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Autismo e memória: neurociência e cognitivismo à luz da filosofia de Henri Bergson*1 *1 O presente artigo, que contou com atualização bibliográfica, foi baseado na pesquisa de doutoramento do autor, sob orientação do Professor Jurandir Freire Costa, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, defendida no ano de 2010, com o título “Autismo como transtorno da memória pragmática: teses cognitivistas e fenomenológicas à luz da filosofia de Henri Bergson”. Parte da pesquisa teve subvenção do CNPQ e o período de doutorado-sanduíche em Berlim, Alemanha foi subvencionado pela CAPES

Autism and memory: neuroscience and cognitivism in the light of Henri Bergson‘s philosophy

Autisme et mémoire: neurosciences et cognitivisme à la lumière de la philosophie d’Henri Bergson

Autismo y memoria: neurociencia y cognitivismo a la luz de la filosofía de Henri Bergson

Resumos

Este artigo tem como objetivo investigar a relação entre autismo e memória, tomando como referência as teses do filósofo francês Henri Bergson, em interlocução com o paradigma cognitivista e o campo das neurociências. A partir da perspectiva bergsoniana, defendemos haver no autismo uma dissociação precoce entre memória e ação corporal, levando à dificuldade em usar as experiências passadas para iluminar a situação atual. A memória autista, sem a bússola pragmática, vaga sem função precisa, resultando ora na incapacidade do sujeito em se localizar nos contextos e em sua própria história, ora em prodígios mnêmicos pouco úteis para a autonomia e a vida social. O autismo pode, portanto, ser entendido como transtorno da memória pragmática ou perturbação da atenção à vida, afetando a capacidade dos indivíduos de responder criativamente aos obstáculos do cotidiano.

Palavras-chave:
Autismo; cognitivismo; memória; Henri Bergson


This article aims to investigate the relationship between autism and memory, taking as reference the theses of French philosopher Henri Bergson, in interlocution with the cognitivist paradigm and the field of neurosciences. Based on Bergson’s perspective, we argue that autism features an early dissociation between memory and bodily action, making it difficult to use past experiences to solve a current situation. The autistic memory, without the pragmatic compass, wanders without a precise function, sometimes resulting in the subject’s inability to locate himself in contexts and in his own history, and sometimes in mnemonic prodigies that are not very useful for autonomy and social life. Autism may therefore be understood as a pragmatic memory disorder or disturbance of attention to life, affecting the individuals’ ability to respond creatively to everyday obstacles.

Key words:
Autism; cognitivism; memory; Henri Bergson


Cet article vise à étudier la relation entre autisme et mémoire, en prenant comme référence les thèses du philosophe français Henri Bergson, en interlocution avec le paradigme cognitif et le domaine des neurosciences. Du point de vue bergsonien, nous soutenons que dans l’autisme il y a une dissociation précoce entre la mémoire et l’action corporelle, ce qui conduit à la difficulté d’utiliser les expériences passées pour éclairer la situation actuelle. La mémoire autistique, sans boussole pragmatique, vague sans fonction précise, entraînant parfois l’incapacité du sujet à se situer dans des contextes et dans sa propre histoire, et parfois des prodiges mnésiques peu utiles à l’autonomie et à la vie sociale. L’autisme peut donc être compris comme un trouble de la mémoire pragmatique ou comme perturbation de l’attention à la vie, affectant la capacité des individus à répondre de manière créative aux obstacles quotidiens.

Mots clés:
Autisme; cognitivisme; mémoire; Henri Bergson


Este artículo tiene como objetivo investigar la relación entre el autismo y la memoria, tomando como referencia las tesis del filósofo francés Henri Bergson, en interlocución con el paradigma cognitivista y el campo de las neurociencias. Desde la perspectiva bergsoniana, sostenemos que hay, en el autismo, una disociación temprana entre la memoria y la acción corporal, lo que dificulta el uso de experiencias pasadas para iluminar la situación actual. La memoria autista, sin la brújula pragmática, deambula sin una función precisa, lo que a veces resulta en la incapacidad del sujeto para ubicarse en contextos y en su propia historia, a veces en prodigios mnémicos que no son muy útiles para la autonomía y la vida social. El autismo, por lo tanto, puede entenderse como un trastorno de la memoria pragmática o como una alteración de la atención a la vida, que afecta la capacidad de las personas para responder creativamente a los obstáculos cotidianos.

Palabras-clave:
Autismo; cognitivismo; memoria; Henri Bergson


Introdução

A relação entre autismo e memória está presente em boa parte da literatura sobre o quadro, embora nem sempre tenha sido suficientemente destacada. Desde os primeiros relatos clínicos sobre crianças autistas era possível notar a excelente memória para campos específicos do conhecimento, mas também prejuízos em diversos aspectos do funcionamento mental que, direta ou indiretamente, envolviam habilidades mnêmicas. Kanner (1943)Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250., ao descrever a capacidade de “memorização decorada” dos autistas, considerava que a linguagem havia sido “consideravelmente desviada para se tornar um exercício de memória autossuficiente, sem valor conversacional e semântico, ou grosseiramente distorcido” (p. 243; tradução nossa). Nos anos 1960, Rimland (1964)Rimland, B. (1964). Infantile autism: the syndrome and its implication for a neural theory of behavior. New York, NY: Meredith Publishing Company. sustentou que o autismo era o resultado da desarticulação entre sensações e memória, impossibilitando a criança de extrair sentido das novas experiências, por não as relacionar com acontecimentos passados

No campo das pesquisas cognitivas experimentais, Hermelin e O’Connor, na passagem dos anos 1960 para os 1970, destacaram a importância das perturbações dos processos mnêmicos na caracterização do autismo. A memória auditivo-verbal autista foi descrita como “tipo caixa-de-eco” (eco-box type), havendo uma marcante prevalência da memória imediata ou primária em detrimento da memória classificatória, o que explicaria fenômenos como a ecolalia, a reversão de pronomes, a memorização decorada e, por fim, toda a incapacidade em se comunicar (Hermelin & O’Connor, 1970Hermelin, B., & O’Connor, N. (1970). Psychological experiments with autistic children. Oxford, UK: Pergamon Press.). Wing (1981)Wing, L. (1981). Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychological Medicine, 11, 115-129., ao escrever sobre a síndrome descrita por Hans Asperger, considerou que as “habilidades especiais”, quando de fato presentes, eram totalmente baseadas na memória decorada.

