Introdução
Desde dezembro de 2019, uma nova pandemia assola a humanidade, a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. Logo se notou que pacientes com tal doença podem apresentar quadros psicopatológicos, como delirium, insônia, ansiedade, humor depressivo, irritabilidade, prejuízos da memória e estresse pós-traumático (Rogers et al., 2020). No entanto, ainda não está claro se os quadros psicopatológicos são consequência da infecção viral e sua repercussão encefálica, do sofrimento emocional e estresse relacionados à pandemia, ou de fatores do tratamento, como longa permanência em unidades de terapia intensiva e separação de familiares.
As relações entre doenças infecciosas e psicopatologia são conhecidas desde os inícios da psiquiatria, nos séculos XVIII e XIX. Os psiquiatras e psicopatólogos não deixaram de notar tal relação (Munjal et al., 2017). No Brasil, na história da psicopatologia que aqui se desenvolveu, tais temas e debates tiveram sua relevância. Trazemos aqui um caso exemplar, através de obra de um produtivo neurologista e neuropsiquiatra brasileiro, Antonio Austregésilo, produzida há um século em nosso país.
Doenças infecciosas produzindo alienação mental: alguns termos psicopatológicos relacionados às psicoses infecciosas
O presente artigo visa analisar, na obra de Antonio Austregésilo, o trabalho intitulado Psicoses inficiosas nas doenças tropicaes, de 1919. Para tanto, faz-se necessário examinar historicamente alguns construtos médicos e psicopatológicos relacionados à inter-relação entre condições e doenças físicas e transtornos mentais. Apenas o exame cuidadoso da história interna e conceitual de aspectos específicos da tradição médica e psicopatológica permite que se compreenda o texto de Austregésilo, impregnado pelos conceitos e debates situados no início do século XX.
Segundo Paul Bercherie (1989), na transição do século XVIII para o XIX, Philippe Pinel (1745-1826) considerava a distinção entre afecções com e sem febre como elemento de grande importância em sua taxonomia, possivelmente influenciado pela contraposição mania versus phrenitis da tradição hipocrática e galênica. Étienne-Jean Georget (1795-1828), no início do século XIX, propõe dividir os transtornos mentais em um grupo cujas causas são morais (ou seja, psicológicas, psicossociais, nos termos atuais) ou físicas (somáticas ou orgânicas). Estas últimas produziriam tipicamente o delírio agudo (délire aigüe), um tipo de afecção simpática, ou seja, a alteração física repercutiria sobre o cérebro, perturbando-o e produzindo a anormalidade mental. Assim, a noção de alienações sintomáticas ou simpáticas de Georget (mas usadas também por Bayle, Baillarger, Guislain e Griesinger) irá ocupar o lugar nosológico da phrenitis hipocrática.
Os termos delírio e delirium têm um uso variado e muitas vezes dúbio ou repleto de ambiguidades na tradição médica e psicopatológica, nos últimos dois séculos. Por delirium, de modo geral, se denomina, desde o século XIX, quadros agudos de natureza orgânica, como o delirium febril, que se relaciona a qualquer quadro febril agudo produzindo clinicamente perturbação da atenção, do nível de consciência, obnubilação do sensório, desorientação, pensamento confuso (e apenas em alguns casos presença de ideias delirantes), ilusões e alucinações, quase sempre visuais, e estado afetivo de angústia, excitação ou pavor. Delirium é assim o termo herdeiro e transformação moderna (a partir do século XIX) da antiga phrenitis da medicina grega hipocrática e romana galênica (Berrios, 1996).
Já o termo delírio tem um uso, nos tratados e manuais de psiquiatria, desde o século XIX, consideravelmente variado, conforme o contexto de que se esteja tratando. Como esclarece Berrios (1996), nas tradições germânicas e britânicas a confusão terminológica, embora também presente, não foi tão grave, pois seus idiomas dispõem de termos claramente distintos para designar delírio (ideia delirante) e delirium (uma síndrome confusional orgânica e aguda); no alemão Wahn sempre designou ideia delirante ou loucura em geral e Delir ou Verwirrtheit, o delirium orgânico, agudo e frequentemente febril. No inglês, o termo delusion indica, desde há muito, ideia delirante e delirium, o quadro orgânico. Nas tradições alienistas de línguas latinas como a francesa, a confusão terminológica parece ser mais acentuada. Na França, o termo délire, desde o século XIX até há poucas décadas, refere-se tanto a um sintoma psicótico (ideia delirante), à loucura ou insanidade em geral e ao delirium. No ambiente francofônico designava-se o delirium por délire aigüe ou délire febrile (mas às vezes usava-se apenas o termo délire); já para se indicar psicose em geral (alienação ou insanidade mental), lançava-se mão de délire chronique sans fiévre (Berrios, 1996).
