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Ressentimento e perversão na obra Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues

Resentment and pervasion in the novel Boca de Ouro, by Nelson Rodrigues

Ressentiment et perversion dans l'œuvre Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues

Resentimiento y perversión en la obra Boca de Oro, de Nelson Rodrigues

Ressentiment und Perversion in Nelson Rodrigues' Werk "Boca de Ouro"

Resumos

O objetivo deste trabalho é analisar a peça “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, nos aspectos concernentes à perversão e ao ressentimento. A construção do anti-herói Boca de Ouro revela o funcionamento de um Supereu corrompido no qual apela-se para a tirania como uma formação reativa para defender-se do ressentimento de ser um filho sem pai e de uma mãe que deu à luz em uma pia de gafieira. O conceito de ressentimento é discutido a partir da psicanálise freudiana e da filosofia de Nietzsche.

Palavras-chave:
Psicanálise; literatura; Freud; Nietzsche


The purpose of this paper is to analyze Nelson Rodrigues' Boca de Ouro in aspects related to perversion and resentment. The construction of the anti-hero Boca de Ouro reveals the workings of a corrupted Super-ego, in which he appeals to tyranny as a reactive formation to defend himself from the resentment of being a fatherless child, and whose mother gave birth to him in a nightclub sink The concept of resentment is discussed based on Freudian psychoanalysis and on Nietzsche's philosophy.

Key words:
Psychoanalysis; literature; Freud; Nietzsche


L'objectif de ce travail est d'analyser la Boca de Ouro de Nelson Rodrigues dans les aspects de perversion et de ressentiment. La construction de l'antihéros Boca de Ouro révèle le fonctionnement d'un Super moi corrompu dans lequel il fait appel à la tyrannie comme une formation réactive pour se défendre du ressentiment d'être un enfant sans père et d'une mère qui a accouché dans un évier de salle de bal. Le concept de ressentiment est discuté à partir de la psychanalyse freudienne et de la philosophie de Nietzsche.

Mots clés:
Psychanalyse; littérature; Freud; Nietzsche


El objetivo de este trabajo es analizar la obra Boca de Oro, de Nelson Rodrigues, en lo relacionado a la perversión y al resentimiento. La construcción del antihéroe, Boca de Oro, revela el funcionamiento de un Superyó corrompido en el que se apela a la tiranía, como una formación reactiva, para defenderse del resentimiento de ser un hijo sin padre y de una madre que dio a luz en el lavabo de una discoteca. El concepto de resentimiento se discute a partir del psicoanálisis freudiano y de la filosofía de Nietzsche.

Palabras clave:
Psicoanálisis; literatura; Freud; Nietzsche


Ziel dieser Arbeit ist es, das Theaterstück „Boca de Ouro” von Nelson Rodrigues in Bezug auf die Begriffe Perversion und Ressentiment zu analysieren. Die Konstruktion des Antihelden Boca de Ouro offenbart die Existenz eines korrupten Überichs, das an die Tyrannei als eine reaktive Formation appelliert, um das Ressentiment abzuwenden, ein vaterloses Kind zu sein, das im Waschbecken einer Gafieira [Tanzsalon] zur Welt kam. Das Konzept des Ressentiments wird im Licht der Freud'schen Psychoanalyse und Nietzsches Philosophie erörtert.

Schlüsselwörter:
Psychoanalyse; Literatur; Freud; Nietzsche


Introdução

O sucesso de Nelson Rodrigues pode ser atribuído, dentre outros tantos fatores, à sua capacidade de ir ao encontro de determinados mitos da vida brasileira. Seja por meio dos temas que ele aborda, seja por meio da linguagem que emprega, o autor consegue (conseguiu) tocar em aspectos fundamentais da constelação da alma brasileira. Dentre esses traços basilares, ele coloca (colocou) em cena certos personagens que representam heróis tipicamente brasileiros. Mas o que distingue o nosso herói dos outros? Da Matta (1997)Da Matta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Rocco., buscando responder a isso, procurou referências na sociedade americana. Nesta, por volta da década de 1930, havia o personagem John Doe, dos filmes de Frank Capra. Este era caracterizado por idealizações sentimentais e comoventes de um homem comum, de forma que, para o americano mediano, ver John Doe é estar diante de um espelho, vendo-se retratado. Isso ocorre porque o principal, nessa visão da sociedade americana, o principal é a dignificação do padrão igualitário que pretende servir a todos e para todos. Diante da crença da igualdade que vigora nos Estados Unidos, são os historiadores que têm a responsabilidade de narrar os grandes feitos exemplares e paradigmáticos. Por outro lado, os criadores de dramas inventam, prioritariamente, tipos como John Doe, que são pessoas comuns, os “regular guys”. Assim prossegue-se com a construção do mito de uma sociedade onde todos são iguais perante a lei e todos podem ser heróis.

