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Os impasses e possibilidades da clínica psicanalítica em uma instituição oncológica*1 *1 Artigo baseado na dissertação de mestrado de Luzia Rodrigues Pereira, intitulada Uma experiência de clínica psicanalítica em hospital oncológico, defendida em julho de 2015 no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação de Ana Maria Medeiros da Costa.

The impasses and possibilities of the psychoanalytic clinic in an oncological institution

Défis et possibilités de la clinique psychanalytique dans un centre d’oncologie

Las dificultades y posibilidades de la clínica psicoanalítica en una institución oncológica

Sackgassen und Perspektiven der psychoanalytischen Klinik in einer onkologischen Institution

Resumos

Este artigo busca, a partir de uma experiência em um hospital oncológico, pensar os impasses e possibilidades da clínica psicanalítica na instituição. Através de duas vinhetas clínicas situa o trabalho num enlaçamento clínico e institucional. O intuito é o de apontar a tarefa do analista de transmitir algo da singularidade do sujeito à equipe, incluindo-a no tratamento.

Psicanálise; hospital; transferência; equipe


This paper reflects about impasses and possibilities of the psychoanalytic clinic in an oncological hospital. The analysis of two clinical vignettes revealed that this kind of work is influenced by both clinical and institutional factors. To conclude, we point out that it is part of the analyst’s task to draw the attention of the medical team to the singularity of the subject as far as possible, so that it may be included in the treatment.

Psychoanalysis; hospital; transfer; team


À partir d’une expérience dans un hôpital du cancer, cet article cherche à réfléchir sur les défis et les possibilités de la clinique psychanalytique dans l’institution. Axé sur deux cas cliniques, il situe le travail entre la clinique et l’institution. Ce travail a pour but de mettre en évidence la tâche de l’analyste, soit de transmettre à son équipe une idée concise de la singularité du sujet pour que celle-ci puisse être intégrée au traitement.

Psychanalyse; hôpital; transfert; équipe


Este artículo busca, a partir de una experiencia en un hospital oncológico, pensar en las dificultades y posibilidades de la clínica psicoanalítica en la institución. A través de dos viñetas clínicas, sitúa el trabajo en un entramado clínico e institucional. La intención es apuntar la tarea que tiene analista de transmitirle, al equipo, algo de la singularidad del sujeto, incluyéndolo en el tratamiento.

Psicoanálisis; hospital; transferencia; equipo


Dieser Artikel stellt aufgrund einer Erfahrung in einer Krebsklinik Überlegungen auf zu den Sackgassen und Perspektiven der psychoanalytischen Klinik in dieser Art von Anstalten. Anhand von zwei klinischen Vignetten wurde festgestellt, dass diese Art von Tätigkeit sowohl von klinischen, als auch von institutionellen Faktoren beeinflusst wird. Ziel des Artikels ist es, auf die Aufgabe des Analytikers hinzuweisen, d.h., soweit wie möglich die Besonderheit des Subjekts an das medizinische Team zu übermitteln, um diese dadurch in die Behandlung einbeziehen zu können.


Busca-se pensar que as funções do psicanalista no hospital, precisamente em uma instituição oncológica, onde o trabalho é desenvolvido, precisam ser consideradas para além do atendimento clínico individual ao paciente. Muitas vezes é impossível que o trabalho se dê de forma isolada, deve-se também levar em conta toda a rede de relações entre as equipes da instituição.

Objetiva-se discorrer sobre esse trabalho, que não se dá de forma isolada, mas como uma construção importante a ser estabelecida com a equipe. Serão mencionadas algumas especificidades da transferência na instituição oncológica e com a equipe, buscando elucidar os impasses e possibilidades do trabalho do psicanalista no hospital. Considera-se que o mesmo é clínico e também institucional. Quando ambos caminham juntos, a assistência ao paciente se torna mais efetiva, como será ilustrado em duas vinhetas clínicas.

