Acessibilidade / Reportar erro

O ódio na cultura e na clínica psicanalítica contemporâneas

Hatred in contemporary culture and psychoanalytic clinic

La haine dans la culture contemporaine et dans la clinique psychanalytique

El odio en la cultura y en la clínica psicoanalítica contemporáneas

Resumos

Neste artigo procuramos demonstrar como a agressividade foi considerada pela psicanálise desde os primeiros ensaios freudianos até a releitura de Lacan que, partindo de uma agressividade do sujeito dirigida ao outro semelhante, avança rumo à concepção do ódio ao Outro. Enfatizamos, quanto a isso, o último momento de seu ensino, no qual sobressai o conceito de Real, crucial para compreendermos a gênese do ódio na constituição subjetiva. Mostramos como tal referência passa a influenciar a maneira como a cultura - e sobretudo a clínica - são consideradas, convocando o sujeito a se haver com o Real da existência.

Palavras-chave:
Agressividade; ódio; Real; Outro; ato


This article aims to show how aggressiveness was taken into account by psychoanalysis from the first Freudian essays to Lacan’s reinterpretation, which, starting from aggressiveness of the subject directed to a similar other, evolves to the concept of hatred of the Other. In this regard, we emphasize the last stage of Lacan’s teaching, which highlights the concept of Real, crucial to understand the inception of hatred in the subjective constitution. We show how this reference starts to influence the way culture - and especially the clinic - are affected, summoning the subject to deal with the Real of existence.

Key words:
Aggressiveness; hatred; Real; Other; act


Dans cet article, nous cherchons à démontrer comment l’agressivité était considérée par la psychanalyse depuis les premiers essais freudiens jusqu’à la réinterprétation de Lacan qui, partant d’une agressivité du sujet dirigée vers un autre semblable, avance vers la conception de la haine envers l’Autre. À cet égard, nous soulignons le dernier moment de son enseignement, dans lequel le concept de Réel se démarque, crucial pour comprendre la genèse de la haine dans la constitution subjective. Nous montrons comment cette référence commence à influencer la manière dont la culture - et surtout la clinique - sont envisagées, convoquant le sujet à faire face au Réel de l’existence.

Mots clés:
Agression; haine; Réel; Autre; acte


En este artículo buscamos demostrar cómo fue considerada la agresividad por el psicoanálisis desde los primeros ensayos freudianos hasta la reinterpretación de Lacan que, desde una agresividad del sujeto dirigida hacia otro similar, avanza hacia la concepción del odio hacia el Otro. En este sentido, destacamos el último momento de su enseñanza, en el que sobresale el concepto de lo Real, que es crucial para comprender el origen del odio en la constitución subjetiva. Mostramos cómo esta referencia empieza a influir en la forma en la que se considera la cultura y, sobre todo, la clínica, convocando al sujeto a enfrentarse con lo Real de la existencia.

Palabras clave:
Agresividad; odio; Real; Otro; acto


Introdução

Adentramos a década de 2020 sob a ameaça de um novo confronto mundial desencadeado pelos embates entre Estados Unidos e Irã, breve demonstração da perene vulnerabilidade do mundo a conflitos. A despeito do inexorável horror causado pela guerra, ao longo da história a conflitualidade jamais deu trégua. O mais antigo testemunho escrito de que temos notícia, a Epopéia de Gilgamesh, datado de 2000 a.C, já indicava o quinhão maléfico e destrutivo do caráter humano (Silva & Leão, 2018Silva, F. C. T., & Leão, K. S. S. (2018). Por que a guerra? Das batalhas gregas à ciberguerra: uma história da violência entre os homens. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.). Desde sempre, conflitos e movimentos pacifistas se alternam mundo afora, estando as razões da guerra e a busca pela paz, ainda hoje, dentre as maiores preocupações da humanidade, tanto maior quanto mais potencialmente destrutivas se tornaram suas armas. Por sua vez, a psicanálise sempre buscou empreender uma leitura própria da agressividade considerando a constituição psíquica do sujeito. Já nos seus primeiros ensaios sobre a histeria, Freud (1893-95/2016, p. 286)Freud, S. (2016). Estudos sobre a histeria. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 2, pp. 14-340). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1893-95). propunha que ações coléricas cumpririam a função de descarrega, servindo à “tendência de manter constante a excitação cerebral”, proposição que ele sofistica anos depois ao abordar a neurose obsessiva (Freud, 1909/2013Freud, S. (2013). Observações sobre um caso de neurose obsessiva: O homem dos ratos. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 09, pp. 13-112). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909).) e seus sintomas alimentados pelo ódio recalcado.

Daí em diante, mesmo que por vezes Freud tenha abordado a agressividade no contexto das massas (Freud, 1912-13/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 11, pp. 13-155). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912-13).; 1921/2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 15, pp. 13-99). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).), foi ao considerar o aparelho psíquico singular e sua relação com a exterioridade que suas hipóteses se consolidaram e a conflitualidade potencial do humano se estabelece no registro da agressividade e da destrutividade (Birman, 2006Birman, J. (2006). Arquivo da agressividade em psicanálise. Natureza Humana, 8 (2), 357-379. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-24302006000200005&script=sci_abstract>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid...
), alcançando a máxima complexidade com a formulação do conceito de pulsão de morte (Freud, 1920/2010cFreud, S. (2010c). Além do princípio do prazer. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 14, pp. 161-239). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920).). Na releitura que Jacques Lacan empreende da obra freudiana, vemos um avanço significativo da noção de pulsão de morte (Lacan, 1959-60/1988Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).; 1972-73/1985cLacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).) aproximada cada vez mais ao estatuto do Real, construto que passa a sustentar uma abordagem do ódio não apenas do ponto de vista da clínica, mas no campo da cultura em toda sua abrangência.

Da tendência agressiva ao ódio ao Outro

Embora nos primeiros trabalhos de Freud até a formulação da primeira teoria pulsional tenham dado absoluta ênfase à sexualidade, não tendo a agressividade comparecido com estatuto próprio, esta já se mostrava uma preocupação, concernida na oposição entre as pulsões sexuais e de autoconservação. Ao situar a autoconservação no registro do Eu, avançando para a formulação do narcisismo, Freud (1914/2010a)Freud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914). concebeu a agressividade em uma oscilação entre o polo das pulsões sexuais e das pulsões do Eu, podendo ser articulada ao contexto da crueldade e do poder (Birman, 2006Birman, J. (2006). Arquivo da agressividade em psicanálise. Natureza Humana, 8 (2), 357-379. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-24302006000200005&script=sci_abstract>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid...
).

