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“Bárbara-cena“: da imputabilidade penal à responsabilização subjetiva do criminoso psicótico*1 *1 Artigo desenvolvido a partir da dissertação de mestrado A imputabilidade penal na visão da psicanálise: a voz perdida do sujeito inimputável é possível encontrá-la, apresentada ao Programa de Pós-graduação – Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade, tendo sido defendida e aprovada em 2.6.2017.

“Bárbara-cena”: From penal responsability to subjective accountability of the psychotic offender

“Bárbara-cena”: de l’imputabilité pénale à là responsabilisation subjective du psychotique criminel

“Bárbara-cena”: de la imputabilidad penal a la responsabilidad subjetiva del criminoso psicótico

„Bárbara-cena“: von der Strafmündigkeit zum subjektiven zur-Rechenschaft-ziehen des psychotischen Verbrechers

Resumos

Pretende-se rediscutir neste artigo a questão da universalização da inimputabilidade penal do criminoso psicótico pretendida pelo artigo 26 do Código Penal Brasileiro e pela Psiquiatria Forense, à luz da experiência psicanalítica, em uma prisão em Minas Gerais. O caso do jovem universitário assassino J. C. ilustra a importância do método clínico psicanalítico no processo de responsabilização subjetiva do criminoso psicótico.

Psicanálise; imputabilidade penal; criminoso psicótico; responsabilização subjetiva


This paper intends to readdress the question of the universalization of the psychotic offender’s criminal incapacity intended by article 26 of the Brazilian Penal Code and by Forensic Psychiatry, in light of the psychoanalytic experience, in a prison in Minas Gerais state. The case of the young murderer college student J.C. illustrates the importance of the psychoanalytic clinical method in the process of subjective accountability of the psychotic offender.

Psychoanalysis; criminal capacity; psychotic offender; subjective accountability


Cet article est destiné à rediscuter la question de l’universalisation de la non-imputabilité pénale du psychotique criminel présumée dans l’article 26 du Code pénal brésilien et par la psychiatrie légale, à la lumière de l’expérience psychanalytique, dans une prison de Minas Gerais. Le cas du jeune universitaire meurtrier J.C. illustre l’importance de la méthode clinique psychanalytique dans le processus de responsabilisation subjective du psychotique criminel.

Psychanalyse; imputabilité pénale; psychotique criminel; responsabilisation subjective


En este artículo, se pretende rediscutir el tema de la universalización de la inimputabilidad penal del criminal psicótico, pretendida por el art. 26 del Código Penal Brasileño y por la Psiquiatría Forense, a la luz de la experiencia psicoanalítica, en una prisión en Minas Gerais. El caso de J.C., un joven universitario asesino, ilustra la importancia del método clínico psicoanalítico en el proceso de responsabilidad subjetiva del criminal psicótico.

Psicoanálisis; imputabilidad penal; criminoso psicótico; responsabilidad subjetiva


Dieser Artikel erörtert anhand der psychoanalytischen Erfahrung das Problem der Universalisierung der Strafunmündigkeit des psychotischen Verbrechers, welche vom Artikel 26 des brasilianischen Strafgesetzbuches und der Forensischen Psychiatrie vorgeschrieben wird. Der Fall des jungen Studenten und Mörders J. C. veranschaulicht die Bedeutung der psychoanalytischen klinischen Methode im Prozess des subjektiven zur-Rechenschaft-ziehen des psychotischen Verbrechers.


Imputabilidade é um conceito jurídico que pode ser entendido como o conjunto de condições pessoais que dão ao agente a capacidade de responder pela prática de um fato punível, ou seja, que tenha previsão legal. O inimputável aí tratado, é, por sua vez, aquele que Michel Foucault, nomeia, em seu curso no Collège de France (1974Foucault, M. (2001). Os anormais: curso no Collège de France. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1974).), de “anormal”, indivíduo a ser corrigido pela psiquiatria e pelo sistema penal.

No Brasil, o artigo 26 do Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940Brasil. Código Penal. (1940, dezembro). Decreto Lei n. 2.848. Parte geral da aplicação da lei penal. Recuperado de: <http://www.oas.org/juridico/mla/pt/bra/pt_bra-int-text-cp.pdf.
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), tratando da questão da imputabilidade penal, dispõe que “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento”.