A experiência clínica tem mostrado que a atuação do psicanalista no hospital oncológico depende do lugar que o mesmo ocupa na equipe, permitindo que o ato clínico, em algumas situações, se viabilize ou não. E esse lugar na equipe não é dado a priori, é construído ao longo de um percurso que viabiliza também a criação de uma relação transferencial com a equipe.

Diante de diversos discursos e saberes presentes num hospital, o psicanalista é convocado cotidianamente a construir novos dispositivos clínicos. A transferência, em tal contexto, situa-se para além do espaço do consultório. Nesse sentido, o trabalho psicanalítico no campo da instituição de saúde mental, e mais especificamente da psicose, é profícuo como modelo para a reflexão de que o conceito de transferência teve de ser singularizado para incluir o psicótico no tratamento na instituição.

Segundo Viganò (2006Viganò, C. (2006). Da instituição ao discurso em Mental. Revista de saúde mental e subjetividade da UNIPAC, IV(6), 33-40. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1679-44272006000100004&script=sci_arttext.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid...
, p. 33), uma nova linha de impacto com as instituições nasce quando o psicanalista começa a pensar, nos termos de sua experiência, sobre o tratamento da psicose. Esse campo ratifica que o trabalho do psicanalista pode ter uma função importante em outras instituições, não apenas às destinadas ao tratamento da psicose, mas também na instituição hospitalar cuja especialidade é o tratamento do câncer, que acomete diferentes estruturas clínicas.

Em Freud (1912/1996aFreud, S. (1996a). A dinâmica da transferência. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (pp. 109-122). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)., p. 113) é apontada a existência da transferência psicanalítica. Ele não só aborda a transferência como a resistência mais poderosa ao tratamento, como também ressalta que não é um fato que a transferência ocorra com maior intensidade e ausência de coibição no tratamento psicanalítico que fora dele. Freud cita Gabriele Reuter, que descreveu, anteriormente à psicanálise, a natureza da gênese das neuroses. E, com isso, alerta que as características da transferência, presentes também nas instituições, não devem ser atribuídas à psicanálise, mas sim à própria neurose.

Já em 1918 (p. 117), Freud relata que as instituições não analíticas, que tratam doentes nervosos, cometem um erro econômico quando têm o propósito de tornar tudo tão agradável quanto possível para o paciente, de modo a este poder sentir-se bem ali e utilizá-la como refúgio frente às dificuldades da vida. Aponta ainda os riscos de uma instituição manter o paciente a certa distância da vida. Adverte que é irrelevante o paciente superar seu medo e ansiedade na instituição, o importante é que os supere em sua vida real.

Desde Freud já é sabido que não se deve visar transformar o paciente, tomar decisões por ele e impor-lhe ideais. Segundo o mesmo, a manifestação da transferência negativa, ou seja, os impulsos hostis dirigidos a outra pessoa, é um acontecimento muito comum nesses contextos e afasta o sujeito de tais locais. Já a transferência erótica não seria impeditiva de manter o sujeito na instituição, visto que essa modalidade transferencial costuma ficar encoberta, em vez de ser revelada. Ela não afasta o sujeito da instituição, mas, ao contrário, o retém ali por mantê-lo a certa distância da vida.

No hospital oncológico, tal como constatado por Freud, presenciam-se as transferências negativas e as positivas com a equipe. Tais vínculos muitas vezes são evidenciados tanto pela dificuldade de adesão ao tratamento, assim como no sentido do recebimento da alta hospitalar, pelo fato de os pacientes encontrarem na instituição a identificação aos pares ou, ainda, pela existência de uma fantasia de recidiva da doença, caso se afastem do hospital.

É sabido que um paciente acometido por câncer procura o hospital em busca de um saber médico que possa curá-lo ou mitigar o avanço da doença. O encontro com o psicanalista muitas vezes se dá por intermediação do médico ou de outros profissionais aos quais o paciente muitas vezes já construiu um vínculo transferencial.

