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A História na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental

Na estante da biblioteca, tenho diante de mim o concreto espaço ocupado por 79 exemplares impressos (76 números regulares e três suplementares) da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (RLPF). No Scientific Electronic Library Online – SciELO – está também a edição de março de 2017, quando se inicia a publicação da revista exclusivamente em formato digital. Desta forma, o presente editorial introduz o 81º número da RLPF, cuja publicação ininterrupta vem desde 1998. Estas longevidade e regularidade merecem destaque no contexto editorial científico nacional e devem muito às memoráveis capacidade de trabalho e persistência de seu editor de 1998 a 2016, Manoel Tosta Berlinck (1937-2016), bem como à sua habilidade de aglutinar pessoas de várias instituições acadêmicas e de diferentes formações profissionais em torno do projeto da RLPF, comunicando-lhes a energia e o entusiasmo que lhes eram peculiares.

De início, devo ressaltar que não pretendo (nem poderia) fazer aqui uma história da RLPF, mas apenas indicar a relevância da produção bibliográfica relacionada ao campo da história que veio à luz em suas páginas, de março de 1998 a março de 2017.

As perspectivas históricas da psicopatologia sempre foram consideradas imprescindíveis para a empreitada a que se propunham os fundadores da revista, algo evidente desde o primeiro número da RLPF. No número inaugural, Berlinck (1998)Berlinck, M. T. (1998). O que é Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 46-59. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001004.
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assinalava a historicidade da atividade clínica, discutindo o conceito de posição e seus desenvolvimentos em pathos e logos, pontos cruciais para definir a sua concepção de psicopatologia. Ali mesmo, Mário Eduardo Costa Pereira indicava como uma das tarefas primordiais da psicopatologia fundamental “o trabalho de constante delimitação teórica entre as diversas disciplinas envolvidas no campo da psicopatologia, o que implica uma perspectiva histórica e crítica” (1998, p. 60). O protagonismo de Mário Pereira na concepção e execução do projeto geral da RLPF deve ser ressaltado, tendo sido ele também o editor da primeira seção histórica da revista, ‘Clássicos da Psicopatologia’, de 1998 a 2012, onde apresentou e publicou excertos de obras essenciais do século XIX e início do XX.

A seção ‘História da Psiquiatria’ teve início em 2004, editada por mim e por Paulo Dalgalarrondo, e a princípio era dedicada à história da psicopatologia e da psiquiatria no Brasil, tendo mais tarde ampliado seu escopo para acolher colaborações recebidas de outros países, em múltiplas perspectivas (história conceitual ou intelectual, social e cultural, das instituições). De 2006 a 2013, Paulo José Carvalho da Silva dirigiu ‘Medicina da Alma’, importante seção dedicada a escritos psicopatológicos (em amplo sentido) anteriores à constituição da medicina e da psicologia modernas. Desde 2011, a seção ‘História da Psicopatologia’/‘Clássicos da Psicopatologia’ vem sendo coordenada por German Berrios e se dedica à história conceitual da psicopatologia descritiva dos séculos XVIII a XX, destacando-se as traduções para o português de vários trabalhos seminais de Berrios, já publicados em inglês desde a década de 1980.

Assim, em certo momento, a revista chegou a ter quatro seções concomitantes dedicadas às histórias dos chamados saberes ‘psi’, todas primando pela qualidade de suas publicações. Tal investimento não tem sido em vão, igualmente, em termos quantitativos: em revisão da produção na área da história da psiquiatria, da psicanálise e da psicologia, computando artigos em revistas científicas entre 2004 e 2009, Lima e Holanda (2010)Lima, A. de A.; Holanda, A. F. (2010). História da psiquiatria no Brasil: uma revisão da produção historiográfica (2004-2009). Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 572-595. encontraram 57 publicações, sendo que a RLPF foi a que mais concentrou artigos, vinte ou 36% do total (a segunda foi História, Ciências, Saúde Manguinhos, da COC/Fiocruz com 21% e a terceira a revista do Instituto de Psicologia da UERJ, Mnemosine, com 10,5%). Para obter um panorama quantitativo aproximado da produção da revista na área histórica, levantei ainda na coleção da SciELO os artigos da seção ‘Clássicos da Psicopatologia’ que, desde o número 3 de 1998 até o último número de 2003, editou 22 artigos originais, acompanhados da republicação de 26 textos clássicos. E, de março de 2010 a março de 2017, encontrei mais 45 artigos originais nas quatro seções históricas da RLPF, além de 22 publicações de fontes primárias. Somam-se, então, mais de 130 publicações relacionadas à história do campo ‘psi’, entre artigos originais e fontes, de 1998 a 2017.

Em síntese, fica evidente que, ao longo dos quase vinte anos de existência da RLPF, temos uma produção significativa e constante de artigos de cunho histórico, um expressivo aporte para a história da psicopatologia e das áreas em que as diversas vertentes psicopatológicas se constituem e se articulam com práticas institucionais e campos acadêmicos e profissionais, na psiquiatria, na psicologia e na psicanálise. Parece-me que o conjunto de trabalhos aqui publicados, que se ocupam de vários objetos de pesquisa e são feitos a partir de perspectivas historiográficas diversas, tem valor intrínseco no próprio âmbito da história, em especial na história das ciências e da saúde. Além disso, podem dar subsídios para o atual exercício de uma prática clínica refletida e crítica, que conheça a historicidade de sua própria posição e esteja aberta a avaliar posições contraditórias e mesmo antagônicas dentro do vasto campo teórico-prático da saúde mental.

