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A pandemia das imagens: retóricas visuais e biopolíticas do mundo covídico

The pandemic of pictures: visual and biopolitical rhetoric of a world marked by COVID-19

La pandémie des images: rhétoriques visuelles et biopolitiques d’un monde marqué par la COVID-19

La pandemia de las imágenes: retórica visual y biopolítica del mundo en tiempos de COVID-19

Resumos

A pandemia do coronavírus é também uma pandemia de imagens proliferadas entre câmeras térmicas, a intimidade extrovertida em videoconferências, as projeções nas fachadas e as inúmeras reproduções da síntese computadorizada do vírus. Não menos significativas, no contexto brasileiro, são as imagens do Presidente Bolsonaro, cujas fotos expressam sua visão política do coronavírus, e as das escavadeiras abrindo as valas das vítimas que sucumbiram à doença. Neste artigo, algumas imagens marcantes do isolamento social durante a COVID-19 no Brasil são analisadas como enunciados das retóricas visuais constitutivas da experiência cultural do novo normal. Com base na metodologia de Didi-Huberman em Cascas, parte-se dos registros imagéticos para compreender o contexto pandêmico. Apoiado nas discussões de Barthes, Foss e Mateus sobre retóricas visuais, o artigo defende que é a partir do campo das invisibilidades das imagens, que se compreende a dimensão biopolítica da pandemia.

Palavras-chave:
Retórica visual; estéticas da vigilância; invidibilidade; coronavírus


The coronavirus pandemic is also a pandemic of pictures disseminated by thermal cameras, extroverted intimacy in videoconferences, projections on facades and numerous reproductions of the computerized synthesis of the virus. No less significant, in the Brazilian context, are pictures of President Bolsonaro, whose photos express his political view of the coronavirus and those of bulldozers opening graves for the victims of the virus. This article analyzes some striking images of social isolation during COVID-19 in Brazil as statements of the visual rhetoric that constitute the cultural experience of the ‘new normal’. Based on the Didi-Huberman methodology described in his book “Bark”, we analyze pictures to understand the pandemic context. Barthe’s, Foss’ and Mateus’ discussions on visual rhetoric make up the theoretical background that supports our conclusion that the pandemic’s biopolitical dimension is understood from the field of invisibilities.

Key words:
Visual rhetoric; aesthetics of surveillance; indivisibility; coronavirus


La pandémie du coronavirus est aussi une pandémie d'images proliférées par les caméras thermiques, l'intimité extravertie des vidéoconférences, les projections sur les façades et les nombreuses reproductions de la synthèse informatisée du virus. Non moins significatives, dans le contexte brésilien, sont les images du président Bolsonaro, dont les photos expriment sa vision politique du coronavirus et celles des bulldozers creusant les tombes des victimes qui ont succombé au virus. Dans cet article, certaines images marquantes de l'isolement social de la COVID-19 au Brésil sont analysées en tant qu’énoncés d’une rhétorique visuelle qui constitue l'expérience culturelle de la nouvelle normalité. Sur la base de la méthodologie de Didi-Huberman décrite dans son livre Écorces, les images sont utilisées pour comprendre le contexte pandémique. En s'appuyant sur les discussions de Barthes, Foss et Mateus sur les rhétoriques visuelles, l’article soutient que c'est du champ des invisibilités des images que la dimension biopolitique de la pandémie est appréhendée.

Mots clés:
Rhétorique visuelle; esthétique de la surveillance; indivisibilité; coronavirus


La pandemia del coronavirus es también una pandemia de imágenes que proliferan, entre cámaras térmicas, la intimidad extrovertida en videoconferencias, las proyecciones en las fachadas y las numerosas reproducciones de la síntesis computarizada del virus. No menos significativas, en el contexto brasileño, son las imágenes del presidente Bolsonaro, cuyas fotos expresan su visión política del coronavirus, y las imágenes de las excavadoras abriendo las zanjas para las víctimas que sucumbieron a la enfermedad. En este artículo, se analizan algunas imágenes impactantes del aislamiento social durante la COVID-19 en Brasil, como declaraciones de la retórica visual que constituye la experiencia cultural de la nueva normalidad. Basado en la metodología de Didi-Huberman, en Cascas, se parte de los registros de las imágenes para comprender el contexto de la pandemia. A partir de las discusiones de Barthes, Foss y Mateus, sobre retórica visual, el artículo sostiene que del campo de la invisibilidad de las imágenes es desde donde se comprende la dimensión biopolítica de la pandemia.