A presença do psicanalista na equipe, em sua prática com os pacientes e familiares, favorece para que, em algumas situações, algo da transmissão da psicanálise ocorra. É através da sua presença que a demanda pode ser construída. Por vezes, essa presença precisa incidir sobre algumas certezas, abrindo espaço para o campo da subjetividade, de forma a sustentar a presença de um saber outro, diferente do saber oferecido pelo campo médico.

Como ressalta Lacan (1967/2003Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In Outros Escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1967).), cabe ao psicanalista que trabalha na instituição, ao fundamentar sua prática, a tarefa de presentificar a psicanálise no mundo, ou seja, promover a extensão da psicanálise e, para tal, torna-se necessário o estabelecimento da transferência. Como também afirmado por Lacan, no começo da psicanálise está a transferência (Ibidem, p. 252) e, desde que haja, em algum lugar, o sujeito suposto saber, haverá a transferência (Lacan, 1963-1964/2008bLacan, J. (2008b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar (Trabalho original publicado em 1963-1964)., p. 226).

Conforme abordado neste artigo, a transferência pode existir em relação à instituição e com outros profissionais da equipe, ela é inclusive necessária ao tratamento, mas há uma diferença essencial no trabalho do psicanalista: é o manejo da transferência que possibilita e sustenta seu trabalho. E, para poder trabalhar, é fundamental que o psicanalista saiba em qual lugar é colocado pelo analisando em sua organização subjetiva. Destarte, diferente dos demais membros da equipe, é somente pela posição que lhe é dado pela transferência que o psicanalista pode exercer seu trabalho.

Além disso, é a partir da transferência, nas entrevistas preliminares, que o psicanalista pode levantar a hipótese diagnóstica que o orientará no manejo clínico e na busca do desvendamento da demanda do sujeito que, por sua vez, nem sempre coincide com a demanda da equipe.

No que diz respeito ao hospital em questão, o primeiro encontro com o psicanalista acontece não só pelo encaminhamento da equipe, mas também por um protocolo hospitalar cujo regimento é de que todos os pacientes que farão cirurgia sejam submetidos a uma rotina de pré-operatório, na qual se inclui um primeiro atendimento no setor de psicologia. Nessas duas situações, a queixa que é endereçada ao psicanalista, num primeiro momento, nem sempre é a do paciente. Tal fato, no entanto, não é impeditivo para o trabalho do psicanalista no contexto hospitalar, pois é através da oferta que pode ser criada uma demanda do sujeito.

Por outro lado, é descabido partir do pressuposto de que todo sujeito acometido por um câncer necessita de um psicólogo ou deseja tê-lo. Cabe colocar a escuta à disposição do sujeito, pois cabe a ele a decisão quanto ao início de um tratamento, ou seja, se retornará ou não, e quando o fará. Não se pode prever de antemão o que fará questão de análise para um sujeito. Segundo Leite (2011Leite, S. (2011). Angústia. Coleção Psicanálise Passo a Passo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 81) não se trata de receitar psicanálise para todos. Para a autora a razão de não universalizar tal indicação não é porque existam restrições ao tratamento de determinados problemas, mas porque são indispensáveis o engajamento e a responsabilização do paciente para que assim possa, de fato, uma pessoa ser beneficiada por essa forma de tratamento.

Se, com a associação livre, Freud dá lugar à palavra, cabe inseri-la no contexto hospitalar para quem assim o desejar. É necessário um tempo de fala para o manejo da transferência para que algum saber seja suposto ao psicanalista, e o paciente elabore sua própria demanda, diferente da demanda do encaminhamento da equipe, a partir da qual possa começar a se implicar no seu sofrimento.

