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Observando a psiquiatria

Observar a Psiquiatria. Como se faz? Observa-se com lupa ou com luneta? A olho nu? Só mobilizamos a visão ou também outros sentidos? E o que devemos “observar” quando “observamos” a psiquiatria? Quais os contornos deste “objeto”? Para início de conversa, poderíamos circunscrever a psiquiatria dentro dos mesmos limites propostos por Canguilhem (1966/1982)Canguilhem, G. (1982). O normal e o patológico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1966). para situar a Medicina: “…uma técnica ou uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita [...] técnica ou arte de instauração e restauração do normal, situada na confluência de várias ciências e saberes, não redutível a uma dimensão exclusivamente cognitiva” (p. 16).

Essa passagem, em sua elegância e concisão, já indica alguns pontos fundamentais que nos servem como parâmetros para organizar a observação. De saída ela nos lembra que o nosso objeto é menos da ordem da fidelidade epistemológica a uma das regiões da ciência, regidas pelos seus respectivos reducionismos metodológicos, do que da ordem de saber-fazer informado por diferentes ciências (naturais, sociais e humanas). Em seguida, somos informados sobre qual estado de coisas essa prática se propõe a transformar: instaurar ou restaurar o normal. Contudo, essa formulação crua oculta a enorme complexidade deste ponto: que práticas normativas e de normalização subjazem às nosologias, terapêuticas, políticas públicas? Devemos entender por restauração e instauração do normal uma recuperação clínica avaliada por parâmetros objetivos, medidos por escalas e protocolos? Ou o estabelecimento de uma normatividade que permita a criação de novas formas de relação do organismo humano com o seu meio natural, social e cultural? E finalmente, a passagem acima citada indica que as práticas clínicas e terapêuticas são um procedimento que não se esgota no plano cognitivo, mas envolvem necessariamente as dimensões intuitivas, afetivas e empáticas. Ou, formulando em outros termos, articulam necessariamente evidências, narrativas e valores.

Poder-se-ia objetar que o que apresentamos até agora concerne à medicina, de uma maneira geral. Não haveria alguma especificidade na Psiquiatria? O recurso à História pode nos ajudar a responder a esta pergunta.

A Psiquiatria emerge como a primeira especialidade da Medicina (Castel, 1978Castel, R. (1978). A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) há pouco mais de duzentos anos, em um cenário de importantes reformas políticas e institucionais. Esse momento foi interpretado tanto como o ponto culminante de um processo de exclusão dos desviantes da norma, iniciado século e meio antes (Foucault, 1961/1978Foucault, M. (1978). História da loucura na idade clássica.São Paulo, SP: Perspectiva.), quanto o início de um processo de inclusão da loucura, que se estende também a outros desabilitados (Swain, 1977Swain, G. (1977). Le sujet de la folie. naissance de la psychiatrie. Toulouse, França: Privat, 1977.). Divergências à parte, o que essas duas interpretações têm em comum é a necessidade de compreender a Psiquiatria não só como o resultado do desenvolvimento interno do conhecimento médico, mas também como a expressão do contexto político, social e econômico no qual se insere.

De um ponto de vista mais interno, pode-se dizer que a Psiquiatria foi considerada a primeira especialidade da medicina menos pela particularidade do seu objeto - a loucura - do que por se caracterizar como uma medicina especial, devido à singularidade do seu espaço institucional de exercício - o asilo -, de suas práticas de cura - o tratamento moral - e da insistência no modelo clínico-sintomatológico, enquanto o restante da medicina tomava a anátomo-clínica como sua principal referência teórica e metodológica.

Essas especificidades encontram sua primeira formulação e síntese na obra de Pinel, Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale, publicada em primeira edição em 1801, onde encontramos a especialidade nascente escorada em fundamentos extraídos do conhecimento da medicina, da filosofia e da prática junto aos pacientes. Pode-se dizer que, desde a sua alvorada, a Psiquiatria reconhece a complexidade ética e epistemológica de sua práxis e a necessidade de embasá-la nas ciências naturais e nas humanidades para fazer face ao desafio do cuidado terapêutico do sofrimento psíquico.

