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Efeitos da pandemia: os discursos e as formações clínicas

The effects of the pandemic: discourses and clinical formations

Efectos de la pandemia: los discursos y las formaciones clínicas

Les effets de la pandémie: les discours et les formations cliniques

Resumos

O objetivo deste artigo é levantar indagações sobre os efeitos da pandemia no trabalho clínico. Propõe uma pesquisa preliminar baseada em fundamentos da clínica psicanalítica. Foca suas questões em dois pontos: de um lado o laço social dos discursos e, de outro, as formações sintomáticas resultantes do acontecimento.

Palavras-chave:
Pandemia; discursos; sintoma; angústia


This article discusses the effects of the pandemic on clinical work and proposes a preliminary research based on the fundamentals of the psychoanalytic clinic. Its questions focus on two points: on the one hand, the social bond of the discourses and on the other hand, the symptomatic formations that have resulted from the event.

Key words:
Pandemic; discourses; symptom; anguish


Le but de cet article est de soulever des questions sur les effets de la pandémie sur le travail clinique. Il propose une recherche préliminaire basée sur les concepts fondamentaux de la clinique psychanalytique dont les questions se concentrent sur deux points: d’une part, le lien social des discours et d’autre part, les formations symptomatiques qui résultent de l’événement.

Mots clés:
Pandémie; discours; symptome; angoisse


El propósito de este artículo es plantear preguntas acerca de los efectos de la pandemia en el trabajo clínico. El artículo propone una investigación preliminar basada en los fundamentos de la clínica psicoanalítica. Enfoca sus preguntas en dos puntos: por un lado, el lazo social de los discursos y, por otro lado, las formaciones sintomáticas resultantes del acontecimiento.

Palabras-clave:
Pandemia; discursos; sintoma; angustia


O acontecimento da pandemia, como efeito do coronavírus, levou os psicanalistas a precisarem acompanhar os analisantes por meio de dispositivos online (WhatsApp etc.), ou telefone, o que exclui o estar em presença. O inusitado da situação levanta uma série de questões preliminares e outras que ainda estão por se formular, à medida que essa prática se estenda no tempo. Preliminarmente, é preciso reconhecer a excepcionalidade deste momento, diferenciando-o de outros em que esses atendimentos já eram feitos em situações diversas (mudanças de cidade ou de país etc.). O acontecimento da pandemia colocou os próprios psicanalistas confinados, sem poderem escolher atendimentos presenciais. Essa condição implica uma série de efeitos diferentes de outros momentos, o que também significa reconhecer o limite do psicanalista enquanto corpo, muito antes de esvaziar a posição de um suposto saber. Teria isto efeitos na direção do tratamento? Quais possibilidades e limites essa modalidade traz?

Depois de alguns meses trabalhando dessa forma, podemos recolher algumas questões para desenvolver. Em primeiro lugar, a emergência da angústia na maioria dos casos, provocando um aumento na demanda de suporte na situação, parecendo exigir ainda mais presença. Os analistas dão testemunho de um cansaço maior, atribuído à nova forma de trabalho. No entanto, não está excluído que a necessidade do confinamento, que também evidencia o limite do analista enquanto corpo, não seja elemento importante a considerar na equação. Abriremos algumas vias para pensar implicações desse trabalho, partindo de fundamentos do tema da angústia na psicanálise.

Outro elemento relevante diz respeito aos efeitos do discurso nas formações clínicas. Acompanharemos alguns desenvolvimentos da psicanálise indagando se o que passamos constitui uma ruptura do laço social. Essa indagação é importante para precisar o tema do trauma e suas consequências. Por último, como pensar a relação com a dependência da tecnologia e seus efeitos nesse momento?

Este artigo situa questões preliminares propondo um trânsito entre o discurso e o singular da formação clínica a partir dos fundamentos da psicanálise, numa tentativa de aproximação a indagações que ainda não são conclusivas.