No Brasil, a formulação biográfica do “sabe com quem está falando” busca superar a lei pela invocação pernóstica do diferencial pessoal. Assim, coloca-se a regra universal subvalorizada diante daquela pessoa elevada. Esse percurso inusitado do herói brasileiro é necessário para a recepção pelas grandes massas. Neste paralelo entre os Estados Unidos e o Brasil, Da Matta (1997)Da Matta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Rocco. conclui que:

No Brasil, como em outras sociedades hierarquizantes, o personagem - de modo inverso - nunca deve ser o homem comum, aquele que na dramatização representa a si mesmo por meio de sua rotina achatada e desinteressante. Ao contrário, conforme se verifica pelos estudos dos “carnavais” e do “sabe com quem está falando?”, o herói deve sempre ser um pouco trágico para ser interessante, com sua vida sendo definida por meio de uma trajetória tortuosa, cheia de peripécias e desmascaramentos, como prova a fórmula social do “sabe com quem está falando?”. (p. 257)

E como vem ocorrendo a construção dos heróis brasileiros, dos líderes consagrados? Será que existe algo na nossa tradição cultural que tende a dispensar, ou pelo menos dificultar, a criação desses tipos humanos? Nem mesmo os vultos da nossa pátria alcançaram tal estatuto de reconhecimento. Isso pode ser observado, por exemplo, na forma cômica como utilizamos o nome de Duque de Caxias. Quando necessitamos conclamar nossos heróis, o que resta é o lugar vazio. Então, o deboche irônico surge como forma de amansar a autocrítica superegoica. O deboche marcou época como característica da criação artística brasileira por meio da vulgaridade das “chanchadas” e atingiu formas mais elaboradas de expressão em personagens como Macunaíma, de Mário de Andrade, que é considerado a representação mais emblemática da construção do anti-herói na arte brasileira.

Segundo Motta (2011)Motta, L. G. (2011, jul/dez). A narrativa mediada e a permanência da tradição: percurso de um anti-herói brasileiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 38. Recuperado em 5 nov. 2017 em: <http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/12247/1/ARTIGO_NarrativaMediadaPermanencia.pdf>
http://www.repositorio.unb.br/bitstream/...
,

Em um país marcado pela exclusão social, migração descontrolada, urbanização acelerada pela marginalidade e a violência na periferia das grandes cidades, a arte brasileira contemporânea (romances, filmes, canções, videoclipes etc.) recupera com frequência a figura do anti-herói. (p. 201)

A consagração do anti-herói no Brasil é sintomática da formação do nosso Supereu cultural, revelando uma carga penosa de autodepreciação, que beira o masoquismo. Representantes do campo socio-antropológico, tais como Roberto Da Matta (1997)Da Matta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Rocco. e Darcy Ribeiro (1995)Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras., debruçaram-se sobre a compreensão dos aspectos históricos dessa submissão voluntária, decompondo-a em seus componentes culturais, religiosos, políticos e econômicos que permeiam a miscigenação do povo brasileiro.

Neste trabalho, o que nos interessa é a sensibilidade artística de Nelson Rodrigues, tão hábil em representar essa zombaria ao líder por meio da criação de personagens que possibilitaram uma identificação maciça com a plateia. Com efeito, poucos artistas conseguiram utilizar de modo tão original sua perspicácia e sagacidade para detectar o que se passa nos subterrâneos dos corações de seus semelhantes. Ele conseguiu integrar aquilo que o outro emite como formações do inconsciente e, ao mesmo tempo, foi capaz de compor ativamente rebentos artísticos que acrescentam, performaticamente, novas formas de vida à atmosfera sociocultural. Essa sinergia rodrigueana é um dos pontos mais brilhantes de sua obra. O caráter performativo da linguagem ganha concretude e a linguagem não é simplesmente uma representação da realidade, pois efetivamente cria realidades.