No registro fenomenológico, Bosch (1970)Bosch, G. (1970). Infantile autism: a clinical and phenomenological-anthropological investigation taking language as the guide. Berlin-Heildelberg-New York: Springer-Verlag. ressaltou que a memória autista, melhor para objetos e situações que para pessoas, é um dos sinais da dificuldade em transcender o presente e construir um ‘outro’ que tenha história, que se estenda do passado em direção ao futuro. Por fim, para Klin et al. (2005)Klin, A. et al. (2005). The enactive mind, or from actions to cognitions: lessons from autism. In U. Frith, E. L. Hill, Autism: mind and brain (pp. 127-159). New York, NY: Oxford University Press., é pela evocação de experiências logradas que se aprende a fazer a distinção entre o socialmente relevante do irrelevante; no autismo, essa “dinâmica da relevância” estaria afetada, implicando a inversão da hierarquia na qual os estímulos interpessoais são mais relevantes que os inanimados.

Este artigo se inicia com uma breve revisão de pesquisas relacionando autismo e memória na perspectiva da neurociência e do cognitivismo; em seguida, recorreremos à filosofia de Henri Bergson para realizar uma abordagem distinta do fenômeno da memória. Bergson, na virada do século XIX para o XX, travou um intenso diálogo com a neurologia da época, o qual aparece, especialmente, nas páginas de Matéria e memória. Por meio dele buscaremos lograr nosso objetivo geral, que é o de redescrever o autismo como transtorno da memória pragmática - ou seja, como distúrbio precoce nas relações entre percepção, memória e ação -, com consequências impor-tantes para a compreensão da subjetividade das pessoas com Transtornos do Espectro Autista (TEA).

Autismo e memória no campo da neurociência e do cognitivismo

A possibilidade de descrever o autismo como transtorno eminentemente mnêmico remonta aos anos 1970, quando Boucher e Warrington (1976)Boucher, J., & Warrington, E. K. (1976). Memory deficits in early infantile autism: some similarities to the amnesic syndrome. British Journal of Psychology, 67(1), 73-87. sugeriram correlações entre o autismo e a síndrome amnésica, na qual há dano no sistema límbico, incluindo o hipocampo. Um pouco depois, Boucher (1981)Boucher, J. (1981). Memory for recent events in autistic children. Journal of Autism and Developmental Disorders, 11, 293-302. sustentaria que as dificuldades na memória recente apresentadas por indivíduos autistas não eram derivadas de seus prejuízos na linguagem; ao contrário, os problemas na memória é que levariam a atrasos e desvios no desenvolvimento linguístico, o que reforçaria a conexão entre autismo e síndrome amnésica.

Desde então, as relações entre a memória e o autismo têm sido estudadas tanto pela neurociência cognitiva, em sua visada bottom-up, na qual a busca por áreas ou processos cerebrais toma precedência, quanto pela neuropsicologia cognitiva, que lança mão da explicação top-down, na qual primeiro ocorre a teorização sobre os processos psicológicos (Nadesan, 2005Nadesan, M. H. (2005). Constructing autism. London, New York: Routledge.). No primeiro caso, pesquisadores como DeLong (1992)DeLong, G. R. (1992). Autism, amnesia, hippocampus, and learning. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 16, 63-70. reforçaram a tese amnésica, identificando a disfunção hipocampal como a origem dos déficits motivacionais e cognitivos no autismo. Por sua vez, Bachevalier (1994)Bachevalier, J. (1994). Medial temporal lobe structures and autism: a review of clinical and experimental findings. Neuropsychologia, 32(6), 627-648. entendeu que os problemas no campo da aprendizagem e memória demonstrados por pessoas autistas com retardo envolveriam lesões ou disfunções temporais mediais mais abrangentes, incluindo a amígdala, o hipocampo e o córtex adjacente. No caso do autismo de melhor funcionamento cognitivo, a amígdala estaria mais afetada que o hipocampo, e por isso haveria prejuízo social e emocional, mas capacidade de aprendizado mais preservada.

Contudo, a hipótese amnésica do autismo, baseada na estreita associação entre autismo e disfunções do lobo temporal medial, passou a ser questionada e refutada por outros pesquisadores (Bennetto, Pennington & Rogers, 1996Benneto, L., Pennington, B. F., & Rogers, S. J. (1996). Intact and impaired memory functions in autism. Child Development, 67, 1816-1835.; Bowler, Mattews & Gardiner, 1997Bowler, D. M., Mattews, N. J., & Gardiner, J. M. (1997). Asperger’s syndrome and memory: similarity to autism but not amnesia. Neuropsychologia, 35(1), 65-70.; Minshew & Goldstein, 1993Minshew, N. J, & Goldstein, G. (1993). Is autism an amnesic disorder? Evidence from the California Verbal Learning Test. Neuropsychology, 7(2), 209-216.; 2001Minshew, N. J., &. Goldstein, G. (2001). The pattern of intact and impaired memory functions in autism. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 42(8), 1095-1101.; Renner, Klinger & Klinger, 2000Renner, P., Klinger, L. G., & Klinger, M. R. (2000). Implicit and explicit memory in autism: is autism an amnesic disorder? Journal of Autism and Developmental Disorders, 30(1), 3-14.). Outras regiões cerebrais têm sido identificadas como candidatas à sede das disfunções neurais dos autistas: anormalidades no córtex pré-frontal medial explicariam parte dos problemas no processamento emocional e prejuízos cognitivos, na integração da informação e na memória relacional (Bowler, Gaigg & Lind, 2011Bowler, D. M., Gaigg, S. B., & Lind, S. E. (2011). Memory in autism: Binding, self and brain. In I. Roth, & P. Rezaie (Eds.), (pp. 316-346). Researching the autism spectrum (pp. 316-346). Cambridge University Press.; Boucher & Mayes, 2012Boucher, J., Mayes, A., & Bigham, S. (2012). Memory in autistic spectrum disorder. Psychological bulletin,138(3), 458.). O córtex parietal posterior também tem sido apontado como possível sede de distúrbios mnêmicos em pessoas com autismo de alto funcionamento (Boucher & Mayes, 2012Boucher, J., & Mayes, A. (2012). Memory in ASD: have we been barking up the wrong tree? Autism,16(6), 603-611.)