Acontecimento e discurso

Muitas das análises que estão surgindo em artigos na mídia e redes sociais sugerem que o mundo pós-pandemia será outro, que o que tínhamos não mais vai existir. Desde nosso campo essa questão se coloca a partir de indagações sobre o traumático, ou seja, se o que estamos vivendo implica uma ruptura na ordenação do discurso como laço social, ou se é certa continuidade que se radicaliza pelas circunstâncias. Essa questão tem o interesse de precisar se o que vivemos é da ordem de um trauma ou não. Freud (1919-1920/1973c)Freud, S. (1973c). Mas allá del principio del placer. InObras Completas. Madrid, RE: Biblioteca Nueva. (Publicado originalmente em 1919-1920). propôs que o trauma resulta de um acontecimento que não encontra defesas psíquicas, que são produzidas a partir de uma angústia sinal. Ou seja, que o traumático diz respeito a encontrar algo que não estava antecipado no discurso. Segundo Freud, a angústia sinal aciona as defesas para a constituição do sintoma. Destituído das defesas produzidas pela angústia sinal o sujeito fica preso na reprodução da cena traumática, sem conseguir constituir a Outra cena, sem conseguir sonhar, muitas vezes padecendo de insônia.

Reconhecemos também que o traumático se efetiva para cada um, não sendo necessariamente social. No que diz respeito ao discurso temos que considerar os efeitos do que sustenta nossos valores num mundo capitalista, no qual já acompanhamos um esgarçamento dos laços bem antes da pandemia. Apesar de não concordarmos que teremos “outro mundo”, pois o discurso capitalista vive de suas crises, a quarentena pode sim estar sendo traumática para alguns, questão que teria de ser abordada singularmente.

Vale sublinhar que se ainda estamos suportados por um discurso capitalista, o esgarçamento dos laços a que esse discurso leva já se anuncia há algum tempo, pelos efeitos nas formações clínicas que recebemos no consultório antes da pandemia: uma angústia que se estende e desestabiliza, forçando diferentes atuações e passagens ao ato, bem como inibição, depressão, apatia etc. São formações clínicas instáveis, que não permitem ao sujeito se posicionar, invasivas, que clamam pela urgência, fazendo com que os sujeitos queiram lançar mão de medicações. Essas formações não fazem sintoma, ou seja, não permitem que o sujeito se posicione na estrutura acéfala do discurso; logo, elas se tornam totalizantes. Um discurso totalitário provoca diferentes formas de passividade - fascínio, apatia - fazendo com que muitas formas de expressão se deem na via de passagens ao ato. Estas passagens ao ato, em termos sociais por exemplo, se cristalizam nas violências das segregações. Elas são resultantes de certo empuxo a um saber totalizante, cuja ruptura, ou mesmo sustentação, se dá pela produção de violência.

Lacan (1964/1985a)Lacan, J. (1985a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1964). propôs o termo “acéfalo” tanto em relação à estrutura do discurso, quanto às formações do inconsciente. No seminário sobre os fundamentos da psicanálise, ele situa que no sonho isso mostra, um isso sem sujeito, acéfalo. Ou seja, não é suficiente sonhar para que dali um sujeito advenha, é preciso endereçar o sonho, falar a um outro, inscrevendo os significantes emergentes do sonho num laço em transferência.

Partindo da particularidade desse isso acéfalo situado entre o sujeito e o Outro é que Lacan propõe uma constituição moebiana para essas formações. Esse entre a linguagem percorre num efeito moebiano, ligando dentro e fora como uma continuidade. Assim, muitas vezes o sujeito se confunde numa incerteza de se seu pensamento, se seu sonho, se sua fantasia é dele, ou é do outro. A radicalidade disso é o delírio de influência.

