Rosi Chraim propõe um livro-tese no qual trabalha a escrita no “entre”, num limiar, entre “diários”, esses cadernos de escrita, seus e de Lúcio Cardoso.1 1 Lúcio Cardoso, escritor brasileiro, autor de, entre outros, Crônica da casa assassinada (José Olympio, 1959). Entre morte e vida, escrito com um hífen que faz a ligação e separação das palavras: morte-vida; entre o continuar e o desistir; entre a arte-literatura e psicanálise; entre margens. Ela trabalha com suas questões e inquietações para com a escrita, à luz dos diários de Lúcio e de outros textos. Enquanto Lúcio se inspirava em Nietszche, Pascal, Rimbaud, Tolstói e Dostoiévski; Rosi “veste a roupa” de Cardoso inspirando-se, por sua vez, em Freud, Lacan, Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Blanchot, dentre outros.
Rosi Chraim trabalha com o formato diário refletindo sobre o próprio itinerário de escritora que realizou um percurso pela psicanálise. Comentários de leituras, anotações sobre escritores e, principalmente, confissões de sua inquietude.
Já nas primeiras páginas, a autora presentifica a ausência através de uma frase calcada pelo avesso, deixando um relevo como estampa, por onde se percebe a figuração da presença do que só se dá a ver por sua falta (Lacan, 1960-1961Lacan, J. (1960-1961). Le séminaire. Livre 8. Le Transfert. Recuperado em 5 out. 2019, de: <http://staferla.free.fr>.
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). Dessa forma, a autora exercita como metonímia a “falta-a-ser” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos (pp. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)., p. 623).
O livro é visual e tátil. Pede que se olhe para ele, que se toque. Sentimos algo de aspereza já na capa, que vai sendo confortada pela imagem impressa nela de uma escrita à mão, um desenhar que se inscreve e que tenta nos dizer algo, pela repetição de palavras. Que nos deixemos tocar por ele, é o que vai dizendo “nas entrelinhas”, ou entre margens de uma escuta-leitura? Nos interstícios do texto surge a vibração que reverbera no leitor. Gesto que convoca (a)os sentidos. Destaco aqui um trecho colocado em nota de rodapé, em que nos mostra a preciosidade das citações quando está, ela própria, a citar (Walter Benjamin e seu método de incorporar citações): “Saliento que citar, citare, é pôr em movimento, fazer vir a si; Ex-citare é despertar; sus-citare, fazer-se levantar. A citação excita, suscita e incita um dizer”.
A autora nos convida ao exercício da escuta-leitura,2 2 Lacan (1975) menciona o método escuta-leitura em seminário proferido nos Estados Unidos, quando comenta que, do que Freud escutava, resultava algo paradoxal: uma leitura. Foi enquanto escutava as histéricas que Freud leu que ali havia um inconsciente. um método “lido” em Freud por Lacan. E também nos convoca a sair do lugar de espectador, em que a supremacia do olhar tomaria a cena. Vai nos conduzindo a entrar na palavra e a ver o objeto sob outra luz. Ela sai do movimento de pesquisa, dá voltas em torno de um centro, e passa ao movimento do estudo, studium,3 3 Studium é uma noção trabalhada por Agamben (2017). Ao contrário do que está implícito na terminologia acadêmica, na qual o estudante é um grau mais baixo em relação ao pesquisador — o estudo é um paradigma cognoscitivo hierarquicamente superior à pesquisa, no sentido que esta não pode atingir seu objetivo se não é animada por um desejo e, uma vez que o atinge, só pode conviver estudiosamente com este, transforma-se em estudo. movimento de dispersão, para chegar até uma terceira margem. Vai dialogar com Agamben, para quem a linguagem é essa zona de indecidibilidade entre uma zona e outra, um terceiro incluído.4 4 A lógica do terceiro incluído se contrapõe e complementa a lógica clássica, restringindo o campo de validade da lei do terceiro excluído, sem anulá-la.
No decorrer da escritura, o texto de Lúcio Cardoso é tomado na tentativa de “mimetizar” sua escrita. O leitor não passa incólume ao texto que quer se aproximar do “fora de significado” (Lacan, 1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7.A ética da psicanálise (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)., p. 71), remetendo ao pote que o oleiro produz, ao presentificar o vazio contornado pelo barro, o que permanece de irrepresentável.