A história da psiquiatria, nas palavras de Rafael Huertas, “puede llegar a cumplir un papel epistemológico de primer orden al explicar por qué los profesionales de la salud mental hacen lo que hacen en su práctica cotidiana, y dicen lo que dicen al construir edificios conceptuales más o menos sólidos, más o menos acabados” (2017, p. 242). Considerando que estamos tratando de um campo no qual tanto as ciências humanas quanto as ciências biológicas devem ser mobilizadas para dar conta de seu múltiplo objeto, a mente humana, compor o discurso psicopatológico a partir destas diferentes vertentes requer constante reflexão histórica e epistemológica, se partirmos do suposto de que os ditos transtornos mentais não são objetos naturais, mas objetos híbridos, com elementos originários dos mundos natural e social, como observam oportunamente Rafaela Zorzanelli e Cláudio Banzato (2017)Zorzanelli, R.; Banzato C. E. M. (2017). Epistemologia, história e a linguagem da psicopatologia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20 (2), 383-402. na resenha sobre o livro de G. Berrios, Rumo a uma nova epistemologia da psiquiatria, publicada no presente número da RLPF.

Ainda sobre a história da psiquiatria, vale destacar que ela é tão múltipla quanto seu objeto de estudo: atualmente, uma gama de diversos enfoques históricos tem se desenvolvido com vigor, advindos de certas tradições historiográficas revisionistas ou críticas surgidas nas últimas décadas (Huertas, 2017Huertas, R. (2017). Otra historia para otra psiquiatría (pp. 239-269). Barcelona: Xoroi Edicions.). Isto reforça a importância do espaço que a RLPF dedica à história, possibilitando que venha a abrigar em suas páginas ainda mais colaborações relevantes para o desenvolvimento desta área de pesquisa. Neste sentido, quero destacar a fundamental colaboração dos revisores externos na análise dos artigos submetidos à publicação na seção ‘História da Psiquiatria’, avaliando os textos em sua relevância, sua originalidade, uso adequado de métodos e fontes, quanto à atualização bibliográfica e à fundamentação argumentativa e, por último, mas não menos importante, quanto à linguagem (estilo, concisão, clareza, coesão e coerência textuais).

Este último ponto, o do cuidado com a linguagem utilizada não me parece supérfluo, sobretudo na área da psicopatologia. Mutatis mutandis, creio que poderia (ou deveria) ser aplicável aos textos científicos o que diz sobre a literatura um admirável intelectual brasileiro, Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017): “o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. (...). Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido” (Candido, 2011Candido, A. (2011). O direito à Literatura. In A. Candido, Vários Escritos (5ª edição, corrigida pelo autor; pp. 171-193). Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul., p. 180).

Retorno aos exemplares da minha estante e no primeiro número da RLPF reencontro o artigo de Jorge J. Saurí (1923-2003), psiquiatra, filósofo e historiador da psiquiatria. Nesse belíssimo texto sobre o teor ou a constituição essencial da terapêutica psiquiátrica, dizia ele que: “El malestar esperanzado, el pedido y la respuesta apropiada, notas de la labor terapéutica, convergen en la configuración de un momento estructural en el cual es posible diferenciar una posibilidad terapéutica, y una búsqueda de significancias compartidas” (Saurí, 1998Saurí, J. J. (1998). Tenor de la terapéutica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 9-28. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001002.
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, p. 13).

Apropriando-me da expressão de Saurí, penso que tem sido também sob o efeito de certo estado de “malestar esperanzado” (e, por isso mesmo, criativo) que nós, autores, consultores externos e editores (sem esquecer de revisores, tradutores e demais trabalhadores do mundo editorial impresso e virtual, além do apoio financeiro das agências de fomento científico) nos lançamos e cumprimos conjuntamente as árduas, mas recompensadoras tarefas de escrever, avaliar e editar os textos que deram realidade e concretude aos mais de oitenta exemplares da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Recorramos às insuspeitadas forças que brotam do estado de mal-estar esperançoso, neste momento tão duro pelo qual no Brasil passam a universidade, a ciência e, enfim, a sociedade, e sigamos!

Referências

  • Berlinck, M. T. (1998). O que é Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 46-59. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001004
    » https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001004
  • Candido, A. (2011). O direito à Literatura. In A. Candido, Vários Escritos (5ª edição, corrigida pelo autor; pp. 171-193). Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul.
  • Huertas, R. (2017). Otra historia para otra psiquiatría (pp. 239-269). Barcelona: Xoroi Edicions.
  • Lima, A. de A.; Holanda, A. F. (2010). História da psiquiatria no Brasil: uma revisão da produção historiográfica (2004-2009). Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 572-595.
  • Pereira, M. E. C. (1998). Formulando uma Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 60-76. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001005
    » https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001005
  • Saurí, J. J. (1998). Tenor de la terapéutica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 9-28. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001002
    » https://dx.doi.org/10.1590/1415-47141998001002
  • Zorzanelli, R.; Banzato C. E. M. (2017). Epistemologia, história e a linguagem da psicopatologia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20 (2), 383-402.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2017
  • Aceito
    29 Maio 2017
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