Lacan (1964/1985a)Lacan, J. (1985a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1964). se utilizou de uma medida temporal na relação ao discurso dizendo que este se constitui antecipado ao sujeito, que ali deve advir. Logo, a antecipação é uma função temporal elementar, que podemos reconhecer sempre estar em causa: todos nascemos numa estrutura discursiva que nos antecede, e nosso trabalho na vida é produzir uma resposta singular do sintoma para inscrição nesse mesmo discurso. O discurso - na temporalidade da antecipação - funciona como uma máquina acéfala e somente a posteriori, no trabalho de elaboração das formações do inconsciente, o sujeito advém ali nessa máquina que o submete.

Dessa perspectiva, podemos nos perguntar se as formações do inconsciente, que já recolhemos há alguns anos em nossas clínicas, não estariam antecipando as formações discursivas totalitárias que reconhecemos hoje nas expressões de segregação, tão frequentes em nossos laços discursivos. São os jovens que, na passagem adolescente, vêm dando essas notícias em sucessivas atuações. Justamente no momento da colocação em ato de uma dimensão fantasística - no momento de uma saída para o mundo - acontecem frequentes recuos, como em exemplos de automutilações. Nesses casos, verifica-se uma grande dificuldade expressa na função do sonhar. Na peça O despertar da primavera, de 1891, o dramaturgo Wedekind (1891/1973)Wedekind (1973). O despertar da primavera. Lisboa, RP: Editorial Estampa. (Publicado originalmente em 1891). situa essa questão propondo que os rapazes não pensariam em fazer amor com as mocinhas se não tivessem primeiro sonhado com isso. Ou seja, coloca o sonhar como função necessária para se posicionar perante o mundo e o outro.

Assim, antes da quarentena já encontrávamos algo antecipado no discurso que forçava essas formações clínicas destacadas, mas a situação de confinamento potencializa expressões mais estendidas de angústia, acrescentando distúrbios na sustentação especular. Distúrbios, estes, que vão incidir na organização do eu, que tem o fundamento de seu suporte na relação especular, cuja ruptura provoca perturbações nas referências do tempo e do espaço. Nosso sentido de tempo é organizado a partir de cortes, intervalos, tanto quanto nossa organização de espaço (dentro/fora). A percepção de tempo e espaço estão sempre articuladas e uma ruptura na sustentação do especular implica uma alteração dessa percepção.

A angústia e o suporte especular do corpo

Situar o tema da angústia como a questão mais constante na clínica durante o confinamento leva-nos a transitar por alguns fundamentos a que precisamos recorrer antes de especificar como se desdobra neste momento.

Um dos textos fundamentais para pensarmos a questão da angústia é o trabalho freudiano sobre o Unheimliche (1919/1973b), no qual o autor situa o tema do estranho e sua relação com o olhar. Nessa análise, além de pesquisas linguísticas, míticas e literárias, Freud relata experiências pessoais, uma delas testemunhada num episódio em que não reconhece sua imagem no espelho numa viagem que fazia de trem. O grande interesse desse texto diz respeito à amplitude de análise que ele propõe. Começando pelo campo da linguagem, em que o estranho (Unheimliche) se imiscui no familiar (Heimlich), elemento a partir do qual o autor sustenta a afirmação de que esse sentimento diz respeito ao retorno do recalcado e que seu surgimento provoca angústia. Isso também acontece em momentos do não reconhecimento da própria imagem no espelho, sendo responsável pela construção fantasística, ou mesmo alucinatória, do duplo. A base da interpretação freudiana é situada no complexo de castração, em que arrancar os olhos (baseado numa leitura do conto de Hoffmann “O homem de areia”) e também o desmembramento e a animação de pedaços do corpo em fantasias e na literatura derivam da referência a esse complexo, os órgãos surgindo ali como substitutos fálicos.