O primeiro caso clínico em que Freud (1909/2013)Freud, S. (2013). Observações sobre um caso de neurose obsessiva: O homem dos ratos. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 09, pp. 13-112). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909). considerou os impulsos hostis como parte fundamental na compreensão do funcionamento psíquico foi “O homem dos ratos”. Desde então, o ódio ganhou destaque como marca constitutiva da estrutura obsessiva, sendo ao mesmo tempo impedido de se manifestar ou de ser elaborado, haja vista o trabalho do superego tirânico e seus mecanismos de contenção dos impulsos agressivos. A partir desse caso, a agressividade e a destrutividade passaram a ser consideradas parte da constituição de todo sujeito, se expressando diretamente ou participando na formação dos sintomas.

No contexto da Primeira Grande Guerra, Freud (1915/2010b)Freud, S. (2010b). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 12, pp. 209-246). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915). enfatizou o ódio, o menosprezo e a execração entre povos e indivíduos, mesmo em períodos de paz. Na formação da massa, cada um de seus componentes agiria conforme as mais primitivas e cruas tendências agressivas. O homem seria movido muito mais por suas paixões que por seus interesses, os quais apenas serviriam para racionalizar a satisfação das paixões. Uma das formas apontadas como satisfação da paixão humana foi sua atitude diante da morte. Enquanto inconscientemente não podemos falar em uma crença do homem na própria morte, por outro lado ele admite e deseja a morte do próximo. Embora o inconsciente não possa executar o assassinato, os desejos recalcados figurariam, a todo momento, a eliminação daqueles que atrapalham o caminho ou causem algum dano ou prejuízo. Mesmo em relação aos que se ama, um quinhão de hostilidade poderia incitar o desejo inconsciente de morte no sujeito.

A partir de 1920, o tema da morte retornou com força no pensamento freudiano, estabelecendo um novo lugar para a agressividade e a destru-tividade, as quais passaram a referir-se à pulsão de morte em oposição potencial à pulsão de vida. Conforme o manuscrito inédito publicado há poucos anos (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. São Paulo, SP: Blucher.), a pulsão de morte se daria a conhecer como impulso para a agressão e a destruição, sendo a nomenclatura pulsão de morte referida ao que seria a tendência final dessa pulsão, um retorno do próprio ser ao inanimado. Pouco depois, na 32ª das Novas conferências introdutórias (Freud, 1933/2010fFreud, S. (2010f). Angústia e instintos. Novas conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 32. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 18, pp. 224-262). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1933).) foram propostas duas condições para que a pulsão de destruição fosse apreendida e/ou percebida: a primeira, quando aparece ligada às pulsões eróticas no masoquismo e, a segunda, em maior ou menor grau ligada ao erotismo, ao se voltar contra o mundo externo, podendo retroceder como autodestruição no caso de encontrar obstáculos à realização externa. No texto “Análise terminável e interminável” (Freud, 1937/2018aFreud, S. (2018a). Análise terminável e interminável. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 274-326). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1937).), fica mais claro que agressão ou destruição se efetivam como derivados psíquicos da pulsão de morte, a qual, por sua vez, diria respeito a uma tendência presente na matéria viva em geral.

No ensaio “Mal-estar na civilização” (Freud, 1930/2010dFreud, S. (2010d). O mal-estar na civilização. In Sigmund Freud, obras completas (vol. 18, pp. 13-123). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).) os derivados da pulsão de morte - os impulsos agressivos - foram considerados o maior obstáculo à civilização, estando justamente aí a principal fonte de mal-estar do sujeito. No entanto, para Freud, não haveria a possibilidade de outra via menos danosa: em correspondência com Einstein (Freud, 1932/2010eFreud, S. (2010e). Por que a guerra? In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 18). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1932).), ele afirmou que a agressividade voltada para dentro é malsã, enquanto seu direcionamento para o mundo externo desafoga o ser vivo, embora possa comprometê-lo de modo mais grave, quando dá origem a conflitos, quiçá à guerra. Sendo assim, não haveria perspectiva de abolir as tendências agressivas do ser humano. Mesmo as tentativas de produção de sentimentos de irmandade e de identificação seriam vias para aplacar a agressividade constitutiva do sujeito (Freud, 1921/2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 15, pp. 13-99). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)., 1930/2010dFreud, S. (2010d). O mal-estar na civilização. In Sigmund Freud, obras completas (vol. 18, pp. 13-123). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).), a pulsão de morte da qual não se pode escapar, ódio primordial que leva o homem à maldade e à crueldade. A pulsão de morte seria, também, o maior obstáculo ao tratamento psicanalítico, quando se volta para o próprio sujeito como sentimento de culpa ou autodestruição (Freud, 1940 [1938]/2018cFreud, S. (2018c). Compêndio de Psicanálise. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 189-273). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1940 [1938]).) - situações que Freud admitiu não ter elucidado totalmente. Para Gori (2006)Gori, R. (2006). O realismo do ódio. Psic. Clin., 18(2) 125-142. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18n2>.
http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18...
estariam delineadas, no pensamento freudiano, duas formas de ódio. A pulsão de morte seria o correlato do ódio primordial, dirigido ao ser do sujeito e sua tentativa de expulsar o que causa desprazer, enquanto o ódio invejoso remeteria à rivalidade, a agressividade voltada ao intruso, sendo o pai o primeiro desses objetos rivalitários.

Jacques Lacan (1948/1998b)Lacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948). procurou avançar em tais questões ao considerar a pulsão de morte uma tentativa de se formular a experiência do homem no registro da biologia. Para ele, Freud estaria implicado em explicar a destrutividade enquanto impulso do ser vivo, tendência mortífera cujo desfecho, em última instância, seria o retorno ao estado inanimado. Lacan (1959-60/1988)Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). desloca a compreensão da pulsão de morte para o campo da linguagem, preferindo o termo “vontade de destruição” a tendência ao inanimado. Em sua apreciação sobre o construto, privilegia a dimensão psíquica, afirmando ser o retorno ao inanimado uma ideia correspondente a certa tendência dos sistemas materiais vivos. Ao ingressar no aparelho psíquico, essa força se manifestaria como vontade de outra coisa, afastando inclusive a ideia de agressão, o que seria apenas um dos resultados secundários da vontade de destruição.

