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De uma clínica do refúgio: violência, trauma e escrita*1 *1 O presente trabalho é desdobramento do projeto de pesquisa de Doutorado de Mariana Salles Kehl, aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, sob orientação da Profa. Maria Isabel Fortes. A aluna é bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. O conteúdo apresentado é inédito e deverá ser incorporado parcial ou integralmente ao texto da tese, com previsão de defesa em fevereiro de 2022

On a clinic of refuge: violence, trauma and writing

De la clinique de refuge: violence, traumatisme et écriture

De una clínica del refugio: violencia, trauma y escrita

Klinik der Zuflucht: Gewalt, trauma und Schreiben

Resumos

O artigo apresenta uma reflexão sobre as atuais políticas de migração e o status quo do refugiado, circunscrevendo algumas especificidades de sua configuração subjetiva. Elementos traumáticos e hiatos expressivos no âmbito da capacidade representacional revelam-se como contingências, corolário da exposição reiterada à precariedade e à violência. A partir de algumas ferramentas metapsicológicas e da interlocução entre psicanálise, cultura e literatura, desenvolvem-se os aspectos mais relevantes e idiossincráticos de uma clínica do refúgio. Para tanto, utiliza-se como recurso ilustrativo a narrativa de caráter fortemente autobiográfico Por que a criança cozinha na polenta (2004), da escritora romena Aglaja Veteranyi.

Palavras-chave:
Clínica; refugiado; violência; literatura


This paper discusses current migration policies and the status quo of refugees by circumscribing some specificities of its subjective configuration. Traumatic elements and expressive hiatuses belonging to the representational capacity show to be contingencies, a corollary of repeated exposure to precariousness and violence. Based on some metapsychological tools and the interlocution between psychoanalysis, culture and literature, the most relevant and idiosyncratic aspects of the clinic of refuge are developed. To achieve that, the strongly autobiographical narrative “Why the Child is Cooking in the Polenta” by Romanian writer Aglaja Veteranyi is used as an illustrative resource.

Key words:
Clinic; refugee; violence; literature


Cet article présente une réflexion sur les politiques migratoires actuelles et le statu quo du réfugié, circonscrivant certaines spécificités de sa configuration subjective. Les éléments traumatiques et les lacunes d’expression dans le domaine de la capacité de représentation se révèlent comme des contingences, corollaire d’une exposition répétée à la précarité et à la violence. À partir d’outils métapsychologiques et l’articulation entre la psychanalyse, la culture et la littérature, on développe les aspects les plus pertinents et idiosyncratiques d’une clinique du refuge. À cette fin, le roman fortement autobiographique « Pourquoi l’enfant cuisait dans la polenta » de l’écrivain roumaine Aglaja Veteranyi est utilisé à titre d’illustration.

Mots clés:
Clinique; réfugié; violence; littérature


El artículo presenta una reflexión sobre las actuales políticas de migración y el status quo del refugiado, circunscribiendo algunas especificidades de su configuración subjetiva. Elementos traumáticos y brechas expresivas en el ámbito de la capacidad representacional se revelan como contingencias, corolario de la exposición reiterada a la precariedad y a la violencia. A partir de algunas herramientas metapsicológicas y de la interlocución entre el psicoanálisis, la cultura y la literatura, se desarrollan los aspectos más relevantes e idiosincrásicos de una clínica del refugio. Para ello, se utiliza como recurso ilustrativo una narrativa de carácter fuertemente autobiográfico: ¿Por qué se cuece el niño en la polenta?, de la escritora rumana Aglaja Veteranyi.

Palabras clave:
Clínica; refugiado; violencia; literatura


Dieser Artikel analysiert die aktuelle Migrationspolitik und den Status Quo der Flüchtlinge, wobei einige Besonderheiten ihrer subjektiven Konfiguration näher betrachtet werden. Traumatische Elemente und expressive Lücken im Rahmen der Repräsentationsfähigkeit offenbaren sich als Kontingenz, als Konsequenzen der wiederholten Einwirkung von Prekarität und Gewalt. Basierend auf einigen metapsychologischen Begriffen und der Verknüpfung von Psychoanalyse, Kultur und Literatur werden die bedeutenden und idiosynkratischen Aspekte einer Klinik der Zuflucht entwickelt. Außerdem wird ebenfalls das Buch „Warum das Kind in der Polenta kocht“ der rumänischen Schriftstellerin Aglaja Veteranyi als darstellendes Mittel verwendet.

Schlüsselwörter:
Klinik; Flüchtling; Gewalt; Literatur


Introdução

Uma reflexão acerca do status quo do refugiado e das atuais políticas de migração apresenta-se, em âmbito global, como uma questão imperativa. Os fluxos migratórios maciços e forçados - os maiores desde a Segunda Guerra Mundial - e seus desdobramentos configuram-se como pautas prioritárias no cenário internacional contemporâneo, principalmente no que se refere à proteção dos Direitos Humanos. De acordo com as estatísticas divulgadas pela United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) - em língua portuguesa, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ou ACNUR, o deslocamento forçado, consequência direta da violência difusa, conflitos, perseguições e violações de direitos, atingiu quase 68 milhões de pessoas ao redor do mundo em 2016, índice cuja tendência é a contínua ampliação.