Palabras clave:
Retórica visual; estética de la vigilancia; invisibilidad; coronavirus


A pandemia do novo coronavírus é também uma pandemia de imagens. Nela se consolidou um novo vocabulário visual, fundado em estéticas da vigilância e da extroversão da intimidade. Entre as câmeras térmicas e a síntese computadorizada do vírus, passando pelas bibliotecas pessoais que ocuparam as lives, naturalizamos experiências culturais que até o início de 2020 nos eram estranhas ou no mínimo raras.1 1 Para uma análise detalhada dessas questões ver, da autora, Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana (pp. 9-25). São Paulo, SP: Editora Escola da Cidade, 2020. Essas experiências tornaram familiares uma multiplicidade de linguagens e visualidades inéditas. A devassa pública da fisiologia dos corpos, a intimidade forçada pelas rotinas das videoconferências e o desfile, nas redes e nas ruas, das pessoas de máscara são algumas delas. Não menos significativas são as imagens do presidente Bolsonaro, cujas fotos expressam sua abordagem política do coronavírus e a visão, via drones, das escavadeiras abrindo valas para vítimas que sucumbiram à doença em cemitérios populares. Neste artigo, essas imagens são analisadas no campo de uma retórica visual que enuncia alguns regimes de sentido do contexto pós-pandêmico.

Retóricas visuais

Foi Roland Barthes, conforme assinala Samuel Mateus (2018Mateus, S. (2018). Introdução à retórica no séc. XXI. Covilhã: Editora LabCom.IFP. Recuperado de: <https://www.academia.edu/365>.
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, p. 179), quem primeiro definiu o campo de uma retórica das imagens em texto que data de 1964 (Barthes, 1990Barthes, R. (1990). A retórica da imagem. In O óbvio e o obtuso: Ensaios críticos III (pp. 27-44). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 40), situando sua interpretação a partir do inventário de seus conotadores (o conjunto de associações que se acrescentam ao sentido original de uma palavra). Expande-se, a partir dessa compreensão, o entendimento da retórica para além do discurso verbal, permitindo que se incorporem à análise “as convenções pelas quais [o discurso] é criado nos artefatos visuais e nos processos pelos quais influenciam os espectadores” (Foss, 2008Foss, S. K. (2008). Framing the Study of Visual Rhetoric: Toward a Transformation of Rhetorical Theory. In Defining visual rhetorics (pp. 303-314). London, UK: Taylor & Francis e-Library., p. 303). Nessa perspectiva, as imagens que circularam durante o período de isolamento social para conter a pandemia do coronavírus, transcendem o seu valor estético e funcionam como elementos simbólicos constitutivos de um sistema de comunicação.

Ao situar o universo imagético como dimensão da vida social da COVID-19, a noção de retórica visual possibilita pensar a pandemia no âmbito da experiência cultural. Importante frisar o âmbito dessa reflexão em relação à noção de retórica visual: ela funciona aqui como referência conceitual de nossa análise. Do ponto de vista da metodologia, segue-se um modelo arqueológico, na trilha dos procedimentos de Didi-Huberman em Cascas (2017)Didi-Huberman, G. (2017). Cascas. São Paulo, SP: 34 Letras.. Nessa obra, o autor parte de suas fotos do campo de concentração de Auschwitz, onde sua família foi executada em câmaras de gás, para escavar a dor e as histórias que as acompanham e fazer delas um “bem comum”, um patrimônio transmissível e compartilhável, conforme assinala Ilana Feldman, que o entrevistou para a edição brasileira dessa obra.

A estratégia analítica de Didi-Huberman implica entender as imagens como constructo social e o olhar como resultante de um trabalho coletivo. Com essa abordagem, libera-se a imagem do peso da representação para sua interpretação como uma escritura imagética, que enuncia o trauma do acontecimento vivido e do vazio herdado. Na base dessa reflexão, renuncia-se a qualquer suposição sobre a imagem como acessório ilustrativo ou adendo a uma informação prévia, o que necessariamente a reduz ao papel de suplemento, no primeiro caso, ou de complemento, no segundo.