Lacan dedicou um de seus seminários (1962-63/2005) ao tema da angústia, sendo esse texto freudiano referência importante. A questão do Unheimliche permite a Lacan formular algo que redireciona suas elaborações, no sentido de propor que a angústia não é sem objeto. Essa formulação utiliza uma construção de linguagem para afirmar pela negativa (não é sem) algo que faz parte do não reconhecido do inconsciente. O objeto, a partir dessa proposição lacaniana, assume o estatuto do objeto a que vai ocupá-lo em desdobramentos até o final de sua obra.

A análise de Lacan sobre o tema do estranho é convergente com as formulações freudianas, mas as subverte num ponto fundamental. Nomear de objeto o efeito alucinatório do estranho em relação à imagem no espelho indica uma exterioridade que repentinamente se mostra e que faz parte do corpo próprio. Isso subverte a formulação freudiana sobre o complexo de castração, este fundamentado numa ameaça na construção edípica, que determina a produção do conflito e sua resolução. O objeto a como uma extimidade radical, impossível de substituição nos referentes fálicos, insiste de diferentes maneiras nas formações clínicas.

O objeto a é propriamente um vazio cavado pelo recalcamento originário - na intrusão da linguagem - incidindo no corpo próprio e constituinte do corpo do infans nas primeiras experiências de satisfação. Podemos situar ali a proposta freudiana do narcisismo primário e que Lacan interpretou como uma primeira apreensão do corpo sem unificação - o corpo despedaçado. Num segundo tempo, na constituição especular, o sujeito se apreende como corpo unificado a partir da imagem no espelho. Somente então é que nesse vazio da não satisfação, nesse buraco cavado no corpo próprio, se constituem os signos fálicos como objetos de satisfação, miragem produzida pela demanda atribuída ao Outro. Assim, nem o vazio do objeto a constituinte desse primário, nem os significantes fálicos construídos secundariamente, possuem imagem especular. Objeto a e significante fálico não fazem imagem no espelho, ou seja, não fazem imagem de um objeto que completaria o gozo do Outro, já que o lugar desse objeto é o vazio. A manutenção desse vazio é condição da causa do desejo - o lugar do objeto a como causa na fantasia - responsável pela sustentação do corpo unificado, o que permite a constituição das referências espaço/tempo enquanto medidas de separação.

No entanto, esse vazio ao mesmo tempo que separa, ele liga, porque está tanto no corpo quanto no significante. Nele constitui-se o espaço entre, um espaço moebiano, na medida em que pertence tanto ao corpo quanto aos significantes que vêm do Outro. Interior e exterior permanecem imiscuídos nesse ponto, lugar em que se interpenetram dentro e fora como se fossem uma continuidade. Reconhecemos nele um Isso, o Real do inconsciente em muitas formações. O campo do Unheimliche testemunha essa questão. Ou seja, naquele lugar escondido, velado pelo significante fálico que é nossa ilusão do familiar, surge o estranho, o buraco (Real) que ele recobre. Numa passagem do seminário sobre a angústia Lacan situa assim:

Digamos que, se essa palavra [Heim] tem algum sentido na experiência humana, é o da casa do homem [...] O homem encontra sua casa num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos [...]Esse lugar representa a ausência em que estamos. (p. 58)

A palavra alemã que Freud emprega para o estranho, contém o heim, o familiar que a casa pode representar. Assim, nessa língua já encontramos uma aproximação entre o estranho e o familiar. Lacan se utiliza da aproximação para dizer que nossas representações do corpo, enquanto revestido por uma imagem, trazem junto seu furo. A angústia expressa esse furo, esse “além da imagem de que somos feitos”, nossa ausência mais radical. Nossa vivência em nossa casa traz tanto uma extensão da imagem de nosso corpo quanto o furo dessa imagem, nas diferentes construções da estranheza e da angústia.