Cabe perguntar sobre qual é o lugar que a instituição ocupa para o sujeito. Ou seja, saber qual é o seu lugar na condução dos casos e os efeitos do tratamento oncológico para cada um é o que possibilita, enquanto operador institucional, formas de singularizar a assistência ao sujeito no contexto hospitalar. Isso não pode ser feito sem um trabalho em equipe, que dá suporte às ações clínicas, inclusive às que se permitem ir além do modelo protocolar e burocrático instituído.

Quando há possibilidade de intervenção da psicanálise no hospital oncológico, o que se propõe é que o discurso circule entre os diversos segmentos institucionais. Torna-se premente que a instituição possa abrir espaço para as exceções pois, em alguns casos, o que não é raro, o tempo de elaboração do paciente difere do tempo protocolar e institucional. Entretanto, vale lembrar que não se pretende, aqui, inviabilizar que a instituição exerça sua função de tratar o câncer ou de cumprir os protocolos essenciais à sobrevivência do paciente. Não se objetiva, de forma alguma, transformar o hospital oncológico em um lugar para tratamento exclusivamente psicanalítico, porém pode-se viabilizar que a fala do sujeito seja incluída em algumas circunstâncias como campo prático de trabalho da equipe. É preciso sustentar que há um saber que é próprio da instituição, mas há outro, que está do lado do paciente e que não pode ser desvencilhado do seu tratamento.

As situações que se apresentam na clínica são sempre singulares e inusitadas porque lançam todos e cada um ao trabalho de dar-lhes novo sentido, modificar ou simplesmente suportar seus efeitos. O desafio do psicanalista é transmitir a noção de singularidade da fala do sujeito aos profissionais que tendem, e que, muitas vezes, necessitam padronizar o trabalho por protocolos. Tarefa nada simples que exige de forma contundente, do ponto de vista do psicanalista, a articulação tão fundamental entre supervisão, análise pessoal e estudo teórico da psicanálise.

O discurso do psicanalista, muitas vezes, causa o impacto da destituição de um saber que se pretende completo, e, isso, em uma doença na qual esse saber completo em si já é inexistente, inclusive para a medicina, pois, contra o câncer, em algumas situações, não se pode tudo. Existe um limite, algo que é impossível assimilar em oncologia, um impossível de curar em muitos casos.

Almeja-se um trabalho em equipe que atue como uma construção coletiva de um saber que não é sobre o paciente, mas que se constrói a partir de uma fala que ele próprio nos endereça. Para a psicanálise, a realidade abordada é a realidade psíquica, diferentemente da equipe de saúde que trabalha com dados factuais, diagnósticos por imagens, questionários objetivos, dentre outros dados verificáveis. É na produção de giros nos discursos, pela consideração de cada caso singular, que algo do discurso do psicanalista pode operar.

Cabe sustentar o desejo singular dos pacientes, mesmo que esse desejo não esteja de acordo com o ideal de tratamento planejado pela equipe. Faz-se necessário não reduzir os impasses a respostas padronizadas e soluções objetivas, mas sim problematizá-los de maneira que eles possam se transformar em questões para a equipe.

De acordo com Elia (2004)Elia, L. (2004, out-dez). Responsabilidade do sujeito e responsabilidade do cuidado no campo da saúde mental. Academus: Revista Científica da SMS, 3(4), Recuperado de: <&lt;http://www.saude.rio.rj.gov.br/media/responsabilidade_do_sujeito.pdf.
http://www.saude.rio.rj.gov.br/media/res...
, o trabalho de um membro da equipe deve ser partilhado e respeitado pelos demais. Necessita, acima de tudo, ser sustentado por um eixo ético, que é também teórico-clínico. Esse membro deve se sentir autorizado a tomar um caso em responsabilidade, uma noção de autorização que seja contrária à da autoridade permissiva ou proibitiva.

Logo, a forma supracitada de parcerias de trabalho em uma instituição aponta para novas saídas nas intervenções clínicas nesse espaço. Alguns casos clínicos necessitam ser tomados por todos na instituição de forma a ajudar ao sujeito a suportar o adoecimento e a criar soluções inventivas para o mesmo e para o tratamento, comumente bastante invasivo.