No português e no espanhol, têm-se as mesmas dificuldades que no francês. Delírio, no século XIX e primeira metade do XX, é frequentemente usado como sinônimo de delirium orgânico, febril, mas também é empregado com o sentido de ideia delirante, ou seja, um juízo falso produzido por um quadro psicótico (um delírio de perseguição, por exemplo), seja associado à esquizofrenia, a outra psicose, a quadros orgânicos ou psicogênicos. Finalmente, com certa frequência, sobretudo em textos do século XIX, como ocorria na França, delírio foi usado como sinônimo de alienação mental, psicose ou doença mental grave que perturba globalmente as funções mentais, sobretudo a esfera ideativa. De modo geral, no artigo de Austregésilo que examinaremos a seguir é utilizado o termo delírio com o sentido de delírio agudo (délire aigüe dos franceses) ou delirium e não com o sentido de ideia delirante.
Dados biográficos e produção intelectual de Antonio Austregésilo
Antonio Austregésilo Rodrigues Lima nasceu em Recife em 21 de abril de 1876 e faleceu no Rio de Janeiro em 23 de dezembro de 1960. Em Recife, estudou no Colégio das Artes, tendo contato com Tobias Barreto e o movimento literário e artístico com influências germanizantes da chamada Escola de Recife.
Estudou medicina no Rio de Janeiro e, em 1899, diplomou-se com a tese Estudo clínico do delírio, revelando já no início da carreira seu especial interesse pela psicopatologia. Apesar de filho de um advogado de Recife, Austregésilo é descrito por alguns biógrafos como de origem humilde, de pele parda, tendo tido tiques na infância e tartamudez durante toda a vida (Teive et al., 1999).
Nos primeiros anos de prática médica, foi interno da colônia de doentes mentais da Ilha do Governador e do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. Em 1902, tornou-se médico da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Entre 1902 e 1906, participou da equipe de Juliano Moreira, designada pelo presidente da República, Rodrigues Alves, para remodelar a Assistência aos Alienados. Entre 1904 e 1909, teve atuação intensa no Hospício Nacional de Alienados (Austregésilo, 1949). Assim, o neurologista, ao longo de sua vida, teve importante envolvimento com a psiquiatria e a psicopatologia, por isso talvez seja correto classificá-lo também como neuropsiquiatra (Leme Lopes, 1961; Neves-Manta, 1979).
Fez, nesse período, várias tentativas de entrar na carreira acadêmica como professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, através de concursos, tendo sido preterido por três vezes. Entre os fatores de tal insucesso, sugeridos por biógrafos, teriam sido sua pele parda, a origem humilde, vindo do Nordeste do Brasil, e a sua situação econômica e social, ou seja, um membro da classe média, não pertencente às elites (Teive et al., 1999). Mas é difícil afirmar o quanto isso faz parte de uma certa idealização a posteriori, a construção do mestre-herói.
Em 1912, foi indicado pela congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para a primeira cátedra de clínica neurológica e, em tal cátedra, teria fundado a primeira escola de neurologia no Brasil (Mota Gomes, 1999).
Além de médico voltado especialmente à neurologia clínica e à psiquiatria, também foi escritor, tendo produzido prosa e poesia, com obras suas publicadas em revistas simbolistas da época. Foi eleito, em 1914, membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido também membro da Academia Brasileira de Medicina (Gomes, 1999).
Sua produção médica, além da neurologia, abarca a psicopatologia (como no artigo discutido a seguir), vários estudos e livros sobre neuroses, “problemas nervosos”, psicoterapia e higiene mental. Formulou uma doutrina de fames, libido e ego,1 para alicerçar sua proposta psicoterapêutica, aproximando-se, a seu modo, de construtos freudianos. Ele atribuía importância central tanto para os impulsos sexuais quanto para impulsos relacionados à sobrevivência.
Conhecido por sua habilidade clínica, tornou-se famoso tanto pela erudição clínica, como pelo gosto e habilidade em ensinar e formar gerações de médicos e especialistas. Inquieto intelectualmente, escreveu muito, livros de neurologia, psiquiatria, e clínica médica, assim como obras de divulgação sobre sexologia (Uchôa, 1981).
Em 1916, lançou o conceito de catafrenia, designando um enfraquecimento adquirido das faculdades mentais, de início semelhante às demências, mas que, ao contrário das demências, pode melhorar e inclusive curar (Austregésilo, 1949).
As principais publicações internacionais de Austregésilo foram feitas em língua francesa, no início do século XX.2 Assim, sua contribuição internacional para a neurologia clínica é bastante significativa para um autor brasileiro, em um ambiente acadêmico com modesta tradição científica. Ele cita com frequência Kraft-Ebing, Freud, Charcot, Janet, Kraepelin. Assim, a obra de Austregésilo transita de forma ampla entre a neurologia clínica, a psicopatologia, a psicoterapia e certo tipo de psicologia popular e higiene mental, algo não incomum em autores do campo neurológico-psiquiátrico daquele momento. Na Tabela 1, listamos algumas das principais obras de Austregésilo, em ordem cronológica, com breve comentário. Antonio Austregésilo Rodrigues Lima, falece no Rio de Janeiro em 23 de dezembro de 1960, aos 84 anos de idade.