Cabe ressaltar o paradoxo colocado na abordagem lacaniana: essa ausência radical surge como uma presença invasiva. Quando a imagem resultante do significante fálico se rompe, no seu lugar surge o buraco que ela recobria e este, paradoxalmente, provoca a percepção de uma presença, não de uma ausência. Temos testemunhos disso nas formações alucinatórias que invadem o campo da percepção. Ou seja, na ruptura do espelho é o campo da percepção que se sobrepõe, esse campo constituído nas experiências primárias do recalcamento originário. Assim, a constituição do originário não é ultrapassada pelas construções secundárias que o recobrem.

Feita essa rápida passagem por alguns fundamentos freudianos e lacanianos sobre esse tema, retornemos à especificidade do momento que atravessamos, em que situamos as queixas de uma angústia mais disseminada. Em primeiro lugar, o confinamento rompe com a construção imaginária (do espelho) de um dentro e um fora, bem como com os intervalos temporais que se articulam a essa separação. Estamos em casa (Heim) na sua face mais obscura (Unheimliche), como quando se tenta acordar de um pesadelo e o vestíbulo entre sonho e realidade desapareceu. A primeira tentativa de sustentação toma apoio no discurso sanitário, construindo um território higienizado como defesa contra uma ameaça invisível. Aos poucos, o pequeno outro se torna um invasor, presentificado tanto naqueles que não obedecem às leis com as quais tratamos de constituir nossas defesas quanto nos eventuais parceiros com quem dividimos o espaço. Os significantes invasão e contágio submetem, remetendo muito diretamente à necessidade de reconstituição espaço/tempo, evocando o campo da percepção, sinal de um Real que invade.

Outra questão a considerar nessas rupturas diz respeito à suposição de saber. A excepcionalidade de nosso momento coloca à frente o buraco no saber: não se sabe como sair da fragilidade a que ficamos reduzidos, eco do reconhecimento de que ninguém - e mesmo nenhum saber - está no comando, porque ainda não se criaram meios de defesa que possam conter e limitar efetivamente a situação. As medidas sanitárias adotadas são paliativas de prevenção, que não garantem a imunização, mas que minimizam a disseminação (donde se reconhece sua importância). Isto cria condições para que governos totalitários se aproveitem da situação fazendo pantomima de uma potência fálica, o que só piora a fragilidade a que o sujeito está reduzido. Ou seja, a repetição de tempos sombrios pelos quais passamos em nossa História.

Em relação à condução das análises, retorna a pergunta se essa excepcionalidade do buraco no saber tem efeitos a serem considerados. Ainda é cedo para se afirmar sobre as consequências, mas poderíamos tomar desdobramentos do tempo lógico para nos aproximarmos de algumas questões clínicas. Essa proposição lacaniana articula o saber a uma posição enunciativa, constituindo medidas de tempo que encontramos tanto em formações clínicas quanto nos desdobramentos de sessões. O tempo lógico diz respeito a diferentes aprisionamentos ao discurso, também por isso Lacan (1945/1998)Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1945). situou-o num apólogo de três prisioneiros.

Não desenvolveremos o apólogo, retomamos esses tempos de uma maneira que não é trabalhada usualmente, colocando acento sobre a posição enunciativa no saber. Num primeiro tempo se sabe, é uma determinação do saber na evidência do olhar sem pensamento; no segundo tempo a entrada do especular constituindo a mediação da dúvida num tempo de compreender que transita pela alienação nas identificações, em que o não saber apoia-se na mediação do outro; terceiro tempo uma saída no coletivo na afirmação que depende do reconhecimento de um Real - um furo no saber - em comum.