Percebe-se que esse artigo concentra-se em fixar as causas da exclusão da imputabilidade penal, mas não o seu conceito, abrindo espaço para diversas investigações e discussões sobre quais seriam os elementos e critérios para apuração da dita inimputabilidade. Nesse sentido, a doutrina costuma enumerar duas condições pessoais como sendo indispensáveis para a perfeita compreensão do ato praticado: a maturidade, estabelecida, no Brasil, pela regra cronológica, fixando a maioridade penal nos 18 (dezoito) anos e a higidez mental. Quanto a esta última, adotou-se a medida biopsicológica, que, associando os critérios biológico e psicológico, pretende averiguar se o agente era, ao tempo do fato, mentalmente são e se tinha capacidade de entender o seu caráter ilícito ou de se determinar de acordo com ele, reunindo, dessa maneira, a noção de saúde mental, acrescida da capacidade do indivíduo de apreciar o potencial criminoso do fato.

Assim sendo, para o reconhecimento da inimputabilidade penal, não é suficiente que haja algum tipo de enfermidade mental, devendo existir provas de que esse transtorno afetou, realmente, à época do fato, a capacidade do infrator de compreensão do ilícito, ou de determinação segundo esse conhecimento.

Visualiza-se aqui um primeiro problema. Conceitos tais como o de “doença/enfermidade/transtorno mental” e “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, não fazem parte da área de abrangência dos conhecimentos jurídicos, surgindo, dessa forma, a necessidade do apoio fornecido pela psiquiatria forense, ramo da psiquiatria encarregada de realizar uma averiguação técnica do estado de saúde mental dos agentes que, por apresentarem uma suposta “alteração psíquica” (Barros, 2008Barros, D. M. (2008). O que é psiquiatria forense. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 53), receberão um enquadre diferenciado por parte da lei.

É portanto através dos chamados laudos de periculosidade e de sanidade mental que o psiquiatra forense define quem é “anormal” e quem é “normal”, produzindo, assim, a categoria de indivíduos que o Direito designou como inimputáveis. Desse modo, ao designar quem tem sanidade mental e quem apresenta periculosidade, os laudos psiquiátricos servem como um sistema de referência para os operadores do Direito, no procedimento judicial.

O psiquiatra, enquanto perito, tem, assim, o poder para discursar sobre o que é um comportamento desviante e anormal. Consequentemente, por exclusão, acaba também determinando quem seria o normal, como se deve portar o homem ‘civilizado’, fruto do processo civilizador, traçando, por meio da rotulação das diversas anomalias, síndromes, desvios e disfunções, a fronteira entre o louco e o mentalmente são.

Resta claro, porém, que a visão trazida por esse discurso não destaca fielmente os limites entre síndromes e transtornos, nem mesmo traça precisamente a sua distância para aquilo que se costumou chamar de normalidade, e isso em virtude da própria intangibilidade do conceito, permeado por diversas nuances, que dificultam o intento de objetivação e generalização das categorias taxonômicas. De forma que a lei jurídica pode até ter essa característica pretensamente universal, mas a normalidade/anormalidade, dificilmente.

Por conseguinte, como efeito dessa indeterminação e obscuridade, é possível constatar no dia a dia da prática jurídica que, com base em laudos objetivos, compostos por questões generalíssimas e por alguns quesitos elaborados pelo próprio juiz — com seu pouco conhecimento sobre o assunto — a respeito do estado psíquico do autor do delito no momento de sua prática, e respondidos geralmente por psiquiatras forenses depois de um único contato rápido com o infrator, acaba-se chegando a uma generalização, transformando psicóticos em sinônimo de inimputáveis, a todos aplicando indiscriminadamente medidas de segurança não se atentando ao fato de que, contrariamente, em alguns casos, mais efetiva para a significação subjetiva do ato criminoso seria a imposição de uma sanção penal.