Frente ao recrudescimento deste quadro e às dificuldades e empecilhos impostos à entrada de refugiados em muitos países, o Brasil destaca-se e configura-se como precursor na América Latina na destinação de uma lei específica ao Refúgio (Lei n. 9.474, 1997) e na criação de um órgão próprio destinado a este campo - o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados). Além disso, o país é um destino alternativo de crescente notabilização na rota de imigração e atualmente ocupa a sexta posição em número de pedidos de refúgio (jornal O Globo, 19.6.18O Globo. Recuperado em 27 set. 2018,de: <https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-acumula-maior-numero-de-pedidos-de-refugio-na-america-latina-22796872>.
https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-ac...
).

Ainda que se tenha à disposição uma série de recursos para lidar com esse grupo social singular, sabe-se que reiteradamente esses sujeitos, mesmo aqueles portadores de vistos humanitários e detentores de uma concessão legal de refúgio, podem permanecer em situações de vulnerabilidade socioeconômica e de extrema (e potencializada) fragilidade psíquica - resultado de um contexto que ainda segrega e exclui apesar da existência de legislações protetivas. A irregularidade é também uma realidade usual devido aos trâmites e demais burocracias que estendem temporalmente o processo de solicitação de refúgio e que, ao ser negado, recorrentemente acarreta em clandestinidade. Devido aos dispêndios públicos e escasso retorno econômico, a não concessão de refúgio é uma forte tendência observada nos países que se conformam como destinos tradicionais (América do Norte e Europa Ocidental, principalmente) na rota de imigração. Posto isto, torna-se imprescindível que os desafios na recepção, acolhimento e integração de populações refugiadas sejam enfrentados.

De acordo com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, elaborada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, estes são definidos como:

[...] toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo. (ONU, 1951, p. 14)

Tal definição provoca consideráveis efeitos de ordem legal: a abertura a interpretações da Justiça e a formalização de duas categorias “migratórias”. A hermenêutica em relação à composição da figura jurídica do refugiado produz sistematicamente a concessão do refúgio baseando-se no convencimento discursivo frente às autoridades do país de destino a respeito da imprescindibilidade de proteção, o que pode acarretar, além da não outorga da categoria, em mais uma forma de violência contra o solicitante. Em relação à categorização, como desdobramento da definição realizada, é postulada uma diferenciação entre o refugiado e o imigrante.

A “migração” é definida pela ação de expatriar-se: trata-se de um deslocamento do país de origem (pátria), de modo facultativo, a outro. Este empreendimento, embora seja entendido como voluntário (isto é, sem nenhum modo explícito de coação por terceiros), pode implicar um cruzamento de fronteiras que visa à obtenção de oportunidades econômicas mais favoráveis e/ou busca de diversidade - e não por decorrência de um contexto de insegurança que produza risco de vida. Assim, a partir de uma definição juridicamente concebida, todo refugiado pode ser equiparado hermeneuticamente à figura do imigrante, entretanto um imigrante não se caracteriza como um indivíduo em situação de refúgio (que supostamente tem a seu dispor um sistema de proteção e garantia de direitos como a não deportação, por exemplo). Posto isso, nesta pesquisa o objeto de estudo é limitado à figura do refugiado e seus descendentes, ainda que, muitas vezes, utilizemos o termo “imigrante” ou “migrante” como referência a este.

Apontadas as devidas distinções entre as classes acima expostas, as particularidades potencialmente traumáticas associadas à origem geopolítica do refugiado e a constante precariedade mantida em seu cotidiano (que coloca em xeque o suporte legal em vigor), Weintraub (2012Weintraub, A. C. A. M. (2012, dez.). Estudos sobre refugiados publicados no Brasil na década de 2000. Avá, 21, 195-211.), ao realizar um levantamento sistemático da literatura publicada em revistas científicas brasileiras sobre essa população, resgata uma série de aspectos consideráveis relacionados aos elementos citados. Recupera-se aqui, brevemente, alguns dos trabalhos que se dedicam especialmente à saúde mental do refugiado. Pérez, Navarrete e Gil (2003Pérez, A., Navarrete, M., & Gil, M. (2003). Necesidades en salud de la población desplazada por conflicto armado en Bogotá. Revista Espanhola de Salud Pública, 77(2), 257-266.) trazem dados que descrevem as repercussões psicológicas que podem ser observadas frente a situações de refúgio e é ressaltado que “não é só a experiência da violência que causa este impacto, mas também a exclusão econômica e social, além da estigmatização que estas pessoas sofrem nos países ou regiões acolhedores” (pp. 199-200). Buss (2007Buss, P. M. (2007). Globalização, pobreza e saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 12(6), 1575-1589.) pondera que há “inúmeros estudos [que] mostram que os grupos humanos deslocados pela força de seus redutos originais apresentam piores condições de saúde física e mental quando comparados à sua situação original ou com a nova vizinhança” (p. 1582).

