Acessibilidade / Reportar erro

Psicopatologia e alteridade: dimensões éticas e políticas

Psychopathology and alterity: ethical and political dimensions

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

Tal qual o poeta, cremos que a psicopatologia poderia anunciar que tem como sua matéria a vida presente, os seres humanos do presente, o tempo presente com seu variado cortejo de angústias, medos e esperanças. É disto que tratamos neste editorial, do presente momento no Brasil.

Partimos do suposto que se designamos como psicopatologia(s) o esforço de apreender e articular discursivamente o sofrimento psíquico, em seus infinitos contornos e configurações - o que será sempre feito de forma incompleta, pois é de um sujeito que se trata -, necessariamente ela nos imporá uma tomada de posição ética diante do padecer humano (Pereira, 1998Pereira, M. E. C. (1998, março). Formulando uma Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 60-76.).

Como aponta Umberto Eco (2000)Eco, U. (2000). Quando outros entram em cena, nasce a ética. In U. Eco, C.M. Martini, Em que crêem os que não crêem? (p. 42-50). Rio de Janeiro, RJ: Record., a “dimensão ética começa quando entram em cena outros” (p. 42), quando reconhecemos o imperativo de respeitar nos outros as mesmas exigências que consideramos irrecusáveis para nós mesmos. Lembra o mesmo autor que tal posição ética diante dos outros é uma aquisição relativamente recente na história da civilização humana. E a civilização, a história nos mostra, é uma conquista provisória e frágil. Podemos constatar que parece não existir aqui algum efeito “catraca”, que bloqueie os retrocessos civilizatórios, pois o repertório humano não encontra limites, em um sentido ou em outro, do mais elevado ao mais baixo.

Assim, toda psicopatologia precisa explicitar a visão de homem e de mundo da qual é tributária e nenhuma escapa de se confrontar com os múltiplos determinantes da fragilidade humana: da natureza que não responde aos nossos anseios, da vulnerabilidade do corpo ao desamparo original, das renúncias impostas pelo desenvolvimento da cultura aos precários laços sociais nela constituídos, nada é certo, seguro e garantido. É com essa mistura caótica que nos deparamos quando nos dispomos a escutar e abordar o mal-estar e o sofrimento psíquico de outras pessoas, em seus variados contextos de vida. E é com isso que todos nós temos que lidar: se algo é certo, é a incerteza.

Conforme já assinalado, o ato fundador da psicopatologia é o interesse genuíno pela alteridade, pela subjetividade de outros. E esse interesse é indissociável do respeito e do reconhecimento mútuos implicados em todo verdadeiro encontro humano. As diferenças devem caber no espaço intersubjetivo que se cria a cada encontro, e é isso que permite o cuidado com os outros.

Em suma, concluímos que a razão de ser da psicopatologia não pode ser outra senão almejar contribuir para o cuidado do padecer humano. E, se concordamos com Fernando Pessoa (1955)Pessoa, F. (1955). Como é por dentro outra pessoa. In F. Pessoa, Poesias Inéditas (1930-1935)(p. 159). Lisboa, Portugal: Ática. Recuperado em 11 nov. 2008, de: <http://arquivopessoa.net/textos/2784>.
http://arquivopessoa.net/textos/2784...
quando diz que “A alma de outrem é outro universo” (p. 159), tal cuidado sempre se dará no âmbito de uma compreensão reconhecidamente limitada, inexata e temporária daquele que sofre.

Nesse sentido, é evidente que a psicopatologia, como disciplina que se fundamenta na investigação da diferença tida como algo de radical e insuperável, é o avesso da violência e da intolerância - nascidas da certeza de si e degeneradas no desaparecimento do subjetivo em face a supostos ideais absolutos - que negam e suprimem a diferença e a alteridade. Eis aqui as dimensões éticas e políticas de uma psicopatologia digna do nome, o que não podemos deixar de repetir enfaticamente.

Por fim, acreditando que a poesia possa ser uma boa guia, e inspirados pelo poeta, sugerimos que sigamos presos à vida, que olhemos solidariamente para os que, como nós, “estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças” e, sobretudo, que não nos afastemos, “não nos afastemos muito” neste largo presente (Andrade, 1940/2012Andrade, C.D. de (2012). Mãos dadas. In C. D. de Andrade, Sentimento do mundo (p. 34). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1940)., p. 34).

Referências

  • Andrade, C.D. de (2012). Mãos dadas. In C. D. de Andrade, Sentimento do mundo (p. 34). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1940).
  • Eco, U. (2000). Quando outros entram em cena, nasce a ética. In U. Eco, C.M. Martini, Em que crêem os que não crêem? (p. 42-50). Rio de Janeiro, RJ: Record.
  • Pereira, M. E. C. (1998, março). Formulando uma Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1), 60-76.
  • Pessoa, F. (1955). Como é por dentro outra pessoa. In F. Pessoa, Poesias Inéditas (1930-1935)(p. 159). Lisboa, Portugal: Ática. Recuperado em 11 nov. 2008, de: <http://arquivopessoa.net/textos/2784>.
    » http://arquivopessoa.net/textos/2784
Editores do artigo/Editors: Ana Maria Galdini R. Oda e Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2018
  • Aceito
    20 Nov 2018
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com