Tabela 1 Principais Obras de Antonio Austregésilo Rodrigues Lima (1876-1960)
Ano | Título | Comentários |
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1898 | Manchas | Livro de prosa poética. |
1909 | Estudo clínico do delírio | Publicação de sua Tese de doutoramento, de 1899. Também publica Ataques epiléticos produzidos pelo brometo de cânfora. |
1916 | Conceito de Catafrenia. | Lança o construto catafrenia indicando enfraquecimento mental adquirido e reversível, distinto da demência e de boa evolução. |
1917 | Clínica neurológica (em três volumes; 1917, 1934, 1945) | Capítulos sobre diagnóstico de tabes, debilidade nervosa, cenestopatias, polineurites escorbúticas, fenômeno de Babinski, tiques, síndrome histeróide, ataques epileptóides. |
1917 | Clínica médica | Sobre semiologia médica, com fotos relacionadas a sinais físicos patológicos e cortes histopatológicos. |
1919 | Psiconeuroses e sexualidade | Sobre neurastenia sexual e seu tratamento. Defende a tese de "quem possui vida sexual normal não sofre dos nervos". O tratamento fundamental é a psicoterapia (como reeducação da vontade). |
1927 | Troubles nerveux et mentaux dans les maladies tropicales | Conteúdo relacionado ao tema do texto discutido neste trabalho. |
1936 | L'analyse mentale em pratique medicale | Livro editado pela editora francesa, Masson. |
1938 | Fames, libido, ego. Perfil da mulher brasileira. | Perfl da mulher é obra dentro do grupo de estudos sobre psicologia popular. |
1939 | O mal da vida; Conduta Sexual e As Psiconeuroses. | Série de ensaios sobre psicoterapia, traz capítulos sobre insatisfação, conceito de felicidade, pessimismo, otimismo, estoicismo, articulando posições filosóficas e morais com uma proposta de psicoterapia. |
1940 | Manuel de psychothérapie pratique. | Editado por Masson,expõe sua técnica psicoterápica. Publica Pequenos Males, Palavras Acadêmicas, Cura dos Nervosos, Conselho prático para os nervosos, Viagem Interior. |
1943 | Perfis de Loucos | Estudos psicológicos de casos de psicose, em tom literário. |
1946 | Patologia Mental | Coletânea de suas principais obras psicopatológicas e psiquiátricas. |
1950 | Vidas desgraçadas | Único romance escrito por Austregésilo |
1951 | Psicologia e psicoterapia | Outra síntese de suas concepções psicoterápicas |
1953 | Da biótica humana | Ensaios visando integrar aspectos morais e biológicos sobre o psiquismo humano e seus transtornos mais comuns. |
A obra Psicoses inficiosas nas doenças tropicaes
Há pouco mais de um século, no primeiro volume e número dos Archivos Brasileiros de Neuriatria e Psychiatria, de 1919, Antonio Austregésilo (1919) publica Psicoses inficiosas nas doenças tropicaes (a grafia no artigo é inficiosas e tropicaes), disposto a rever o que se sabe internacionalmente e o que sua experiência clínica e a de seus colegas brasileiros ensinam sobre a relação entre doenças infecciosas, sobretudo as ditas tropicais, e os quadros psicopatológicos, sobretudo os mais graves.
Na primeira parte do artigo, o autor revê o conceito de psicoses infecciosas, baseando-se principalmente na clássica divisão de Kraepelin (1899), em três grandes grupos de afecções mentais associadas às infecções: delírios febris, delírios infecciosos e estados de enfraquecimento psíquico que ocorrem após a infecção. A tentativa de diferenciar entre o delírio febril e o infeccioso aparece de forma proeminente nesse trabalho de Austregésilo, algo também presente no debate internacional da época.
As doenças infecciosas mais frequentes, não restritas aos trópicos, revistas por ele são: gripe (influenza), febre reumática (eventualmente chamada por ele reumatismo articular), tuberculose e sífilis. Em relação às doenças tropicais, o autor examina detalhadamente as seguintes condições: impaludismo (malária), febre amarela, peste (ou peste bubônica), cólera morbus (cólera), lepra, beribéri (que Austregésilo não considera doença infecciosa, mas a inclui pois vários autores a consideravam assim), ancilostomíase e cisticercose.