Nesse sentido, o personagem rodrigueano “Boca de Ouro” encaixa-se perfeitamente no típico anti-herói pois: “[...] é um herói de caráter contraditório, bom e mau, perverso e protetor, vítima do sistema, rebelde e revolucionário, cínico e cruel, que se debate entre a comunhão e a oposição ao mundo”. (Motta, 2011Motta, L. G. (2011, jul/dez). A narrativa mediada e a permanência da tradição: percurso de um anti-herói brasileiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 38. Recuperado em 5 nov. 2017 em: <http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/12247/1/ARTIGO_NarrativaMediadaPermanencia.pdf>
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, p. 201). A peça que leva o nome do personagem encontrou ótima recepção, estabelecendo comunicação com o grande público, sendo até indicada por alguns críticos como a mais bem-sucedida dentre as criações do autor. Boca de Ouro é um bicheiro prestigiado que atuava em Madureira e acabara de ser assassinado. Faz-se necessário que sua existência seja desvelada por meio de terceiros, principalmente por dona Guigui, ex-amante do banqueiro, e agora casada com Agenor. Dona Guigui apresenta o bicheiro como uma figura contraditória que desperta exaltados sentimentos, indo do ódio mortal até a veneração idolátrica. Tais reações antagônicas podem ser compreendidas pelo modo como Boca lida com a moral, pelo fato de não hesitar diante de nenhum princípio moral que constituísse obstáculo para atingir suas ambições e desejos. Devido a tal característica, consegue ascensão no jogo do bicho, tornando-se um verdadeiro magnata. Nenhum dos relatos lendários a seu respeito consegue esconder o seu ser cafajeste. No entanto, irrompem, também, manifestações altruístas e solidárias, da parte do personagem, que favorecem os pobres e desprivilegiados.

No início do primeiro ato, a rubrica anuncia:

“Boca de ouro”, banqueiro de bicho, em Madureira, é relativamente moço e transmite uma sensação de plenitude vital. Homem astuto, sensual e cruel. Mas como é uma figura que vai aos poucos entrando para a mitologia suburbana, pode ser encarnado por dois ou três personagens, como se tivesse muitas caras e muitas almas. Por outras palavras: diferentes tipos para diferentes comportamentos do mesmo personagem. (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 195)

A característica de ser um mito suburbano encarnado por dois ou três personagens, como se tivesse muitas caras e muitas almas, é ilustrativa do mecanismo de projeção. Ele só existe por meio do olhar e do discurso dos outros personagens. Ou seja, por meio da projeção daqueles que, ao falarem de 'Boca de Ouro', falam também de si, e ao criarem a sua imagem mítica revelam-se nos seus sonhos de poder megalômano e despotismo narcisista. Sua estrutura de personalidade perversa, que não vacila diante da moral vigente quando se trata de realizar os próprios desejos, funciona como um atrativo irresistível, seduzindo os neuróticos que, escravizados pelo seu próprio Supereu, não ousam colocar os seus desejos em prática. A formulação freudiana de que “a neurose é o negativo das perversões” encaixa-se muito bem aqui. Enquanto o neurótico exprime a inibição de desejos, o perverso demonstra a obstinação de encontrar, custe o que custar, um jeito de realizar a impulsão. Boca de Ouro passa ao ato naquilo que os demais personagens recusam ou desconhecem em si mesmos.

Boca de Ouro, Drácula de Madureira

Como personagem autônomo, Boca de ouro só aparece no início da peça, quando está sentado na cadeira do dentista, convencendo-o a arrancar todos os seus dentes que, aliás, são perfeitos, conforme o próprio dentista assegura. O desejo de possuir uma Boca de Ouro parece ser o próprio autocoroamento desse rei do jogo do bicho. Logo em seguida, essa cena será cortada para que na redação do jornal O Sol chegue a notícia de que Boca de Ouro, o rei do bicho em Madureira, fora assassinado.

Caveirinha, o repórter, chega à casa de dona Guigui. Tomada pelo ressentimento do abandono e ainda não sabendo que Boca de Ouro morreu, ela inicia um discurso destrutivo a respeito de Boca. Diz que duvida que publiquem qualquer coisa sobre o bicheiro, pois ele tem entre os seus subordinados jornalistas e políticos. Afirma que viveu com “esse cachorro” e que dele sabe de uns vinte crimes. Dentre esses, lembra-se de um especial e passa a narrá-lo para Caveirinha. As diversas versões de dona Guigui sobre Boca de Ouro constituem o conteúdo dramático da peça. Por meio de dona Guigui e seus relatos variados e discordantes, que estão à mercê de seus humores, Nelson Rodrigues desenvolve um dos temas transversais presente em suas obras: o modo como a realidade é criada por cada um e a crítica aos “idiotas da objetividade”.

Dona Guigui inicia sua primeira narrativa fazendo referência a uma cena do lar suburbano de Celeste e Leleco. Leleco foi despedido porque o patrão não ia com sua cara. Leleco torcia pelo Fluminense, e o patrão acha que torcedor desse time não é homem. Como fora despedido por justa causa por ter agredido o patrão, não há sequer o dinheiro da indenização. A mãe de Celeste está prestes a morrer e, caso isso ocorra, será necessário contar com a benevolência dos vizinhos.