Some-se a isso, ainda, a existência de inúmeros laudos emitidos por psiquiatras forenses, referentes a diversos indiciados, preenchidos exatamente da mesma forma, objetivamente, sem destacar qualquer característica peculiar ao sujeito, repleto de itens ticados com respostas simples e generalizantes de “sim” ou “não”, e que, mesmo em sua completa inconsistência serviam de base para julgamentos complexos em matéria de inimputabilidade ocasionando, não raras vezes, injustos deslindes desses casos.

Assim, observamos que, pautados em um saber/poder universais, tanto a lei jurídica quanto o discurso psiquiátrico, fundamentam atuações institucionais que terminam por negar a singularidade do indivíduo, impondo ao psicótico o “rótulo” de inimputável, olvidando-se, porém, que por trás daquele criminoso há um sujeito.

Para tentar fazer um contraponto a essa visão de patologização da vida, e sua consequente tentativa de divisão dos limites entre o saudável e o patológico que termina sempre em ambiguidades, busca-se demonstrar, por meio da análise do caso do jovem universitário assassino J. C., ocorrido no Estado de Minas Gerais e primeiramente publicado pelo psiquiatra Francisco Paes Barreto em seu livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental (2010), sob a denominação de “bárbara cena”, como o discurso psicanalítico pode oferecer ajuda ao repudiar a tentativa de igualar completamente dois sujeitos em tudo diferentes (coisa que as categorias taxonômicas objetivam fazer), permitindo considerar os indivíduos em sua singularidade absoluta, o que traz como consequência que o que se aplica a um sujeito não deverá, necessariamente, ser aplicado a nenhum outro, buscando, além disso, em primeiro plano, a responsabilização pessoal e consequente subjetivação do crime por parte do criminoso.

Com efeito, vindo ao encontro desse discurso universal, pretende-se analisar no presente artigo os benefícios que poderiam resultar da aplicação do discurso singularizante da psicanálise como auxiliar do Poder Judiciário no momento da decisão sobre a questão da imputabilidade do acusado, uma vez que o discurso do analista atua na escuta do particular de cada um, com a intenção de fazer advir um sujeito, sendo hábil, dessa maneira, a tentar desvendar as motivações que o levaram à passagem ao ato, diferenciando-os quanto à sua natureza e repensando as vantagens e desvantagens de aplicação ou não de uma pena àquele sujeito.

E isso porque, diferentemente dos outros dois discursos, a psicanálise vê a agressividade na psicose como uma saída para apaziguar os delírios e alucinações oriundos da alienação maciça e insuportável do Outro, apontando Lacan (1950/1998aLacan, J. (1998a). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In Escritos (pp. 127-151). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1950).), no sentido dessa compreensão, que em relação ao sujeito infrator a cura pode se dar exatamente pela sua responsabilização, tão buscada pela via da punição na criminologia, defendendo a ideia de construir uma pena sob medida para cada sujeito levando em conta as suas ficções singulares.

O Caso J.C. e a “bárbara-cena”1 1 Este caso foi narrado, primeiramente, pelo psiquiatra Francisco Paes Barreto em seu livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental, publicado pela Editora Scriptum, no ano de 2010. Os maiores detalhes foram fornecidos na aula do dia 5.11.2016 da disciplina “Clínica das Toxicomanias”, ministrada pela Profª. Drª. Cláudia Henschel de Lima, no curso de especialização lato senso em Psicanálise Infantil e Intervenção Precoce oferecido pelo SEPAI – Instituto São Zacharias de Estudos e Pesquisas, em conjunto com a Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro).

J. C., jovem universitário, foi autuado em flagrante na casa de sua avó materna, com quem vivia até então, na madrugada anterior a sua internação, imediatamente após tê-la barbaramente assassinado com golpes aplicados com uma lata de azeite e chutes. A cena do crime era, ainda, composta por um copo de vidro enfiado na sua vagina e um cabo de vassoura no ânus (Barreto, 2010Barreto, F. P. (2010). Ensaios de psicanálise e saúde mental. Belo Horizonte, BH: Scriptum Livros.).