Ao nos concentrarmos nos aspectos que se referem à subjetividade do refugiado, a psicanálise, saber que dialoga com os fenômenos da cultura, principalmente através daquilo que se reflete diretamente no âmbito clínico, é convocada a se posicionar diante das especificidades dessas configurações. No contexto de atendimento clínico de populações refugiadas frequentemente são verificadas a presença de elementos traumáticos e fragilidades no âmbito da capacidade representacional destes sujeitos que podem ocorrer especialmente devido à superexposição à violência, perdas e demais danos. A escuta clínica e o manejo terapêutico devem considerar, como ponderam Rosa, Berta, Carignato e Alencar (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511.) a possível constituição de um sujeito marcado pelo trauma da violência, sua vinculação precária com a cultura e a necessidade da realização de ressignificações face ao impacto da violência psíquica carreada pela imigração

Considerando-se a importância desta temática para a práxis psicanalítica e a escassez de trabalhos que se destinam propriamente a uma clínica do refúgio, o objetivo deste artigo é realizar uma reflexão teórica a partir do desenvolvimento sintético de seus aspectos mais relevantes. Para tanto, pretende-se também utilizar como recurso ilustrativo a narrativa literária de caráter fortemente autobiográfico Por que a criança cozinha na polenta (2004), da romena de expressão alemã Aglaja Veteranyi.

Trauma e violência: a clínica do refúgio

Sem o intuito de realizar considerações generalizadas, Gomes (2017Gomes, M. A. (2017). Os impactos subjetivos dos fluxos migratórios: os haitianos em Florianópolis (SC). Psicol. Soc., 29 (on line), e162484, 1-11.) observa algumas características que se repetem nos relatos de refugiados no que se refere à sua condição subjetiva. Após a chegada ao país de destino, muitos encontram obstáculos no estabelecimento de novos vínculos sociais, o que pode reforçar as vulnerabilidades psíquicas já presentes à medida que há um “rebaixamento de seus referentes culturais, [produzindo] um profundo desamparo” (p. 6).

O desamparo, experiência estruturante fundamental do ser humano e promotora dos laços sociais, pode ser entendido como matriz das situações de trauma, uma vez que esta confronta o sujeito com a sua impotência frente ao desamparo originário da infância. Freud, em “O mal-estar na civilização” (1930/1990e)Freud, S. (1990e). Mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXI). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)., localiza a infelicidade e as vivências traumáticas como procedentes de três fontes: do sofrimento do próprio corpo, do mundo externo ou da violência suscitada pelas relações com o outro. Na cultura encontramos o mal-estar destacado na perpétua oposição entre civilização e barbárie, sendo a barbárie aquilo que se coloca em oposição à cultura, pois promove a catástrofe que se articula com um real irrepresentável. A cultura pode ser definida como:

[...] arcabouço simbólico, lugar onde o sujeito busca seus referentes, ancoragens, direcionamentos, sentidos e apoio para suas escolhas, decisões e ações. Desse modo, a cultura também possui um papel protetivo aos sujeitos que nela estão inseridos, na medida em que cria pontos de identificação e lhes possibilita que se reconheçam como pertencentes a um grupo social, tornando-se um referente simbólico que os auxiliará a elaborar e guiar suas experiências. (Gomes, 2017Gomes, M. A. (2017). Os impactos subjetivos dos fluxos migratórios: os haitianos em Florianópolis (SC). Psicol. Soc., 29 (on line), e162484, 1-11., p. 6)

A cultura, portanto, pode ser considerada substituta da função materna (Rassial, 2006Rassial, J.-J. (2006). Cultura como conceito psicanalítico. Textura - Revista de Psicanálise, 6(6), 32-34.) à medida que oferece artifícios para que o sujeito se reconheça, atribuição intrinsecamente articulada à sua identidade, seja em sua promoção, através dos laços, ou em sua dissociação através da violência e do traumático.

Com a migração forçada há um desenraizamento e uma ruptura com o universo simbólico original de modo exacerbado, uma vez que não há um encontro com o outro estrangeiro e um distanciamento apenas da cultura, mas também dos laços sociais (família, instituições, amigos, idioma), recrudescendo o “sentimento de estranhamento de si e do outro, provocando comumente caos e sofrimento psíquico ao migrante” (Gomes, 2017Gomes, M. A. (2017). Os impactos subjetivos dos fluxos migratórios: os haitianos em Florianópolis (SC). Psicol. Soc., 29 (on line), e162484, 1-11., p. 8).

De acordo com Rosa et al. (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511.), tais ocorrências se devem à suspensão da “função pacificadora e estabilizadora do Eu” - afetando os registros imaginário (eu ideal) e simbólico (ideal do eu) - de modo que seu depauperamento pode franquear uma ampla desorientação, facilitando “a aceitação do mínimo para a subsistência, dispensados os artifícios narcísicos, que podem tomar forma de conformidade e submissão” (p. 501). Ou seja, é muito comum que refugiados se encontrem em situações de assujeitamento, como demonstram inúmeras denúncias e reportagens, haja vista essa “dissolução parcial de si” e a vulnerabilidade econômica, aspecto que também deve ser considerado nas situações de abusos e irregularidades trabalhistas.

Para além dos impactos na saúde mental desses sujeitos - representantes do desamparo contemporâneo - no que se refere à exclusão e identidade associadas ao deslocamento forçado (no qual não está presente a dimensão de escolha em direção a um novo espaço geográfico), é igualmente possível e frequente a identificação de desdobramentos psíquicos assoladores da vivência específica de eventos traumáticos de violência extrema (no país de origem e também de destino, através da xenofobia e outras manifestações de hostilidade) para além do trauma associado à aproximação da experiência de desamparo.