Na casa de Boca de Ouro, inicia-se a nova cena. A rubrica anuncia que o relato que dona Guigui faz para Caveirinha: “Tem um sentido único e taxativo: degradar Boca de Ouro, física e moralmente. O banqueiro de bicho aparece de uma maneira monstruosa” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 205). Com o intuito de conseguir dinheiro para o enterro da sogra, Leleco surge diante de Boca de Ouro que se mantém insensível diante do motivo do pedinte. Sem nenhum pudor, Boca diz que só emprestará o dinheiro caso Celeste, a mulher de Leleco, venha buscá-lo. Configura-se, escancaradamente, a compra da mulher quando Boca exige que Leleco ordene a Celeste que entre em seu quarto. Mesmo feito isso, quando Leleco está seguro de que receberá o dinheiro, o bicheiro debocha e diz que não dará um tostão. Em uma atitude desesperada, Leleco diz a Boca que sabe sobre o seu nascimento: ele havia nascido em uma pia de gafieira. Transfigurado por uma dor sincera, Boca surge em uma ira mortífera e mata Leleco a golpes de coronhada. A imagem do crime fecha o primeiro ato.

No segundo ato, dona Guigui explica a Caveirinha que, embora Boca já tivesse conseguido Celeste, a ofensa à sua mãe deflagrou seu ímpeto assassino. Quando Boca bebia, chamava sua mãe de “A virgem de Ouro!” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 216). Maleficamente, dona Guigui acrescenta que, na verdade, a mãe de Boca era uma vagabunda de “apanhar de homem na esquina”. Agenor, marido de dona Guigui, entra na narrativa dizendo que Boca de Ouro lhe havia tomado dona Guigui, mesmo ela casada “na igreja, com véu, grinalda e outros bichos” e mãe de três filhos. Abandonada pelo rei do bicho, um ano depois, Agenor aceitou-a de volta, justificando que era por causa dos filhos. Aterrorizado, Agenor considera-se um homem morto assim que a reportagem com a história contada por dona Guigui for publicada.

Nesse momento, Caveirinha faz a revelação que tocará profundamente dona Guigui e provocará mudanças profundas na forma de perceber o bicheiro de Madureira: Boca de Ouro está morto. Diante da morte, a mágoa de dona Guigui se esvai e a paixão recalcada vem à tona. Aos gritos, ela proclama: “Morreu o meu amor, morreu o meu amor”. Segundo a rubrica, dona Guigui “Tem essa dor dos subúrbios - dor quase cômica pelo exagero” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 218). Sossegado pela notícia, Agenor diz que Boca de Ouro nunca foi homem. Dona Guigui replica que o marido é que não é homem e ameaça beber-lhe o sangue caso fale mal do bicheiro.

Dona Guigui implora para que o repórter não publique a entrevista e se empenha em negar a primeira versão: “Eu contei aquilo porque você sabe como é mulher... Mulher com dor de cotovelo é um caso sério! Escuta, mulher não presta, é um bicho ruim, danado, bicho danado!'' (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 219). Dona Guigui lamenta ter voltado para a companhia do marido, quando deveria ter caído na zona, e começa a retificar o depoimento anterior, admitindo que Boca de Ouro “tinha, até, uma pinta lorde”.

Nessa nova versão a rubrica registra “Apaga-se a cena. Cena de Boca de Ouro com um negro. Evidente desprezo racial, do branco pelo homem de cor” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 219). Outra personalidade de Boca vai sendo construída. O Preto alude ao comentário do povo, segundo o qual o bicheiro paga o caixão dos pobres. Boca jamais conheceu a mãe, “por isso, diziam que eu não nasci de mulher...” O Preto, sim, conheceu-a e passa a relatar suas características: alegre, gorda, teve bexiga e suava muito. Tal presença prosaica e até mesmo desagradável contrasta com a imagem mítica da “Virgem de ouro” idealizada por Boca.

A cena entre Leleco e Celeste é reconstituída. Dessa vez, Leleco afirma ter visto a mulher num táxi, em Copacabana, em companhia de um homem de cinquenta anos, careca e barrigudo. Celeste não pode ter amor por esse velho. “É dinheiro”. A mulher, em um ingênuo e delicioso bovarismo, nega receber qualquer coisa do amante. Nutre-a outro alimento: “Esse senhor prometeu que me levaria à Europa para ver a Grace Kelly” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 224).