Destacamos o primeiro tempo como algo que está em causa neste momento, num achatamento dos tempos lógicos. Situa-se na condição de alienação ao discurso colocado na posição enunciativa se sabe. Esse se indeterminado diz respeito a uma alienação radical ao discurso, sua condição acéfala antes destacada. Freud (1919/1973b)Freud, S. (1973b). Pegan a un niño. In Obras Completas. Madrid, ESP: Biblioteca Nueva. (Publicado originalmente em 1919). chama atenção para esse indeterminado no enunciado da fantasia em que uma criança é batida (“Bate-se numa criança”). Ou seja, o enunciado da fantasia originária revela a mesma estrutura do discurso, em que interior e exterior compõem uma condição moebiana de continuidade, sem que sejam reconhecidos cortes no espaço e no tempo. O olhar em causa - se vê e se sabe - se aproxima de algo que acontece na hipnose. Como situamos no item anterior, o esgarçamento da estrutura produzida pelo discurso capitalista ao longo do tempo força a construções totalitárias. Pode-se colher alguns efeitos clínicos da alienação a esse tempo em expressões extremadas, como o fascínio, a apatia, ou passagens ao ato.

Poderia se indagar como é que a expressão se sabe seria homóloga ao buraco no saber. Na clínica reconhecemos que tudo e nada se encontram num mesmo ponto: a impossibilidade de mediação na relação ao saber. Nesse sentido, os efeitos de fascínio e apatia são verso e reverso da mesma questão, no encontro da realização da fantasia originária numa ausência de mediação.

Do espelho à tela

Uma última questão que abordaremos diz respeito a trabalhar de forma remota por meio de aparelhos - seja o telefone celular, sejam as telas. Telefone e tela provocam distintas experiências corporais, então precisam ser considerados separadamente. Ainda não é possível desenvolver com maior precisão clínica sobre os efeitos, mas trataremos de fazer colocações preliminares.

Começaremos por algumas considerações sobre o que Lacan (1969-70/1992)Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Publicado originalmente em 1969-70). denominou de latusas no seminário sobre os discursos. Esse neologismo deriva de aletéia - verdade na língua grega. Lacan chega a ele abordando a questão de como a linguagem da ciência cria nosso mundo. Esse mundo afasta-nos do conhecimento desenvolvido antigamente, na medida em que faz surgir coisas que não existiam no plano da percepção. As referências ao número e às fórmulas povoam o mundo em que estamos de uma verdade puramente lógica, num jogo de combinatórias submetidas a axiomas, construindo uma ciência “que nada mais tem a ver com os pressupostos que desde sempre a ideia de conhecimento implicava” (p. 169). Graças ao jogo do número a ciência se dedica a produzir vibrações - as ondas da comunicação da voz humana, por exemplo - que nada têm a ver com nossos sentidos ou com nossa percepção. É nesse mundo da aletosfera (neologismo derivado da verdade lógica, transformação da antiga aletéia) que encontramos nossas latusas:

E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa [ao desejo], pensem neles como latusas. (p. 172)

Mas se a ciência governa o desejo, coloca em questão o tema da verdade, na medida em que é movida pela lógica do verdadeiro ou falso, o que foraclui o sujeito da referência àquilo que o determina. Mais, ainda... (1972-73/1985b) os giros que determinam as mudanças de discurso insistem num retorno, experienciado como repetição. Retorno este do Real como impossível, pois a ciência transformou a relação com a verdade em impotência, exilando o sujeito daquilo que o determina.

O tema das latusas, derivação da mutação do mestre a um “estilo capitalista” no dizer de Lacan, serve-nos para começar a pensar na mediação das relações na nossa aletosfera. Ou seja, se estivermos em nossa casa podemos receber pelas latusas a voz e a imagem de pessoas caminhando na lua, ou em Marte e isso traz alguns efeitos específicos. Poderíamos nos perguntar, por exemplo, se o efeito da comunicação com alguém que está na lua seria tão diferente daquela com alguém que está na esquina de nossa rua. Trazendo para algo que se tornou cotidiano, será tão diferente falarmos pelo celular com nosso vizinho de falarmos com alguém que está em outro país? Ou, avançando na indagação, será que nossa aletosfera modificou também o estar na presença do outro?

