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Andaimes da psicanálise: desconstruções a partir da proposta de Ricardo Rodulfo

Psychoanalysis scaffolding: deconstruction based on Ricardo Rodulfo’s proposal

Rodulfo, Ricardo. Andamios del psicoanálisis: lenguaje vivo y lenguage muerto en las teorías psicoanalíticas. 2013. Paidós, Buenos Aires, Argentina: 288. 1

Ricardo Rodulfo, psicanalista argentino contemporâneo, mais conhecido no Brasil pelas suas obras traduzidas: O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce ( 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. ), e Desenhos fora do papel: da carícia à leitura escrita na criança ( 2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: da carícia à leitura-escrita na criança. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. ), vem realizando um trabalho que ele denomina desconstrução da psicanálise tradicional. Um dos últimos textos dedicados a esse fim é o livro Andamios del Psicoanálisis: lenguaje vivo y lenguaje muerto en las teorías psicoanalíticas (2013), ainda sem tradução para o português.

A desconstrução formulada por Rodulfo sustenta-se na proposta de Jacques Derrida. Numa crítica àquela psicanálise que anda em “linhas retas”, Rodulfo toma a psicanálise em todas as suas vertentes e vértices, como um sistema teórico no qual os vários autores e as várias “linhas” podem estar em conexão. Ao grifar a posição do autor perante o texto destacamos uma leitura sustentada no trânsito entre diversos teóricos da psicanálise. É esse um ponto no qual muitos psicanalistas justificariam a necessidade de filiação a uma “linha”. Rodulfo, no entanto, afirma a necessidade da desconstrução da hierarquia opositiva. No trânsito entre textos o autor olha também para o “prazo de validade” dos conceitos ao perguntar se algumas das propostas conceituais da psicanálise não teriam sua validade caducada cedendo lugar a outras em função do espaço-tempo na qual foram concebidas.

Nessa direção, Rodulfo recorre a Foucault e Deleuze para movimentar o campo, incorporando as críticas e revendo o corpus da psicanálise sem produzir ali fendas intransponíveis que derivariam numa antipsicanálise. Dividido em três partes, além do prefácio, o livro realiza um percurso desconstrutivo em 17 capítulos.

O tema do pai, afirma Rodulfo, nem sempre foi produtivo para a psicanálise. Convidando Deleuze para essa conversa, retoma a crítica à centralidade que o tema da paternidade assume na política da psicanálise. Rodulfo sustenta que ao reivindicar o lugar paterno, Freud deixou de reconhecer um trabalho compartilhado com outros profissionais e com os pacientes. O autor pergunta se seria possível desprivatizar a psicanálise devolvendo-a à circulação na vida cultural.

Através desse questionamento abre-se a passagem para a primeira parte do livro, dedicada a trabalhar com a différance no texto de alguns temas psicanalíticos e nos pressupostos científicos que os sustentam. É o caso de voltar a olhar — diferenciando e diferindo — temas como o complexo de Édipo, o incesto, a especularidade e o brincar, ressaltando a passagem do modelo da física mecânica, no qual Freud sustentou boa parte das suas contribuições, para o modelo da física quântica. Nessa torção novos modos de olhar o mundo se produzem, assim como podem ser produzidas variações nos modos de olhar da psicanálise.

A segunda parte do livro, apresentada em oito capítulos, apresenta variações produzidas nos modos de subjetivação da infância e adolescência e suas consequências na clínica com crianças e jovens. Além disso, Rodulfo retoma aqui um trabalho que vem desenvolvendo desde seus primeiros textos em relação à função do brincar na constituição subjetiva. Sempre partindo de interrogações produzidas na clínica, retoma a elaboração das suas teses sobre o brincar, nas quais Winnicott é um dos seus grandes interlocutores. Na psicanálise com crianças, sustenta, há dois tempos: antes e depois de Winnicott. O antes e o depois não se situam numa lógica da cronologia, mas a partir do que se entende ser uma criança e do efeito que as crianças produziram na psicanálise.

No tempo antes a psicanálise é introduzida na criança; já no tempo depois a criança é introduzida no interior da psicanálise. Aqui vale uma analogia que o autor vem utilizando em alguns tempos de sua escrita: assim como uma casa não fica a mesma depois de passarem por ela as crianças, não é possível que a psicanálise fique sem se modificar ao brincarem nela as crianças.

Após o trabalho desconstrutivo em relação à temática da subjetivação e da clínica com crianças e adolescentes, o último capítulo é dedicado à discussão psicopatológica. No texto denominado “Sonatina”, trabalham-se os temas da normalidade, loucura e saúde. Ressaltando a resistência recíproca entre loucura e normalidade, a saúde é colocada como terceiro possível.

Várias são as temáticas presentes nesse livro, discutidas à luz da desconstrução. Fios que vêm se desdobrando nos seus textos há alguns anos são retomados aqui para mais um giro analítico na perspectiva aberta por Derrida. A suspensão de alguns temas, costumeiramente colocadas no centro da teoria psicanalítica, como o complexo de Édipo, é uma das vias da desconstrução que o autor propõe em “Psicanálise sem centro”. É nessa trilha que destacamos o terceiro capítulo provocativamente intitulado “La prescripción del incesto”.

Nesse capítulo, Rodulfo convida Foucault a ingressar no texto psicanalítico com suas ideias mais críticas em relação ao “Édipo”. Alertando sobre a necessidade de articular a experiência clínica com a cultura na qual ela tem lugar, Rodulfo se propõe a desconstruir a noção segundo a qual entende-se que “se há cultura é pela proibição do incesto”. Um dos modos de realizar esse trabalho é substituir o ponto final afirmativo por uma interrogação. O diálogo com Foucault permite discutir o caráter negativo que se tem atribuído ao incesto quando ele é lido somente como ação de desalojar, recalcar, reprimir e barrar. Foucault defende que a proibição apresenta também um caráter positivo quando oferece caminhos e modelos, não se limitando meramente ao “não”. Devemos salientar aqui que muitas dessas produções devem-se mais às leituras que se tem realizado dos textos clássicos da psicanálise sobre a proibição do incesto do que necessariamente às formulações específicas de Freud ou Lacan, por exemplo.

A partir dessa concepção de negatividade e positividade da proibição do incesto, Rodulfo destaca o caráter de regulação que a proibição introduz. Isso permite-lhe afirmar que a cultura proíbe parte do incestuoso, mas também promove algumas das suas manifestações.

Várias são as questões abertas e desdobradas por esse livro. Contri-buições sempre geradas a partir da experiência clínica. Essa, parece-nos, é uma direção necessária à investigação psicanalítica. A perspectiva desconstrutiva nos obriga a colocar em questão nossas certezas, especialmente quando essas estão ancoradas em fundamentos dogmáticos que podem passar despercebidos. Trata-se de uma leitura que desacomoda, mas que pode fazer parte de uma produção legitimadora de ancoragens abrindo, também, espaço ao novo.

Referências

  • Derrida, J. (1972). De la gramatología. México, DF: Siglo XXI.
  • Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
  • Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: da carícia à leitura-escrita na criança. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
  • Rodulfo, R. (2008). Futuro porvenir: ensayos sobre la actitud psicoanalitica en la clínica de la niñez y adolescencia. Buenos Aires, Argentina: Centro de Publicaciones Educativas y Material Didáctico.
  • Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite e Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2018
  • Aceito
    25 Ago 2018
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