Como aprendemos com Derrida (1973)Derrida, J. (1973). Gramatologia (Vol. 16). São Paulo, SP: Perspectiva., “o suplemento supre”. É um “substituto” que “não se acrescenta simplesmente à positividade de uma presença, não produz nenhum relevo, seu lugar é assinalado na estrutura pela marca de um vazio” (p. 178). Na mesma direção, também a relação de complementaridade esvazia a potência de leitura da imagem e poucos artistas foram tão certeiros nessa discussão como Magritte. Na famosa série de quadros intitulada A traição das imagens, o artista justapõe à pintura de um cachimbo à frase “Isto não é um cachimbo”. Ironizava, assim, qualquer tentativa de submeter o desenho a uma legenda que completaria a lacuna (inexistente) de sentido. Foucault resume a tática de Magritte: “Não busquem no alto um cachimbo verdadeiro; mas o desenho que está lá sobre o quadro, bem firme e rigorosamente traçado, é este desenho que deve ser tomado por uma verdade manifesta” (Foucault, 1988Foucault, M. (1988). Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro, RJ: Paz eTerra., p. 13).

Isso não quer dizer que as imagens falam por si, o que nos levaria a inverter a falácia da hierarquia entre texto e imagem, dando à imagem uma nova posição de subjugo do texto. Entendê-las, no campo de uma retórica visual é dar-lhes sentido relacional, mapeando seus enunciados no âmbito dos discursos sociais em que produzem sentido, em interlocução com outras imagens e com outras escrituras. É nessa perspectiva que trabalharemos neste artigo.

Imagens da dor

Talvez não seja fortuita a lembrança da obra Cascas de Didi-Huberman, em que ele revisita o Holocausto dos judeus, como base metodológica para a decodificação das imagens da pandemia do coronavírus. Não seria a imagem das valas comuns escavadas mecanicamente o discurso mais potente sobre o genocídio de que fomos todos testemunhas? Afinal, o que melhor corresponderia à brutalidade social a que esses corpos foram submetidos, do que a imagem de um enterro massivo, mediado por uma pá mecânica, procedendo a demolição final de seu futuro, como se fosse o aterramento de resíduos descartáveis?

Na padronização das sepulturas, rigidamente organizadas, instaura-se mais que uma tradução visual da escala quantitativa das mortes. Essas sepulturas têm, é evidente, classe definida. O chão de terra, as covas rasas, os caixões sem verniz ou adorno reúnem índices básicos da inserção social das centenas de corpos que não aparecem nas fotos. E é justamente na sua invisibilidade que reside a força enunciativa dessas imagens. É o ocultamento que revela as dinâmicas de exclusão e violência a que esses mesmos corpos são submetidos diariamente.

“Olhai por nós” dizia uma pichação feita, dois anos atrás, na fachada da capela do Pátio do Colégio no centro de São Paulo. Lugar mitificado, onde a origem jesuíta da capital do Estado Bandeirante foi forjada, tornou-se com a degradação da área central, um abrigo a céu aberto dos sem-teto da cidade, que há muito voltou-lhes as costas (Jayo, 2018Jayo, M. (2018, abril). Olhai por nós. Uma falsificação arquitetônica se reveste de verdade. Minha Cidade, 18(213.03). Recuperado de: <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.213/6945>.
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). Olhai por nós dizem também os corpos que foram enterrados em mutirões, revelando a dimensão trágica de sua existência. Sem acesso aos serviços de saúde, vivendo em moradias que na sua arquitetura mínima traem a primeira regra de contenção do contágio (o distanciamento dos corpos) e que não podem participar da esfera protegida pelo teletrabalho. Nada mais cruel que a demanda de uma escavadeira para dar conta da produção política do seu extermínio. Covas pequenas para corpos frágeis de trabalhadores e de desempregados que não cabem na idealização atlética dos sujeitos “purificados” pela eugenia do Estado. Seria essa imagem dos cemitérios a do contraponto, feito pelo presidente Bolsonaro, entre o atleta e os corpos que adoecem? (Exame, 2020Exame (2020, março 30). Bolsonaro sobre COVID-19: “Não vou sentir nada, fui atleta e levei facada”. Recuperado de: <https://exame.com/brasil/bolsonaro-sobre-covid-19-nao-vou-sentir-nada-fui-atleta-e-levei-facada/>.
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).