O jovem, filho de uma mãe professora e um pai poeta que se desentendiam frequentemente, terminando por se separar, fora criado pela avó. No relato do caso clínico, Barreto atenta que J. C. se punha, com insistência, no lugar de objeto do desejo caprichoso da mãe. Dizia que a mãe era a detentora do dinheiro, dominadora, que gostava de controlar sua vida, palpitando até mesmo em suas namoradas. Afirmava que tinha de ficar mais responsável e não depender de tudo de sua mãe, todavia, precisava dela enquanto estivesse naquela situação de internação, pois era ela quem lhe pagava os advogados. “Às vezes, penso que ela ainda vai me mandar para Barbacena” (Barreto, 2010, p. 210).

Sobre o pai, informa que seria um “curtidor da vida”, com várias namoradas na rua e que sempre teve o hábito de usar drogas e álcool. Algumas vezes J. C. disse que saiu com ele para beber, usar drogas e arrumar mulheres, alegando que seu pai nunca lhe deu nada, apenas drogas. Nunca pagou uma escola e não cumpria com o que prometia. “Ao lado dele, eu sempre podia tudo!” (Barreto, 2010Barreto, F. P. (2010). Ensaios de psicanálise e saúde mental. Belo Horizonte, BH: Scriptum Livros., p. 211).

Seus problemas maiores começaram quando obteve êxito no vestibular, passando a usar maiores quantidades de droga, principalmente maconha e cocaína. Momentos antes da cena do crime, dirigiu-se a um hospital psiquiátrico querendo se internar, pois estava ouvindo vozes. Todavia, não lhe permitiram ficar, em razão de ausência de vagas e de uma avaliação psiquiátrica que comprovasse o estado que ele alegava. Posteriormente, dirá que “[...] o responsável pela morte da minha avó é o médico que, vendo meu surto, não quis me internar na urgência naquela noite” (Barreto, 2010Barreto, F. P. (2010). Ensaios de psicanálise e saúde mental. Belo Horizonte, BH: Scriptum Livros., p. 211).

Na volta para casa, após a tentativa frustrada de internação, passou em uma igreja para pegar água benta, escolheu as armas do crime e matou a avó, colocando a água benta em todos os seus orifícios femininos. Estuprou-a duas vezes, com um copo de vidro na vagina e um cabo de vassoura no ânus. Os vizinhos, ao ouvirem toda a comoção, chamaram a polícia. Enquanto aguardava a chegada dos policiais, J. C. permaneceu ao lado do corpo da sua avó.

Em seu depoimento, conseguiu narrar a cena criminosa em detalhes, porém não reconhecia a sua culpabilidade no crime que acabara de cometer. Frente ao juiz, sempre que este perguntava quem havia cometido o crime, ele respondia, “foi o J. C.”, referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, demonstrando que não havia qualquer responsabilização pessoal pelo ato criminoso. Atento a tal fato, o juiz do caso determinou que o jovem assassino permanecesse no manicômio judiciário, aguardando julgamento até que ele pudesse reconhecer a autoria de seu crime.

Diagnosticado como esquizofrênico, o jovem passou cerca de três anos internado, tendo sido submetido durante esse período a tratamento analítico com o dr. Francisco Paes Barreto. Para esse analista, a foraclusão da lei simbólica, em J. C., foi pobremente suplementada por compensações neopaternas, razão pela qual o sujeito se via, com grande frequência, uma presa da irrupção de um gozo avassalador. Contando com um simbólico precário e um imaginário insuficiente, só lhe restou, aqui também, tratar o real pelo real por meio do uso de drogas e da passagem ao ato (Barreto, 2010, p. 212).

Ao longo do tratamento analítico, J. C. foi adquirindo a capacidade de implicar-se no ato, reconhecendo a autoria do crime, continuando a dar detalhes da cena macabra, mencionando, inclusive, a razão da escolha das armas que utilizou. Ato contínuo ao reconhecimento de sua responsabilidade subjetiva pela morte da avó, o jovem foi levado a julgamento e condenado a trinta anos de prisão em virtude do caráter hediondo do crime.