Teria sido tal pulsão a aporia contra a qual se chocou o pensamento freudiano (Lacan, 1948/1998bLacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948).), o que o próprio Freud admitiu ao relatar casos entre seus pacientes nos quais o sujeito não suportava a ideia de recuperação, quando “foram liberadas imensas quantidades de instinto de destruição voltado para dentro” (Freud, 1940 [1938]/2018cFreud, S. (2018c). Compêndio de Psicanálise. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 189-273). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1940 [1938])., p. 237). Lacan pretendeu atribuir papel mais claro a essa noção na economia psíquica, tendo, em seus primeiros trabalhos, recorrido ao período da constituição do Eu para tentar explicar a tendência agressiva do humano. A experiência de si na criança pequena estaria, para ele, referida ao semelhante, com o qual ela vive em estado indiferenciado, em uma experiência de unidade. Ao avançar para a constituição de uma exis-tência apartada do outro, o humano se fixaria em uma imagem que o aliena de si mesmo, em uma organização passional que passa a ser chamada de Eu. Esse processo resulta em uma tensão conflitiva, interna ao sujeito, que desperta o seu desejo pelo objeto de desejo do outro. Daí decorre, então, uma concorrência agressiva da qual surge a tríade Eu-outro-objeto, rachando definitivamente a comunhão especular. A agressividade, assim, estaria ligada a uma paixão narcísica proveniente da própria constituição do Eu e os impulsos agressivos seriam anteriores ao ingresso na linguagem - o que Lacan (1948/1998b)Lacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948). ilustrou com a imagem, narrada por Santo Agostinho, da criança que, ao contemplar o irmão sendo amamentado, fica pálida e com expressão amarga, manifestações da agressividade original. Esta agressividade estaria remetida ao ódio invejoso, que reativa a frustração primordial da separação da mãe e que Freud (1912-13/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 11, pp. 13-155). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912-13)., 1939/2018b)Freud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. (Trabalho original publicado em 1939). vincula à hostilidade rivalitária com relação ao pai.

Foi Melanie Klein quem primeiro reconheceu a importância das relações objetais mais arcaicas da criança na constituição de sentimentos como o ódio e a inveja (Lacan, 1948/1998bLacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948).). Em Inveja e gratidão (Klein, 1957/1974Klein, M. (1974). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1957).) a autora propõe que a primeira relação de inveja do humano estaria dirigida ao seio materno, que ao mesmo tempo que possui tudo o que o bebê deseja, o frustra, resultando em ódio e em uma relação perturbadora com a mãe. A privação do seio aumentaria a voracidade do bebê, para quem o objeto deveria ser inexaurível e que, por não sê-lo, passaria a ser odiado e invejado. Mesmo quando satisfatoriamente alimentada, a criança invejaria o seio como uma dádiva inatingível por ela. A gênese da inveja no pensamento kleiniano seria a pulsão de morte, cuja intensidade constitucional determinaria também a intensidade traumática de determinadas experiências no despertar da inveja (Caropreso, 2015Caropreso, F. (2015). Pulsão de morte e experiências precoces em Freud e Melanie Klein. Revista de Filosofia Autora, 27(40), 387-498. Recuperado de: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/aurora/article/view/787/709>.
https://periodicos.pucpr.br/index.php/au...
). Isso faria com que vivências positivas fossem experimentadas de forma negativa, gerando angústia. A inveja estaria para além da voracidade, estando remetida a impulsos sádicos (oral e anal) presentes desde o nascimento. Sua evolução comportaria o ímpeto de eliminar a satisfação do objeto fonte de algo que o sujeito deseja, sendo o objetivo do invejoso destruir, inutilizar ou retirar do outro aquilo que ele mesmo aspira. “A pessoa invejada é sentida como possuindo aquilo que, no fundo, é o que mais se preza e deseja, ou seja, um objeto bom, o que também implica um caráter bom e sanidade” (Klein, 1957/1974Klein, M. (1974). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1957)., p. 74). Em análise, tal sentimento poderia, para a autora, vir novamente à tona, quando, mesmo tendo recebido uma interpretação que propiciasse algum alívio, o paciente invejoso ressente-se com o trabalho bem-sucedido do analista.

Lacan (1953-54/1986)Lacan, J. (1986). O conceito da análise. In O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54)., no começo de sua produção, considerava que a dimensão imaginária do ódio estaria remetida à destruição do outro, à aspiração de seu rebaixamento, de sua negação e desorientação, embora nunca pudesse se satisfazer com o desaparecimento efetivo do adversário, pois, como o amor, seria “uma carreira sem limite” (p. 316). Ao considerar a estrutura obsessiva que, como vimos, chamou a atenção de Freud para a necessidade de considerar a agressividade na constituição psíquica, Lacan (1954-55/1985a)Lacan, J. (1985a). Sósia. O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (pp. 325-342). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55). propôs que, antes de permitir o reconhecimento da agressividade fundamental que estrutura todas as relações objetais do sujeito, seria preciso fazer-lhe entender a função da relação mortal que cultiva consigo mesmo, estritamente relacionada ao narcisismo especular que compõe sua constituição como sujeito, fracasso em alcançar qualquer satisfação preten-dida, prenúncio do que mais tarde seria elaborado em termos de Real.

Se no primeiro momento da produção lacaniana - profundamente debruçada sobre as questões imaginárias - a agressividade estava referida apenas a uma rivalidade imaginária com o outro semelhante (alteridade em espelho) e era pensada como oriunda de uma indiferenciação com relação a este outro, nos anos 1970, particularmente no Seminário XX, encontramos uma nova perspectiva na qual o que comparece é o ódio ao Outro absoluto, instância à qual o sujeito se endereça para além do semelhante, e que se vê forçado a admitir para além da relação imaginária especular (Lacan, 1972-73/1985cLacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).). O ódio-ciumento, “aquele que brota do gozume, o gozo do ciúme, aquele que se imagenizaria com o olhar” (Lacan, 1972-73/1985cLacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73)., p. 135) - constituído na dimensão imaginária de quem vê o outro se satisfazer - seria substitutivo, evocado metonimicamente a partir de uma demanda suposta, anterior, dirigida ao Outro. É ao Outro que estaria remetido o ódio radical, anunciando a presença do Real na experiência do sujeito e revivificando a pulsão de morte e seus derivados (Flanzer, 2006Flanzer, S. N. (2006). Sobre o ódio. Interações, 12(22), 215-229. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210.pdf>.
https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210...
).