Leleco revela que quer tirar dinheiro desse amante rico, mas já era tarde, Celeste já havia rompido com o rei do bicho. Então, Leleco planeja extorquir Boca com o argumento de pagar o enterro da mãe de Celeste. Nessa nova versão da narrativa, o importante é que se perceba a forma como o bicheiro passa a ser retratado como uma mera vítima da maquinação sórdida de Leleco.

Dona Guigui anuncia que uma comissão de grã-finas vem falar com Boca de Ouro. Elas pertencem a uma “Campanha Pró-filhos dos cancerosos” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 226). Na nova imagem de generosidade, o bicheiro quer logo apanhar o talão de cheques. A intenção das grã-finas, na sua “cintilante frivolidade”, é a de se insinuarem junto a ele. Nelson aproveita outros elementos míticos na pintura de Boca de Ouro. Seu desejo de ser enterrado em um caixão de ouro “parece coisa de um Deus asteca”. As grã-finas rotulam-no como um tipo neorrealista, que o De Sica ia adorar, e o jornal Luta Democrática chama-o de “Drácula de Madureira”.

A presença das grã-finas ia correndo bem até que elas o questionam sobre a história de seu nascimento em uma pia de banheiro de gafieira. A rubrica indica: “(Silêncio. Boca de Ouro levanta-se. Recebeu um choque com a pergunta. Por um momento, seu riso é um ricto de choro.)”(?) (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 228). Ao dar murros no próprio peito parece intentar desafiar o mundo. O ressentimento de Boca por ter sido humilhado naquilo que era o seu núcleo mais frágil irá resultar em um obstinado desejo de vingança. Ele vai incitar as grã-finas por meio da vaidade e da ambição pelo dinheiro.

Promove um inusitado concurso no qual a vencedora, “dona dos peitinhos mais bonitos”, será premiada com um valioso colar de pérolas. A leviandade das grã-finas não recebe a menor complacência por parte do dramaturgo. Celeste quer disputar também o colar, ao que Boca retruca: “Mulher que mostra os peitos não tem vergonha!” Mas como Celeste insiste, Boca acaba por declará-la vencedora. Num arroubo de dignidade, Boca diz ter nascido numa gafieira sim, com muita honra, e Celeste expulsa as grã-finas em termos vulgares: “Rua! Rua! Suas galinhas!”. Tal intermédio vem somar-se à construção de Boca no papel de vítima da frívola crueldade alheia. As grã-finas é que são más quando tocam na ferida dolorosa de Boca. A cena final do segundo ato já não o apresenta como assassino de Leleco. Este entra na sala dizendo à esposa que está disposto a perdoá-la; no entanto, Celeste declara-se mulher de Boca. Leleco puxa o revólver para ele, mas Celeste apunhala Leleco pelas costas. É óbvio que a nova versão de dona Guigui absolve o bicheiro de todos os pecados.

No terceiro ato, Agenor, ultrajado, quer sair de casa, dizendo-se igualmente arrependido de ter tirado a mulher da zona, o que diz ter feito por ser a mãe dos seus filhos. Em um brado de autoafirmação, Agenor diz a Caveirinha: “Jovem, eu não volto atrás! Me cuspa na cara, se eu voltar atrás! Eu sou é homem” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 238). Mas Nelson Rodrigues desmonta o heroísmo que porventura pudesse surgir desse ímpeto quando coloca os jornalistas na intermediação do conflito e usa os filhos como argumento: “Pelas crianças, dona Guigui! Pelas crianças, 'seu' Agenor! Vamos fazer as pazes!”. Em seguida, os dois estão abraçados e chorando pateticamente, enquanto o fotógrafo, sempre explorando o sensacionalismo, “estoura o flash” e agradece. Selando a reconciliação, dona Guigui proclama “esse danado sabe que eu gosto dele!”, e essa mudança no modo de referência ao marido, que oscila segundo as conveniências, promoverá uma nova alteração na elaboração da imagem por ela constituída de Boca de Ouro. Ele volta a ser um covarde, e o marido passa a ser ovacionado: “Por que é que o Boca nunca se meteu com o meu velho? Sabia que o Agenor é fogo! Agenor metia-lhe a mão na cara!” (Rodrigues, 2004, p. 240).