O pluralismo metodológico da psiquiatria, reconhecido e desenvolvido conceitualmente de forma sistemática pela primeira vez por Karl Jaspers (Ghaemi, 2007Ghaemi, S. N. (2007). Pluralism in psychiatry: Karl Jaspers on science. Philosophy, psychiatry, & psychology, 14(1), 57-66.), nos oferece um enquadramento abrangente para organizarmos a nossa “observação” da psiquiatria. Como fazer face ao desafio de articular o corpo, em sua dupla face, objetiva e subjetiva, às vivências subjetivas e suas expressões interpretativas e narrativas produzidas no marco da história e da cultura (Kirmayer, 2015Kirmayer, L. J. (2015). Re-visioning psychiatry: toward an ecology of mind in health and illness. In: Re-visioning psychiatry: Cultural phenomenology, critical neuroscience and global mental health (pp. 622-660). Cambridge, Cambridge University Press)?

À guisa de ilustração, podemos pensar nas questões que se colocam para a Psiquiatria, à medida que ela se desloca do ambiente quase experimental e asséptico do hospital psiquiátrico para a vida pulsante dos territórios da Atenção Psicossocial e da Atenção Básica, tanto no que diz respeito às categorias operatórias na apreensão das formas de sofrimento quanto no repertório de práticas de cuidado.

Ou nas questões que se colocam para a Psiquiatria em um mundo conectado, de subjetividades líquidas e cambiantes, de novos modos de uso e experiência do corpo. Ou que dizem respeito ao sofrimento moral que se produz em um cenário de precarização dos mecanismos de proteção social, de aumento da exclusão, das diferentes formas de violência, onde questões de classe, raça, gênero se impõem como operadores do conhecimento e da prática.

A seção “Observando a Psiquiatria” existe na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental desde 2004. Desde então foram publicados 33 artigos, que se concentraram em dois períodos: entre 2004 e 2008 e de 2014 até o presente momento. A seção se propõe a receber artigos que examinem, sob uma perspectiva crítica e reflexiva, as categorias que organizam a clínica e as práticas institucionais da psiquiatria contemporânea. Esta revista se alinha, assim, aos esforços oriundos de pesquisadores, praticantes, profissionais de diversos campos de saber e usuários no sentido de manter a psiquiatria viva e plural. A visada crítica e reflexiva de seus artigos pode contribuir decisivamente para a abertura permanente de nossas teorias e nossas práxis ao mundo onde elas estão inseridas. Diminuindo, deste modo, os riscos claros de redução do mental a apenas alguns de seus aspectos possíveis, como, por exemplo, o que habitualmente denominamos de neurociências. Convidamos a todos os praticantes e pesquisadores deste campo a compartilharem as suas observações aqui conosco.

Referências

  • Castel, R. (1978). A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo Rio de Janeiro, RJ: Graal.
  • Canguilhem, G. (1982). O normal e o patológico Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Foucault, M. (1978). História da loucura na idade clássicaSão Paulo, SP: Perspectiva.
  • Ghaemi, S. N. (2007). Pluralism in psychiatry: Karl Jaspers on science. Philosophy, psychiatry, & psychology, 14(1), 57-66.
  • Kirmayer, L. J. (2015). Re-visioning psychiatry: toward an ecology of mind in health and illness. In: Re-visioning psychiatry: Cultural phenomenology, critical neuroscience and global mental health (pp. 622-660). Cambridge, Cambridge University Press
  • Swain, G. (1977). Le sujet de la folie. naissance de la psychiatrie Toulouse, França: Privat, 1977.
Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Galdini R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2019
  • Aceito
    17 Jun 2019
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