Em seguida serão abordadas duas vinhetas clínicas que visam apontar não apenas a escuta e as intervenções clínicas com o paciente, mas também a ação com a equipe do hospital. Muitas condutas clínicas não são possíveis sem o consentimento ou a parceria de trabalho estabelecida com as equipes. As duas vinhetas serão nomeadas com significantes tomados de empréstimo das próprias pacientes.

“Um atropelo” e suas consequências

Após terminar a quimioterapia para redução de um câncer de mama, foi proposto para V uma mastectomia. Diante de sua recusa de realizar o procedimento, a mastologista encaminhou a paciente à psicologia, com um pedido informal de que eu “a convencesse” da necessidade do procedimento. A médica afirma que havia reforçado várias vezes para a paciente que aquela cirurgia seria “para o bem dela [pois] a doença iria voltar e ela morreria se não o fizesse”.

A médica posicionava-se como detentora do saber sobre o que seria melhor para a paciente, independente do desejo da mesma. Além disso, o pedido da profissional era de que eu seguisse essa mesma direção, a do convencimento. Nada mais distante do trabalho orientado pela psicanálise! Segundo Costa (1998Costa, A. (1998). A ficção do si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 40) a medicina fundamenta sua terapêutica na objetividade do corpo, pilar de seu sistema conceitual, no entanto, os discursos e os sintomas abrem alguns paradoxos nessa medida de intervenção do corpo.

Tinha clareza de que me cabia, sim, ouvir a paciente, seguir a direção indicada pela mesma, pois dependeria dela a decisão de operar ou não. Desejo de curar e desejo de saber marcam posições discursivas distintas que caracterizam o discurso médico e o discurso do psicanalista. Foi necessário recuar de ocupar o lugar do Outro do discurso do mestre e possibilitar que a paciente pudesse tomar a palavra.

Ao ouvi-la, ela logo me questionou de forma pouco receptiva: “Eu sei, tive que vir aqui para você também me convencer. Vai falar que preciso fazer essa cirurgia.” Busquei sair o quanto antes desse lugar e disse a ela que eu estaria ali para escutá-la e não para decidir por ela. Almejava buscar um outro lugar na transferência. “Não é possível reduzir a função do desejo fazendo-a surgir, emanar, da dimensão da necessidade” (Lacan, 1959-1960/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Original publicado em 1959-1960)., p. 248).

V, um pouco mais à vontade, solicita, então, que a cirurgia, agendada para a semana subsequente, fosse adiada. “Não estou pronta pra isso agora”, afirma. Entro em contato com a mastologista, que havia me encaminhado a paciente. Ela, no entanto, não aceita a flexibilização desse tempo e mantém a data proposta, sob a alegação de que não poderiam ultrapassar um prazo estabelecido pelo protocolo hospitalar após o término da quimioterapia. Justifica que “A doença dela pode voltar, ela teve resposta completa à qt neo (referia-se à quimioterapia) e temos que seguir o prazo do nosso protocolo”. Sob uma ética universal do bem-estar, parece não poder existir contestação, cabendo à paciente unicamente se adaptar e acatar o prazo pré-estabelecido.

Pontuei, no intuito de sensibilizar a médica para a singularidade do sujeito, que não caberia convencer a paciente, visto que o tempo solicitado seria importante para que ela pudesse falar, elaborar e ter clareza sobre a escolha de operar ou não. Apesar disso, a data da cirurgia não foi alterada.

A paciente V, ainda no instante de ver,1 1 Conforme tríade temporal sugerida por Lacan (1945/1998), que elucida uma lógica na experiência subjetiva do tempo. Esses são: instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir. foi para o centro cirúrgico, e, poucos minutos antes da anestesia, começou a ter um “comportamento psicótico [pois] não falava, segundo a descrição da equipe que iria operá-la. A equipe a partir desse acontecimento solicita “avaliação da psicologia para decidir se ela seria operada ou não”. Vale ressaltar que a mastologista, que agendou a cirurgia da paciente, não estava presente nesse dia.