No caso da neuropsicologia cognitiva, a memória costuma ser dividida em não declarativa (ou implícita) e declarativa (ou explícita), sendo a primeira subdividida em perceptual e procedural e a segunda em semântica e episódica/relacional1 1 A memória perceptual é automática ou inconsciente, tendo como objeto itens discretos simples ou complexos; a memória procedural inclui o condicionamento, a memória-hábito, a aquisição de habilidades sensoriomotoras ou cognitivas e de conceitos básicos. A memória episódica envolve informações contextualizadas sobre eventos experimentados pela pessoa; a memória semântica envolve informação factual não pessoal, incluindo o significado de palavras (Boucher, Mayes & Bigham, 2012). (Boucher & Anns, 2018Boucher, J., & Anns, S. (2018). Memory, learning and language in autism spectrum disorder. Autism & Developmental Language Impairments, 3, 2396941517742078.; Boucher, Mayes & Bigham, 2012Boucher, J., & Mayes, A. (2012). Memory in ASD: have we been barking up the wrong tree? Autism,16(6), 603-611.)2 2 Além dessas, também é descrita a “memória de trabalho”, que não será explorada neste artigo (ver Boucher, Mayes & Bigham, 2012). . Diversos estudos têm apontado problemas envolvendo a memória episódica nos TEA, ao passo que a memória semântica se encontra mais preservada (Gardiner, Bowler & Grice, 2003Gardiner, J. M., Bowler, D. M., & Grice, S. J. (2003). Further evidence of preserved priming and impaired recall in adults with Asperger syndrome. Journal of Autism and Developmental Disorders, 33(3), 259-269.; Bowler, Gaigg & Lind, 2011Bowler, D. M., Gaigg, S. B., & Lind, S. E. (2011). Memory in autism: Binding, self and brain. In I. Roth, & P. Rezaie (Eds.), (pp. 316-346). Researching the autism spectrum (pp. 316-346). Cambridge University Press.; Gaigg, Bowler & Gardiner, 2014Gaigg, S. B., Bowler, D. M., & Gardiner, J. M. (2014). Episodic but not semantic order memory difficulties in autism spectrum disorder: Evidence from the Historical Figures Task. Memory, 22(6), 669-678.). Em experimento de Millward et al. (2000)Millward, C. et al. (2000). Recall for self and other in autism: children´s memory for events experienced by themselves and their peers. Journal of Autism and Developmental Disorders, 30(1), 15-28. que avaliou a rememoração de fatos ocorridos durante uma caminhada, as crianças autistas se recordaram mais dos incidentes vividos pela criança que as acompanhava do que daqueles que elas próprias experimentaram. Isso indicaria a má estruturação do experiencing self, já que normalmente o envolvimento do self facilita o processo de rememoração. Lind e Bowler (2010)Lind, S. E., & Bowler, D. M. (2010). Episodic memory and episodic future thinking in adults with autism. Journal of abnormal psychology,119(4), 896., de modo semelhante, relataram que adultos com autismo de alto funcionamento tendiam a assumir a perspectiva do observador (na terceira pessoa) em detrimento do seu próprio ponto de vista (em primeira pessoa) ao recuperar eventos passados.

Uma das principais características da memória episódica é a consciência do self no tempo, se relacionando diretamente com a consciência autonoética, aquela que permite reexperimentar eventos passados e antecipar ou simular experiências futuras, associando ambos ao presente (Gaigg, Bowler & Gardiner, 2014Gaigg, S. B., Bowler, D. M., & Gardiner, J. M. (2014). Episodic but not semantic order memory difficulties in autism spectrum disorder: Evidence from the Historical Figures Task. Memory, 22(6), 669-678.; Lind, 2010Lind, S. E. (2010). Memory and the self in autism: A review and theoretical framework. Autism,14(5), 430-456.). Nos autistas, o envolvimento do self com as memórias de experiências passadas e sua conexão com o momento atual são menos marcados, impactando ou atrasando a construção de uma consciência de si temporalmente estendida, implicando dificuldades na cognição temporal e senso diminuído de história pessoal e de self estendido no tempo (Lind, 2010Lind, S. E. (2010). Memory and the self in autism: A review and theoretical framework. Autism,14(5), 430-456.).

Pesquisas envolvendo a memória autobiográfica de adultos com autismo verificaram dissociação entre seus dois componentes, com prejuízos na memória episódica pessoal, mas não na memória semântica pessoal.3 3 A memória autobiográfica engloba a memória episódica pessoal, ou seja, os eventos experimentados pelo sujeito, e a memória semântica pessoal, que diz respeito às informações mais gerais sobre a personalidade (Crane & Goddard, 2008). Além disso, não se verificou nesse grupo o típico pico de memórias envolvendo a adolescência e o início da vida adulta (reminescence bump), indicando entraves na definição da identidade pessoal e na identidade de grupo social, consolidadas nessa fase da vida (Crane & Goddard, 2008Crane, L., & Goddard, L. (2008). Episodic and semantic autobiographical memory in adults with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 38(3), 498-506.).

Outros experimentos envolvendo a memória autobiográfica mostraram que adultos com Síndrome de Asperger não tinham problemas no “armazenamento” das lembranças, mas sim em desenvolver estratégias complexas de organização para ajudá-los na recordação de informações ou em usá-las para solucionar problemas (Bowler, Mattews & Gardiner, 1997Bowler, D. M., Mattews, N. J., & Gardiner, J. M. (1997). Asperger’s syndrome and memory: similarity to autism but not amnesia. Neuropsychologia, 35(1), 65-70.; Goddard et al., 2007Goddard, L. et al. (2007). Autobiographical memory and social problem-solving in Asperger syndrome. Journal of Autism and Developmental Disorders, 37, 291-300.). Além disso, tais soluções se restringiam ao “aqui-e-agora”, não se desdobrando por períodos mais longos, o que apontaria para os obstáculos enfrentados pelos indivíduos autistas para representar a experiência na dimensão temporal, prejudicando a percepção e a compreensão contínuas do self e dos outros (Goddard et al., 2007Goddard, L. et al. (2007). Autobiographical memory and social problem-solving in Asperger syndrome. Journal of Autism and Developmental Disorders, 37, 291-300.). Em outros estudos, adultos com TEA demonstraram dificuldades em extrair sentido de eventos recordados, o que apontaria falhas em usar experiências passadas para atualizar seu sentido de self e maior rigidez do sistema que envolve self e memória (Crane, Goddard & Pring, 2010Crane, L., Goddard, L., & Pring, L. (2010). Brief report: Self-defining and everyday autobiographical memories in adults with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders,40(3), 383-391.). Além disso, apresentaram dificuldade em recuperar memórias autobiográficas específicas e maior lentidão no processo de rememoração, o que poderia explicar parte das limitações nas interações sociais, nas quais esse tipo de memória é frequentemente mobilizada (Crane et al., 2012Crane, L., Pring, L., Jukes, K., & Goddard, L. (2012). Patterns of autobiographical memory in adults with autism spectrum disorder. Journal of autism and developmental disorders,42(10), 2100-2112.).