Barreto encerra a análise do caso “bárbara cena”, como o chamou, em uma clara alusão a Barbacena, lugar para onde J. C. tinha pavor de ser mandado, destacando o efeito estabilizador do ato jurídico para esse jovem, ressaltando as lições de Eric Laurent quando afirma que, muitas vezes, na clínica da passagem ao ato o sujeito tem a necessidade de uma instituição sem exceção, ele tem necessidade de regras que o sancionem. Em suas palavras,

[...] considerando-se o estatuto jurídico do pai, é possível que, a partir das intervenções dos agentes judiciários, a partir da concretude da custódia institucional, J. C. tenha encontrado um enquadramento, que funciona como contenção. É na cadeia onde experimenta certo tempero do gozo, certo apaziguamento. (Barreto, 2010Barreto, F. P. (2010). Ensaios de psicanálise e saúde mental. Belo Horizonte, BH: Scriptum Livros., p. 212)

A psicanálise e a questão da inimputabilidade penal

É inegável que o crime interpela-nos e estremece nossas subjetividades, ainda mais quando se trata de crimes hediondos, muitas vezes cometidos sem que haja uma motivação evidente. A sociedade clama por justiça, exigindo a culpabilização dos criminosos e a aplicação de uma pena que, embora não seja capaz de compensar a vida perdida, nem de apagar completamente as perdas, traz consigo uma ideia de justa medida, oferecendo uma possibilidade simbólica de retribuição ao delito perpetrado.

Em se tratando de indivíduos inimputáveis, ou seja, aqueles que, segundo o artigo 26 do Código Penal Brasileiro, seriam inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento em virtude de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ao tempo da ação ou da omissão, o cenário complica um pouco mais, uma vez que no lugar da pena privativa de liberdade prevista para situações ditas “normais”, surge a aplicação de medida de segurança, que encontra sua justificativa na periculosidade, aliada à incapacidade do agente, e consiste em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou a sujeição a tratamento ambulatorial.

Logo, a noção de responsabilidade, tal como é articulada no Código Penal, somente permite duas alternativas: o julgamento do criminoso, hipótese na qual este irá responder pelos seus atos perante um tribunal, observadas todas as garantias constitucionais do princípio do contraditório e do devido processo legal, ou o “lugar nenhum” da absolvição imprópria, onde o delinquente não tem voz, representando apenas um laudo diagnóstico que aponta algum dos não poucos transtornos descritos no DSM.

Assim, a lógica que rege o Direito é a do “para todos”, com exceções —também generalizantes — previstas expressamente na lei penal, que se baseia em uma média comum destinada à universalidade, sem qualquer análise subjetiva. Todavia, esquece-se, por vezes, que toda uma série de composições sociais e subjetividades está envolvida em um homicídio, e todas essas nuances devem ser questionadas, uma a uma, para não ofuscar as singularidades do sujeito criminoso, de forma que o todo, essa pretensão do “para todos”, que vale recordar também é utilizada pelo discurso psiquiátrico por mais que se pretenda fazê-la particular, não faz frente à singularidade de “cada um”. De modo que, como vimos no caso de J. C., não só o Direito, a Criminologia e a Psiquiatria têm algo a dizer sobre o criminoso e seus atos, mas também a Psicanálise pode ajudar, com sua visão singularizante, a identificar o efeito do crime nas peculiaridades e em cada história de vida, apostando-se que a interseção dos três discursos — penal, psiquiátrico e psicanalítico — torna mais fácil resolver de maneira adequada a relação existente entre o sujeito-criminoso e seu ato.

E isso porque a Psicanálise, dentro desse campo específico, cumpre uma função de ponta, na medida em que põe em funcionamento uma concepção particular da noção de responsabilidade que não se confunde necessariamente com a implícita no exame penal, posto que o assentimento subjetivo envolvido no interrogatório judicial não tem, desde já, as mesmas ressonâncias que resultam da prática psicanalítica — a responsabilidade que envolve a tomada de posição do sujeito diante do crime. É preciso destacar, seguindo as observações de Lacan em “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia” (1950/1998aLacan, J. (1998a). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In Escritos (pp. 127-151). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1950).), que o assentimento subjetivo de um crime é necessário à própria significação da punição, uma vez que se opõe à suposta responsabilidade egoica, com a qual trabalha o discurso jurídico, determinada como resultado de um juízo criminoso ou por uma simples confissão do Eu.