O ódio, desta feita, surgiria ainda antes do amor e estaria direcionado ao Outro que, ao mesmo tempo que constitui o sujeito, o priva da completude totalizante. De tal modo que o ódio original seria o ódio ao Outro que Freud teria, por sua vez, situado no interior do conceito de pulsão de morte e que realiza o primeiro movimento de expulsão psíquica no infans. Freud (1925/2011b)Freud, S. (2011b). A negação. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 16, pp. 275-282). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1925). propõe que a pulsão de morte seria a responsável, nos primórdios da vida do bebê, pela separação e constituição do objeto, sendo considerada o princípio de constituição desse e responsável pela estruturação do psiquismo. Daí estabelecer os conceitos de ligação e desligamento como atividades psíquicas decorrentes das pulsões como forças que estruturam o aparelho psíquico (Garcia-Roza, 1986/1995Garcia-Roza, L. S. (1995). Introdução à metapsicologia freudiana (Vol. 3, 3ª ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), sendo o trabalho da pulsão de vida, a ligação, e a atividade da pulsão de morte, o desligamento. A primeira expulsão que o infans estabelece ao ser afastado da mãe seria realizada pela pulsão de morte, dando origem à negação enquanto função simbólica. Freud aponta que “a afirmação - como substituto da união - pertence a Eros, a negação - sucessora da expulsão - ao instinto de destruição” (Freud, 1925/2011bFreud, S. (2011b). A negação. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 16, pp. 275-282). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1925)., p. 281).

Ao propor o inconsciente freudiano como uma estrutura de linguagem, Lacan (1953-54/1986)Lacan, J. (1986). O conceito da análise. In O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54)., relaciona a pulsão de morte ao registro do Real, remetendo a algo a mais na relação do sujeito com o mundo, não comportado na noção de realidade. Considera, para tal, a dicotomia entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, sendo a realidade psíquica o além do princípio do prazer, remetendo sempre ao Outro e ao Real implicado nessa relação (Chaves, 2006Chaves, W. C. (2006). O estatuto do Real em Lacan: dos primeiros escritos ao seminário VII, a ética da psicanálise. Paidéia, 16, 161-168. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/paideia/v16n34/v16n34a04>.
http://www.scielo.br/pdf/paideia/v16n34/...
). Trata-se, portanto, de algo que sempre escapa à apreensão e à simbolização, não estando sob controle do sujeito, um resto, um dejeto, algo de irrealizável. Zizek (2006)Zizek (2006). Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo, SP: Boitempo. aborda a pulsão de morte em termos de uma insistência cega da libido, “ímpeto morto-vivo que persiste além do ciclo (biológico) de vida e morte, geração e corrupção” (p. 79). Seria, nesse sentido, a inscrição do Real no cerne da sexualidade humana, marcada pelo fracasso irredutível decorrente da inexistência de um denominador comum entre as duas posições sexuais.

Paixão ou ódio ao Real? Quadros da cultura contemporânea

No início de sua produção, Lacan (1936/1998a)Lacan, J. (1998a). Para além do ‘Princípio de realidade’. In Escritos (pp. 77-95). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1936). considerou o registro do Real componente da realidade psíquica e amarrado ao registro do Imaginário e da realidade. À medida que o registro do Simbólico foi ganhando protagonismo em seu ensino, passa a ser a via de acesso possível ao Real. Mas, ao adentrar a década de 1960, o Real passa a ser definido como o que escapa ao Simbólico, portanto como o traumático da experiência humana, irredutível ao significante, do qual “a angústia é sinal” (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63)., p. 178). A partir do Seminário VII (Lacan, 1959-60/1988Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).), o Real passou a ter privilégio na clínica proposta por Lacan, a qual deixou de se sustentar na via eminentemente simbólica. A ética da psicanálise se centralizou, então, no Real - e não mais no ideal e na busca de sentido - como o impossível de ser simbolizado, não por remeter a algo que não possa sê-lo, mas porque, assim como a relação sexual, “não para de não se escrever” (Lacan, 1972-73/1985cLacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73)., p. 127). Lacan remete essa demanda impossível de ser satisfeita à das Ding, a Coisa Freudiana, objeto que se perdeu de uma vez por todas, de modo que “jamais [...] será reencontrado” (Lacan, 1959-60/1988Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., p. 69). A efetivação da proposição lacaniana do Real, agora como lugar do vazio, do não sentido, daquilo que não cessa de não se escrever, influenciou leituras e interpretações acerca da vida coletiva e da política, reverberando também em algumas manifestações artísticas, ao modo de uma insistência no barulho do “silêncio que subjaz a Tudo” (Beckett, 1937/2001Beckett, S. (2001). Carta alemã. In F. S. Andrade, Samuel Beckett: o silêncio possível.São Paulo, SP: Ateliê. (Trabalho original publicado em 1937)., p. 170), protuberância paradoxal do vazio - ao qual Beckett queria chegar quando rasgava o véu da língua, cavando nela “um buraco atrás do outro, até que aquilo que está a espreita por trás - seja isto alguma coisa ou nada - comece a atravessar” (Beckett, 2001Beckett, S. (2001). Carta alemã. In F. S. Andrade, Samuel Beckett: o silêncio possível.São Paulo, SP: Ateliê. (Trabalho original publicado em 1937)., p. 169).

No que concerne às mudanças na sociedade no final do século XX, em seu atravessamento pelo Real, Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo. propõe análises interessantes. Ele considera que o momento definidor desse período foi a experiência direta do “Real em sua violência extrema como preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (p. 19). O termo ‘paixão pelo Real’, que o autor tomou de empréstimo de Badiou (2017)Badiou, A. (2017). Em busca do real perdido. Belo Horizonte, MG: Autêntica., seria a característica do contemporâneo, com sua violenta transgressão em relação aos ideais utópicos ou científicos do século XIX. A busca da coisa-em-si, a realização direta do que seria uma Nova Ordem, poderia, assim, ser notada em diferentes situações nas quais o que se manifesta como Real é o excesso, o qual Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo. situa na luta de classes. O chamado terror fundamentalista, suas intervenções violentas e as repercussões dele advindas seriam o exemplo maior da paixão pelo Real. As explosões das Torres Gêmeas no World Trade Center são apontadas pelo autor como a conclusão culminante da paixão pelo Real, sobretudo pelos efeitos de choque espetacular que pretenderam causar em escala mundial. Não se pode deixar de notar que tal evento seria o resultado do excesso produzido pelos próprios americanos em sua tentativa de eliminar a diferença que irrompe no antagonismo entre classes (Zizek, 2002Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo.).

Com efeito, o início do que culminou no episódio de 11 de setembro seria, para Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo., o sonho de catástrofe da elite americana. Enquanto os pobres de todo mundo sonham (ainda) se tornarem americanos, os americanos ricos são assombrados por pesadelos catastróficos causados pelo outro atrás do muro. A vida reduzida à virtualização, a experiência de viver em universos artificialmente construídos impunha a necessidade de retornar ao Real em busca de um solo firme a ser reencontrado na realidade. Para isso, sempre se contou com a colaboração de Hollywood e suas fantasias de catástrofe. Os ataques sempre foram conteúdo de fantasias populares antes de acontecerem de verdade. Mas, por ser excessivo e traumático, o Real neles contido não pode ser integrado à realidade, forçando o sujeito a vivê-los como pesadelos e querendo, na realidade, destruí-los. Quando a fantasia virou realidade, quando a hora ficou a mais escura, estavam dadas as condições para o que recebeu o nome de guerra ao terror.