Sobre violência em psicanálise

A violência é um fenômeno de extraordinária complexidade e heterogeneidade que pode ser localizado em incontáveis momentos da história da humanidade. Freud, ao se dedicar ao estudo desta temática, prioriza uma abordagem que favorece, precisamente, o diálogo com as manifestações da cultura e modos de subjetividade vigentes em determinada época, circunscrevendo as diferentes expressões da violência ao seu contexto sócio-histórico.

Segundo Miller e Laurent (2005Miller, J.-A., & Laurent, E. (2005). El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires, Argentina: Paidós.), fala-se, na contemporaneidade, em declínio da função paterna, no esvanecimento do Outro, na decadência da lei-simbólica e seus efeitos políticos no gozo compulsório enquanto obrigação moral. Destes decorreriam a disseminação da violência enquanto modus operandi frente a qualquer ordem de conflito. Desse modo, o discurso vigente implica a difusão de uma política da atuação pela qual os atos substituem a palavra, isto é, a resposta do sujeito se dando unicamente pela via do gozo, coadunando-o. Diz-se, então, que a subjetividade na atualidade está marcada pelo discurso capitalista que, na concepção estabelecida por Lacan (2011Lacan, J. (2011). Estou falando com as paredes: conversas na capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), distingue-se pela “Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, a rejeição da castração [...]. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado [...] coisas do amor” (p. 88). Isto implica o comprometimento do estabelecimento de laços sociais, na insatisfação constante e na procura permanente por um “a mais”, isto é, um excesso que se torna condição favorecedora da violência enquanto resultante de um imperativo de gozo.

Considerando-se o contexto presente, a psicanálise, a nosso ver, oferece, então, uma chave de leitura que permite balizar e ao mesmo tempo intervir no fenômeno da violência em grande escala, maior responsável hoje pelo deslocamento de refugiados. Em Freud, a violência não adquire estatuto de um conceito psicanalítico propriamente dito, no entanto, a questão é tratada a partir de sua aproximação com os temas da agressividade e da pulsão de morte.

Nesta perspectiva, a agressividade aparece como uma disposição pulsional originária do ser humano. É importante sublinhar, entretanto, que tal constatação se diferencia necessariamente da noção de instinto, justamente porque a inscrição na ordem social seria capaz de submeter as intenções agressivas do eu às leis, isto é, a cultura estaria habilitada a operar como forte obstáculo a tais disposições. A hostilidade e ódio são entendidos como afetos que expressam a agressividade e a crueldade é uma “forma de dizer da agressividade no registro da ação direta contra o outro ou contra si mesmo, tal como pode ser observada no sadomasoquismo” (Ferrari, 2006Ferrari, I. F. (2006). Agressividade e violência. Psicologia Clínica, 18(2), 49-62., p. 54). Ou seja, a crueldade emerge como fracasso da compaixão social, pois possibilita o ato e, para tanto, preconiza a desconsideração ao outro. Assim, podemos dizer que a violência em grande escala é resultado de uma inclinação humana, porém efeito também da ruína da compaixão (que não pôde impedi-la) vinculada à política do ato e dissolução e/ou não estabelecimento do laço social.

Dessa maneira, consideramos que discorrer psicanaliticamente acerca da violência é uma tarefa complexa e pressupõe, igualmente, o aporte da segunda tópica freudiana, quando é esquadrinhado o conceito de pulsão de morte e Eros e Thanatos se instituem como forças motrizes que conduzem o novo modelo de dualidade pulsional (Freud, 1920/1990cFreud, S. (1990c). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XVIII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).). Freud (1930/1990e)Freud, S. (1990e). Mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXI). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1930). se valerá também do termo “pulsão destrutiva”, do conceito de repetição, do masoquismo e do narcisismo (articulado aos conceitos de identificação e agressividade) para a compreensão metapsicológica dos atos de violência que, por sua vez, apontam para a constatação de que a destruição opera na linha de frente e como fio condutor da vida humana (Freud, 1933/1990fFreud, S. (1990f). Por que a guerra? In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933).).

Ao longo de suas elaborações Freud complexifica o tema da agressividade que, embora seja vista como adversária da civilização, é também compreendida como forma de o sujeito se preservar na cultura. Segundo Ferrari (2006Ferrari, I. F. (2006). Agressividade e violência. Psicologia Clínica, 18(2), 49-62.), isto acontece porque “no interior do sujeito, como há a pretensão de tornar a pulsão de morte inofensiva, a agressividade passa a ser vista como versão de Eros. Mas, colocada exteriormente ao sujeito, ela é destruição, versão da pulsão de morte resultando inevitavelmente na dicotomia entre opressor e oprimido devido ao jogo de forças que se estabelece” (p. 56).

Lacan (1948/1998)Lacan, J. (1998). A agressividade em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1948)., ao retomar Freud no que diz respeito aos princípios da agressividade e da hostilidade, como postulado por Freud em “O estranho” (1919/1990b)Freud, S. (1990b). O estranho. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XVII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)., os estabelece a partir da ênfase no registro imaginário, da estrutura do eu e da identificação narcísica. Em “Agressividade em psicanálise”, o autor francês examina a possibilidade dessa noção adquirir estatuto de um conceito psicanalítico através de sua manifestação na clínica e na terapêutica. A agressividade é articulada a uma intenção do sujeito e ainda que o ato seja restrito (sem que haja violência precisamente), sua expressão e eficácia podem se dar na forma de imagens.