Assim, na perspectiva psicanalítica, longe de tentar construir uma perspectiva universal do crime, tendo em vista que estes são “[...] fenômenos que se manifestam no extremo de um afastamento dos signos naturais da enfermidade e de saber estabelecido” (Tendlarz & Garcia, 2013Tendlarz, S. E., Garcia, C. D. (2013). A quem o assassino mata? O serial killer à luz da criminologia e da psicanálise. São Paulo, SP: Atheneu., p. 18), busca-se atuar na escuta do particular de cada um, na tentativa de desvendar as motivações que levaram aquele sujeito em específico à passagem ao ato, possibilitando repensar as vantagens e desvantagens que a aplicação ou não de uma pena podem trazer no sentido de sua responsabilização subjetiva.

Pois é certo que, diante de uma mesma estrutura psicótica, a resposta manifestada depende de uma particular posição subjetiva, o que nos remete à necessidade de repensar a responsabilização desses criminosos, para que aquele sujeito possa formular, para si, o texto da sua passagem ao ato, passando-se do real ao simbólico, que é o único registro que pode fazer o sujeito construir um sentido para o seu ato e tratar de suas consequências, tanto para ele quanto para o Outro.

Temos que a passagem ao ato se caracteriza por essa passagem da cena do Outro para a cena do mundo. Essa distinção é essencial para compreendermos a aplicação da lei para o psicótico infrator que, como lei fundamentada na linguagem é ficcional. Se, na passagem ao ato, ele, como sujeito, sai da cena do Outro, rompe o laço com esse Outro, de que maneira as ficções jurídicas poderão fazê-lo recuperar esse laço, incluí-lo no pacto social? Apostamos aqui que é possível trazer esse sujeito de volta à cena do Outro ao considerarmos sua condição de sujeito, ao tomá-lo como tal na aplicação da lei.

Se é como objeto que ele resta na passagem ao ato, é preciso que a lei possa lhe (re)situar em sua condição de sujeito, fazendo-o responsável pelo crime que cometeu. A responsabilidade do sujeito inclui, portanto, o impacto que seu ato produz sobre ele, na medida em que este ato o reintegra à sua própria história, sendo que, não podemos esquecer, o que não for subjetivado como responsabilidade, pode retornar como culpa, com concomitante punição.

Voltemos ao texto lacaniano de 1950, no ponto em que Lacan postulou que “[...] se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso” (p. 131). Desumanizar o criminoso, tirando-lhe a condição de ser responsável por seu ato, mesmo que seja à sua maneira, é fazer com que ele fique fora do pacto social e, consequentemente, da linguagem. Logo, é preciso que ele fale sobre seu ato e que tenha a chance de dar a ele um sentido. E a função da lei é justamente a de fazê-lo reencontrar o caminho do Outro, do qual ele se desgarrou com seu ato. Trata-se de, não apenas, dar consistência ao crime como fato concreto do Direito, mas sim tomá-lo pela vertente da subjetividade, levando em consideração o sujeito tal como ele se apresenta para a psicanálise. Não meramente um sujeito de Direito, da razão, mas de um sujeito do inconsciente, representado pelo significante que pode ter motivações que extrapolam a capacidade do julgador e as evidências do processo.

Entretanto, cumpre ressaltar que não se pretende aqui sugerir a exclusão de qualquer um desses discursos — jurídico e psiquiátrico — da questão da inimputabilidade penal, muito menos sugerir uma mudança na legislação. Ao contrário, pensa-se que essas três visões podem, de alguma maneira, se complementar no sentido de proporcionar um deslinde justo e efetivo a cada caso que se apresente em juízo. Não se discute, por exemplo, que um exame psiquiátrico bem feito pode contribuir com importantes elementos que permitem definir um parecer a ser apresentado ao juiz. Entretanto, não se pode permitir que o psiquiatra forense se transforme, de maneira imperceptível, no que Foucault (1975/1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975).) chamou de “juiz oculto”, o que, infelizmente, muitas vezes ainda acontece.