A fim de permitir a interpretação do texto original de Austregésilo, nas tabelas 2a e 2b abaixo, descrevem-se os nomes das doenças, sinonímias, aspectos históricos e o panorama dos conhecimentos científicos sobre cada doença em 1919, ano do artigo de Austregésilo
Tabela 2a Sinonímia, aspectos históricos e panorama dos conhecimentos sobre as doenças infecciosas no artigo de Austregésilo
Gripe | Febre reumática | Tuberculose | Sífilis | Impaludismo (malária) | Febre amarela | |
Sinonímia | Influenza, gripe espanhola | Artrite reumática aguda, reumatismo específico- infectuoso | Consumpção, peste cinzenta, peste branca, tísica pulmonar | Lues, cancro duro,mal venéreo, cancro profissional, | Paludismo, maleita, febre terçã, febre quartã, febre palustre | Tifo icteroide, tifo amaril, mal de Sião, febre das Antilhas |
O que se conhecia em 1919 | Em 1919, não se conhecia o agente, não havia tratamento, nem vacinas. Naquele ano e no anterior ocorreria uma das maiores pandemias da história, chamada de "gripe espanhola". Essa grande pandemia provocou 20 a 30 milhões de mortes em todo o mundo. | A hipótese de infecção direta predominava. O salicilato já era utilizado para controle da artrite, porém ainda não havia antibióticos. No início e em meados do século XX era a causa mais comum de doença cardíaca em crianças e jovens. | Em 1882, R. Koch iso-lou o bacilo e comprovou-o agente etiológico da tuberculose. Em 1919, já se conhe-cia o agente e o caráter contagioso da doença. Os diagnósticos clínico, bacteriológico e anatomopatológico já estavam estabelecidos. Ainda não havia trata- mento específico. | Em 1905, o agente causal é descrito, três anos depois, o primeiro teste sorológico é desenvolvido por Wasserman. Nesta época, a sífilis era principal causa de doença neurológica e cardiovascular em adultos. Já estava descrito o modo de transmissão. O tratamento era feito com derivados do | Em 1880 Laveran observou pela primeira vez parasitas vivos no sangue de um doente e descreveu suas formas clínicas. Em 1897 se identificou o parasita em mosquitos, vetor da doença. O modo de transmissão, diagnóstico e tratamento já eram conhecidos. | Em 1884, a transmissão por mosquito foi comprovada. Em 1903, Oswaldo Cruz combate a febre amarela no Rio de Janeiro, combatendo o mosquito. Em 1919, já se conhecia o modo de transmissão e se supunha a etiologia por um micro-organismo. O diagnóstico era clínico-epidemiológico |
Notas | O vírus foi isolado em 1933. Desde a década de 1940, vacinas de vírus inativados vêm sendo utilizadas para determinados segmentos populacionais, e recentemente de modo mais amplo. | Até meados do século XX, se considerava a hipótese patogenética de infecção direta das válvulas cardíacas e outros tecidos, posteriormente abandona em favor da hipótese imunopatogênica. | Tornou-se problema de saúde pública na Revolução Industrial. Nos séculos XVII e XVIII era causa de um quarto de todas as mortes. | A descoberta da penicilina em 1928 e seu uso clínico a partir da década de 1940 tiveram um enorme impacto na incidência , evolução clínica e letalidade pela sífilis | Permanece no mundo como uma das piores endemias, ainda com altas taxas de morbidade e letalidade. | O vírus foi isolado em 1927 e o diagnóstico sorológico desenvolvido nos anos 1930, quando uma vacina eficaz tornou-se disponível. |
Peste bubônica | Cólera morbus (cólera) | Lepra. Hanseníase | Beribéri | Ancilostomíase | Cisticercose | |
Sinonímia | Peste, peste negra praga | Cólera | Hanseníase, mal de Hansen, morféia,la-de- lázaro | Avitaminose B1, kakké (Japão), per- neiras (Brasil), maladie de jambes (Lousiana) | Clorose do Egito, anemia dos mineiros, caquexia africana, anemia inter- tropical, amarelão, opilação | Neurocisticercose |
O que se conhecia em 1919 | Relatos desde a antiguidade, provocou várias pandemias dramáticas nos últimos dois mil anos. De 1894 a 1897 descobre-se o agente etiológico e que o vetor de transmissão estabelecido é a pulga de ratos. O agente etiológico já era conhecido, assim como o modo de transmissão. O diagnóstico etiológico já era possível. | Descrita em 1817 por Thomas Sydenham, que a distinguiu de outras diarreias e a denominou cholera morbus. Paccini descreveu o bacilo Vibrio cholerae e em 1 8 5 5 , John Snow demonstrou que era transmitida principalmente através da água. Já estavam estabelecidos a causa, modo de transmissão, diagnóstico e aspectos do tratamento. |
Chamada de "a doença mais antiga do mundo". Em 1874 M. leprae foi o primeiro microrganismo a ser associado a uma doença, por Hansen. O agente causal era conhecido, o diagnóstico era principalmente clínico-epidemiológico, mas o conhecimento anatomopatológico já existia. O tratamento consistia em isolamento dos doentes em leprosários. | Em 1901, o bériberi é associado à carência de uma "substância" em alguns alimentos, particularmente no arroz polido. Ainda havia disputa entre as teorias "miasmáticas" e ambientais/nutricionais. Não se conhecia o tratamento específico (reposição de vitamina B1) | Em 1838 há a primeira descrição exata do verme, mas a relação inequívoca com a doença só foi comprovada a partir de 1850. No século XIX ocorreram epidemias na Europa entre trabalhadores de túneis. Já se conhecia o agente causal, modo de transmissão e método diagnóstico (igual ao atual). O tratamento era com extrato de fetomacho, timol e o óleo de quenopódio | A tení ase e o papel do porco como reservatório do verme eram conhecidos desde a antiguidade. A cisticercose foi descrita em 1555. Entretanto, a conexão entre as duas entidades e a comprovação de que se tratava de um mesmo parasita ocorreu apenas em 1855. |
Notas | O primeiro tratamento específico surgiu somente em 1941, com as sulfonas. | Antiparasitários eficazes só surgiram a partir da segunda metade do século XX. | O diagnóstico era feito em bases clínicas e epidemiológicas. |
Referências: Blankenhorn M. A. et al., 1946; Martins, R.A., 1977: ; Dolin R. et al., 1982; Schreiber W. & Mathys F. K., 1986; Rom W.R & Garay S., 1996; Karpenter, K. J., 2000; Rey, L., 2001; Cox, F. E. G., 2002; Buttler T. & Dennis D.T., 2005; Kaplan, E.L., 2005; Levis W.R. & Ernst J.D., 2005; Russel, R.M., 2005; Tramont, E.C., 2005; Treanor, J.J., 2005; Tsai, T.F. et al., 2005.