Um ponto fundamental ressaltado pelo psicanalista francês é a configuração da agressividade como elemento essencial à constituição do eu no estádio do espelho (concorrência agressiva pelo objeto) e como posterior tendência correlata a um modo de identificação narcísica (p. 112). O que significa que determinados impulsos agressivos podem ser reevocados sempre que houver alguma incidência na imago da identificação original (p. 118).

Freud, em seu supracitado texto, explicita como a figura do estranho/estrangeiro pode materializar, então, esses temores (cuja origem pode ser localizada na infância) e tornar-se alvo da potência agressiva intrínseca a todo sujeito - bidirecional em sua gênese (dentro/fora). A destrutividade da pulsão de morte expressa o “Mal radical”, como define Garcia-Roza (1990Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), e um modo de expulsar essa ideia psiquicamente constitutiva é através de processos concomitantes de expulsão do outro hostil e de sua projeção no estranho, negando-se algo sobre si mesmo a partir de sua atribuição a outrem. Transfere-se, deste modo, para este os elementos hostis e odiáveis que o eu narcísico quer expulsar de si. Por isso mesmo, ao tratar da figura do estranho, Freud o remete ao duplo, pois a “estrangeiridade” do outro se configurará em uma espécie de báscula daquilo que se constitui ao mesmo tempo como estranho e familiar ao sujeito.

Lacan, por sua vez, reitera a existência do vínculo com o outro como sendo essencialmente agressivo e, para tanto, fundamenta-se na especularidade imaginária do estágio do espelho e na organização do supereu como manifestação da cisão do sujeito em oposição a si mesmo. A agressividade é, neste caso, essencial para que haja diferenciação entre eu e outro, e fenômenos como o transitivismo e o complexo de intrusão demonstram seu papel na fundação do sujeito.

Considerando-se o caráter permanente e estrutural da agressividade, Lacan (1948/1998)Lacan, J. (1998). A agressividade em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1948). encontra na função simbólica um mecanismo apaziguador que permite a coexistência humana, recurso que se encontra em plena dissolução na atualidade. Contudo, ao prosseguir no caminho aberto por Freud, Lacan (1957-1958/1999)Freud, S. (2006). Dostoievski e o parricídio. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXI). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1928). foi mais além e pôde definir a violência como ato de agressão (passagem ao ato) frente àquilo que a palavra não pode contemplar; trata-se da incidência do real que produz um gozo que não permite atribuição de sentido. Assim, em Lacan, a agressividade permitiria simbolização, interpretação e, portanto, recalque; já a violência é aquilo que escapa à ordem simbólica e circunscreve-se ao registro do real, articulando-se àquele que pratica a violência e, como consequência, àquele que a recebe.

Sobre o trauma e seu manejo clínico

Como dito anteriormente, o traumático é aquilo que se dá fora da ordem de atribuição de sentido. Considerando-se os sujeitos refugiados, os requisitos para a transmissão dessa experiência estão dados pela dificuldade de inclusão no laço social e aniquilamento subjetivo (dissolução da identidade/cultura), aspectos já desenvolvidos, e também, principalmente - perspectiva especialmente interessante à psicanálise - pela impossibilidade que se dá, muitas vezes, de o sujeito se situar em relação à sua própria palavra.

Assim, um evento pode ser considerado traumatizante, quando

[...] o sujeito perde sua condição de responder ao laço social, ou seja, de situar-se numa referência significante, bem como na possibilidade de velar o real por meio da fantasia. Assim, o trauma situa um acontecimento em que o sujeito perde sua condição de endereçar sua questão desde o campo discursivo, e se confunde com o que é excluído - o gozo excluído da circulação. (Costa, 2014Costa, A. (2014). Um luto impossível: efeitos de traumas em imigrações. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1, 32-36., p. 35)

Como propõe Rosa (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511., p. 502), as possibilidades de elaboração do trauma encontram-se amiúde reduzidas na população refugiada. Tal contingência, no que se refere à palavra, é entendida como efeito da dessubjetivação produzida pelo trauma através de uma fixação temporal ao instante traumático. Segundo Indursky et al. (2014Indursky, A., Conte, B., Feijó, D., & Didonet, L. (2014). Do exílio ao asilo: escutas clínicas. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 45-46, 27-68.), isso se dá quando “a temporalidade está estancada e o processo de reorganização das intensidades e das perdas assume a dimensão de excesso, do que chamamos de traumático, de mortífero” (p. 38). Tal fixação produz uma solução específica: o silenciamento, posição necessária na tentativa de garantir alguma sobrevivência psíquica. Nesse sentido, a autora sugere, em contrapartida à clínica tradicional, uma clínica do traumático destinada aos casos nos quais o sujeito “não construiu ainda uma resposta metafórica, um sintoma através do qual possa falar de seu sofrimento e endereçar uma demanda” (p. 38), uma clínica que contemple, portanto, “a reconstituição de um endereçamento na fala” (Costa, 2014Costa, A. (2014). Um luto impossível: efeitos de traumas em imigrações. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1, 32-36., p. 36) e um espaço no qual se possa reestabelecer laço.

