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O encontro entre educação, saúde e psicanálise na tecitura de uma rede de cuidado às pessoas que usam drogas

The encounter between education, health and psychoanalysis in the weaving of a drug-abusing peopl care network

Torres, S.; Kveller, D.; Torossian, S. D.. Descriminalização do cuidado: políticas,cenários e experiências em Redução de Danos. 2017. Rede Multicêntrica-UFRGS, Porto Alegre, RS: 380. 1

Descriminalização do cuidado: políticas,cenários e experiências em Redução de Danos . Torres, S., Kveller, D., & Torossian, S. D. (Orgs.) Porto Alegre, RS: Rede Multicêntrica-UFRGS, 2017, 380 págs., vol.1

Para compreendermos os diferentes usos contemporâneos que se faz das drogas, urge retomarmos as palavras de Olievenstein (1989 Olievenstein , C. ( 1989 ). A clínica do toxicômano: a falta da falta . Porto Alegre, RS : Artes Médicas . , p. 14) segundo as quais tais usos precisam ser considerados na perspectiva de um encontro: “encontro de um produto, com uma personalidade e um momento sociocultural”. Se formos sensíveis a essa assertiva, podemos concluir que a proposição de políticas públicas voltadas para as pessoas que fazem uso de drogas não pode partir de generalizações ou de padrões estabelecidos a priori .

Porém, na contramão desse entendimento, testemunhamos na atualidade o recrudescimento de diversos discursos na direção de desumanizar as pessoas que fazem uso de drogas, associando-as com zumbis que perderam completamente a capacidade de gerir a própria vida. Nesse contexto, faz-se necessária a retomada da história das políticas públicas, considerando especialmente os campos da saúde, da assistência social e da segurança pública, os quais tradicionalmente têm se dedicado à questão das drogas. Foi no entrelaçamento entre esses campos, juntamente ao da educação, que surgiu, em Porto Alegre/RS, a Rede Multicêntrica, cuja concepção, história, práticas, avanços e desafios são analisados no livro Descriminalização do cuidado: políticas, cenários e experiências em Redução de Danos , que aborda a temática da droga na perspectiva da Redução de Danos, delimitando seu lugar como uma das diretrizes de trabalho do SUS. O livro é dividido em três seções e é fruto do trabalho de profissionais que atuam na Rede Multicêntrica desde 2010 e compartilham suas experiências desenvolvidas no Brasil e em Amsterdã. A primeira seção é intitulada de Política (sete capítulos), seguida dos Cenários (cinco capítulos) e das Experiências (cinco capítulos), havendo a finalização com um Posfácio que contempla o texto “Paixões e químicas”.

A Rede Multicêntrica surgiu objetivando, dentre outras metas, resgatar a centralidade da proposta da Educação Permanente para que os profissionais que atuam com pessoas que usam drogas possam realizar um trabalho que respeite os princípios da Universalidade e da Integralidade, conjugando-os com a necessária consideração pela singularidade de cada sujeito. Nesse sentido, essa Rede propõe a articulação entre Educação, Saúde Coletiva e Psicanálise, em uma perspectiva de trabalho que se sustenta na metodologia da Redução de Danos e, portanto, problematiza a abstinência como única saída para as pessoas que fazem uso de drogas.

Análises históricas nos mostram que estratégias de governamentalidade da vida persistem ao longo dos tempos, assim como o uso de drogas existe desde os períodos mais remotos. Tais análises são também objeto de reflexão no livro, evidenciando a perspectiva dos atores que fazem a Rede Multicêntrica de que não é possível analisar o consumo de drogas de forma isolada do contexto histórico e social.

Apenas em um tempo relativamente recente esse consumo passou a ser considerado problemático, demandando experiências de proibição, regulamentação e legalização, as quais não são sem consequências nas sociedades que as vivenciam. Para além da lógica binária que contrapõe em polos opostos a proibição e legalização, é crucial a advertência de que a questão das drogas demanda ações que extrapolem essa dicotomização.

Uma prova de que a dicotomia proibir versus legalizar não é suficiente para dar conta dos usos de drogas e de que o nosso maior problema não são as drogas, mas sim a questão social, são as experiências promovidas no cotidiano da Rede Multicêntrica que mostram algumas aproximações entre as vivências sociais e as possibilidades de cuidado para as pessoas que usam drogas com as de outras populações, tais como as profissionais do sexo, as pessoas que moram nas ruas, as pessoas com HIV/AIDS, os pacientes com tuberculose e outras comorbidades etc. Como afirmam Paz e Cunda (2017) Paz , C. L. , Cunda , M. F. ( 2017 ). O cheiro da rua – intervenções e invenções nas ruas de Porto Alegre . In S. D. Torossian , S. Torres , D. B. Kveller ( Orgs .) . Descriminalização do cuidado: políticas, cenários e experiências em Redução de Danos (pp. 227 - 246 ). Porto Alegre, RS : Rede Multicêntrica . , o trabalho com essas populações situa-se “numa linha tênue entre estratégias de cuidado e controle, entre visibilidade e invisibilidade, entre o tempo da lei e a pressa da cidade” (p. 243).