A pandemia de gripe ou influenza que chegou ao Brasil em outubro e novembro de 1918 havia deixado fortes impressões sobre os médicos em geral, assim como neurologistas e psiquiatras. Juliano Moreira, autor muito respeitado e citado repetidamente por Austregésilo, publicou um trabalho em maio de 1919, nos Archivos Brasileiros de Medicina, relatando desde quadros de simples obnubilação intelectual, até graves delírios com fuga e suicídios. Seguindo a visão de Kraepelin, Juliano Moreira teria confirmado que os quadros de delírios (no caso delirium) associados à influenza ocorrem antes, durante e após o período febril da infecção. Todo tipo de síndrome psicopatológica pode surgir na influenza, segundo opinião de Juliano Moreira. Também constata esse autor a não existência de dementia paralytica gripal, ou seja, a ocorrência da paralisia geral progressiva, tipicamente associada à sífilis, não se observaria na influenza. Passado o período agudo da gripe, seriam frequentes os quadros de enfraquecimento mental pós-infeccioso, na linha do sugerido por Kraepelin.
A febre reumática, denominada por Austregésilo como reumatismo articular poderia produzir delírios, como o delírio coreico. A coreia de Sydenham estaria associada a tais manifestações neuropsiquiátricas da febre reumática.
A tuberculose, em especial a sua forma pulmonar, estaria frequentemente associada a perturbações mentais. Estas ocorreriam por conta da febre, das intoxicações, anemia e fraqueza crescente. Chama a atenção a atitude global do paciente, que apresentaria um psiquismo doloroso, diante do qual tudo desaparece, exceto a necessidade de viver. As meningites da tuberculose causariam também delírios agitados.
Já a sífilis, bem mais conhecida em seus aspectos neuropsiquiátricos (lembrar da famosa paralisia geral progressiva ou dementia paralytica, entidade símbolo no século XIX), tem um espaço especial no trabalho de Austregésilo. Nos períodos terciários e quaternários da sífilis ocorreriam mais frequentemente os quadros psicopatológicos. Estados depressivos, obnubilação intelectual, incoerência das ideias, assim como mudanças da personalidade e demência seriam comuns nas fases avançadas da sífilis. Cabe lembrar que Austregésilo cita o seu aforismo que se tornou clássico nas escolas médicas brasileiras, que afirma que para diagnosticar uma doença com sintomas tão múltiplos e, por vezes, não evidentes, é necessário pensar na doença, pensar em sua lógica sintomática, às vezes não facilmente perceptível. As duas grandes síndromes neuropsiquiátricas associadas à sífilis, a Tabes (ou tabes dorsalis) e a Paralisia Geral (ou PGP, paralisia geral progressiva) são lembradas pelo autor.
Após rever essas doenças infecciosas graves, frequentes e presentes em todo o mundo, Austregésilo passa às doenças infecciosas tropicais, para examinar suas manifestações psiquiátricas. Inicia pela malária, denominada nesse momento impaludismo ou infecção palustre. O caráter febril marcante dessa doença relaciona-se claramente aos seus episódios agudos graves. Austregésilo distingue o delírio febril (delirium associado ao quadro febril), o delírio infeccioso (decorrente do quadro infeccioso geral) e o que denomina caquexia palustre, ou seja, um quadro de prejuízo da cognição, com regressão (infantilismo) do funcionamento psíquico do doente. Nesse caso, Austregésilo segue de perto Kraepelin, na sua divisão tripartite dos quadros psicopatológicos associados às doenças infecciosas.
Chama a atenção a preocupação com o diagnóstico laboratorial da malária, já em 1919. Austregésilo cita o exame de sangue em que podem ser reconhecidas as formas anulares e adultas do parasito de Laveran (ou seja, o plasmodium). Também é interessante a rejeição de Austregésilo pela hipótese de haver uma paralisia geral progressiva associada à malária, como formuladas por Régis e Bonet.