Podemos postular, a partir do conjunto desses trabalhos, a existência de distintos modos de abordar as relações entre autismo e memória. As primeiras pesquisas, cotejando o autismo com a amnésia temporal, se situam no campo da neurociência e do cognitivismo dominantes; entretanto, os últimos estudos, que privilegiam a noção de experiencing self e a memória autobiográfica, trazem algo novo e serão mais úteis em nossos objetivos. Ao articularem os conceitos de memória, experiência e ação, são esses estudos que mais se aproximam da abordagem bergsoniana da memória, da qual nos serviremos para defender a tese do autismo como transtorno da memória pragmática.

A noção de memória em Henri Bergson

O final do século XIX é considerado a “idade de ouro” da neurologia, sendo o período entre 1880 e 1890 a época dourada da pesquisa em memória, com destaque para os trabalhos de Ribot, Ebbinghaus e Korsakoff (Missa, 1997Missa, J.-N. (1997). Critique positive du chapitre II de Matière et mémoire. In P. Gallois, & G. Forzy (Eds.), Bergson et les neurosciences (pp. 65-83). Lille, FR: Institut Synthélabo.). A filosofia de Henri Bergson se desenrola em interação com o desenvolvimento científico daquele período, mas com forte viés crítico em relação ao seu teor positivista, em especial ao paradigma localizacionista/associacionista dominante (Claverie, 1998Claverie, B. (1998). Introduction. In E. Jaffard, B. Claverie, & B. Andrieu (Orgs.), Cerveau et memoires (pp. 7-10). Paris, FR: Éditions Osiris.).

Em contraposição à tradicional concepção internalista-reativa-representacional da consciência, Bergson (1911/2006)Bergson, H. (2006). A percepção da mudança. In O pensamento e o movente (pp.149-182). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1911). oferece uma noção externalista-ativa-perceptiva. Em sua fenomenologia, no início estava o corpo como centro de ação, e não como reservatório de representações. No mundo repleto de imagens,4 4 Imagem é o termo utilizado por Bergson como equivalente à matéria, e que seria “uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do que aquilo que o realista chama uma coisa” (Bergson, 1896/1999, pp. 1-2). Entre a coisa e a representação, a imagem estaria lá onde o senso comum a localizaria. o corpo é a única imagem que conhecemos não apenas de fora, por meio da percepção, mas também de dentro, por meio de afecções. Além disso, ele é a imagem em relação a qual as outras imagens se regulam: se ele muda de posição, variam também todas as demais. O corpo recolhe os estímulos de todo o mundo material, do qual faz parte, mas só ele pode escolher o modo como vai devolver o que recebeu. Os objetos do ambiente se organizam e hierarquizam em torno do corpo na ordem em que podem sofrer sua ação, ou seja, de acordo com a maior ou menor facilidade do corpo em tocá-los, movê-los, usá-los. Isso permite afirmar que as imagens que o cercam refletem as ações possíveis do corpo sobre elas e, portanto, a percepção consciente do mundo material estará estreitamente vinculada à modalidade da ação disponível ao indivíduo. Perceber a matéria, portanto, nunca é criar passivamente uma representação dela, é agir mediata ou imediatamente sobre ela. E a percepção, por mais breve que seja, nunca é pura, mas está sempre impregnada de memória. As imagens passadas sobrevivem porque são úteis, e a experiência atual se enriquece por recorrer às lembranças de experiências anteriores análogas. Desta forma, perceber se torna uma ocasião de lembrar. As lembranças são responsáveis pelo caráter subjetivo da percepção, propor-cionando a sensação de estabilidade perceptiva.

Em síntese, a “representação” do mundo material é o ângulo da percepção em função de uma ação real ou possível, eliminando da consciência tudo aquilo que não interessa à ação. E consciência, para Bergson (1911/2009Bergson, H. (2009a). A lembrança do presente e o falso reconhecimento. In A energia espiritual (pp. 109-151). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1908).; 1896/1999)Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., é basicamente a memória, ou seja, a conservação e a acumulação do passado no presente. Mas a consciência também é antecipação do futuro, atenção tracionada pela expectativa da ação nascente.

Bergson distingue dois tipos de memória, ambas responsáveis pela sobrevivência do passado. A primeira, a memória-hábito, é adquirida pela repetição de esforços e armazenada em mecanismos motores automatizados. Estando inteiramente voltada para a ação e não para a conservação de imagens, ela participa de atividades como andar, escrever ou contar. Sendo mais ação que representação, mais repetição que imaginação, ela não representa o passado, mas o encena, prolongando seu efeito útil até o momento atual. Na verdade, ela faz parte do presente do corpo e considera apenas o futuro, sendo “antes o hábito esclarecido pela memória do que a memória propriamente” (Bergson, 1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., p. 91; grifo do autor). O indivíduo só a reconhece como lembrança porque se recorda de tê-la adquirido, mas, para isso, precisa recorrer à segunda memória, à memória verdadeira, que é a memória-lembrança. É ela que data e localiza os acontecimentos passados, registrando os fatos cotidianos e escolhendo as representações que melhor se adequam ao momento atual. Na vida cotidiana, essa memória é inibida permanentemente pela memória-hábito, que só aceitará daquela as imagens-lembranças relacionadas a situações análogas que esclareçam a situação presente e guiem a escolha futura. A memória-hábito é ação, e a memória-lembrança é subserviente à ação, só se liberando dessa relação, na vida normal, em situações como o sonho.

As duas formas que a memória assume engendram dois tipos de reconhecimento que, assim como no caso da memória, não existem na forma pura. Temos, por um lado, o reconhecimento instantâneo, no qual apenas o corpo intervém, no qual há um sentimento de familiaridade com a situação experimentada. Reconhecer um objeto, desse modo, é saber usá-lo, é esboçar uma atitude motora que a ele se adapte. Aqui, se exerce o reconhecimento antes de pensá-lo. Por outro lado, encontramos o reconhecimento atento, que se baseia na presença das imagens-lembranças. Estas, na vida presente, estão inibidas pela consciência prática, ou seja, pelos movimentos corporais que permitem o reconhecimento automático do ambiente. Porém, são esses mesmos movimentos efetuados ou nascentes que selecionam, dentre todas as representações possíveis, aquelas que, por analogia com a percepção atual, poderão ser acessadas pela consciência. “O papel do estímulo perceptivo é simplesmente imprimir no corpo uma certa atitude na qual as lembranças vêm inserir-se”, observa Bergson (1896/1999, p. 112)Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896).. O que organiza a seleção das imagens-lembranças adequadas é a decomposição da percepção em movimentos de imitação motora, que se debruçam sobre os contornos do objeto, servindo de molde tanto à percepção quanto à imagem recordada.