Em uma terceira versão, dona Guigui conta que Leleco, ao surpreender Celeste sendo beijada por um homem dentro de um táxi, obtém desta a confirmação de que se tratava de Boca de Ouro, seu amante. Novamente querendo vantagens financeiras, Leleco vai à casa de Boca reclamar o que dissera ter ganhado ao jogar no bicho no milhar e na centena do número do táxi em que Celeste estava. No decorrer da cena, Boca de Ouro derruba Leleco com uma coronhada e incita Celeste a matá-lo, o que ela faz enfiando-lhe várias vezes o punhal. “Assim nunca dirás que eu matei teu marido!” é o que lhe diz Boca de Ouro ao incentivá-la ao crime. Dona Guigui é chamada para limpar o sangue do chão com palha de aço.

Nesse momento a peça já caminha para o seu desenlace final. Uma das três grã-finas que levam Boca de Ouro a reviver o sofrimento de sua origem abominada chama-se Maria Luísa, antiga colega de Celeste no colégio interno, de quem esta guardava uma recordação carregada de mágoa, por toda arrogância e prepotência que tivera que aturar da colega.

Depois do assassinato de Leleco, Celeste mostra o cadáver a Maria Luísa. Ela chama Boca de Ouro de assassino, e quando o clima indicava que Boca ia matá-la, ele subitamente volta-se contra Celeste e elimina-a com um golpe de navalha. Em seguida, ele é morto por Maria Luísa após ter afirmado que “Boca de Ouro não se humilha para mulher nenhuma!”. Ao término da peça, o locutor radiofônico anuncia: “Mataram o Boca de Ouro, o Al Capone, o Drácula de Madureira, o D. Quixote do jogo do bicho, o homem que matava com uma mão e dava esmola com a outra” (Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 256). Tais apelidos vão ao encontro ao modo de viver de Boca, que esbaldava poder e luxúria.

Boca de Ouro ressentido: Drácula de si mesmo

Tanto na clínica quanto no domínio político-social, o ressentimento atravessa o homem moderno. O ser ressentido atribui a outro a responsabilidade pelo que o faz sofrer. Em um primeiro momento, o ressentido delega a esse outro o poder de decidir por ele, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar. Nesse sentido, o ressentido pode ser tomado como um paradigma do funcionamento neurótico nas suas dimensões de servidão inconsciente e impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). Ressentimento. (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Segundo o Dicionário Aurélio, ressentido remete a “melindrado, magoado, ofendido, ressabiado. Diz-se do fruto que principia a apodrecer”. No aspecto etimológico, encontramos a seguinte definição para a partícula re: ”(i) 'volta, retorno, regresso, revogar, voltar atrás, recuar'; (ii) 'repetição, reiteração, recortar; (iii): oposição, reprovar” (Cunha, 1982Cunha, A. G. (1982). Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. (2. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 665). Essa partícula também compõe a palavra em questão em outros idiomas. Por exemplo: ressentiment, em francês; resentfulness, em inglês; resentimiento, em espanhol. Permanece o sentido de uma repetição mantida ativamente por aquele que foi ofendido. Não se trata de um sujeito que não é capaz de esquecer e de perdoar, mas de alguém que não quer esquecer e não quer perdoar. Mantém uma atividade de ruminação do sentimento penoso com a pretensão de atingir a vingança.

Cogitamos que o derrotado só se transforma em um ressentido quando ele passa a se identificar como vítima, principalmente como vítima inocente de um vencedor que, então, passa a ocupar o lugar de culpado. Ocupando o lugar de vítima, o ressentimento se instala. As queixas e acusações dirigidas silenciosamente ao outro têm a função de ratificar a inocência e manter a passividade. A manutenção ativa do ressentimento é o complemento da posição passiva que o ressentido ocupa diante do outro. Dessa forma, a vítima conquista o ganho secundário de desincumbir-se moralmente de qualquer responsabilidade pela situação que a ofendeu. Essa “covardia moral”, provavelmente, seja a expressão que mais se aplica ao ressentimento. Freud lança mão dessa terminologia quando, ainda na aurora da psicanálise, discute o funcionamento histérico:

Assim o mecanismo que produz a histeria representa, por um lado, um ato de covardia moral e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do ego. Com bastante frequência temos que admitir que rechaçar as excitações crescentes provocando a histeria é, nessas circunstâncias, a coisa mais conveniente a fazer; com maior frequência, naturalmente, temos que concluir que uma dose maior de coragem moral teria sido vantajosa para a pessoa em causa. (Breuer & Freud, 1893-1895/1996Breuer, J., & Freud, S. (1996). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. II). Tradução de James Strachey. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1893-1895)., p. 159)

Entendemos que a coragem moral a que Freud se refere é a coragem de arcar com a responsabilidade pelo seu desejo (Wunsch). Isso não significa o mesmo que satisfazer o desejo, pois a impossibilidade de satisfação do desejo é algo inscrito em sua própria natureza, que só se realiza, no sentido que Freud atribui ao termo em A interpretação dos sonhos, por meio de suas articulações significantes. Nesse sentido, o neurótico ressentido abre mão de comprometer-se com seu desejo tomado como causa. Ele é poltrão no sentido em que não reconhece que as moções do Inconsciente lhe dizem respeito.