Tendo em vista as especificidades da situação de refúgio, uma compreensão detalhada acerca da dinâmica psíquica do trauma é imperativa para aprovisionar o terapeuta com recursos suficientes e profícuos no manejo clínico, possibilitando um tratamento do qual se exige uma disposição para além do setting clássico. O conceito de trauma tem sua origem na etiologia da histeria, que destaca que um evento que não sofreu descarga atuaria como elemento desencadeador através de reminiscências (Freud, 1895/1996Freud, S. (1996). Estudos sobre a histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. II). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895).).

Com efeito, a noção de trauma teve lugar central nos primórdios da psicanálise nas compreensões acerca da histeria, visto como um “corpo estranho” cuja inacessibilidade à memória era a causadora maior da doença. Em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996) a neurose histérica é compreendida como uma neurose traumática, consequência da inexistência de uma reação apropriada no momento do evento traumático. O trauma então se incrusta no sujeito exercendo sua ação patogênica, como uma espécie de “afeto estrangulado”, sem acesso ao campo das recordações. Uma característica relevante desse processo é o fato de o efeito patógeno ter uma longa duração mesmo após o ocorrido, expressando-se nas palavras de Rosa et al. (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511.), como “esse instante perpétuo”, tempo subjetivo que cristaliza e fixa de forma permanente no sujeito uma angústia que a princípio seria temporária.

Com o desenvolvimento de sua teoria, Freud (1920/1990c)Freud, S. (1990c). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XVIII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920). altera e amplia sua compreensão do trauma, dando ênfase, agora, aos elementos econômicos desse conceito. Trata-se, nessa retomada, de conceber o trauma como um evento que acarreta a ruptura da barreira de proteção do psiquismo, de modo que há uma invasão de desprazer e as excitações que ali estão se dão de forma não ligada. No ensaio de 1920 o trauma é descrito como a omissão das ligações psíquicas no momento do evento, o que deixa sequelas que se manifestam por vivências de excesso, violência e repetição. O aparelho psíquico, por sua vez, tenta realizar as ligações psíquicas, num esforço de reestabelecimento do campo das representações, sendo a compulsão à repetição considerada uma tentativa de ligar o excesso pulsional. As excitações se apresentam, portanto, de modo traumático e, em última instância, incidem no não encadeamento de formações de representação. É o traumático que incide em um corpo sem identidade que vivencia contingentemente a experiência.1 1 Trata-se aqui do trauma inicialmente fundamentado por Freud em um acontecimento, na qualidade de excesso pulsional, energia disponível, excitações que o ego não é capaz de realizar ligação para a produção de alguma elaboração. Uma das principais consequências dessa organização se articula ao mecanismo de defesa central que se apresenta. A defesa não se designa sob a forma do recalque/repressão, mas o que se identifica são mecanismos centrais como o splitting (clivagem/cisão do ego decorrente de uma fixação pulsional arcaica e não de uma estratégia do ego) e a recusa - diferente da recusa da perversão cujo propósito é desmentir a castração. Aqui é a recusa dos fragmentos da realidade que se conformaram de modo traumático e resultaram numa clivagem narcísica, logo, trata-se da recusa, como aponta Laplanche e Pontalis (2001Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1967).) “em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante” (p. 436) que não se pôde simbolizar.

Como afirma Freud em “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1990d)Freud, S. (1990d). Inibição, sintoma e angústia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1926)., o afeto princeps que acompanha o acontecimento traumático é o terror. O eu, incapaz de encontrar tradução psíquica para o excesso que o ocupa, é invadido passivamente e “o desamparo deixa de ser um horizonte das possibilidades psíquicas para manifestar-se como uma vivência concreta e insuportável” (Pereira, 2008Pereira, M. E. C. (2008). Pânico e desamparo. São Paulo, SP: Escuta., p. 190).

Considerando-se, então, a dimensão traumática nos sujeitos refugiados, sua dificuldade nos processos de simbolização e seu silenciamento como resposta, é fundamental que a técnica psicanalítica seja ponderada levando em conta tais particularidades. De acordo com Rosa et al. (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511.), no trabalho analítico com refugiados torna-se essencial a abordagem dos processos de identificação, angústia e luto das perdas do sujeito, “contornando e significando aquilo que, por vezes, é negado socialmente” (p. 507).

No que concerne ao dispositivo clássico, faz-se necessário extrapolar suas fronteiras com o intuito de sustentar algum trabalho analítico considerando-se as idiossincrasias desses pacientes. É preciso, portanto, um direcionamento de tratamento que considere as dimensões políticas em questão e que não se restrinja à decifração e enunciação daquilo que jaz por trás de determinado conteúdo manifesto, mas, retomando algumas diretrizes de Freud numa adaptação para a atualidade, que se siga em especial uma outra orientação: a de uma construção de produção de sentidos, restituindo um campo mínimo de significantes que se encadeie com a experiência de dor do refugiado, deslocando-o do silêncio mortífero para uma fala possível, na aposta de que se faça aparecer o sujeito.

Rosa et al. (2009Rosa, M., Berta, S. L., Carignato, T., & Alencar, S. (2009, set.). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia. Fundamental, 12(3), 497-511.) sustentam que assim como a escuta clínica psicanalítica pode dar novos destinos à experiência de migração forçada através da evocação da palavra, a escrita, como recurso que organiza o pulsional disruptivo, configura-se como um outro modo de transmissão para dar algum sentido e possível contorno às vivências traumáticas. Esta afirmativa se faz particularmente importante para o presente artigo, pois uma de nossas propostas é fazer a análise de um escrito de uma refugiada romena para, a partir dele, produzir desdobramentos no que estamos aqui designando “clínica do refúgio”.