Entende-se melhor, assim, porque Bergson afirma que a percepção já é memória. Cada percepção é provocada por uma corrente centrípeta, vinda do objeto exterior, e de uma centrífuga, vinda da memória imagética. Isoladamente, elas só poderiam provocar uma percepção passiva associada a reações automáticas, no caso da primeira, ou uma lembrança pura atualizada, no caso da segunda. Juntas, elas possibilitam o reconhecimento pleno do objeto. E, ao contrário do que poderia se pensar, o processo característico do reconhecimento, para Bergson, é centrífugo, indo da ideia à percepção, e não da percepção à ideia.

Tem-se, agora, um retrato mais nítido da articulação entre o reco-nhecimento instantâneo e o reconhecimento atento, a memória-hábito e a memória-lembrança. A memória-lembrança oferece aos mecanismos sensório-motores aquelas imagens passadas, oriundas da experiência pessoal, que serão úteis para orientar as respostas motoras nascentes. Já a memória-hábito permite que as imagens-lembranças impotentes reapareçam na consciência, se materializando no ponto onde se realiza a ação. E o elemento a ligá-las só pode ser o corpo, que é o centro de ação, o elemento que está sempre no presente, de tal modo que se pode afirmar que o presente é basicamente a consciência que tenho do meu corpo. Entre passado e futuro, o corpo liga a memória ao presente, à medida que se mostra poroso, permeável à passagem da lembrança útil, “aquela que esclarece a situação presente em vista da ação final” (Bergson, 1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., p. 209). E, como o processo de reconhecimento é centrífugo, para Bergson nós só atingimos o passado porque nos colocamos nele desde o princípio. O processo da memória consiste, assim, no progresso do passado ao presente, e não o contrário, já que as lembranças se materializam nas percepções atuais, na porção da duração5 5 Duração é o conceito usado por Bergson (1896/1999; 1911/2006) para se referir ao caráter indivisível do tempo, ao fluxo contínuo da mudança. em que se encontra o corpo.

A partir desse esquema é possível entender por que a psicopatologia, no esquema bergsoniano, está geralmente ligada a perturbações da atenção à vida, ou seja, a graus maiores ou menores de relaxamento da ligação entre memória e ação. Bergson busca se afastar da descrição mentalista da atenção, que tenderia a localizá-la como “vindo de dentro” e a confundi-la com uma função com sede no psiquismo ou no cérebro; a atenção é, aqui, “uma adaptação geral mais do corpo que do espírito” (Bergson, 1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., p. 113). A atenção individual seria aquela cuja intensidade, direção e duração normalmente variam de pessoa para pessoa, detendo-se aqui e ali de acordo com sua vontade ou com as exigências da situação. Essa atenção individual sempre vem sobrepor-se à atenção à vida, que seria a atenção da espécie. É ela que determina como o corpo recortará o mundo com vistas à ação. Na ontologia bergsoniana, o mundo já está dado como mudança e fluxo contínuo. Conhecer a realidade implica um recorte, realizado pelo corpo e pela consciência, desse fluxo da vida, interrompendo-o, solidificando-o, permitindo que aquilo que era um todo seja decomposto, pela memória, em momentos, e pela percepção, em objetos. A atenção à vida regula essa interrupção: num movimento pendular ela pode ora se manifestar num polo da ação mais interessado no manejo dos objetos do mundo, sob a forma de expectativa e tração para o futuro, ora num outro polo vinculado à contemplação, à especulação, ao sonho, e também à criatividade.

Enquanto os distúrbios da atenção individual correspondem a formas variadas de distração, as perturbações na atenção à vida levam a quadros patológicos mais graves, na medida em que há um relaxamento ou distorção da ligação entre a vida psicológica e seu polo motor. Nelas, a consciência não mantém sua direção e a atenção se desliga da vida, perdendo-se naquilo que não tem interesse (Bergson, 1908/2009aBergson, H. (2009a). A lembrança do presente e o falso reconhecimento. In A energia espiritual (pp. 109-151). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1908).; 1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896).). Bergson recorre a diversos quadros neurológicos ou psiquiátricos para ilustrar essa tese. Aborda, em especial, as patologias da memória e do reconhecimento, sejam aquelas atingindo o reconhecimento visual ou auditivo, como a cegueira e a surdez psíquicas, sejam as que atingem o reconhecimento das palavras, como a cegueira e a surdez verbais. Nessas situações, seriam dois os caminhos pelos quais as lesões corticais levariam ao problema. De um lado, haveria prejuízos nos mecanismos sensório-motores da atenção automática, sendo o corpo incapaz de tomar a atitude motora que selecionaria a lembrança adequada. De outro lado, haveria problemas nos mecanismos imaginativos da atenção voluntária, impossibilitando que as lembranças encontrassem o ponto do corpo que lhes permitisse se prolongar em ação (Bergson, 1911/2006Bergson, H. (2006). A percepção da mudança. In O pensamento e o movente (pp.149-182). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1911).; 1912/2009cBergson, H. (2009c). A alma e o corpo. In A energia espiritual. (pp. 29-59). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1912).). Em ambos os casos, os prejuízos primários se encontrariam no registro dos movimentos, e consistiriam mais na incapacidade de evocar as lembranças do que na sua abolição.

Já na “alienação” mental, a ruptura do equilíbrio sensório-motor coloca em xeque a adaptação da memória e da atenção à realidade, o que explicaria a sensação de estranheza relatada pelos loucos no início do seu adoecimento. Esse desequilíbrio entre sensações e movimentos levaria à debilitação ou desaparecimento do sentimento concreto do real, na medida em que esse sentimento corresponde à consciência que temos dos movimentos pelos quais o corpo responde aos estímulos do ambiente. A partir daí, Bergson (1896/1999)Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896). distingue a “alienação propriamente dita” das “cisões da perso-nalidade” descritas por Pierre Janet. Nas últimas, que teriam como substrato material as dissociações da sensibilidade e da motricidade que geralmente as acompanham, as lembranças preservam seu aspecto normal, mas estão menos solidárias ao corpo; o equilíbrio sensório-motor não chega a ser abolido e sim diminuído, perdendo sua complexidade. Já na alienação, todas as lembranças estão menos orientadas ao real, levando à ruptura de todo o equilíbrio mental.