Imagens biopolíticas

“Morrer é normal. Tem que ficar escandalizado é com a indiferença”, disse o pensador indígena Ailton Krenak (Maciel, 2020Maciel, M. (2020, agosto 26). Programa Metrópolis. Entrevista com Ailton Krenak. Recuperado de: <https://youtu.be/GZEWB6hWNM8?t=120>.
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). É esta indiferença que aparece nos corpos que não figuram nas fotos dos cemitérios populares brasileiros e que rodaram o mundo, replicadas em jornais e sites diversos. Corpos abandonados à sua própria sorte, colocando a nu toda a morbidez da necropolítica tropical. Pois que política é essa que está em curso, senão aquela conceituada por Achille Mbembe (2018)Mbembe. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: SP, n-1 edições. como uma política que escolhe seus corpos matáveis? Corpos segregados e racializados no discurso de Mbembe que se expandem, no Brasil em direção a uma população que inclui, além dos negros, os mais pobres, as mulheres, os imigrantes, os indígenas (Pelbart, 2018Pelbart, P. P. (2018). Necropolítica tropical. São Paulo, SP: n-1 edições.).

Corpos matáveis que são invisibilizados, acima de tudo, por uma nova biopolítica que se apoia em sistemas de dataveillance para traçar a linha entre quem é computável e têm direito à vida e quem não é. Sua eficiência depende da convergência entre rastreabilidade e identidade, confluindo, em situações extremas, como a do coronavírus, para uma outra hierarquia social entre os corpos imóveis e os móveis, entre quem é visível e quem é invisível perante o Estado e pelos algoritmos corporativos.

São os que podem parar, ficar em casa, circular nos espaços de consumo em horários pré-determinados, os imóveis, os que podem e são rastreáveis e, portanto, curáveis. No contexto “laboratorial” que a coronavida impôs, no qual a cumplicidade com o monitoramento é também uma prerrogativa de sobrevivência, o não rastreado é aquele para o qual o Estado já havia esquecido. Na espiral da “coronavigilância”, o sujeito móvel é aquele invisível visível que nossa violência social teima em não enxergar. Afinal, são os dados coletados dos corpos rastreáveis que, combinados às estatísticas dos sistemas públicos de saúde, gerenciam os movimentos da pandemia. Eles alimentam desde as plataformas de monitoramento do poder público a aplicativos como o Private Kit Save Paths, desenvolvido no MIT Lab, e o israelense HaMagen, entre vários outros (COVID19 Tracker Apps, 2020COVID19 Tracker Apps. (2020). Recuperado de: <https://fs0c131y.com/covid19-tracker-apps/>.
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).

Reverte-se nesse quadro uma direção do processo de globalização, indicado pela socióloga Saskia Sassen em mais de uma oportunidade, que definia uma geografia pautada pela dinâmica de dispersão (das atividades econômicas) e de centralização territorial do seu gerenciamento (2002). Isso conflui para um desenho do espaço em que os centros (ou nós) de poder articulam-se diretamente com sua capacidade de dominar o fluxo, de modo que podíamos dizer que na contemporaneidade o excluído é o imóvel. Digo podíamos porque o coronavírus inverteu bruscamente essa equação. Na “coronavida” o socialmente privilegiado é o imóvel. Fica claro nessa dinâmica como a pandemia do coronavírus migrou de um “vírus da geopolítica”, que se espalhou a partir das viagens de avião de um setor de negócios específico, para se converter em um “vírus da geografia do caos” (Castilho, 2020Castilho, D. (2020). Um vírus com DNA da globalização: O espectro da perversidade. Espaço e Economia [Online], 9(17). Recuperado de: <https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.10332>.
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.1...
).