A febre amarela teria um lugar à parte na etiologia das psicoses, segundo o autor. Os quadros de delirium febril seriam relativamente frequentes, podendo ocorrer também a amentia (forma grave de delirium com intensa confusão mental e igualmente marcantes alucinações). Austregésilo cita o professor Márcio Nery, que teria classificado as perturbações mentais post--amarílicas, ou psicoses icteroides em quatro subgrupos, de acordo com o padrão de manifestação psicopatológico (estados de confusão, maníacos, melancólicos ou neuróticos). Austregésilo mantém aqui também a visão kraepeliniana de abordagem tripartite do delirium em febril, infeccioso e enfraquecimento pós-infeccioso.
A peste ou peste bubônica também poderia produzir quadros de perturbação do sensório (delirium), assim como, segundo o autor, delírios mansos, angustiosos, murmurantes, lúcidos ou furiosos. Também relata Austregésilo o estado de enfraquecimento pós-infeccioso em uma mocinha que foi acometida pela peste, apresentando um quadro de colorido melancólico. Em outros dois doentes com peste, o autor relata quadros de delirium febril, de amentia e de enfraquecimento pós-infeccioso. Cita aqui também o chamado delírio do colapso de Kraepelin.
Austregésilo reconhece que a cólera ou cólera morbus já não é tão fre-quente no contexto brasileiro. Suas manifestações neuropsiquiátricas seriam semelhantes ao de outras psicoses infecciosas. Pode ocorrer aqui também o quadro de amentia, e em alguns pacientes as formas graves de cólera produziriam torpor, delirium e coma.
A doença de Chagas, produzida pelo tripanossomo não é esquecida na revisão de Austregésilo. O parasito teria grande predileção pelo sistema nervoso central, diz ele. Seriam frequentemente associados à doença de Chagas quadros como a idiotia (ou seja, perturbação da cognição de início bem precoce na vida), o infantilismo e estados psicossomáticos semelhantes às encefalopatias da infância. Na fase aguda da doença, haveria um quadro febril, septicêmico, produzindo delirium infeccioso, meningoencefalite, meningites agudas e delirium de modo geral. Esta forma acometeria de maneira preferencial crianças. Já as formas crônicas determinariam estados psico--orgânicos crônicos, sem febre, produzindo quadros de idiotia e imbecilidade (ou seja, perturbação do desenvolvimento cognitivo da criança), assim como quadros propriamente neurológicos como afasias, síndromes bulbares e pseudobulbares, esclerose cerebral e paralisias motoras diversas. Finalmente, ainda discutindo a Doença de Chagas, Austregésilo enfatiza a dificuldade de estabelecer relações causais específicas; fala da importância do exame de sangue dos pacientes, assim como pela identificação epidemiológica da zona de habitação de onde provém o paciente.
O caso da lepra é mais controverso, sobre se ela produz ou não uma psicose infecciosa, afirma Austregésilo. Novamente ele recorre à opinião balizada de Juliano Moreira, que não admite uma psicose leprosa. Mas vários autores fazem referências a transtornos mentais associados à lepra. Outros alienistas brasileiros como Franco da Rocha fizeram observações clínicas de pacientes com lepra que apresentavam delírio de perseguição, depressão com estupor e mesmo a demência paralítica (classicamente associada à sífilis). O próprio Juliano Moreira, apesar de não admitir uma psicose específica da lepra, relata casos de pacientes com lepra com transtornos mentais (observação de Juliano Moreira citada por Kraepelin). Austregésilo descreve então um caso observado por ele mesmo de um paciente com lepra (com perda de falangetas, orelhas delgadas, ulceração do septo nasal e alterações dermatológicas próprias da lepra) que apresentou quadro de confusão mental, alucinações auditivas e visuais. Neste caso, Austregésilo diz que se viu obrigado a fazer o diagnóstico de psicose leprosa, o que o contrariou pelo fato clínico tê-lo obrigado a discordar de Juliano Moreira.
O caso do beribéri é bastante curioso. Hoje essa condição é conhecida como uma doença não infecciosa, mas causada pela carência específica da vitamina B1 (tiamina), que produz neuropatia, fraqueza muscular, cardiomegalia e em condições de carência extrema a encepalopatia de Wernicke (delirium e confusão mental, ataxia e oftalmoplegia e/ou nistagmo) e a síndrome de Korsakov (perda da memória recente, de fixação, desorientação temporal ou temporo-espacial e confabulações). Nos casos graves, a morte ocorre com relativa frequência.
Austregésilo resolve incluir o beribéri em sua revisão, pois apesar de discordar de sua etiologia infecciosa, vários autores assim o consideram. Muito atualizado, Austregésilo aponta para uma avitaminose, como o patologista Funk teria indicado. Para Austregésilo (1919): “a questão do beribéri não está resolvida. Como parece, a doença ataca com mais facilidade os pardieiros, as embarcações, os orfanatos, os quartéis, os colégios, isto é, as habitações coletivas, devemos pensar que a causa eficiente estará na alimentação contaminada por algum fungo” (p. 376). De fato, estudos posteriores demonstraram uma associação entre o arroz contaminado por fungos, a depleção de vitamina B1 nesse arroz contaminado e o beribéri.3
Epidemias de beribéri há haviam sido descritas no norte do Brasil, entre 1870 e 1910, analisadas por Josué de Castro em sua Geografia da fome, de 1946. Assim, a análise de Austregésilo considera o debate etiológico ainda bastante confuso em sua época, inclui fatores epidemiológicos relevantes como formas de agrupamentos humanos e suas consequentes condições de alimentação, cita a possibilidade de avitaminose (algo extremamente novo para a época) e uma associação entre contaminação do arroz por um fungo e suas possíveis consequências.