O autismo como transtorno da memória pragmática

Das diversas teses de Bergson que mantêm um valor epistemológico atual, destaca-se, primeiramente, a da distinção entre as duas formas básicas de memória, estando a memória-hábito próxima do que se nomeia memória procedural,6 6 Memória procedural é considerada uma forma de memória implícita. e a memória-lembrança, da memória declarativa ou explícita (Delacour, 1997Delacour, J. Matière et mémoire, à la lumière des neurosciences contemporaines. (1997). In P. Gallois, & G. Forzy. (Eds.), Bergson et les neurosciences (pp. 23-27). Lille, FR: Institut Synthélabo.; Gallois, 1997Gallois, P. (1997). En quoi Bergson peut-il, aujourd’hui, intéresser le neurologue. In: Gallois, P., & Forzy, G. (Eds.), Bergson et les neurosciences (pp. 11-22). Lille, FR: Institut Synthélabo.; Beaunieux, Desgranges & Eustaches, 1998Beaunieux, H., Desgranges, B., & Eustache, F. (1998). Matière et mémoire et lês modèles actuels de la mémoire: de Bergson à Tulving. In E. Jaffard, B. Claverie, & B. Andrieu (Orgs.), Cerveau et memoires (pp. 77-94). Paris, FR: Éditions Osiris.). Uma segunda tese atual seria a que compromete toda a corporeidade na tarefa do reconhecimento; assim, quando se enfrenta novamente determinada situação, o corpo responde com a mesma atitude da ocasião anterior, gerando um sentimento particular que contribui para a ação a ser desencadeada. Percepção, ação corporal e memória, portanto, encontrar-se-iam de fato intimamente ligadas.7 7 Essa tese pode ser aproximada, grosso modo, da noção de “marcadores somáticos” proposta por António Damásio.

Seguindo a sugestão de Worms (1997)Worms, F. (1997). La théorie bergsonienne des plans de conscience: genèse, structure et signification de Matière et mémoire. In P. Gallois, & G. Forzy (Eds.), Bergson et les neurosciences (pp. 85-108). Lille, FR: Institut Synthélabo. de que uma teoria psicológica, longe de ser deduzida de uma teoria do cérebro, é a condição dessa última, podemos agora lançar mão dos principais conceitos da teoria bergsoniana sobre a memória para propor a redescrição do autismo como patologia da memória pragmática. Procedendo desse modo, reconhecemos a intuição apresentada por parte do cognitivismo quando tentou associar o quadro autista com perturbações mnêmicas, mas avaliamos que ele deixou escapar o principal, que é a ideia da memória pragmática, ligando de modo inseparável o registro da temporalidade à ação corporal.

Nossa empreitada começará pela redescrição do pilar do edifício kanneriano: o traço “patognomônico” no autismo seria o distúrbio precoce na ligação entre a memória e a ação corporificadas, resultando daí o não estabelecimento de relações normais com as pessoas e as situações sociais desde o início da vida.8 8 Parafraseamos aqui a afirmação de Kanner (1943) de que o “patognomônico” nas crianças com autismo seria “a incapacidade de se relacionar de maneira normal com pessoas e situações, desde o princípio de suas vidas” (p. 242; grifo do autor). Sem a bússola pragmática, a memória começa a funcionar de modo anárquico, capturada pelo divórcio entre as sensopercepções e os interesses da ação. A cisão entre memória e ação não permite o surgimento da lembrança útil, aquela que esclarece a situação presente em vista da ação final. Não é que o autista não tenha acesso às suas recordações, mas essas lembranças, por não terem sido gestadas em íntima associação com as necessidades da ação do organismo no ambiente, não permitem que a criança compreenda as regras do funcionamento intersubjetivo, nem consiga usar sua memória para antecipar o futuro. Além disso, como a subjetividade não é nada mais que o passado da ação, fica também afetada a construção de uma identidade pessoal coesa. Como vimos com Bergson, a psicopatologia ocorre quando se dissocia o passado do presente; na criança autista, essa desarticulação ocorre de modo precocíssimo, e não por acaso esse quadro implica, comumente, efeitos subjetivos mais amplos e mais limitantes do que os vistos em outros.

Vários dos comportamentos autistas descritos desde Kanner parecem sustentar a hipótese mnêmica do autismo. Um deles diz respeito aos problemas no campo da linguagem verbal e não verbal. A linguagem, além de ser, como mostrou Bosch (1970)Bosch, G. (1970). Infantile autism: a clinical and phenomenological-anthropological investigation taking language as the guide. Berlin-Heildelberg-New York: Springer-Verlag., um modo de compartilhar com o outro um mundo comum, é também o que permite, com base nas experiências passadas preservadas na memória, prever e antecipar as ações e situações futuras, seja em relação ao próprio self, seja em relação aos outros agentes. Não surpreende, portanto, que a fala autista se mostre ausente, desordenada ou decorada, que haja problemas para generalizar conceitos, que o infinitivo substitua as formas futuras, ou que o uso do pronome ‘eu’ não seja uma aquisição fácil. A perpetuação do indivíduo autista no momento presente parece impossibilitar o registro das regras de uso das palavras que ele testemunhou desde suas primeiras experiências com o outro. Na ausência desse solo linguístico compartilhado, público e ancorado no passado das interações, muitas vezes só resta o uso de “metáforas” que portam sentido apenas para ele, de neologismos, de uma gesticulação corporal completamente idiossincrática ou de vocalizações incompreensíveis, estereotipadas e ecolálicas. Na ecolalia, ao invés da fala plenamente autoral, baseada na história da interação do orga-nismo com o ambiente, há a resposta imediata àquilo que se escuta do outro, o que mostra, a nosso ver, as dificuldades na articulação entre os registros da memória-hábito e da memória-lembrança. Bergson (1896/1999)Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., em sua análise da afasia, diz que em fenômenos como a ecolalia há

[...] mais do que ações absolutamente mecânicas, porém menos que um apelo à memória voluntária; eles testemunham uma tendência das impressões verbais auditivas em se prolongarem em movimentos de articulação, tendência que seguramente não escapa ao controle habitual de nossa vontade, que talvez implique inclusive um discernimento rudimentar, e que se traduz, no estado normal, por uma repetição interior daquilo que sobressai na fala ouvida. (pp. 130-131; grifo do autor)

Dessa forma, a ecolalia, autista ou não, mostra o processo patológico a incidir sobre o esquema sensório-motor da palavra falada, interferindo no prolongamento dos sons escutados em ações motoras adequadas, e revelando que, mesmo que as palavras estejam adequadamente “armazenadas”, a memória corporal não consegue usá-las de modo voluntariamente escolhido e pragmaticamente orientado.

