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Epistemologia da Psicopatologia

Em 1990, no célebre prefácio do número inaugural da Revue Internationale de Psychopathologie, dos quais eram os editores, Pierre Fédida e Daniel Widlöcher expunham nos seguintes termos o desafio epistemológico constituinte desse campo de conhecimento sobre o padecer psíquico: “Situada em uma encruzilhada de múltiplas perspectivas epistemológicas e metodológicas, a psicopatologia constitui uma disciplina heterogênea tanto do ponto de vista da definição de seu objeto como de suas abordagens teórico-práticas” (Fédida & Widlöcher, 1990Fédida, P., & Widlöcher, D. (1990). Présentation. Revue Internationale de Psychopathologie, 1, pp. 3-4., pp. 3-4). De fato, a heterogeneidade de perspectivas e o esforço constante pela delimitação formal de seu objeto constituem a complexidade fundante e irredutível da psicopatologia e, de certa forma, a matéria-prima mesma sobre a qual operam seus esforços de racionalidade.

Tal problema se coloca explicitamente na Allgemeine Psycho-pathologie de Karl Jaspers. Já em suas primeiras páginas, o grande psiquiatra-filósofo alemão afirma: “Na Psicopatologia há uma série de modos de consideração, um conjunto de caminhos paralelos, que são em si mesmos legítimos, que se completam sem se prejudicarem. Meus esforços visam à distinção, separar nitidamente os caminhos, bem como a expor a pluridimensionalidade da Psicopatologia” (Jaspers, 1913/1979Jaspers, K. (1979). Psicopatologia Geral. Rio de Janeiro, RJ: Atheneu.(Trabalho original publicado em 1913)., p. 8). De certa maneira, a “generalidade” visada em seu Tratado refere-se tanto à multiplicidade diferencial dos métodos em psicopatologia, destinados a examinar apropriadamente as diferentes dimensões dos fenômenos mórbidos da vida mental, quanto ao necessário cuidado ético e propedêutico da disciplina em não ceder à tentação de passar dos reducionismos metodológicos indispensáveis a cada ciência a um inadmissível reducionismo explicativo do padecer próprio à vida psíquica.

A atualidade de Jaspers decorre principalmente da promoção de uma atitude crítica que seria constitutiva de qualquer projeto psicopatológico. Além do citado antireducionismo, expresso na recusa de uma psicopatologia sem psiquismo, ele defende uma posição perspectivista (recusa de um projeto de totalidade), antidogmática, com plena consciência metodológica (“... fato e método dependem intimamente um do outro. Só temos o fato através do método”) (Jaspers, 1913/1979Jaspers, K. (1979). Psicopatologia Geral. Rio de Janeiro, RJ: Atheneu.(Trabalho original publicado em 1913)., p. 59), e por último empirista (foco na experiência real, concreta), com a importante ressalva de que se trata de um empirismo que não ignora seus pressupostos e limites.

Nesse contexto, dois aspectos fundamentais da tradição psicopatológica tornam-se mais claros. Por um lado, a distinção metodológica jasperiana, inspirada em Dilthey, entre compreender um fenômeno mental (verstehen) e explicá-lo (erklären) corresponde ao respeito epistemológico ao plano próprio de racionalidade solicitado por diferentes aspectos do objeto da psicopatologia. Aqui podem ser situados igualmente os esforços de um Kurt Schneider (1948/1976)Schneider, K. (1976). Psicopatologia clínica. São Paulo, SP: Mestre Jou. (Trabalho original publicado em 1948). ou de um Roland Kuhn (1991)Kuhn, R (1991). Existence et psychiatrie. In P. Fédida, & J. Schotte. Psychiatrie et existence. Grenoble, França: Millon. em estabelecer uma definição restrita do âmbito de fenômenos passíveis de abordagem pela psicopatologia sob a perspectiva das ciências naturais, de modo a garantir a irredutibilidade do padecimento humano à explicação científica.

Por outro lado, identificam-se explicitamente os esforços pela constituição de uma antropologia filosófica capaz de situar os fenômenos psicopatológicos em sua especificidade propriamente humana. Aqui, os cuidados metodológicos e epistemológicos precisam ser redobrados de forma a se evitar os riscos de uma objetivação metafísica daquilo que seria idealmente uma existência humana plenamente realizada (a “eudemonia” dos gregos) ou, de maneira correlativa, de uma formalização imaginária da dimensão especificamente linguístico--simbólica do pathos humano. É assim, por exemplo, que Heidegger em seus seminários de Zollikon, endereçado a médicos e psiquiatras, iniciava justamente por essa advertência explícita, visando garantir ética e metodologicamente a dimensão de abertura e de incompletude do existente, nos esforços de teorização pela psicopatologia do sofrimento humano:

o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto presente em um lugar qualquer, e, menos ainda, um objeto fechado em si. Ao contrário, esse existir consiste em “meras” possibilidades de apreensão, que são dirigidas para o que se lhe entrega no encontro e que não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato. Todas as representações capsulares objetificantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até o presente momento na psicologia e na psicopatologia, devem desaparecer... (Heidegger, 2009Heidegger M. (2009). Seminários de Zollikon (2ª ed. rev.). Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco., p. 33)

