alguém, impossibilitando à mãe ritmar suas idas e vindas.

O brincar com o corpo em sala de aula, a intermediação da experiência de se deparar com os semelhantes a partir da fala das pesquisadoras e a entrevista com os pais foram fundamentais para permitir que Marcos reto-masse o percurso constitutivo. Tal percurso encontrava-se fraturado pela dificuldade dos pais de estabelecerem a alternância presença/ausência, momento da frustração (Lacan, 1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) no qual a falta inicia sua operação.

Como efeito das intervenções, gostaríamos de trazer mais uma cena protagonizada por Marcos, após a conversa com sua família.

As crianças tinham brincado com bolinhas de sabão. Os frascos das bolinhas são guardados por uma educadora auxiliar. Marcos se dirige à prateleira na qual os frascos foram guardados e diz para a educadora auxiliar “esse, esse” apontando para eles. A auxiliar lhe dá um. Ele não consegue abrir. Devolve o frasco para a educadora e fica esperando que ela o abra. Ele também espera que ela assopre para ele poder brincar com as bolinhas, mas ela coloca o brinquedo perto da boca dele para que ele assopre e faça as bolinhas de sabão. Marcos ainda não sabe assoprar, a educadora auxiliar então afasta o brinquedo. Como as bolinhas não saíram, Marcos pede outro frasco. Ficam nessa: Marcos querendo brincar com as bolinhas de sabão e a educadora auxiliar não se dando conta de assoprar o detergente para que Marcos pudesse brincar. Marcos se irrita e começa a chorar. A outra educadora, que estava brincando com outras crianças lhe pergunta — “O que é isso? Música?”, e Marcos vai na direção dessa educadora. A educadora lhe pergunta — “o que queres?”. Marcos aponta para o frasco de bolinhas de sabão, caminhando até ele e o entregando para a educadora. Com isso, a educadora fica brincando com as bolinhas enquanto mostra e fala para as crianças como assoprar. Ele fica bem, no meio das outras crianças, tentando, por sua vez, assoprar. Como ele não consegue, a professora assopra. Ficam assim, até que uma das meninas coloca o dedo no frasco e sai envolto de espuma. Marcos a imita e estranha o dedo cheio de espuma. Mostra o dedo para a educadora, que brinca com isso. Depois de um tempo, junta-se a outro grupo de crianças que estava brincando com outros objetos. No horário de almoço, come bem e sozinho. Gostaríamos de assinalar que na última marcação com o IRDI os indicadores da faixa etária, agora dos 12 aos 18 meses, estavam presentes. Em uma visita posterior à finalização do acompanhamento, notamos que as mudanças em relação a Marcos se solidificaram. As educadoras comentaram que Marcos é muito diferente do bebê do ano anterior. Ele brinca e interage tranquilamente com as outras crianças. Inclusive, quando Monique voltou para visitar a escola, Marcos ficou olhando para ela com muita curiosidade convidando-a para brincar de se esconder.

Os enlaces permitidos a partir da Metodologia IRDI

Nesta escrita, tivemos a preocupação de contar um fragmento de nosso trabalho de pesquisa-intervenção sustentado pela Metodologia IRDI. A utilização do IRDI foi um importante dispositivo para nortear nossa principal aposta em Marcos: o brincar. Apostamos que a partir da intervenção lúdica poderíamos auxiliar o menino na presentificação de indicadores anteriormente ausentes e necessários à sua constituição psíquica. Ao enga-tar-se em uma brincadeira, buscávamos carregá-la de palavras, a fim de construir com o menino a descoberta da satisfação proporcionada pelo brincar. Como identificado por Dolto (1996)Dolto, F. (1996). Seminário de psicoanálisis con niños 1. Mexico: Siglo XXI., para que seja possível que as castrações realizem suas operações, é necessário que seja encontrado um prazer compartilhado, no qual o adulto envolvido na brincadeira vislumbre a inserção desse pequeno sujeito na cultura. Isso se fez possível a partir não só das brincadeiras de marcação corporal, mas também da utilização da bola em situação de triangulação. A partir disto, Marcos pôde constituir uma imagem de si não fusionada com o outro. O fato de Marcos poder contemplar os outros brincando, acarretou a gênese da diferenciação, em que o pequeno outro começa a entrar na cena. Dessa forma, a possibilidade de intervenção em sala de aula foi de extrema importância. As brincadeiras com as pesquisadoras e a nomeação dos colegas a partir de sua visualização através da câmera permitiram um posterior ensaio de aproximação dos colegas realizado por Marcos. Apesar dos progressos, ainda havia fragilidade em sua constituição, exemplificada pelo indicador que havia se ausentado. Compreendemos que, neste caso, apenas a intervenção em sala de aula não estava sendo suficiente, sendo necessária a intervenção com os pais a partir de uma entrevista.

Assim, o IRDI também se mostrou um importante dispositivo para nortear a conversa com os pais de Marcos. Percebemos que as dificuldades de Marcos estavam ligadas às dificuldades na operação da função paterna, essencial para que a presença/ausência e o estabelecimento da demanda acontecessem. Foi possível, dessa forma, sugerir aos pais uma diminuição no número das mamadas e que fosse colocado em palavras o afastamento da mãe. Acreditamos que o espaço de escuta e de intervenção com os pais auxiliou na possibilidade de eles exercerem as suas funções, imprimindo um ritmo.

Pensamos que tanto a conversa com os pais quanto as intervenções na sala de aula auxiliaram no surgimento dos eixos estabelecimento da demanda e presença/ausência, que se encontravam prejudicados no caso de Marcos. As brincadeiras de marcação corporal, a diferenciação do outro e a inserção de um ritmo e uma continuidade em casa contribuíram para uma maior estabilidade dos eixos e, dessa forma, para a retomada constitutiva de Marcos. Como consequência, pôde-se observar melhor adaptação à creche, maior participação nas brincadeiras entre pares em sala de aula e uma interação com adultos que não passava somente pelo nível fusional com o outro corpo.

Foi possível identificar, a partir do caso escolhido, que a Metodologia IRDI se mostra um potente dispositivo para a análise da configuração da saúde psíquica da criança. A partir da interpretação dos eixos e dos indicadores que compõem o instrumento, foi possível utilizá-lo como uma importante ferramenta para a promoção de saúde mental, bem como um importante norteador para a prática psicanalítica em contextos que diferem dos da clínica tradicional.

Agradecimentos

Agradecemos à parceria da SMED (Secretaria Muni-cipal de Educação, Porto Alegre), ao apoio da instituição e aos colegas de trabalho que conosco compuseram esta jornada de pesquisa e de intervenções.

Referências

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  • 1
    Nome fictício escolhido pelas pesquisadoras a fim de preservar a identidade do participante.
  • Financiamento/Funding: As autoras declaram não terem sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2016
  • Aceito
    19 Jan 2017
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