No campo das relações sociais, nossa abordagem permite afirmar que é por meio do bom uso das memórias-lembranças que a mente - ela própria o resultado da história das ações do corpo no ambiente - hierarquiza os estímulos sociais entre os mais e os menos relevantes, distinguindo entre pessoas e coisas. Kanner (1943)Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250. já observara que a criança autista dava a impressão de não distinguir as pessoas dos móveis da casa. Bosch (1970)Bosch, G. (1970). Infantile autism: a clinical and phenomenological-anthropological investigation taking language as the guide. Berlin-Heildelberg-New York: Springer-Verlag., por sua vez, ressaltou que era a resistência à ação do ‘eu’ o que construía a distinção entre objetos e pessoas, pois só em relação às últimas haveria reciprocidade. Da mesma forma, para a “ciência cognitiva corporificada” de Klin et al. (2005)Klin, A. et al. (2005). The enactive mind, or from actions to cognitions: lessons from autism. In U. Frith, E. L. Hill, Autism: mind and brain (pp. 127-159). New York, NY: Oxford University Press., a “saliência diferencial”, ou seja, o discernimento entre os sujeitos e as coisas, entre o essencial e o acessório, só poderia ser feito a partir das memórias das experiências passadas. Portanto, ao ter a memória pragmática deficitária, a pessoa com TEA se mostra desorientada em situações sociais complexas, não respondendo às demandas do ambiente de modo criativo ou adaptativo porque nela o passado é menos marcado.

Além das atipias no campo da linguagem, comunicação e da interação social, os fenômenos por vezes descritos como “não sociais” também podem ser considerados parte da disfunção mnêmica fundamental. Esses problemas incluem o gosto exagerado por tudo que é rotineiro e repetitivo e a reação catastrófica que as crianças autistas podem apresentar quando alguma modificação é introduzida na organização do seu espaço ou de seu tempo. Sabemos que todo indivíduo, autista ou não, precisa de um solo mínimo de estabilidade e de sentimento de continuidade. Como bem aponta Bergson (1896/1999)Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., os princípios da semelhança e da contiguidade organizam a vida consciente, pois perceber na situação presente aquilo que é parecido com outras situações, além daquilo que as precedeu e sucedeu, permite extrair o máximo de proveito das experiências passadas. Porém, a memória busca não apenas as semelhanças e contiguidades, mas também as diferenças, sendo “fonte inesgotável para que o homem varie de resposta a determinadas situações, para que invente novos horizontes” (Ferraz, 2007Ferraz, M. C. F. (2007). Bergson hoje: virtualidade, corpo, memória. In E. Lecerf, S. Borba, & W. Kohan (Orgs.), Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson (pp. 39-58). Belo Horizonte. MG: Autêntica.). Equilibrar semelhanças e diferenças, contiguidades e descontinuidades, entretanto, é tarefa improvável para a pessoa com autismo. Para aquele cujo repertório de lembranças se mostra inacessível ou limitado, a imprevisibilidade é quase sempre fonte de angústia, a novidade é evitada a todo custo e o recurso do sujeito é o de se perpetuar no presente.

No quesito da boa capacidade de retenção de informações e das habilidades savants, Kanner (1943)Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250. já falava de crianças com boa memória para detalhes ou para fatos antigos, que podiam decorar listas de presidentes ou recitar trechos de poemas, mas que não aprendiam a usar a linguagem com finalidade de comunicação com os outros. Wing (1981)Wing, L. (1981). Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychological Medicine, 11, 115-129. sugeriu que a memorização decorada estava na base das habilidades especiais dos pacientes descritos por Asperger. Como parecem se relacionar a um excesso, e não a um déficit, será que também esses fenômenos podem ser entendidos a partir do referencial aqui proposto, o do autismo como patologia da memória pragmática? Acreditamos que sim. Em primeiro lugar, porque tais “ilhas de habilidades” se destacam não apenas pela profundidade, mas também por sua reduzidíssima extensão quanto ao campo do conhecimento. Em segundo lugar porque, como sustentou Bosch (1970)Bosch, G. (1970). Infantile autism: a clinical and phenomenological-anthropological investigation taking language as the guide. Berlin-Heildelberg-New York: Springer-Verlag., fenômenos autistas como a “memória mecânica” e o bom desempenho lógico-matemático envolvem campos que pouco dependem da constituição prévia de um mundo comum, sendo governados por leis que não precisam da confirmação do outro, e muitas vezes não portam sentido na história pessoal nem estabelecem ligação com a comunidade de pares. Assim, convivem no mesmo indivíduo a excelência da memorização descontextualizada e apragmática e as dificuldades básicas em habilidades sociais ou linguísticas, as quais nada mais são que o registro mnêmico das interações com o ambiente desde os primeiros dias de vida.

Como situar a tese do autismo como transtorno da memória pragmática no contexto das pesquisas citadas na primeira parte do artigo? Os estudos envolvendo a memória episódica autobiográfica foram os que produziram resultados mais próximos à nossa abordagem. Ao enfatizarem os prejuízos na instalação do experiencing self nos indivíduos com TEA, ajudaram a iluminar a interdependência entre a memória e a constituição precoce da experiência do ‘eu’. A correlação dos distúrbios na memória autobiográfica com prejuízos na solução de problemas entre pessoas autistas reforça o argumento de que o que estaria em xeque, no autismo, não seria o armazenamento de recordações, mas a dimensão mnêmica pragmática. A tendência a se focar no “aqui-e-agora”, afetando a consciência do self no tempo ao não recuperar o passado e não se projetar no futuro, sublinha as graves dificuldades autistas envolvendo a experiência da duração e seu aprisionamento no tempo presente. Se, como mostrou Bergson, as imagens passadas só sobrevivem porque são úteis, os autistas só fizeram comprovar suas limitações no uso do passado para orientar as ações futuras.