O livro em si mesmo é um espaço lúdico. Em um dos lados o leitor acompanha a escrita da tese, e, no outro, há figuras, fotografias de paisagens inusitadas como “a escrita dos cupins”, imagens simbólicas que figuram o texto da escritura. Nas notas de rodapé, uma letra pequena diz de coisas não tão pequenas assim, tomando proporções que abarcam quase a totalidade da página, como para dizer que o ínfimo pode tomar grandes proporções.
O leitor é convocado a entrar no livro, e por ele transitar. Acompanhamos um deslizamento significante desde a “Presentação”, em que “A palavra iniciante, canto do pressentimento”; à cadeira que convida a sentar/sentir a linguagem nos envolver no instante seguinte, com “Envolvimento”, “Do território na/da palavra: linguagem, morte-vida”. Escrita de vida ou vida de escrita, e morte-vida: a topologia do trânsito. Títulos que dizem da importância da palavra como possibilidade de escrever o que não pode ser dito. Oclusão é a forma com que termina seu escrever, no título “Do corpo à terra: a penúltima palavra”. Sentimos as várias dimensões da perda, essa que se faz necessária para sairmos de nosso lugar e endereçarmo-nos ao outro. Trata-se de uma importante contribuição para se pensar no trabalho de luto, esse Trauerarbeit.
O livro é um convite ao despertar da escuta-leitura, do acolhimento do desassossego, dos impossíveis de serem representados e, quem sabe, abertura para uma escrita do possível. A contribuição que Rosi nos oferece com esta obra, para além de nos convidar a pensar o fim, o outro lado, nos introduz ao limiar,5 5 Lembrando que para a medicina, limiar é o ponto no qual um estímulo tem a intensidade suficiente para começar a produzir um efeito. este lugar entre, espaço aqui definido ou in-definido, in como estando dentro de, numa terceira margem, no processo contínuo de passagem pela vida que não é sem morte: morte-vida.
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Lúcio Cardoso, escritor brasileiro, autor de, entre outros, Crônica da casa assassinada (José Olympio, 1959).
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Lacan (1975)Lacan, J. (1975). Yale University, Kanzer Seminar. Scilicet, 6/7, pp. 7-31. menciona o método escuta-leitura em seminário proferido nos Estados Unidos, quando comenta que, do que Freud escutava, resultava algo paradoxal: uma leitura. Foi enquanto escutava as histéricas que Freud leu que ali havia um inconsciente.
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Studium é uma noção trabalhada por Agamben (2017)Agamben, G. (2017). Estudantes. (Trad. V. N. Honesko). Recuperado em 8 out. 2019, de: <http://www.ihu.unisinos.br>.
http://www.ihu.unisinos.br... . Ao contrário do que está implícito na terminologia acadêmica, na qual o estudante é um grau mais baixo em relação ao pesquisador — o estudo é um paradigma cognoscitivo hierarquicamente superior à pesquisa, no sentido que esta não pode atingir seu objetivo se não é animada por um desejo e, uma vez que o atinge, só pode conviver estudiosamente com este, transforma-se em estudo. -
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A lógica do terceiro incluído se contrapõe e complementa a lógica clássica, restringindo o campo de validade da lei do terceiro excluído, sem anulá-la.
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Lembrando que para a medicina, limiar é o ponto no qual um estímulo tem a intensidade suficiente para começar a produzir um efeito.
Referências
- Agamben, G. (2017). Estudantes (Trad. V. N. Honesko). Recuperado em 8 out. 2019, de: <http://www.ihu.unisinos.br>.
» http://www.ihu.unisinos.br - Cardoso, F. S. (2012). O poeta está vivo. Jornal Rascunho, 152, dezembro de 2012. Recuperado em 10 out .2019, de: <http://rascunho.com.br/edições#>.
» http://rascunho.com.br/edições# - Lacan, J. (1960-1961). Le séminaire. Livre 8 Le Transfert Recuperado em 5 out. 2019, de: <http://staferla.free.fr>.
» http://staferla.free.fr - Lacan, J. (1975). Yale University, Kanzer Seminar. Scilicet, 6/7, pp. 7-31.
- Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7.A ética da psicanálise (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960).
- Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos (pp. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Jan 2020 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2019
Histórico
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Recebido
10 Out 2019 -
Aceito
19 Out 2019