Essa pode ser uma pergunta somente retórica porque temos já alguma notícia disso e evocamos aqui o exemplo do filme Her (Ela), de Spike Jonzen (2013Jonzen, S. (2013). Ela (Her). Estados Unidos, Reino Unido: Warner Bros., Entertainment Film.). Nele, o personagem Theodore se apaixona por um sistema operacional (uma voz de mulher) e vive os mesmos sentimentos de um amor por alguém em presença (alguém com corpo, digamos assim). Não desenvolveremos as muitas questões do filme, tomando somente alguns elementos. Poderia se pensar que a fantasia é sempre mediatizada por ficções e que literatura e cinema produzem efeitos na vida “real”, não constituindo propriamente novidade que o mundo digital também o faça. No entanto, Her representa um mundo de indivíduos muito isolados, melancolizados, em que o digital ocupa o espaço das relações. Apesar de aparentemente futurista, fala muito do que já vivemos.

Essas considerações sobre os discursos e as latusas que governam o desejo, no nosso mundo capitalista, nos pareceram necessárias para abordar a questão do atendimento online. Lacan brinca que as máquinas que reproduzem a voz estão cheias de vento - ou seja, esse objeto a que elas encobrem. Aproxima-as de ventosas, o que é curioso, porque as ventosas sugam. Do lado da imagem as telas estão próximas do olhar do hipnotizador, porque elas fascinam. Assim, as máquinas por meio das quais estamos realizando nosso trabalho inserem-se nesse campo do objeto e isso precisa ser considerado.

Levantar estas questões não significa que o trabalho não aconteça. Em muitos casos se testemunham avanços importantes no andamento das elaborações, na medida em que a intervenção do analista pode reposicionar a nova situação. No entanto, é necessário ainda a volta dos atendimentos presenciais para que esses efeitos se confirmem ou não. Essa afirmação é sustentada também em relação a alguns casos de inibição que parecem ter uma melhora. Justamente esses casos nos fazem pensar numa questão específica: a inibição é resultante do estar em presença. Ou seja, ali acontece algo que precisa ser levado adiante estando em presença. O que nos remete a um tema que faz parte dessa presença, que é a resistência. Este ponto evoca a presença do analista não somente do lado imaginário, mas algo da ordem de um Real. No seminário sobre os quatro conceitos da psicanálise, Lacan situou a resistência do lado do analista, mas ela faz parte desse movimento da transferência que diz respeito justamente a uma queda, uma destituição. É nesse ponto que o desejo do analista é mais interrogado.

Como situamos no início deste artigo, o que trazemos aqui são proposições iniciais, construindo balizas para a abordagem do trabalho durante a quarentena, mas que têm a amplitude de se inserirem em certa configuração de nosso laço discursivo. Laço que antecede o acontecimento da pandemia e que talvez neste momento mais claramente revela nosso exílio.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.

Referências

  • Freud, S. (1973a). El siniestro. In Obras Completas Madrid, ESP: Biblioteca Nueva. (Publicado originalmente em 1919).
  • Freud, S. (1973b). Pegan a un niño. In Obras Completas Madrid, ESP: Biblioteca Nueva. (Publicado originalmente em 1919).
  • Freud, S. (1973c). Mas allá del principio del placer. InObras Completas Madrid, RE: Biblioteca Nueva. (Publicado originalmente em 1919-1920).
  • Lacan, J. (1985a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1964).
  • Lacan, J. (1985b). O seminário. Livro 20. Mais, ainda Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1972-73).
  • Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Publicado originalmente em 1969-70).
  • Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1945).
  • Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10.A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Publicado originalmente em 1962-63)
  • Wedekind (1973). O despertar da primavera Lisboa, RP: Editorial Estampa. (Publicado originalmente em 1891).
  • Jonzen, S. (2013). Ela (Her) Estados Unidos, Reino Unido: Warner Bros., Entertainment Film.
Editora/Editor: Profa. Dra. Ana Maria G. R. Oda e Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2020
  • Aceito
    19 Ago 2020
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