Da relação entre psicanálise e literatura

Freud evoca diferentes áreas do saber na composição do arcabouço teórico da psicanálise e à literatura foi franqueada notoriedade e posição de destaque. A relação entre os dois campos se deu a partir de diferentes aproximações e pôde ser recuperada desde o exórdio da proposição freudiana quando constatadas as semelhanças entre a escrita dos relatos de caso e as narrativas literárias. A literatura é, então, compreendida como forma de conhecimento análogo à psicanálise e aos escritores criativos é conferida a condição de:

[...] aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas, entre o céu e a terra, com as quais nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (Freud, 1907/1990aFreud, S. (1990a). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. IX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1907)., p. 18)

Freud dispôs-se de inúmeras produções literárias e aporte de muitos autores em sua empreitada, valendo-se da psicanálise como método interpretativo tanto em função do literato (propondo-se a realizar uma espécie de psicobiografia ou “patografia”, de reconstituição fantasmática do criador) quanto da obra (compreendendo-a como produção/formação do inconsciente) na tentativa de desvendá-los, admitindo, posteriormente, os limites de tais aplicações. Em “Dostoievski e o parricídio”, Freud lastimou: “Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas” (1928/2006, p. 183)Freud, S. (2006). Dostoievski e o parricídio. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXI). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1928)..

Nesse sentido, a literatura pode compor-se como artifício não apenas de verificação e demonstração teórica, isto é, como fator de convergência da teoria psicanalítica já estabelecida, mas também como instrumento inverso: as letras aplicadas à psicanálise na tentativa de defrontar-se no texto literário com aquilo que ainda não se dá de forma bem articulada na teoria, engendrando-a como um modo privilegiado de acesso ao saber.

Aglaja Veteranyi: trauma e escrita

Aglaja Veteranyi, autora de origem romena, destacou-se na década de 1990 no circuito literário através de seus prosa-poemas escritos em língua alemã considerados integrantes de um movimento denominado Migrationsliteratur, ou literatura intercultural. Essa categoria literária tem seu início articulado à Alemanha pós Segunda Guerra (1950) e seu processo de reconstrução com a chegada de trabalhadores imigrantes e, posteriormente, tem prosseguimento com os descendentes destes, refugiados e representantes de outras ondas de migração. Trata-se de autores de origem estrangeira que vivenciam duas culturas, duas línguas, e seguem tradições literárias que trazem à tona essa dualidade de experiências.

Aglaja, em seu único romance Por que a criança cozinha na polenta (1999), traz elementos de sua biografia no que se entende como uma tentativa de circunscrição de uma experiência de vida traumática, de um tempo que congela. Filha de artistas circenses (um palhaço e uma acrobata), passou a infância se deslocando pelo mundo fugindo da ditadura de seu país, em tournée com o circo, sem um lugar específico de pertencimento. Aos 15 anos é enviada a um internato na Suíça, onde é alfabetizada em alemão e posteriormente se fixa até os 39 anos, quando tira sua própria vida.

Em seu livro encontramos elementos muito marcantes, como a ausência de nomes das personagens que são integrantes de sua própria família. Sabe-se que o nome próprio tem função substancial na constituição subjetiva e implica a exsistência do sujeito. Desta forma, Veteranyi ressalta a ausência de significantes que marcam suas existências e o limite de suas identidades na condição de refugiados/imigrantes. A família é representada de modo destruído, todos desorientados e invisíveis entre si e para a sociedade que os segregava. Essas ideias são indicadas em diversas passagens: logo nas primeiras páginas do livro a personagem se pergunta se Deus entenderia sua língua (p. 17), uma vez que ela é estrangeira e vive à margem nos espaços que habita. “Eu só era alguém antes de nascer” (p. 32); “Não grito. Joguei minha boca fora” (p. 39).

Tenta-se compensar a solidão e a dificuldade no estabelecimento de laços através de um esforço de afeto e do uso de imagens constantes - tentativa de contornar o trauma e produzir esperança face à violência. A sensação que provoca no leitor é de nonsense, paradoxo, uma casa que não é um lar, precariedade, sempre algo provisório que precisa ser salvo - uma mala. “Não devemos nos apegar a nada” (p. 27). O desamparo dos personagens é evidente e a linguagem concisa, infantil, que tenta com muito esforço dar conta, aparentando ser o pouco que restou: “Deixo cair minha pele no chão” (p. 94). Vemos aqui a dimensão do ato em um corpo dessubjetivado, substituindo a palavra: “Ela aperta o dedo na porta. Eu me coço até sangrar. Ela arranca uma mecha enorme de cabelos da própria cabeça. Eu pulo de pernas abertas sobre a quina de uma cadeira. Queremos ir para o hospital” (p. 110), e a compulsão à repetição: “Vou buscá-la em breve. Vou buscá-la em breve. Vou buscá-la em breve. Etc.” (p. 120).