A paciente foi, então, levada para a enfermaria, onde a atendi. Não emitia nenhuma palavra. Comecei a falar com ela. Disse que supunha o quanto a cirurgia era difícil naquele momento, que eu ainda gostaria de ouvi-la, para que ela pudesse falar dos receios relacionados a esse procedimento, e que me lembrava do seu desejo de que o procedimento fosse adiado. Apontei, ainda, que eu estaria ali para assegurar o seu desejo até que ela mesma pudesse falar.

Conversei com a equipe médica, ressaltei a importância de terem ‘escutado’ sua impossibilidade de falar, de haverem percebido ‘algo estranho’, como disse uma mastologista, e de ter-se interrompido o procedimento. Pontuei ainda que, de fato, não era o momento de fazer a cirurgia. Com essa intervenção, buscava apontar para a equipe um ‘para além’ daquilo que seria considerado o bem para o paciente.

Após a chegada de seus familiares, V começou a falar. Teve a cirurgia cancelada, mas, antes de sair do hospital, pediu para me chamar e me disse: “Entendi tudo o que você me disse, só que não podia falar. Segurou firme a minha mão e acrescentou: “Obrigada.

Sua fala, em um primeiro momento, não foi valorizada pela mastologista; seu pedido não foi reconhecido, e ela precisou usar o próprio corpo para se manifestar. Não recuou diante de seu desejo de postergar a cirurgia, ainda que para isso tivesse tido que abrir mão da própria fala, que não teve efeitos em um primeiro momento.

Retomou os atendimentos comigo no ambulatório, angustiou-se com a possibilidade da “mutilação” como ela nomeou a mastectomia, falou de seu desejo de morrer com o “corpo perfeito, como Deus me deu” e nomeou a tentativa de operar anteriormente e de ter se internado como um “atropelo do meu marido e da médica que não ia dar certo. Reconheceu que estava, nesse atropelo, fora de seu tempo, à mercê do tempo deles, mas, aos poucos, começou a dizer de seu desejo de viver.

Certo dia, ao falar do câncer e do horror que a doença despertou nela, questionei o que significava o câncer para ela. Diante da sua resposta, “uma doença maldita que mata, interrompi a sessão.

Na sessão seguinte, começou a falar do desejo de ver o neto crescer, de permanecer junto ao esposo e satisfazer o desejo do mesmo de que ela operasse (agora não mais o desejo do esposo, mas o desejo da própria paciente em satisfazê-lo). Precipitou, não sem angústia, mas certa de seu desejo de se submeter à cirurgia. Será “A perda mais difícil da minha vida, vou fazer isso pelas pessoas que eu amo, pois não quero e nem posso morrer por agora”. Não mais atropelada, assumiu a direção de seu tratamento. “É em relação com a articulação significante que ele, como sujeito, surge como sua consequência” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 263).

A “doença maldita que mata, foi preciso falar dela. Contornar esse real imposto pelo câncer através do simbólico, para então agir, realizando a cirurgia. Conseguiu relativizar, consentir com a perda em nome do amor. Para ir do “mal dito” ao “bem” dizer, foi preciso elaborar sobre o adoecimento e seus riscos, o corte da sessão pôde produzir um efeito, precipitando sua própria conclusão.

A ética do bem-dizer está em disjunção a uma ética do bem-estar, preconizada pela OMS e tão presente no hospital. O trabalho do psicanalista é também o de promover certo deslocamento discursivo para romper com práticas normativas que anulam o sujeito. Trata-se de uma aposta, sustentada na ética do desejo, de intervenção nas equipes que precisa reconhecer um para além da busca pelo bem do paciente.