Ainda segundo Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo., a paixão pelo Real, no campo político, revelou-se uma paixão falsa na qual a busca pelo Real não passaria de um estratagema para evitar o confronto com ele, numa demonstração inequívoca de força. Trata-se, na verdade, muito mais de um ódio ao Real e sua vontade de se livrar dele e do antagonismo social que o origina. O núcleo da paixão pelo Real seria, fora de Hollywood, a identificação com gestos heroicos de quem assume a obscenidade do poder, o lugar de quem faz o trabalho sujo contra o inimigo. Seria, sobretudo, o fundo de ódio ressurgindo no combate à ameaça do que se apresenta como antagônico: o lado de lá do muro. O autor usou esse exemplo para explicar a necessidade de opor a uma paixão reacionária (de ambos lados do antagonismo), uma outra, progressista, pelo Real. Enquanto a primeira endossaria o reverso obsceno da lei e das regras, buscando eliminar o Real excessivo do antagonismo através da violência, a outra buscaria confrontá-lo, negando a paixão pela purificação - e não através da destruição do elemento excessivo. Conforme Safatle (2006)Saflate, W. (2006). Posfácio. In S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo, SP: Boitempo. indicou no posfácio à obra de Zizek, a verdadeira política do Real não pode ser animada pela tentativa violenta de purificação de toda opacidade, mas deve ser feita em nome da irredutibilidade dos antagonismos fundantes da experiência política. Esse ato, capaz de suportar as consequências do antagonismo insolúvel, estaria apenas no início de sua gestação. A hora, para ele, ficará ainda mais escura.

Seguindo uma perspectiva semelhante, no campo das artes nos anos 1990, o realismo traumático se afirmava como o retorno do Real. Segundo a crítica de Foster (2014)Foster, H. (2014). O retorno do real. São Paulo, SP: Ubu., a vacuidade entre artista e obra indicava um sujeito em estado de choque e fazia com que se assumisse a natureza do objeto como defesa mimética contra esse choque. A brutalidade da política, do capitalismo e o submetimento do homem aos regimes de poder, via privilegiada para a expressão do ódio, levaram Andy Warhol, figura expoente da pop art, a propor uma adesão preventiva à compulsão a repetir ao reivindicar-se máquina ou afirmar viver exclusivamente de sopa - sempre Campbell - durante 20 anos (Warhol, 1980/2013Warhol, A. (2013). In A. Warhol, & P. Hackett, Popismo: os anos sessenta segundo Warhol. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó. (Trabalho original publicado em 1980).). Muito embora se tratasse de uma espécie de encenação, já havia ali a denúncia de uma subjetividade em choque, violentada, dominada pelo sistema vigente, condenada à repetição. Também suas obras, nas quais tanto a lata de sopa quanto Marilyn Monroe se repetem exatamente do mesmo modo, diversas vezes pretendiam que, ao olhar uma mesma coisa repetidamente, o sentido escapasse e o sujeito sentisse o vazio. O artista comentou sua adesão à repetição no livro POPism (1980), ao dizer: “Não quero que seja essencialmente o mesmo - quero que seja exatamente o mesmo. Porque quanto mais você olha para a mesma coisa, mais o sentido escapa […]” (p. 50). No realismo traumático da arte, não se tratava de uma tentativa de restaurar um sentido e controlar o trauma, mas sobretudo, de produzir o trauma através da obra, tanto no artista quanto no espectador. Assistiu-se a um engajamento político no qual o consumo complacente era confrontado e alimentado com imagens repetidas ad nauseum de cadeiras elétricas, cenas de distúrbios raciais e de suicídios, formas de denunciar o non-sense e o Real da morte, mas também da vida.

Essas referências remetem, segundo Foster (2014)Foster, H. (2014). O retorno do real. São Paulo, SP: Ubu., ao modelo do Real como trauma, impossibilidade de lidar com a alteridade, que Lacan buscava delimitar na década de 1960: o trauma como encontro faltoso com um Real que não pode ser representado, apenas repetido. Repetição esta que, ao mesmo tempo que tenta proteger contra o Real, o mantém como traumático. Trata-se da crítica ao autômaton, concernente ao automatismo, ao retorno, à volta, à insistência dos signos sob o comando do princípio de prazer, remetidos ao gozo. Ao mesmo tempo, no sujeito aderido voluntariamente à repetição, seria possível um novo encontro com o traumático, conforme o que Lacan (1964/1985b)Lacan, J. (1985b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). denominou tiquê, insistência do que não é representável, não traduzível em saber, muito embora não mais pura repetição, permitindo algo novo surgir nesse mesmo ato. Tiquê seria precisamente o “encontro com o real” enquanto autômaton traduziria “a rede de significantes” (p. 57) que visa alcançar, sem sucesso, o Real, estando esse sempre para além do autômaton, do retorno, da repetição decorrente do princípio do prazer.