O postulado freudiano a respeito do masoquismo moral pode ser útil no estabelecimento da relação entre a operação que produz a covardia acima citada e o ressentimento. A resistência à cura no processo analítico tem, como uma de suas formas de manifestação, o gozo masoquista. Comparando com o ressentido, temos no apego a seu sofrimento a fonte de suas queixas repetidas e de suas acusações contra o outro. Essas seriam duas vertentes do que Freud denominou reação terapêutica negativa. A articulação entre a moral e o gozo pode ser expressa da seguinte forma: O Eu quer se fazer castigar pelo Supereu, não por sentir-se culpado, mas porque ele gosta disso. O castigo vem ressexualizar aquilo que o complexo de Édipo dessexualizou.

Esse gozo ressentido encarna-se de forma radical em Boca de Ouro. Este, nascido de mãe pagodeira, foi expulso do paraíso uterino direto para um banheiro de gafieira. Daí em diante, sentiu-se condenado à condição de excremento. O caminho da violência e do ressentimento foi o escolhido por Boca para superar essa angústia. Na condição de excremento da mãe e desprezando--se, ele torna-se incapaz de curar-se dessa ferida originária. O deslocamento metonímico pia imunda, banheiro sujo, fezes, bebê compõe a sequência significante contida na origem de Boca. Assim, ele repete a teoria sexual infantil descrita por Freud: “Se o bebê se desenvolve no corpo da mãe, sendo então retirado, isto só pode acontecer através de um único caminho: a passagem anal. O bebê precisa ser expelido como um excremento, numa evacuação” (Freud, 1908/1996Freud, S. (1996). Sobre as teorias sexuais das crianças. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. IX). Tradução de James Strachey. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908)., p. 198). O bicheiro intentou transmutar fezes em ouro, isto é, extrair da sua própria humilhação e fraqueza, força e potência. Com efeito, Boca percorre o circuito bebê-fezes-pênis.

Segundo Pelegrino (2004)Pelegrino, H. and Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., o significado profundo da peça e o seu alcance ético podem ser encontrados na demonstração da impossibilidade de o homem, por meio do furor destrutivo, atingir a resolução. O ressentimento alçado ao estado de uma paixão existencial e a raiva cega que dele decorre levam ao abismo e ao aniquilamento pela morte. Nas palavras de Hélio Pelegrino, psicanalista amigo de Nelson, uma “alquimia sublimatória” pode ser encontrada em outra direção:

O homem, sem dúvida, traz consigo, no mais íntimo de sua substância ontológica, a vocação da alquimia, a sede de transfiguração, instinto que o leva a tentar a transformação do barro em ouro. Mas este milagre só se opera na medida em que o homem se aceita e se ama na sua fragilidade, na argila perecível e corrutível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Neste instante, sem o saber, eis que encontra em suas mãos a pedra filosofal que o transfigura e lhe abre as portas da luz que não se apaga. (Pelegrino, apud Rodrigues, 2004Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 285)

Nietzsche desvelou o ressentimento e o articulou aos valores morais, principalmente aqueles impostos pelo cristianismo. A genealogia desses valores remete a Sócrates e Platão, que destruíram o espírito trágico da Grécia pré-socrática. Na modernidade, eles se desenvolveram a partir de uma aliança entre a tutela da Igreja e a coerção que o Estado impõe aos instintos vitais, em troca de proteção aos indivíduos. Nietzsche combate aqueles que defendem uma natureza metafísica dos valores. Esses são criados pelo homem, mas nem sempre são impostos pelos mais fortes aos mais fracos. Via de regra, a moral é invenção dos derrotados. É nesse contexto que Nietzsche introduz o conceito de ressentimento para designar essa força dos fracos, essa vitória da moral do homem escravo:

A rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtém reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, “um não eu” - e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si - é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação. (Nietzsche, 1887/1998Nietzsche, F. (1998). Genealogia da moral. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1887)., p. 29)

O ressentimento em Boca de Ouro assume o caráter dessa reação. Uma vingança imaginária dirigida às condições ultrajantes em que nasceu. No entanto, segundo Nietzsche, essas condições só podem ser consideradas ofensivas se comparadas a outra moral. A uma moral baseada em princípios de pureza, imaculação e beatitude. O ressentido bicheiro, ao invés de dizer “Sim” a si mesmo e à sua origem (o que levaria a amar-se, conforme já dito na análise de Hélio Pellegrino), prefere dizer “Não” ao seu Eu. Cria, assim, as condições para a perpetuação de um masoquismo moral e para o fortalecimento de um Supereu algoz, com paroxismos de fúria na desesperada tentativa de afirmar-se.