Ainda sobre o beribéri, o autor cita os trabalhos de Nina Rodrigues, Juliano Moreira e Afranio Peixoto. Nina Rodrigues cita a confusão mental dos beribéricos (possivelmente manifestação da encefalopatia de Wernicke), a amnésia (atualmente relacionada à síndrome de Korsakov). Austregésilo (1919) termina afirmando que para ele “todo beribérico tem perturbações mentais” (p. 377), algo corroborado atualmente, posto que a deficiência grave de tiamina se relaciona intimamente às duas síndromes (Wernicke e Korsakov) acima mencionadas.
A ancilostomose, doença símbolo da condição miserável do homem brasileiro rural do início do século XX, caracterizado pelo Jeca Tatu de Monteiro Lobato (Palma, 2003), infestado por ancilóstomos, anêmico, pobre, apático, indolente. As psicoses por helmintos, segundo Austregésilo, seriam raras, baseadas em um quadro de enfraquecimento do organismo (que ele chama de “fundo mioprágico”). As tênias, áscaris e oxiúros produziriam alterações mentais apenas em indivíduos com “forte tara neuropática”, diz o autor (p. 380).4 Nota-se aqui a presença de concepções da segunda metade do século XIX relativas à degeneração, a taras adquiridas que se tornam herdáveis, em uma forma de pensamento lamarckiano, comum no final do XIX e início do XX.
Finalmente, a última doença infecciosa tropical examinada por Austre-gésilo é a cisticercose. O famoso professor de medicina Miguel Couto já havia, junto com Austregésilo, descrito desordens mentais semelhantes a psicoses, depressões (semelhantes à lipemania, ou seja, aparentada à atual depressão), quadros de delirium, histeria ou epilepsia associados à neurocisticercose. O autor acredita que a patogenia da neurocisticercose seria mais tóxica do que compressiva (o cisticerco formando um cisto, calcificado ou não, comprimindo estruturas cerebrais). Hoje se pensa, no sentido oposto a Austregésilo, que o fator patogênico mais importante seja a compressão.
Psicoses infecciosas: surgimento e evolução do conceito
Emil Kraepelin (1856-1926), na segunda edição de seu compêndio de Psiquiatria, de 1887, situa, após a melancolia e a mania, os quadros de delírio febril, delírio tóxico e delírio transitório. Na quinta edição do compêndio, de 1896, ele ordena os quadros agudos do delírio febril e do delírio tóxico em um grande capítulo destinado às intoxicações. É, entretanto, apenas na clássica sexta edição de seu tratado de Psiquiatria que ele decide dedicar um capítulo separado para a Loucura Infecciosa (Das infectiöse Irresein), subdividindo os quadros clínicos respectivos em delírio febril, delírio infeccioso e enfraquecimento infeccioso. É esta forma de abordar as psicoses infecciosas que Austregésilo acaba por adotar para analisar os quadros de psicoses associadas à doenças infecciosas, sejam elas universais ou tropicais.
Assim, no segundo volume de seu Psychiatrie: Ein Lehrbuch für Studierende und Ärzte, de 1899, o primeiro capítulo é sobre as loucuras infecciosas. O capítulo é dividido em três partes: Die Fieberdelirien (os delirium febris), Die Infetiosdelirien (os delirium infecciosos) e Die infectiösen Schwächezustände (os quadros de debilitação infecciosos). É essa aproximação que irá marcar o trabalho de Austregésilo, desviando dela em apenas alguns momentos.
Por delirium febril Kraepelin toma todos os quadros agudos de confusão mental causados ou desencadeados pela febre. É a febre e não a infecção o fator mais importante. Ele diz: “O tipo especial de doença febril parece, no geral, influenciar pouco a forma do delirium. Apenas a velocidade pela qual a febre se desenvolve, a intensidade e duração da febre, assim como o estado dos órgãos vitais do organismo, o que determina o quadro [o delirium febril]”. Assim, os fatores determinantes são a febre mesma (das Fieber selbst) e suas consequências como a elevação da temperatura, a aceleração do metabolismo e o surgimento de substâncias catabólicas especiais.
No caso do delirium infeccioso é a doença infecciosa e suas alterações sobre o organismo o fator mais importante. Kraepelin (1899), neste caso, acredita em substâncias tóxicas, venenosas, liberadas pelos agentes infecciosos, como o elemento etiológico mais importante. Ele fala repetidamente em Vergiftung (envenenamento, intoxicação). De fato, a ideia de que substâncias tóxicas ainda não bem conhecidas no final do século XIX seriam elementos-chave para compreender a etiologia e fisiopatologia não apenas do delirium infeccioso, mas também das psicoses endógenas (dementia praecox e a loucura maníaco-depressiva) era uma hipótese forte no pensamento kraepeliniano.