O ódio na clínica do Real

Se a cultura, a partir da segunda metade do século XX, foi considerada a partir da constatação da incidência do Real, Lacan contribuiu ainda mais decisivamente para que a clínica psicanalítica afirmasse seu estatuto inexorável. Toda a pesquisa freudiana, para Lacan (1964/1985b)Lacan, J. (1985b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., estaria, na verdade, apontando para o Real, para o que se encontrava por trás da fantasia, onde se situa o sujeito do inconsciente. Para abordar esta questão, vamos retomar a definição de sujeito em psicanálise, pois é a ele que visa a operação analítica. Esse termo foi proposto por Lacan ao referir-se ao sujeito do inconsciente freudiano. Recorrendo ao sujeito cartesiano - resultante do cogito, operação pela qual Descartes (1637/1973)Descartes, R. (1973). Discurso do método. In Os pensadores: Descartes. São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1637). pretendeu fundar para o sujeito um ancoramento no ser - Lacan (1966/1998c)Lacan, J. (1998c). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos. Rio de Janeriro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949). propôs que o correlato entre sujeito do inconsciente e sujeito cartesiano seria o “desfilamento de um rechaço de todo saber” (p. 870). Ou seja, Freud só poderia ter inaugurado o campo do inconsciente a partir do sujeito da ciência fundado no cogito, o qual diferia de tudo que pudesse se traduzir em um humanismo, se tratando de um sujeito sem qualidades. O sujeito do inconsciente escapa de qualquer definição ou apropriação. Fruto da linguagem, toma o sentido do Real, sendo por isso objeto do ódio daquele que busca uma certeza, uma convicção acerca de si, a reintrodução de uma parte da qual jamais se apropriou (Gori, 2006Gori, R. (2006). O realismo do ódio. Psic. Clin., 18(2) 125-142. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18n2>.
http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18...
). Seria, assim, efeito do ingresso do ser humano na ordem da linguagem, sendo “sujeito tomado numa divisão constitutiva” (Lacan, 1966/1998dLacan, J. (1998d). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)., p. 870), pois uma vez apreendido, já não é, apontando para algo a mais, a realizar-se. O bebê, para Lacan (1949/1998c)Lacan, J. (1998c). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos. Rio de Janeriro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949)., durante o que ele chamou de estádio do espelho, se reconheceria como uma miragem de unidade através da imagem total do seu corpo, reflexo do corpo de um outro, imagem capturada do seu semelhante, constituindo o Eu. Esse Eu - captura imaginária do corpo - também se torna a matriz simbólica do ser, a partir da qual o sujeito, sempre que o ser é surpreendido pelo Real traumático (evitado pelo Eu), se precipita, escapa, ficando fora da estrutura do Eu, não podendo ser definido. Lacan (1966/1998d)Lacan, J. (1998d). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966). o situa no intervalo de um significante a outro da cadeia simbólica, podendo ser representado por um significante, mas cujo ser permanece sempre fora do campo da representação. Por ser efeito da linguagem, o sujeito do inconsciente insiste em comparecer na cadeia simbólica, sendo a todo tempo novamente rechaçado, negado, excluído do campo representacional dominado pelo Eu. O inconsciente seria o corte, em ato, entre o sujeito (aquele surgido com a operação do cogito, sujeito cartesiano) e o Outro. O sujeito seria, no fim das contas, causado pelo corte que o inconsciente determina na relação com o Outro. Mas, originado do Outro, o sujeito aspira, ao ser do Outro, de modo que possa defini-lo, dar consistência, o que lhe é impossível.

Essa impossibilidade que o Ser do Outro estabelece faz com que, ao sujeito, só reste a tentativa de destruí-lo, estando também aí situado o advento do ódio. Em uma análise, podemos então pensar, a intervenção no ódio do e no sujeito é relativa ao manejo de sua relação com o impossível. E, para a psicanálise, é fundamental que o sujeito se depare com esse ponto de impossível. Se em seus trabalhos finais Freud (1937/2018a)Freud, S. (2018a). Análise terminável e interminável. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 274-326). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1937). considerava que “a verdadeira realização da terapia analítica seria a correção a posteriori do processo de repressão original, correção que dá fim à preponderância do fator quantitativo” (p. 290), para Lacan (1964/1985b)Lacan, J. (1985b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). o objetivo seria justamente produzir uma ruptura da unidade imaginária, “a função da tiquê, do real como encontro - o encontro enquanto podendo faltar, enquanto essencialmente é encontro faltoso” (p. 60). Nesse processo, é preciso que o sujeito admita que a demanda, articulada pela linguagem, ao Outro é, de saída, frustrada pelo simples fato de ser infindável, ser sempre demanda de Outra coisa (Lacan, 1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito).). Logo, sendo supostamente atendida, terá sido a realização de uma decepção, motivo pelo qual, conforme esclarece Costa-Moura (2010)Costa-Moura, F. (2010). O fracasso normal da psicanálise: o real e a função do analista. In Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade (pp. 233-257). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud. Recuperado de: <https://www.passeidireto.com/arquivo/35073791/o-fracasso-normal-da-psicanalise-final>.
https://www.passeidireto.com/arquivo/350...
, o campo da psicanálise poderia ser entendido como fundado pelo recolhimento do fracasso da satisfação que a demanda pretende alcançar. A demanda constitui o sujeito pela própria condição de falante e como aposta de que o Outro possa oferecer-lhe respostas. Mas, o que se encontra é sempre a opacidade, o vazio, posto que há nele, nesse Outro, algo que desconhecemos, “o que não é outra coisa senão o que se chama seu desejo” (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). Uma saída pelo sintoma. In O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente (pp. 485-503). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)., p. 488). O desejo do Outro possui outra direção, não coincide com o que o sujeito demanda. Ao se deparar com a impossibilidade de que sua demanda dirigida ao Outro seja atendida, pode ser que, em vez de acatar o impossível, o sujeito se reduza à impotência (Costa-Moura, 2010Costa-Moura, F. (2010). O fracasso normal da psicanálise: o real e a função do analista. In Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade (pp. 233-257). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud. Recuperado de: <https://www.passeidireto.com/arquivo/35073791/o-fracasso-normal-da-psicanalise-final>.
https://www.passeidireto.com/arquivo/350...
), permanecendo impedido de articular o próprio desejo. Aí estaria também a fonte do ódio pelo Outro.

Butler (2005)Butler, J. (2005). Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte, MG: Autêntica. ratifica a acuidade da proposta de uma clínica que suporte a dimensão do Real ao criticar determinados círculos e práticas analíticas que visem oferecer ao sujeito a possibilidade de formar uma história sobre si mesmo, permitindo alguma coerência acerca de seu Eu, se engajando na possibilidade de uma satisfação da vontade em conhecer a si próprio. Este seria, em sua concepção, um equívoco acerca do que uma psicanálise pode e deve fazer. A autora defende a ideia de um inconsciente que não pode pertencer a alguém, sendo o outro que o interpela, sobretudo o analista, enigmático, inescrutável, sem respostas, que encaminha o inconsciente por meio de uma exterioridade. O propósito da transferência não seria construir e reconstruir uma história do sujeito, mas encenar o que não pode ser narrado, experimentando uma despossessão de si ao ser interpelado pelo outro.

Isso significa que, na análise, o que vemos desenhar-se é o horizonte da não resposta do Outro, pois o “analista surge unicamente como o lugar da fala, um ouvido que escuta e não responde” (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). Uma saída pelo sintoma. In O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente (pp. 485-503). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)., p. 489), o que possibilita algum encontro com o desejo, reconhecendo-o sempre evanescente. Ao longo de uma análise, o impossível de suportar deve ser sempre relançado de um significante a outro da cadeia, nunca encontrando um último que determine o desejo como uma integralidade. O analista deve suportar o Real que o sujeito a ele dirige, sem recurso a ilusões ou supondo deter qualquer solução (Costa-Moura, 2010Costa-Moura, F. (2010). O fracasso normal da psicanálise: o real e a função do analista. In Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade (pp. 233-257). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud. Recuperado de: <https://www.passeidireto.com/arquivo/35073791/o-fracasso-normal-da-psicanalise-final>.
https://www.passeidireto.com/arquivo/350...
).

