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Futuros possíveis para a Teoria do Trauma para a teoria do trauma

Beulens, Gert; Durrant, Sam; Eaglestone, Robert. The future of Trauma Theory: Contemporary Literary and Cultural CritiscimLondon/New York: Routledge, 2014182

Costuma-se denominar por Trauma Studies (Estudos sobre o Trauma) um conjunto de pesquisas interdisciplinares estadunidenses e europeias — notadamente influenciadas pela Psicanálise e pela Teoria Literária — que se valem do conceito de trauma como uma chave de leitura e análise das grandes “catástrofes” que marcaram o século XX e início do século XXI. Os trabalhos fundadores deste campo, e ainda hoje reconhecidos como canônicos, foram desenvolvidos por Cathy Caruth, Soshana Felman, Dori Laub, Dominick LaCapra e outros durante os anos 1990. Tais estudos tiveram como foco principal a Shoah , o holocausto judaico, e foram fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas sobre a relação entre trauma, violência, testemunho e história. Ainda que a maior parte permaneça indisponível em língua portuguesa, alguns capítulos de livros foram traduzidos e publicados como parte da coletânea Catástrofe e representação (Nestrovski & Seligmann-Silva, 2000Nestrovski, A. R., Seligmann-Silva, M. (2000). Catástrofe e representação . São Paulo, SP: Escuta.), a qual, por sua vez, tornou-se uma espécie de obra seminal dos Estudos sobre o Trauma em território brasileiro.

Com a consolidação do campo e a consequente profusão do significante “trauma” pelas ciências humanas, os Trauma Studies tornaram-se também alvo de diversas críticas, dentre as quais se destacam aquelas oriundas dos estudos pós-coloniais, focadas essencialmente em tornar visível e examinar o caráter estadunidense-eurocêntrico arraigado nas bases fundantes dessas pesquisas. De forma geral, há um consenso entre os autores pós-coloniais de que a centralidade dos estudos sobre o Holocausto (e do 11 de setembro, pode-se dizer também) limitaria substancialmente o alcance das análises baseadas no conceito de trauma para outros contextos, como países africanos e do Oriente Médio, onde as marcas subjetivas da colonização se refletem de maneiras bastante distintas, inclusive do ponto de vista psicopatológico. Para que isso se torne possível, o modelo do traumatismo baseado na vivência de um ou mais eventos aterrorizantes, inesperados e incontroláveis precisaria ser revisto para contemplar situações em que o contato com a violência extrema se daria de forma estrutural ou mesmo contínua.

O livro The Future of Trauma Theory: Contemporary Literary and Cultural Criticism , organizado por Gert Buelens, Sam Durrant e Robert Eaglestone, tem justamente nessas críticas o seu ponto de partida. No entanto, como observa Michael Rothberg no prefácio, o objetivo geral da coletânea de ensaios não é ratificá-las ou rebatê-las, mas apontar novos caminhos capazes de reafirmar a potência dos Trauma Studies , alargando seus horizontes no quadro geral dos estudos pós-coloniais. Em outras palavras, não se trata de advogar a supressão da dimensão traumática das análises históricas e sociológicas, mas de politizar a própria noção de trauma, de modo a mantê-la como uma ferramenta útil para a compreensão das relações subjetivas entre violência e memória em contextos não ocidentais.

Os dez capítulos que compõem o livro estão divididos em duas seções. A primeira, intitulada “History and Culture”, reúne ensaios que buscam explicitar como as narrativas pós-traumáticas de países não ocidentais desafiam as noções tradicionais de testemunho, elaboração e sofrimento, convocando um reposicionamento crítico da teoria. Entre os temas de exame encontram-se a literatura libanesa pós-guerra civil, a poesia talibã, a construção do Museu do Genocídio Tuol Sleng no Camboja, e o estilo de música e dança angolanos Kuduro. Já a segunda seção, “Politics and Subjectivity”, dá lugar a ensaios acentuadamente teóricos que focam as transformações da relação entre Estado, comunidade e subjetividade características do mundo globalizado, e as consequentes novas formas de violência surgidas nessa conjuntura. A questão dos refugiados é discutida, a partir da obra de Hannah Arendt, assim como as relações entre trauma e a biopolítica, o sujeito desaparecido como figura paradigmática da política contemporânea, além da ficção científica como um gênero narrativo inexplorado, mas, potencialmente profícuo para os estudos do trauma.

À primeira vista, The Future of Trauma Theory pode parecer desafiador, já que se insere em um debate ainda pouco traduzido no país e não traz discussões relacionadas diretamente ao contexto brasileiro ou mesmo latino-americano. Todavia, considerando que os estudos sobre trauma vêm ganhando especial importância e visibilidade desde o aniversário de 50 anos do golpe civil-militar de 1964, é necessário que reflitamos sobre as potências e os limites dessas análises para a compreensão das lógicas de reprodução da violência no Brasil e seus efeitos em nível psicopatológico. Afinal, se o modelo baseado em evento(s) é conveniente para análises sobre os efeitos da violência de Estado característicos da ditadura civil-militar; violências estruturais e muitas vezes naturalizadas — como o racismo e o sexismo, por exemplo — certamente demandam uma aproximação diferenciada, que apenas o diálogo interdisciplinar pode oferecer.

De forma resumida, pode-se dizer que The Future of Trauma Theory propõe um desafio aos pesquisadores da psicanálise e da psicopatologia fundamental no Brasil: não apenas considerar a noção de trauma como uma ferramenta útil na análise das formas de mal-estar na cultura brasileira contemporânea, mas, também, refletir sobre a própria singularidade do nosso contexto como possibilidade de construção crítica de uma teoria psicanalítica não colonizada.

Referências

  • Nestrovski, A. R., Seligmann-Silva, M. (2000). Catástrofe e representação . São Paulo, SP: Escuta.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2017
  • Aceito
    29 Mar 2017
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