A vinheta clínica, em resumo, aponta duas situações diferentes em que a mesma paciente foi encaminhada para o “setor de psicologia”. Na primeira, a solicitação da mastologista era de que eu convencesse a paciente a fazer a mastectomia, ela se deteve apenas ao subsídio teórico e protocolar que norteia sua prática. Havia uma recusa à subjetividade da paciente para integrá-la à ordem médica. Apesar do encaminhamento à psicologia, essa médica não aceitou um saber diferente do seu: o da paciente que solicitou um tempo antes de fazer a cirurgia. Não foi possível um trabalho em equipe, terminando a psicanalista por fazer um trabalho solitário e isolado de escutar a paciente. Ou seja, a clínica sem a instituição, ainda que inserida na mesma.

O segundo encaminhamento se dá após a saída da paciente do centro cirúrgico e vem com a solicitação de uma avaliação se a paciente poderia ou não se submeter à cirurgia. Em ambos os casos a paciente foi encaminhada, o que difere é a postura do médico em relação à subjetividade da paciente.

A segunda médica, por sua vez, que faria a cirurgia da paciente, pôde ouvir o corpo que se manifestou, já que a palavra, em um primeiro momento, não teve efeitos. Essa profissional possibilitou que a psicanalista operasse a partir de sua clínica, de forma a dar lugar ao sujeito que necessitava de tempo para fazer uma cirurgia. E concordou com a exceção ao cancelar a cirurgia da paciente para que fosse concedido certo tempo que esta desejava. Nesse outro momento, o trabalho em equipe foi possível, a vertente clínica e institucional seguiram a mesma direção.

Clínica e instituição são indissociáveis no trabalho do hospital, uma não se faz sem a outra nesse contexto. E muitas vezes a tarefa do psicanalista é a de tentar transmitir a vertente clínica para a instituição. O lugar do mesmo na equipe é também de trabalho, mas este não corresponde, necessariamente, ao lugar no qual a equipe o coloca e sua inserção só é possível a partir do estabelecimento de um campo de relação transferencial.

O psicanalista, no seu modo de resposta, por não encarnar a posição de saber, pode, possivelmente, operar a favor de que um giro discursivo acontecesse. Desse modo, sustentar o discurso analítico na equipe pode fazer girar o não saber, a não garantia e apontar para a responsabilidade que cada um de seus membros tem no cuidado ao paciente. O paciente deve ser considerado como da equipe, ou seja, onde todos profissionais devem ser responsáveis partilhando, assim, das decisões clínicas. Essa perspectiva inclui o próprio paciente, como veremos de forma bem elucidativa na próxima vinheta, que nos mostra que a presença do psicanalista na instituição visa possibilitar a inclusão de todos os participantes na cena em questão.

“Parto” para a mastectomia

N tem 68 anos. Nosso primeiro contato foi no atendimento inicial de pré-operatório na psicologia. Ela fez uma interpretação delirante para o tumor em sua mama, já avançado e perceptível: “Isso aqui é porque tô grávida, não tiraram o menino, ele fica com fome e tá mordendo meu peito por dentro”. Ela nunca havia feito acompanhamento psiquiátrico, embora a família percebesse um comportamento “muito estranho”, evidenciado, segundo a filha, desde longa data: “ela é assim desde que eu me entendo por gente, às vezes fala que é vereadora do lugar onde a gente mora, que tem muito poder, ela não conseguiu trabalhar, meu pai até deixou a gente, outra hora ela briga, fala que estão perseguindo ou atrás dela na rua”. Após ouvi-las, solicitei um adiamento da realização de sua cirurgia ao mastologista para encaminhá-la à psiquiatria na rede municipal e para continuar ouvindo-a um pouco mais.

Foi preciso seguir escutando N e apostar em alguma saída que seria indicada por ela própria. Aliás, já havia uma saída apontada para dar conta do mal-estar imposto no corpo pela mama já ulcerada, simbolizada por um menino comendo seu corpo por dentro.