Neste percurso é inevitável que, conforme defende Zaltzman (2007)Zaltzman N. (2007). L’esprit du mal. Paris, FR: Éditions de l’Olivier., o sujeito se depare com sua dimensão maléfica, propensão a agir causando dor e sofrimento a outros. Para a autora, uma das pretensões da análise deveria ser a de tornar inteligível isso que se apresenta, em cada sujeito, como opaco. Em todo caso, ao privar-se de dar respostas, a cada vez, o analista faz ato, colocando o inconsciente em jogo, possibilitando um novo começo para o sujeito (Lacan, 1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito).). Se há um objeto inicialmente perdido, aquele que o sujeito busca reaver sem possibilidade - gênese do ódio e da própria experiência analítica - o que se encontra ao longo de uma análise é justamente a falta do objeto. É esse objeto, denominado objeto a por Lacan, que funciona como causa da divisão do sujeito (Lacan, 1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito).), apontando para o irrecuperável de si. O analista ocupa o lugar de objeto a ao convocar a divisão que dá causa ao sujeito constituído como consequência da perda e onde é preciso que se coloque, se situe. O analista, nesse processo, é quem suporta a transferência, no lugar do sujeito suposto saber, de onde cai ao final da análise. Não por acaso esse percurso parte da “transferência negativa, que é o nó inaugural da análise” (Lacan, 1948/1998bLacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948)., p. 110), quando o analisando direciona seus impulsos agressivos ao analista. Se há amor e suposição de saber, também há hostilidade envolvida, sendo que a operação que se desenrola é a de perda, de modo que no final de uma análise o que se percebe é que o sujeito suposto saber “não está aí”, o que é característico do próprio inconsciente, e que essa descoberta faz parte da mesma operação da verdade” (Lacan, 1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito)., pp. 90-91).

A opacidade do Outro que se revela na análise indica que em vez de amor, o que há do outro lado é “amuro” (Lacan, 1972-73/1985cLacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).), que porta vida tanto quanto morte. Por trás do muro, o Real, a despeito da luta dos homens pelo que desde sempre esteve perdido, afinal, nunca houve promessa de felicidade (Flanzer, 2006Flanzer, S. N. (2006). Sobre o ódio. Interações, 12(22), 215-229. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210.pdf>.
https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210...
). Freud (1915/2010b)Freud, S. (2010b). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 12, pp. 209-246). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915)., encerrando suas “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” já nos advertia da necessidade de darmos à morte o lugar que lhe cabe tanto na realidade quanto em nossos pensamentos. Esse passo atrás, colocar mais a mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, teria a vantagem de levar mais em conta a verdade, tornando a vida novamente suportável. Este seria o primeiro grande dever dos vivos, suportar a vida através da consideração da morte.

Nesse sentido, Lacan (1959-60/1988)Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). propôs que a ética da psicanálise implicaria o sujeito na dimensão do Real da existência, não havendo nenhuma promessa possível de felicidade ou qualquer tipo de bem-estar. Ele se refere ao outro como alguém que vive em equilíbrio, sempre mais feliz que ele próprio, miragem que redunda em uma inveja em relação a esse outro, o qual participa de uma superabundância vital, uma forma de gozo à qual o sujeito nunca consegue ascender. O ódio do ser se atualiza em ódio invejoso. Assim é que se dedica ao ciúme, chegando à necessidade de destruir o que ele não é capaz de apreender por vias intuitivas. Talvez uma análise propicie ao sujeito se deparar com o fato de que o Outro, logo, o outro, também é incompleto, não possui respostas, participa da condição universal da humanidade, e um dos efeitos do percurso, como propõe Flanzer (2006)Flanzer, S. N. (2006). Sobre o ódio. Interações, 12(22), 215-229. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210.pdf>.
https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210...
, poderá ser levar o sujeito a se deparar com o fato de que não há a quem odiar.

Considerações finais

O que a história denuncia como incontornável na condição humana, sua tendência agressiva, odienta, maldosa, destrutiva, pode ser apreendida, a partir da segunda metade do século XX, em sua relação com o Real e as proposições lacanianas acerca desse registro. O sujeito, que desde sempre se defrontou com a impossibilidade de encontrar respostas para suas demandas, é a todo tempo instado a se haver com a impossibilidade de respostas. Freud já apontava a impossibilidade de se extinguir as tendências agressivas do sujeito, mas a busca de sentido se colocou, por muito tempo, como paradigma dominante na psicanálise, havendo ainda hoje analistas que trabalhem nessa perspectiva. Mas o sujeito sempre escapa a qualquer processo de autorreflexão e produção de sentido que cumpra garantir uma estabilidade emocional, um bem-estar baseado na adequação à realidade. Conforme indicou Safatle (2006)Saflate, W. (2006). Posfácio. In S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo, SP: Boitempo., o inconsciente se define pela resistência contínua a autorreflexão, aparecendo sempre como negativo ao sujeito. Trata-se de um descentramento do sujeito do inconsciente - o que não significa seu abandono. Ao contrário, é tomá-lo ao pé da letra, em sua exterioridade primeira.

Encaminhamos a discussão a partir de algumas incidências dessa leitura no campo da política, das artes e, sobretudo, da clínica. O que encontramos de confluente em todas elas é que, ao mesmo tempo que estabelecem uma crítica à voracidade pela captura do Real, cuja impossibilidade origina o ódio ao Outro, propõem, por outro lado, que o sujeito se depare com o impossível, o traumático, o excesso, sem pretender eliminá-lo ou digeri-lo.

Por fim, gostaríamos de apontar como essa confluência pode ser compreendida sob a perspectiva do que Lacan (1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito).) propôs como sendo a dimensão do ato. Aquilo que instaura um novo começo, tendo início e se apresentando “com uma ponta significante” (p. 80). Não se trata de um fazer, mas de um acontecimento na linguagem que suscita um novo desejo, o que exige do sujeito se defrontar com o Real. Propomos pensar que, na vida coletiva, política, quando Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo. aponta para modelos de sociedade nas quais os antagonismos sociais, fonte do Real traumático, não sejam empecilhos e não se pretenda eliminá-los através de ideais purificadores que imponham a violência e a destruição da diferença, aí há a dimensão de ato. O mesmo autor propõe, conforme aponta Safatle (2006)Saflate, W. (2006). Posfácio. In S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo, SP: Boitempo., a necessidade de se pensar um ato capaz de suportar as consequências de antagonismos que não se deixam apagar.