Freud nos diz que na ordem de um discurso aparentemente coerente, precisa-se lidar com a imprecisão dos relatos e os “resíduos”, “restos” da lembrança, são permeados naturalmente por uma chave de leitura fantasiosa. “Restos” e “rastros” são vestígios que asseguram “um modo de relação entre passado e presente” (Chaves, 2015Chaves, E. (2015). O paradigma estético de Freud. In Arte, literatura e os artistas - Obras incompletas de Freud. Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 31) e, assim como o contar do sonho, a narrativa literária contemplaria equívocos e distorções próprios do mecanismo psíquico da censura. Ainda que o artista o possa tornar mais maleável e transponível, ainda é necessário, assim como na análise, traduzir o que se encontra nas entrelinhas. Aqui entende-se “tradução” não no sentido de interpretação, mas de esclarecimento, expondo, assim a “verdade” de seu conteúdo. Logo, pode-se conceber o texto de Aglaja como vestígio possível de contorno do traumático, isto é, como uma verdade inassimilável que consegue apenas se aproximar da experiência do real.

Considerando-se esta lógica, a literatura como fala é um “discurso que aponta para a existência de um sujeito cindido” (Ferreira, 2007Ferreira, N. P. (2007). A literatura como escrita e como fala. In R. Costa, & D. Rinaldi, Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 55) e a escrita é a letra que porta sua essência que, por definição, sempre irá além das intenções do seu autor. A literatura como fala e como escrita coloca em cena o real, o simbólico e o imaginário. A literatura como escrita é sublimação e, como tal, é a realização de um ato de criação. Em todo ato de criação literária, o sujeito vai buscar significantes no campo do Outro, para lhes dar nova articulação, de onde emerge um vazio que é cercado pela letra que se faz escrita. A literatura como fala é testemunho das feridas sem cura e das cicatrizes do real (p. 57).

A escrita se dá, então, como forma de contorno do trauma e daquilo que foi perdido, é um modo de minimamente dominar a incidência do real sobre aquele que escreve. Segundo Barros (2007Barros, R. M. (2007). A escrita feminina. In R. Costa, & D. Rinaldi (Orgs.), Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 176) a escrita é uma forma de lidar com o trauma, “respondendo em parte pelo aplacamento ou diminuição da angústia, a dor de existir”. Sustenta-se a ideia de que o ato de escrita teve como principal função o adiamento da satisfação pulsional, de suplência ao compulsório e mortífero gozo do trauma. Dessa forma, através da escrita seria franqueada a possibilidade de contornar o real de sua posição, bordejando-a, transformando aquilo que atordoa em objeto tolerável, em uma tentativa de fazer borda com o trauma, com o real inassimilável.

Se, para a psicanálise, o trauma se aproxima a certo encontro do real que se dá no domínio do indizível, o texto de Aglaja Veteranyi, através de uma escrita de si mesma que remete à face perigosa daquilo que é traumático, por fim, embora tenha adiado, culminou no trágico do trauma: o suicídio como última tentativa de lidar com o excesso pulsional.

Considerações finais

Através da discussão e aproximação entre a temática do refúgio e do trauma a partir de uma perspectiva psicanalítica com a literatura de Aglaja Veteranyi, pretendeu-se demonstrar como o ato da escrita pode operar como uma tentativa de ressignificação de experiências traumáticas, promovendo alguma elaboração. Nossa leitura propõe que a escrita possibilitou um não silenciamento da autora frente ao trauma e adquiriu função de suplência, expondo vestígios de um gozo que conduz à morte e, ao mesmo tempo, pôde refreá-la, ainda que temporariamente.

A proposta deste estudo teórico se justificou por sua destinação e propósito de aplicabilidade no entendimento e enfrentamento dos enunciados de uma clínica singular do refúgio e do trauma que se distancia da concepção clássica de uma clínica do sintoma. A questão possui pertinência teórica, uma vez que a reflexão aqui apresentada permite mais uma possibilidade de recorte frente às produções da área e espera-se que com o desenvolvimento dado ao tratamento da figura do refugiado, seja produzida mais alguma conformação sobre o tema. Também se vislumbrou alguma contribuição à clínica psicanalítica à medida que o estudo e depuração dos conceitos possam proporcionar maior elucidação acerca de seus cruciais papéis comoo operadores clínicos.

Nesse sentido, acredita-se que a Psicanálise pode representar um esforço para o entendimento mais elaborado acerca do estatuto psíquico do refugiado, contribuindo para que a emergência de seu sofrimento e mal-estar seja minimizada e que novos rumos e criações de si possam se dar no contexto das migrações.

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    O presente trabalho é desdobramento do projeto de pesquisa de Doutorado de Mariana Salles Kehl, aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, sob orientação da Profa. Maria Isabel Fortes. A aluna é bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. O conteúdo apresentado é inédito e deverá ser incorporado parcial ou integralmente ao texto da tese, com previsão de defesa em fevereiro de 2022
  • Financiamento/Funding: Este trabalho tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br) / This work is supported by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br).
  • 1
    Trata-se aqui do trauma inicialmente fundamentado por Freud em um acontecimento, na qualidade de excesso pulsional, energia disponível, excitações que o ego não é capaz de realizar ligação para a produção de alguma elaboração.

Agradecimentos: Ao CNPq, pelo apoio às atividades de pesquisa. À Cátedra Sergio Vieira de Melo (CSVM), avalizada pela ACNUR, e à PUC-Rio, por franquear ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica uma parceria na oferta de uma disciplina dedicada a temas relacionados ao refúgio a partir de uma perspectiva interdisciplinar.

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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2018
  • Aceito
    22 Jul 2019
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