O mastologista não só acatou como pediu que, junto ao seu encaminhamento, eu solicitasse um laudo da psiquiatria. Permaneci atendendo semanalmente N até que ela me disse: “Luzia, precisa tirar esse menino daqui, sinto muita dor, tá comendo meu peito todo. Questionei onde era a dor, e ela apontou a mama. Então perguntei se o peito poderia ser retirado, já que era onde sentia dor. Ela acenou positivamente com a cabeça. Concluí que essa era a forma de N me dizer de seu consentimento de realizar a cirurgia, e a encaminhei ao mastologista.

Ela permaneceu organizada psiquicamente pelo delírio da gravidez, do menino que passou dos nove meses. Ao encaminhá-la novamente para o mastologista, o mesmo questionou o laudo da psiquiatria, julgou-o insatisfatório, solicitou novamente a presença da psicologia e serviço social na pré-internação, alegando: “No laudo não tem argumentos conclusivos que garantam o bom andamento da cirurgia e pós-operatório. Está incompleto. Ele nos comunicou que cancelaria a cirurgia da paciente, demonstrando estar assustado com o que a mesma lhe dizia: “Precisa fazer logo o parto, tirar o menino que tá me comendo o peito.

Após um período de discussão, pudemos colocar em questão que o delírio era o que lhe possibilitava metaforizar algo daquela experiência, bem como questioná-lo: ela pode nunca parar de delirar, como ficaria o tratamento oncológico? Esse questionamento fez com que ele se implicasse e suportasse a ausência de garantias, que aliás está presente para todos os pacientes que se submetem a uma cirurgia. Não podemos nos esquecer de que há algo de imprevisível no que diz respeito ao sujeito.

O mastologista manteve a internação e a operou, a assistente social facilitou o acompanhamento dos familiares no curso da internação e eu a segui escutando/secretariando no período. Após a cirurgia, N começou a demonstrar mais cuidados com seu corpo, mudou a forma de se vestir, solicitou um sutiã com prótese: “Fui eleita, agora sou prefeita, preciso andar bem vestida, as pessoas não podem ver esse buraco aqui não. E gradativamente começou a ter maior adesão ao tratamento psiquiátrico em outra instituição, bem como ao oncológico.

Os casos de N e V, assim como de outras pacientes, ensinam que a conduta clínica na instituição é individual, e também coletiva. Não há garantias, pois um profissional não pode ocupar um lugar de garantir o bom andamento ou o sucesso do trabalho do outro, mas pode apostar no sujeito conjuntamente com a equipe. N, ainda que delirante, pôde dizer e consentir, a seu modo, com a cirurgia e isso precisou ser transmitido à equipe. Mas não bastou a transmissão, foi preciso se responsabilizar e participar de uma decisão que só foi possível coletivamente, cada um se comprometendo a exercer seu trabalho, sem exigir garantias à priori de quem quer que fosse.

Logo, o que sinaliza a existência da transferência é o efeito das intervenções do psicanalista em determinadas situações nas quais se faz presente. Para que o psicanalista possa ocupar seu lugar na instituição e exercer sua função, é necessário um trabalho de manejo das diversas demandas que lhe são direcionadas, tendo sempre como referência o desejo do sujeito escutado por ele. Diante dos inúmeros impasses, existem sempre muitas possibilidades para a prática do psicanalista no hospital, desde que não se perca de vista que seu trabalho é concomitantemente clínico e institucional.

Referências

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  • 1
    Conforme tríade temporal sugerida por Lacan (1945/1998Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Um novo sofisma. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1945).), que elucida uma lógica na experiência subjetiva do tempo. Esses são: instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir.
  • Financiamento/Funding: Os autores declaram não terem sido financiados ou apoiados / The authors have no support or funding to report.

Editado por

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    5 Nov 2017
  • Aceito
    20 Jan 2018
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