Dessa forma, a constituição de uma antropologia filosófica ou a elaboração de um referencial epistemológico conceitual para assentar apropriadamente a dimensão especificamente humana do acontecer psico-patológico fundamentam-se justamente no desafio de escapar a toda forma de representação moralmente objetivante do padecer psíquico no confronto da psicopatologia com os impasses do sujeito (Pereira, 2014Pereira, M. E. C. (2014). A crise da psiquiatria centrada no diagnóstico e o futuro da clínica psiquiátrica: psicopatologia, antropologia médica e o sujeito da psicanálise. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 24(4), 1035-1052. e Pereira, 2019Pereira, M. E. C. (2019, dez.). Projeto de uma (psico)patologia do sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(4), 828-858., na seção “Epistemologia da Psicopatologia”, neste número da Revista).

Encontramos, assim, algumas das tensões fundamentais, constitutivas do campo psicopatológico (Banzato & Pereira, 2014Banzato, C. E. M., & Pereira, M. E. C. (2014). O lugar do diagnóstico na clínica psiquiátrica. In R. Zorzanelli, B. Bezerra Jr., J. F. Costa (Orgs.), A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (pp. 35-54). Rio de Janeiro, RJ: Garamond.): a irredutibilidade do pathos humano ao plano natural da nosologia ou ao registro sistematizante do diagnóstico; a insolubilidade do padecer singular nas descrições gerais do fenômeno patológico, visadas pela ciência. E é assim, também, que a categoria de “sujeito”, agora relida de forma a dar conta ética e epistemologicamente da especificidade do padecer humano, coloca-se como referência e desafio incontornável para a psicopatologia contemporânea (Costa, Bezerra Jr. & Gama, 2019Costa, J. F., Bezerra Jr., B., & Gama, J.A. de (2019). The Subject of Psychopathology: Of What Plural is it Made? Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 26(2), 89-97. [Special issue: Brazilian Philosophy of Psychiatry, Guest Editors: Claudio Banzato & Guilherme Peres Messas. Johns Hopkins University Press.]).

A seção “Epistemologia da Psicopatologia” da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, que inicia na presente edição, orienta-se por esses marcos fundantes da racionalidade no campo psicopatológico. Trata-se de constituir um espaço de apresentação de contribuições originais e estimulantes que suscitem a amplificação dos horizontes constituintes dessa disciplina: a complexidade de seu objeto, de seus conceitos e de seus valores (explícitos ou não, percebidos ou inadvertidos), a heterogeneidade de abordagens metodológicas, a irredutibilidade do sofrimento humano a discursos de pretensão totalizante. Esses são os parâmetros amplos, mas precisos, que a seção oferece ao público da Revista, convidando a todos a se engajarem efetivamente no aprofundamento de nossos debates.

Referências

  • Banzato, C. E. M., & Pereira, M. E. C. (2014). O lugar do diagnóstico na clínica psiquiátrica. In R. Zorzanelli, B. Bezerra Jr., J. F. Costa (Orgs.), A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (pp. 35-54). Rio de Janeiro, RJ: Garamond.
  • Costa, J. F., Bezerra Jr., B., & Gama, J.A. de (2019). The Subject of Psychopathology: Of What Plural is it Made? Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 26(2), 89-97. [Special issue: Brazilian Philosophy of Psychiatry, Guest Editors: Claudio Banzato & Guilherme Peres Messas. Johns Hopkins University Press.]
  • Fédida, P., & Widlöcher, D. (1990). Présentation. Revue Internationale de Psychopathologie, 1, pp. 3-4.
  • Heidegger M. (2009). Seminários de Zollikon (2ª ed. rev.). Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco.
  • Jaspers, K. (1979). Psicopatologia Geral Rio de Janeiro, RJ: Atheneu.(Trabalho original publicado em 1913).
  • Kuhn, R (1991). Existence et psychiatrie. In P. Fédida, & J. Schotte. Psychiatrie et existence Grenoble, França: Millon.
  • Pereira, M. E. C. (2014). A crise da psiquiatria centrada no diagnóstico e o futuro da clínica psiquiátrica: psicopatologia, antropologia médica e o sujeito da psicanálise. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 24(4), 1035-1052.
  • Pereira, M. E. C. (2019, dez.). Projeto de uma (psico)patologia do sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(4), 828-858.
  • Schneider, K. (1976). Psicopatologia clínica São Paulo, SP: Mestre Jou. (Trabalho original publicado em 1948).

Editado por

Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Galdini R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Aceito
    31 Out 2019
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