Finalmente, o terceiro tipo de loucura infecciosa, o mais heterogêneo dos três, seria o representado pelos estados de enfraquecimento e debilidade produzidos pela infecção. Neste item, Kraepelin inclui desde formas leves de cansaço, dificuldades para pensar, para ler, para escrever uma carta, sintomas depressivos e hipocondríacos vários, até quadros graves que evoluem para morte ou para estados demenciais. Em alguns casos, o estado confusional continua ou volta a aparecer depois de remitido no final da fase aguda da doença. Alguns doentes desenvolvem quadros semelhantes aos descritos por Sergey Sergeevich Korsakov (1854-1900) em 1887, em que além de polineurite, o paciente revela alterações da memória recente, fabulações e desorientação temporal. Mas Kraepelin reconhece, como pensava Korsakov, que em muitos dos pacientes que observara o fator infeccioso, este associa-se ao alcoolismo crônico para que tal quadro surja. Alguns pacientes também apresentam sinais da paralisia geral progressiva, mas o exame cuidadoso desses pacientes permite o diagnóstico diferencial, quando não se trata de neuro sífilis.
Considerações finais
O problema das relações causais em psicopatologia e a posição de Antonio Austregésilo
O trabalho de Antonio Austregésilo obriga à reflexão psicopatológica sobre relações causais e sobre especificidade de fatores causais para a determinação dos quadros psicopatológicos. Como visto anteriormente, o quadro clínico hoje denominado delirium têm uma longa história. Na Grécia antiga, os primeiros médicos denominavam phrenitis a formas de loucura associadas à febre e doenças claramente somáticas. A partir de finais do século XVIII e início do XIX essa grande síndrome vai receber nomes diversos como alienação sintomática, alienação simpática, delírio agudo e delírio febril.
A relação entre um quadro infeccioso, a possível implicação do cérebro nesse quadro infeccioso e a ocorrência de alterações psicopatológicas representa uma série de fenômenos clínicos e psicopatológicos de alta complexidade e múltiplas determinações. Infecções por microrganismos como o treponema pallidum da sífilis, o bacilo de Koch da tuberculose ou as diversas espécies de plasmódios da malária são agentes causais para doenças determinadas. O agente causal pode se relacionar com um quadro psicopatológico por ação direta no cérebro, por produzir alterações físicas no organismo com repercussões à distância no cérebro, ou por processos indiretos como febre, anemia, enfraquecimento global do organismo, assim como através de vivências psíquicas como medo do adoecimento, risco de morte e de sequelas da doença física. Enfim, a determinação de que fator pode ou não produzir um quadro psicopatológico é, hoje e na época do estudo de Austregésilo, portanto, de grande complexidade.
Além disso, deve-se ter em conta que até meados do século XX certas entidades nosológicas, como exemplo, a Paralisia Geral Progressiva e a Tabes dorsalis, existiam quase como entidades autônomas em relação às doenças infecciosas que com maior frequência as determinava (no caso a sífilis do sistema nervoso).
A preocupação com a relação causal é bastante central no texto de Austregésilo, ora evidente, ora nas entrelinhas. Na página 380, quando discute a ancilostomíase, ele diz: “Nas três observações citadas, a ancilostomíase pareceu-nos a causa próxima dos desvios mentais. Provava-o em primeiro lugar a evolução da moléstia: ao mesmo tempo que diminuíam os sintomas ordinários da infestação, apagavam-se as alterações psíquicas. O paralelismo foi tão evidente que se diria esquemático.”
O próprio Kraepelin, como mencionado anteriormente, questionava a precisão da relação causa-efeito no capítulo das psicoses infecciosas. Na página 14 de seu tratado ele diz: “[...] o delirium febril talvez deva ser visto apenas como uma forma especial do delírio infeccioso”. Fatores como febre, debilitação global do organismo, possíveis toxinas liberadas pelo quadro infeccioso, devem atuar em maior ou menor grau, afetando o cérebro e o psiquismo. Estes últimos não são também semelhantes em todos os indivíduos acometidos. Predisposições individuais devem também exercer o seu papel.
Em toda sua discussão contrapondo delírio febril e delírio infeccioso, Kraepelin deixa claro que a distinção é extremamente precária, visão também compartilhada por Austregésilo. Não sabiam (e ainda não sabemos) quais fatores específicos e quais fatores gerais são os mais intimamente relacionados a muitos quadros mentais agudos vistos em doenças infecciosas. O raciocínio clínico, o conjunto de dados científicos disponíveis e a observação empírica demonstram que esses primeiros clínicos das ciências neurológicas e psicopatológicas no Brasil eram muito menos ingênuos do que muitas vezes certa historiografia, marcada por anacronismos e preconceitos, faz supor.