E como figuram esses corpos móveis nas imagens do coronavírus? Não figuram. Tornaram-se emblemáticas da pandemia as imagens de ruas vazias em várias cidades, como icônicas do isolamento social. Muito embora as aglomerações sejam sempre dignas de nota midiática, nas praias da classe média no Rio de Janeiro e São Paulo, são as fotos das cidades desertas as que se associam imediatamente a COVID-19. Muito esporadicamente são registrados os pontos em que a rotina de exclusão não se alterou com o coronavírus, como os lugares de concentração dos moradores de rua nas grandes cidades.

A invisibilidade dos corpos que são destinados às valas abertas por escavadeiras se repete também nos diagnósticos cartográficos oficiais. Isso porque as análises espaciais dos mapas de distribuição da doença tomam por base os distritos, criando dicotomias entre centro e periferia que não se sustentam em uma análise mais rigorosa. Conforme mostrou um estudo do labcidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Rolnik, Marino et. al., 2020Marino, A., Rolnik, R., Klintowitz, D., Brito, G., Mendonça, P . com colaboração de Vitor Nisida e Lara Cavalcante (2020, junho 4). Simplificação da leitura do comportamento da epidemia no território dificulta seu enfrentamento. labcidade. Recuperado de: <http://www.labcidade.fau.usp.br/simplificacao-da-leitura-do-comportamento-da-epidemia-no-territorio-dificulta-seu-enfrentamento/>.
http://www.labcidade.fau.usp.br/simplifi...
), a leitura da complexidade social da pandemia demandaria outras camadas como “fluxos da mobilidade urbana, áreas de comércio e intensa circulação, localização de hospitais e de locais de moradia de profissionais de saúde, concentração de idosos, dados raciais”. Segundo ponto a observar é que um dos elementos-chave para entender a dinâmica da pandemia, de acordo com os dados da mesma pesquisa, é o deslocamento das pessoas pela cidade. A partir de uma análise que coteja dados de mobilidade urbana, com perfil social dos passageiros e os dados do DATASUS, conclui-se que “há uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens das viagens com as manchas de concentração do local de residência de pessoas hospitalizadas com COVID-19” e outras síndromes respiratórias, que provavelmente também são casos de coronavírus (Rolnik, Santoro et al., 2020Rolnik, R., Santoro, P., Marino, A., Brito. G., Mendonça, P., Klintowitz, D. (2020, junho 30). Circulação para trabalho explica concentração de casos de COVID-19. Recuperado de: <http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-de-casos-de-covid-19/>.
http://www.labcidade.fau.usp.br/circulac...
).

Se a análise que equaciona a compreensão da COVID-19 pela base distrital mascara as nuances sociais da pandemia, também a que mede a adesão à quarentena pelo monitoramento dos “dados de telefonia móvel”, utilizado pelo governo do Estado de São Paulo, e outras unidades federativas, pouco ajuda na compreensão da geografia humana do isolamento social. Partindo da geolocalização dos celulares, medem-se as “tendências de deslocamento”, computadas em uma média de 43% (dados de agosto), que traduzem “a eficácia do isolamento” (Portal do Governo, 2020Portal do Governo (2020, maio 15). Adesão a isolamento social em SP é de 48%, aponta Sistema de Monitoramento Inteligente. saopaulo.sp.gov.br. Recuperado de: <https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/adesao-a-isolamento-social-em-sp-e-de-48-aponta-sistema-de-monitoramento-inteligente/>.
https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticia...
). Contudo, essa “eficácia” é pouco instrumental para compreender por que a maioria não adere ao isolamento.

No projeto Janelas Desobedientes (2020), um projeto de design especulativo feito por mim com alunos da disciplina Arte e Design de Interface em Escala Urbana, na FAUUSP, entre março e junho deste ano, investigamos a potência do som como marcador social e indicador político e ideológico da recepção da quarentena na cidade. Ao longo de três meses (março a junho), fizemos a captação de áudio coletiva, a partir de diferentes pontos da região metropolitana, Baixada Santista, Atibaia e em Santiago do Chile, o que nos permitiu identificar diferentes camadas de comparação.

Os áudios foram registrados três vezes ao dia e também nos “janelaços” (momentos de protesto, feitos a partir das janelas) contra as declarações e atitudes do presidente Jair Bolsonaro frente à pandemia. Essa documentação sonora foi utilizada de diferentes formas, buscando dar visualidade e geografia às informações recolhidas. A heterogeneidade social da cidade de São Paulo e as particularidades “negacionistas” da presidência de Jair Bolsonaro sobre a realidade da pandemia, impuseram às inéditas condições de isolamento social características que se tornaram evidentes na nova paisagem sonora da cidade.