Nelson Rodrigues também foi conhecido como um exímio frasista. Em uma delas, ele conseguiu demonstrar, com sua perspicácia para o desvelamento da alma humana, o funcionamento de um Supereu carrasco: “O homem pode viver sem amor e não pode viver sem ódio. Como precisa odiar alguém, e não tem ninguém para odiar, odeia-se a si mesmo. Um dia, arrancará a própria carótida e chupará o próprio sangue, como um vampiro de si mesmo” (Rodrigues, 1997Rodrigues, N. (1997). Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 122).

Essa constelação funesta em funcionamento no Drácula de Madureira transformá-lo-á na vítima da violência que ele próprio exaltava. Acabou jogado na sarjeta, crivado de punhaladas, reduzido a matéria vil, verdadeiro excremento a que tanto tinha horror. Após sua morte, nem seu último estandarte pôde amenizar a sua humilhação mórbida: sua dentadura foi roubada. Extraída sua potência localizada na avidez voraz do aparelho ora-dentário, aperfeiçoado com uma áurea dentadura, Boca de Ouro vê-se emasculado. Destronado, castrado, enfim, Boca torna-se o que ele mais temia: aviltado e o mais reles dos seres.

Considerações finais

As três diferentes versões estão coerentes com a intenção de Nelson Rodrigues ao criar o personagem Boca de Ouro, que pertence muito mais a uma mitologia suburbana do que à realidade normal da Zona Norte. Tal construção do mito torna-se clara diante de um fluxo ditado pelo humor bastante instável de quem realiza a tradição oral do relato. Dona Guigui é a leviandade em pessoa, de uma ambivalência que denuncia o seu modo farsante de compor a realidade segundo os interesses pessoais.

Boca de Ouro era movido por determinadas obsessões: sua dentadura de ouro, o almejado enterro num caixão de ouro e a vontade de conhecer sua mãe. O fato de não tê-la conhecido foi o grande motor para a exaltação de sua imagem, que ele luta para manter sacralizada, imaculada e intocável. A construção dessa imagem, em flagrante discordância com a realidade objetiva, obedece exclusivamente a sua necessidade de purificar a pessoa da mãe, a despeito de todas as evidências em contrário. Essa “Virgem de Ouro” é um ser sublime de uma pureza e uma inocência capazes de lhe inspirar os mais ternos e singelos sentimentos. Com efeito, ele chega a chorar quando se refere à mãe o que não é um traço constante em sua personalidade.

Podemos inferir que o desejo de Boca ser enterrado em um caixão de ouro significa uma forma de reencontro com a mãe desconhecida. O caixão e a mãe compostos por ouro dão-nos um forte indício desse deslocamento metonímico. A morte do filho representa o seu verdadeiro nascimento, pois possibilitaria o encontro com a mãe venerada. Pleiteando um nascimento às avessas, verdadeiro retorno ao útero que surge representado pelo caixão, voltaria a ser o continente que um dia o conteve e no qual ele, como conteúdo único e absoluto, viveu o tempo mais próximo da paz total que é possível ser experimentada pelo ser humano. Tempo que ficaria registrado para sempre na memória inconsciente como um nirvana, um retorno ao inanimado que vai ao encontro ao que Freud quis significar com o conceito de pulsão de morte.

Referências

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  • Cunha, A. G. (1982). Dicionário etimológico da Língua Portuguesa (2. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
  • Freud, S. (1996). Sobre as teorias sexuais das crianças. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. IX). Tradução de James Strachey. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908).
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  • Motta, L. G. (2011, jul/dez). A narrativa mediada e a permanência da tradição: percurso de um anti-herói brasileiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 38. Recuperado em 5 nov. 2017 em: <http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/12247/1/ARTIGO_NarrativaMediadaPermanencia.pdf>
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  • Nietzsche, F. (1998). Genealogia da moral São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1887).
  • Pelegrino, H. and Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
  • Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Rodrigues, N. (1997). Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Rodrigues, N. (2004). Teatro Completo de Nelson Rodrigues Tragédias Cariocas (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2018
  • Aceito
    29 Set 2018
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