Tais experiências, narradas, discutidas e detalhadas no Livro Descrimi-nalização do cuidado... , chamam a atenção para a importância da atuação em rede e do trabalho multiprofissional, na medida em que as estratégias potencializadoras do cuidado envolvem, além do acompanhamento à saúde, os eixos Educação, Trabalho e Cultura, haja vista a concepção de sujeito com a qual a equipe da Rede Multicêntrica trabalha: sujeito que é ao mesmo tempo sujeito corpo, sujeito aprendiz, sujeito cidadão e sujeito do inconsciente. E para acompanhar e cuidar desse sujeito considerando a lógica do território (e não do isolamento social e da internação compulsória), os autores propõem diferentes ferramentas, tais como o Projeto Terapêutico Singular, a Clínica Ampliada, a Educação Permanente, a Aprendizagem Significativa, a Ação Intersetorial e o Apoio Matricial.

Portanto, o livro apresenta-se como material de alta qualidade, cum- prindo sua função de fazer pensar e repensar o cuidado ofertado às pessoas que usam drogas, desmistificando determinados preconceitos e descontruindo certos estigmas que perpassam o cotidiano dos trabalhadores de diversos setores que lidam no seu dia a dia com os mais diversos usos, circunscritos a diferentes realidades. Assim, as reflexões trazidas fazem avançar o debate em torno dos rumos recentes das políticas públicas sobre drogas no Brasil e das atuais investidas da mídia, de alguns segmentos religiosos e até mesmo de determinados setores do poder público que associam o uso de drogas à criminalidade e defendem modelos de tratamento que facilmente convertem-se em mecanismos de controle.

Nesse sentido, a relevância do material deve-se principalmente à sua capacidade de levar o leitor a reconhecer a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas como “um texto aberto, pulsante, escrito a várias mãos e ainda sem ponto final” ( Cabral et al., 2017 Cabral , K. V. , Simoni , A. C. R. , Fagundes , S. M. S. , Adamy , P. E. , Port , C. N. , Monteiro , J. da R. , Oliveira , V. B. , Almeida , S. A. ( 2017 ). Linha de cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas “O cuidado que eu preciso” . In S. D. Torossian , S. Torres , D. B. Kveller (Orgs.) , Descriminalização do cuidado: políticas, cenários e experiências em Redução de Danos (pp. 160 - 179 ). Porto Alegre, RS : Rede Multicêntrica . , p. 175). Ou, em outras palavras, como uma política que, ao ser colocada em prática, é cotidianamente reinventada pelos trabalhadores que tecem a rede de atenção às pessoas que usam drogas na medida em que encontram alternativas possíveis de cuidado que levem em conta a singularidade dos casos e a sutileza dos encontros.

Finalizamos convidando-o à leitura desse livro que vem se destacar e somar no aprofundamento de um tema tão delicado, complexo e plural como é a temática da droga. O livro trata do tema abordando a dureza que é o desafio do trabalho com esse campo, com o acolhimento e o tratamento, mas também toca na temática com delicadeza e poesia. Este é o resultado de um trabalho que vem sendo construído e que lança mão de ofertar formas singulares e inventivas na tessitura de uma rede de cuidados aos sujeitos que buscam construir novos trajetos e novas vias de desejo e de vida.

Referências

  • Cabral , K. V. , Simoni , A. C. R. , Fagundes , S. M. S. , Adamy , P. E. , Port , C. N. , Monteiro , J. da R. , Oliveira , V. B. , Almeida , S. A. ( 2017 ). Linha de cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas “O cuidado que eu preciso” . In S. D. Torossian , S. Torres , D. B. Kveller (Orgs.) , Descriminalização do cuidado: políticas, cenários e experiências em Redução de Danos (pp. 160 - 179 ). Porto Alegre, RS : Rede Multicêntrica .
  • Paz , C. L. , Cunda , M. F. ( 2017 ). O cheiro da rua – intervenções e invenções nas ruas de Porto Alegre . In S. D. Torossian , S. Torres , D. B. Kveller ( Orgs .) . Descriminalização do cuidado: políticas, cenários e experiências em Redução de Danos (pp. 227 - 246 ). Porto Alegre, RS : Rede Multicêntrica .
  • Olievenstein , C. ( 1989 ). A clínica do toxicômano: a falta da falta . Porto Alegre, RS : Artes Médicas .
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite e Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2018
  • Aceito
    30 Ago 2018
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