Nos bairros centrais, os ruídos da infraestrutura urbana foram substituídos pelo canto de pássaros. No período noturno, era forte a adesão aos janelaços de protesto à política do governo federal frente à COVID-19. Contudo, em Ermelino Matarazzo a música do funk e dos cânticos evangélicos nas igrejas e o som dos encontros na rua eram dominantes. No que diz respeito aos “janelaços”, nenhum som foi registrado. Ficava claro que a impossibilidade de trabalhar de casa e a proximidade com as diretrizes do bolsonarismo expressaram que o som da cidade revela não apenas marcadores sociais, mas no caso brasileiro, dados políticos e ideológicos.

Esses exemplos, baseados em metodologias apoiadas em visualização de dados e mapeamento sonoro, ainda que com recortes muito parciais, são bons indicativos do tipo de imagens que seria capaz de dar conta da complexidade urbana da COVID-19. Passando longe do repertório consolidado para interpretação do cotidiano da cidade por meio de fotografias, tema que foge aos objetivos deste artigo, revelam também que a nova biopolítica implica uma outra cultura visual capaz de dar conta de um novo regime de invisibilidades.

Esse regime de invisibilidades remete ao contexto de vigilância algorítmica que consolida o que Claire Birchall (2017)Birchall, C. (2017). Shareveillance: The Dangers of Openly Sharing and Covertly Collecting Data. University of Minnesota Press. denominou de shareveillance (vigilanciamento em tradução livre), um combinado entre vigilância e compartilhamento.2 2 Incorporam-se nesta discussão sobre a vigilância trechos de textos de minha autoria publicados em revistas e sites de divulgação científica, como Revista Zum e Lavits e no livro, também de minha autoria, Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana (Editora Escola da Cidade, 2020). Somos monitorados a partir dos dados que doamos, de forma consciente ou inconsciente, num arco heterogêneo e complexo, que vai das redes sociais à emissão de documentos, como passaportes e RGs com chip. É isso que faz da vigilância, no contexto de digitalização da cultura em que vivemos, uma prática não necessariamente coercitiva, mas que engendra novas formas de violência social. Ela pode operar, e de fato opera, de forma naturalizada, pela necessidade de se fazer parte do todo, de ser visível, e também de forma compulsória, pela necessidade de ser socialmente computável. Você pode optar em integrar-se, ou não, às redes sociais (ainda que isso implique a sua invisibilidade). Mas essa opção é mais difícil, quando se trata de uma pandemia do porte da do coronavírus, em que o compartilhamento dos dados pode significar a proteção da sua saúde.

Esse formato emergente de vigilância ocorre no âmbito de novas práticas de violência social. Ela não suprime a violência contra os alvos da necropolítica tropical. No entanto, cria também novas formas de brutalidade, dilacerando ainda mais as relações de trabalho pela normalização do precário e tornando mais vulneráveis os corpos móveis sem celular que não podem ser rastreados.

Espécie de assombração da “cidade genérica” conceituada por Rem Koolhaas (2010)Koolhaas, R. (2010). Cidade genérica. In Três textos sobre a cidade (pp. 29-65). Barcelona, ESP: Editorial Gustavo Gili., na qual tudo migra para o mundo on-line, a “coronacity” é uma cidade sedada, feita para ser observada de um ponto de vista sedentário. Mais excludente e mais monitorada, ela dá corpo a uma sociedade que se divide entre os sucateados pelo trabalho remoto, o lumpesinato digital dos deliveries e milhares de milhões de desabrigados.

A paranoia é o horizonte estético pandêmico e nada mais condizente com isso que um termômetro em forma de arma. Inevitável pensar no que diria o filósofo e urbanista Paul Virilio (1932-2018) sobre esse tema, que tantas vezes nos alertou para as dimensões políticas da automação da percepção e da industrialização da visão. Essa automação diz respeito à emergência de uma visão artificial, à delegação a máquinas de um olhar que não temos. Já a industrialização remete ao mercado da percepção sintética, fartamente instrumentalizada pelas formas de vigilância contemporâneas (Virilio, 1994Virilio, P. (1994). A máquina de visão. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.).