O trabalho desenvolvido pelos psiquiatras não deve, por conseguinte, excluir a possibilidade de o juiz manter suas dúvidas e sua capacidade de julgar, até porque, como não se pode esquecer, o parecer psicológico é apenas mais uma informação — com grande importância técnica — dentre as muitas que compõem o processo, cabendo porém ao juiz a partir da avaliação de todos os dados disponíveis na peça processual e do disposto no sistema de leis que regem a sociedade, julgar.

Dessa forma, aposta-se que a psicanálise, como demonstrado no caso aqui analisado, pode lançar mais uma luz no fazer do juiz, em seu ato de julgar, ao demonstrar que alguns criminosos de estrutura psicótica, como J. C., podem, sim, alcançar a assunção do seu ato por meio de uma elaboração subjetiva de sua culpabilidade e pela aceitação do castigo pronunciado por um tribunal. Contudo, essa também não é uma verdade universal que possa ser aplicada a todos os psicóticos, uma vez que, para alguns sujeitos, isso nem sempre é suficiente para produzir uma estabilização, de modo que uns acabam por se suicidar, outros voltam a cometer homicídios, enquanto outros padecem de uma morte decorrente de um esvaziamento de seu ser.

No presente caso, não há dúvidas de que J. C., diagnosticado como esquizofrênico, beneficiou-se da sensibilidade do juiz responsável por seu processo, que, percebendo a sua impossibilidade inicial em reconhecer a subjetividade da autoria de seu crime, atribuindo-a a si mesmo, porém em terceira pessoa, permite que o acusado permaneça internado por três anos, oportunidade em que se submeteu a tratamento de escuta analítica, após os quais pôde reconhecer a sua responsabilidade pessoal pela morte da avó, sendo, só então, submetido a julgamento e condenado a uma pena de 30 anos de prisão, que funcionou para ele como um enquadramento, uma contenção, proporcionando-lhe, aqui também, um certo apaziguamento.

Logo, com esse breve exemplo, delineia-se a peculiaridade de cada caso, demonstrando a importância de uma escuta particular, individualizada, do louco criminoso, de forma a buscar qual a sanção que seria mais efetiva para aquele sujeito. A pena privativa de liberdade seria capaz de estabilizar seus delírios? Ou seria a internação e o tratamento em hospital psiquiátrico mais aptos a isso? Não se sugere, no presente trabalho, que a lei seja alterada e todos os psicóticos passem a responder penalmente pelos seus atos. Se assim o fosse, cairíamos, mais uma vez, na universalidade dos discursos do Direito e da Psiquiatria.

Não, o que se propõe, neste artigo, é a realização de uma análise detida do sujeito que ali se encontra a ponto de ser julgado, buscando-se uma maior sensibilização do Poder Judiciário no sentido de perceber que cada criminoso é único, atentando-se para a sua singularidade no momento de decidir ou não pela sua impronúncia. Convém lembrar que o ato do juiz é regido pelo princípio do livre convencimento, por meio do qual este não fica adstrito ao laudo emitido pelos psiquiatras forenses, podendo-se decidir, livremente, desde que embasado com provas suficientes, contrariamente ao aludido laudo. Como no caso de J. C., percebemos a importância desse olhar diferencial do magistrado e a diferença que ele pode fazer na vida de um sujeito, de forma a contribuir com a sua responsabilização subjetiva.

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  • 1
    Este caso foi narrado, primeiramente, pelo psiquiatra Francisco Paes Barreto em seu livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental, publicado pela Editora Scriptum, no ano de 2010. Os maiores detalhes foram fornecidos na aula do dia 5.11.2016 da disciplina “Clínica das Toxicomanias”, ministrada pela Profª. Drª. Cláudia Henschel de Lima, no curso de especialização lato senso em Psicanálise Infantil e Intervenção Precoce oferecido pelo SEPAI – Instituto São Zacharias de Estudos e Pesquisas, em conjunto com a Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro).
  • Financiamento/Funding: As autoras declaram não terem sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.

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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2018
  • Aceito
    24 Jun 2018
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