Nas artes, as manifestações do realismo traumático que expõe, pela repe-tição voluntária do artista, a violência do sistema capitalista e as mazelas dele decorrentes. O ato do artista, com sua obra, dá início a algo novo, onde o Real também não mais é negado. Por fim, quanto à clínica, aquilo que se nomeia em nosso tempo a clínica do Real, na qual o sujeito se depara justamente com o ponto de vazio, de não resposta, gira em torno do ato analítico, o qual permite a emergência do sujeito. O ato analítico, conforme apresentado no Seminário 15, implica o sujeito (Lacan, 1967-68Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico. (Seminário inédito).). No momento em que o analista diz algo que descentra o analisando, é que se abre a possibilidade do sujeito do inconsciente irromper, ao mesmo tempo em que evanesce. Mas alguma mudança se instala, a despeito de qualquer vontade do analisando. O ato analítico, nesse sentido, retira consequências do fato de que existe o inconsciente, ouvindo o sujeito que habita o ser e ele próprio desconhece.

O ato como aquilo que convoca o sujeito a se haver com o Real nos parece uma via para, sem pretender extinguir e/ou extirpar o ódio inelutável do sujeito e dos grupos, alcançar alguma clareza quanto à inexistência de motivos legítimos para se odiar. E que a partir disso algo novo possa vir a ser feito. Como nos convoca Zizek (2002)Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo, SP: Boitempo.: Bem-vindo ao deserto do Real!

Observação: O presente artigo surgiu em decorrência da pesquisa de doutorado de Rony Natale, orientado por Monah Winograd e fragmentos do texto poderão ser utilizados integral ou parcialmente no corpo da tese.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.

Referências

  • Badiou, A. (2017). Em busca do real perdido Belo Horizonte, MG: Autêntica.
  • Beckett, S. (2001). Carta alemã. In F. S. Andrade, Samuel Beckett: o silêncio possívelSão Paulo, SP: Ateliê. (Trabalho original publicado em 1937).
  • Birman, J. (2006). Arquivo da agressividade em psicanálise. Natureza Humana, 8 (2), 357-379. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-24302006000200005&script=sci_abstract>.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-24302006000200005&script=sci_abstract
  • Butler, J. (2005). Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética Belo Horizonte, MG: Autêntica.
  • Caropreso, F. (2015). Pulsão de morte e experiências precoces em Freud e Melanie Klein. Revista de Filosofia Autora, 27(40), 387-498. Recuperado de: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/aurora/article/view/787/709>.
    » https://periodicos.pucpr.br/index.php/aurora/article/view/787/709
  • Chaves, W. C. (2006). O estatuto do Real em Lacan: dos primeiros escritos ao seminário VII, a ética da psicanálise. Paidéia, 16, 161-168. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/paideia/v16n34/v16n34a04>.
    » http://www.scielo.br/pdf/paideia/v16n34/v16n34a04
  • Costa-Moura, F. (2010). O fracasso normal da psicanálise: o real e a função do analista. In Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade (pp. 233-257). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud. Recuperado de: <https://www.passeidireto.com/arquivo/35073791/o-fracasso-normal-da-psicanalise-final>.
    » https://www.passeidireto.com/arquivo/35073791/o-fracasso-normal-da-psicanalise-final
  • Descartes, R. (1973). Discurso do método. In Os pensadores: Descartes São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1637).
  • Flanzer, S. N. (2006). Sobre o ódio. Interações, 12(22), 215-229. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210.pdf>.
    » https://www.redalyc.org/pdf/354/35402210.pdf
  • Foster, H. (2014). O retorno do real São Paulo, SP: Ubu.
  • Freud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).
  • Freud, S. (2010b). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 12, pp. 209-246). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).
  • Freud, S. (2010c). Além do princípio do prazer. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 14, pp. 161-239). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920).
  • Freud, S. (2010d). O mal-estar na civilização. In Sigmund Freud, obras completas (vol. 18, pp. 13-123). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).
  • Freud, S. (2010e). Por que a guerra? In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 18). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1932).
  • Freud, S. (2010f). Angústia e instintos. Novas conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 32. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 18, pp. 224-262). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1933).
  • Freud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 15, pp. 13-99). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).
  • Freud, S. (2011b). A negação. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 16, pp. 275-282). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1925).
  • Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 11, pp. 13-155). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912-13).
  • Freud, S. (2013). Observações sobre um caso de neurose obsessiva: O homem dos ratos. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 09, pp. 13-112). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909).
  • Freud, S. (2016). Estudos sobre a histeria. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 2, pp. 14-340). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1893-95).
  • Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931 São Paulo, SP: Blucher.
  • Freud, S. (2018a). Análise terminável e interminável. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 274-326). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1937).
  • Freud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. (Trabalho original publicado em 1939).
  • Freud, S. (2018c). Compêndio de Psicanálise. In Sigmund Freud, obras completas (Vol. 19, pp. 189-273). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1940 [1938]).
  • Garcia-Roza, L. S. (1995). Introdução à metapsicologia freudiana (Vol. 3, 3ª ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Gori, R. (2006). O realismo do ódio. Psic. Clin., 18(2) 125-142. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18n2>.
    » http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a10v18n2
  • Klein, M. (1974). Inveja e gratidão Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1957).
  • Lacan, J. (1967-68). O seminário. Livro 15. O ato analítico (Seminário inédito).
  • Lacan, J. (1985a). Sósia. O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (pp. 325-342). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).
  • Lacan, J. (1985b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Lacan, J. (1985c). O saber e a verdade. In O seminário. Livro 20. mais, ainda (pp. 121-141). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).
  • Lacan, J. (1986). O conceito da análise. In O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54).
  • Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).
  • Lacan, J. (1998a). Para além do ‘Princípio de realidade’. In Escritos (pp. 77-95). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1936).
  • Lacan, J. (1998b). A agressividade em psicanálise. In Escritos (pp. 104-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948).
  • Lacan, J. (1998c). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos Rio de Janeriro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949).
  • Lacan, J. (1998d). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Lacan, J. (1999). Uma saída pelo sintoma. In O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente (pp. 485-503). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).
  • Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).
  • Saflate, W. (2006). Posfácio. In S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real São Paulo, SP: Boitempo.
  • Silva, F. C. T., & Leão, K. S. S. (2018). Por que a guerra? Das batalhas gregas à ciberguerra: uma história da violência entre os homens Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
  • Warhol, A. (2013). In A. Warhol, & P. Hackett, Popismo: os anos sessenta segundo Warhol Rio de Janeiro, RJ: Cobogó. (Trabalho original publicado em 1980).
  • Zaltzman N. (2007). L’esprit du mal Paris, FR: Éditions de l’Olivier.
  • Zizek, S. (2002). Paixões do real, paixões do semblante. In Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo, SP: Boitempo.
  • Zizek (2006). Bem-vindo ao deserto do real São Paulo, SP: Boitempo.
Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2020
  • Aceito
    29 Maio 2020
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com