Um dos pilares desses sistemas de vigilância é o sensoriamento remoto, uma forma de monitorar e extrair dados sem contato físico com o objeto. Tecnicamente, os primeiros voos militares de balão, que eram realizados desde o fim do século XVIII, antes da invenção da fotografia, podem ser considerados a origem desse procedimento, numa arqueologia de suas práticas. E muito embora a fotografia aérea tenha sido um dos marcos da Primeira Guerra Mundial, foi apenas no âmbito da corrida espacial e da Guerra Fria entre os EUA e a URSS que aquilo que entendemos por sensoriamento remoto se consolida.

Com a migração dos sistemas analógicos para os digitais, a partir da década de 1980, a imagem é articulada a sensores e deixa de ser uma prótese compensatória do tempo não vivido e do que já passou, para tornar-se um amálgama de dados variados, como os campos eletromagnéticos não visíveis aos humanos. Apesar de não enxergarmos, tudo aquilo que vemos reflete e absorve energia eletromagnética do sol. A forma pela qual cada superfície absorve e reflete a radiação identifica particularmente os diferentes objetos ou corpos, e constitui o que os cientistas chamam de “assinatura espectral”. Isso permite o desenvolvimento de uma gama de sensores com finalidades variadas para medir a energia de determinados comprimentos de onda (Shekar & Vold, 2020Shekar, S. Vold, P. (2020). What’s There? Remote Sensing. In Spatial Computing. MIT Press. Recuperado de: <https://doi.org/10.7551/mitpress/11275.003.0006>.
https://doi.org/10.7551/mitpress/11275.0...
). Os sensores utilizados por câmeras térmicas e pelos “gun thermometers”, popularizados pela COVID-19, por exemplo, operam no espectro infravermelho.

Utilizadas em operações militares e em controle de fronteiras, essas câmeras térmicas tiveram um vertiginoso aumento de uso com a pandemia do coronavírus. Atreladas a drones, monitoraram Wuhan do alto e um protótipo associado a alto-falantes foi testado em Recife. Recentemente, a Amazon implantou esse tipo de câmera em seus depósitos para monitorar o contágio entre seus funcionários. A câmera funciona como um porteiro eletrônico. Caso o indivíduo esteja com febre, não entra. O corpo transforma-se assim na nova senha do novo normal (G1, 2020G1. (2020, fevereiro 5). Drones são usados pela polícia para alertar sobre o risco do novo coronavírus na China. G1. Recuperado de: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/05/drones-sao-usados-pela-policia-para-alertar-sobre-o-risco-do-novo-coronavirus-na-china.ghtml>.
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/not...
; Cardoso, 2020Cardoso, B. (2020, abril 6). Drone que mede temperatura corporal a distância reforça combate ao novo coronavírus. G1. Recuperado de: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/04/06/drone-que-mede-temperatura-corporal-a-distancia-reforca-combate-ao-novo-coronavirus-em-pe.ghtml>.
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/notic...
; BBC News, 2020BBC News. Coronavirus: Amazon using thermal cameras to detect COVID-19. (2020, abril 20). Recuperado de: <https://www.bbc.com/news/technology-52356177>
https://www.bbc.com/news/technology-5235...
).

Criticados pela relatividade de suas informações em veículos especializados e na grande imprensa, a popularização desses dispositivos traz ainda outras questões de ordem política, cultural e estética relacionadas à naturalização e opacidade dos sistemas de sensoriamento remoto.

Primeiramente é preciso levar em conta que sua precisão está associada a um tipo novo de resolução de imagem: a “resolução temporal”. Ela é qualificada pela frequência com que os sensores revisitam e obtêm informações da mesma área. O que indica uma capacidade cada vez maior e mais sofisticada de ler (e armazenar) dados sobre funcionários de uma empresa, usuários do sistema público de transporte a caminho do trabalho ou da escola, entre outras dinâmicas.

Por outro lado, não se pode abstrair, que tudo isso é feito a partir de imagens da fisiologia do indivíduo, vistas por olhos totalmente maquínicos, que escaneiam o corpo e o reconstituem a partir da tradução de inputs eletromagnéticos em pixels. Ao final, em segundos, compõem um retrato “em rosa púrpura e azulão” do sujeito. Um retrato que só pode ser validado em um banco de dados, abrigado em uma nuvem computacional e submetido a alguma Inteligência Artificial que buscará padrões para eventualmente contribuir para a cura da COVID-19. Mas que também podem vir a ser utilizados para outras finalidades. Não sabemos. Isso faz com que a pergunta hoje não seja mais se seus dados serão coletados, mas sim por quem, de que forma e quais serão os seus possíveis destinos.

Não se discute a necessidade de conter a propagação do vírus, tomando medidas que interferem na vida social. Sabemos que são, todavia, a única forma de controle da pandemia. A questão aqui é outra: compreender as estéticas da vigilância do coronavírus no campo de uma nova biopolítica. Uma biopolítica que não só distribui os corpos em campos de visibilidade, como vimos acima, mas os controla pela sua fisiologia, sem coerção e sem dor.

A pandemia já ditou algumas regras da gramática neoliberal como fundamentos sociais. A naturalização da vigilância é seu pilar de sustentação e o mapa de calor a tradução visual do cotidiano paranoico. Técnica de visualização de dados, o mapa de calor é uma mostra a magnitude de um fenômeno como cor em duas dimensões. A variação na cor, por matiz ou intensidade, revela como o fenômeno está agrupado ou se modifica. Muito usados no campo da biologia molecular para identificar o comportamento de genes em diferentes condições, os mapas de calor também traduzem visualmente as informações sobre a temperatura corporal, recurso que se popularizou com a pandemia do coronavírus e do qual me apropriei no projeto Coronário.3 3 Obra de net art de minha autoria, foi comissionada para o programa IMS Convida, do Instituto Moreira Salles. Coronário <http://coronario.ims.com.br>.

O Coronário reúne as palavras mais marcantes da experiência cultural do coronavírus no Brasil (de álcool gel a comunavírus), mensuradas pelo índice de tendências de buscas do Google, entre março e abril, período que coincide com os primeiros dias do isolamento social. As palavras mais acessadas pelo público do site respondem dinamicamente, mudando de cor, em conformidade com um mapa de calor que reflete a atenção recebida.

Nesse contexto, o Coronário funciona não só como um glossário da experiência cultural e social da pandemia, que no Brasil assumiu contornos políticos e ideológicos, mas também como um exercício de rastreamento feito em público. Ao interpretar o coronavírus no âmbito da cultura, partindo do seu léxico, o Coronário assume que estamos diante não apenas de um dos mais graves problemas de saúde pública da história. Estamos também em um momento de profundas transformações sociais e econômicas locais e globais.

Catalisadas pela pandemia, essas transformações se impõem biopolítica e esteticamente. Criam um novo indicativo da violência social pelos campos de invisibilidade que promovem. É nesse campo de invisibilidades que estão postos os enunciados das retóricas visuais do mundo covídico. Na naturalização dos revólveres travestidos de termômetros e nas câmeras que recolhem a assinatura espectral dos nossos corpos em mapas de calor estão contidas, portanto, muito mais que a leitura da temperatura. Tais ferramentas trazem à tona, ainda que de forma cifrada por uma ciência militarizada, as pautas de uma ótica algorítmica que é preciso aprender a ver. Porque ela não só nos já enxerga, mas escolhe quem é visível e quem é invisível aos olhos da sociedade e do Estado.

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    Para uma análise detalhada dessas questões ver, da autora, Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana (pp. 9-25). São Paulo, SP: Editora Escola da Cidade, 2020.
  • 2
    Incorporam-se nesta discussão sobre a vigilância trechos de textos de minha autoria publicados em revistas e sites de divulgação científica, como Revista Zum e Lavits e no livro, também de minha autoria, Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana (Editora Escola da Cidade, 2020).
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    Obra de net art de minha autoria, foi comissionada para o programa IMS Convida, do Instituto Moreira Salles. Coronário <http://coronario.ims.com.br>.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.

Referências

Editora/Editor: Profa. Dra. Ana Maria G. R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2020
  • Aceito
    06 Set 2020
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