Finalmente, o grupo de sintomas mais precoces, especialmente aqueles ligados à esfera sensório-motora, se constitui na pedra de toque de nossa hipótese sobre autismo e memória. Isso porque a instalação da memória pragmática, cuja eficácia é guiada pelas interações corporificadas, mostrar-se-ia inevitavelmente prejudicada na presença de problemas fundamentais envolvendo a motricidade ou a sensopercepção. Tais fenômenos precoces são descritos desde os primeiros trabalhos sobre o autismo, embora nem sempre tenham recebido o destaque merecido (Kanner, 1943Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250.; Rimland, 1964Rimland, B. (1964). Infantile autism: the syndrome and its implication for a neural theory of behavior. New York, NY: Meredith Publishing Company.; Hermelin & O’Connor, 1970Hermelin, B., & O’Connor, N. (1970). Psychological experiments with autistic children. Oxford, UK: Pergamon Press.; Damásio & Maurer, 1978Damasio, A., & Maurer, R. G. (1978). A neurological model for childhood autism. Archieves of Neurology, 35, 777-786.; DeMyer, Hingtgen & Jackson, 1981DeMyer. M. K., Hingtgen, J. N., & Jackson R. K. (1981). Infantile autism reviewed: a decade of research. Schizophrenia Bulletin, 7(3), 388-451.).

Um fenômeno sensório-motor precoce que se destaca nas pesquisas são as atipias na habilidade de imitação (Ornitz & Ritvo, 1968Ornitz, E. M., & Ritvo, E. R. (1968). Perceptual inconstancy in early infantile autism: the syndrome of early infant autism and its variants including certain cases of childhood schizophrenia. Archives of General Psychiatry, 18, 76-98.; Bosch, 1970Bosch, G. (1970). Infantile autism: a clinical and phenomenological-anthropological investigation taking language as the guide. Berlin-Heildelberg-New York: Springer-Verlag.; Klin et al., 2005Klin, A. et al. (2005). The enactive mind, or from actions to cognitions: lessons from autism. In U. Frith, E. L. Hill, Autism: mind and brain (pp. 127-159). New York, NY: Oxford University Press.). Para diversos autores, haveria um prejuízo básico envolvendo a imitação em crianças autistas, contribuindo decisivamente para os sintomas sociais e comunicativos posteriores, assim como para os problemas na instalação de um senso de self. Os pesquisadores, contudo, têm dificuldades em estabelecer quais desvios na imitação seriam típicos dos autistas, distinguindo-os de outras crianças que também apresentam falhas ou diferenças nessa habilidade (Hobson & Lee, 1999Hobson, R. P., & Lee, A. (1999). Imitation and identification in autism. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 40(4), 649-659.; Williams, Whiten & Singh, 2004Williams, J. H., Whiten, A., & Singh, T. (2004). A systematic review of action imitation in autistic spectrum disorder. Journal of autism and developmental disorders,34(3), 285-299.; Vivanti & Hamilton, 2014Vivanti, G., & Hamilton, A. (2014). Imitation in Autism Spectrum Disorder. In F. Volkmar et al. Handbook of autism and pervasive developmental disorders (4th edi, pp. 278-301). New Jersey, NJ: John Wiley & Sons, 2014,). Investigações sobre as especificidades dos indivíduos com TEA nessa área vêm se concentrando na atenção conjunta e em disfunções nos neurônios-espelho (Toth et al., 2006Toth, K., Munson, J., Meltzoff, A. N., & Dawson, G. (2006). Early predictors of communication development in young children with autism spectrum disorder: Joint attention, imitation, and toy play. Journal of autism and developmental disorders, 36(8), 993-1005.; Perkins et. al., 2010Perkins, T., Stokes, M., McGillivray, J., & Bittar, R. (2010). Mirror neuron dysfunction in autism spectrum disorders. Journal of clinical neuroscience, 17(10), 1239-1243.).

Como o tema da imitação se articula à memória e, mais especificamente, à tese da disfunção mnêmico-pragmática no autismo? Para Bergson, a seleção das imagens-lembranças é determinada pela decomposição das percepções atuais em movimentos de imitação motora; em consequência, patologias como a surdez verbal derivariam da ausência da mímica que permite que as lembranças cubram a percepção correlata. Isso mostra que imitação e memória são interdependentes, estando ambas fundadas na ação corporal, e que distúrbios num polo se traduzem em problemas no outro. A modo das duas memórias bergsonianas, a imitação pode ser dividida entre a imitação automática e a imitação consciente, sendo que as dificuldades autistas envolveriam ambas (Hobson, 1993Hobson, R. P. (1993). Autism and the development of mind. Hove, UK: Lawrence Erlbaum Associates Ltd., Publishers.; Hobson & Lee, 1999Hobson, R. P., & Lee, A. (1999). Imitation and identification in autism. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 40(4), 649-659.). Isso nos permite afirmar que, no autismo, os problemas já se apresentariam no registro da memória-hábito e do reconhecimento instantâneo. É claro que habilidades básicas caracterizadas pela repetição do esforço e sua consequente automatização, como o andar, estão geralmente preservadas no autismo, da mesma forma que a identificação imediata de objetos, permitindo fazer o uso correto de um copo com água ou de uma cadeira. Contudo, ações mais elaboradas, como falar, ler, escrever e contar, podem estar ausentes ou, como vimos nos casos das altas habilidades, presentes de modo exagerado, repetitivo e descontextualizado. Seria mais exato dizer, então, que o principal problema estaria na articulação da memória-hábito com a memória-lembrança. É essa ligação que permite que as lembranças sejam selecionadas a partir da sua relevância para as ações futuras, possibilitando o reconhecimento atento e pleno dos objetos e das situações, e é isso que o autista não faz de forma eficaz. Daí suas dificuldades em usar as experiências passadas para ajudá-lo na aprendizagem de normas sociais aparentemente simples, no desenvolvimento da linguagem e da brincadeira, na compreensão dos contextos e na distinção entre o relevante e o irrelevante, a partir da identificação das semelhanças e continuidades - ou das diferenças e descontinuidades - entre a percepção atual e os momentos já vividos. À medida que a memória-hábito é o que inibe a memória-lembrança, só deixando advir as imagens que esclareçam o presente e orientem o futuro, a desarticulação entre ambas faz com que a pessoa com TEA se torne refém da memória-hábito, daí derivando sua necessidade de rotina e suas dificuldades em lidar com o novo e imprevisto.

Esse esquema é perfeitamente compatível com a integração do cérebro e de outras dimensões da biologia corporal à psicopatologia do autismo, nos resguardando, no entanto, de tentações reducionistas quanto à sua etiologia.9 9 As pesquisas neurocientíficas sobre os Transtornos do Espectro do Autismo envolvem distintos achados, que vão além do escopo deste artigo. Destacam-se, atualmente, os estudos sobre as seguintes temáticas: anomalias da neuroconectividade; problemas envolvendo a migração neuronal, a sinaptogênese e a morfologia dos dendritos; desequilíbrio entre sistemas inibitório e excitatório; disfunções em neurônios-espelho; alterações imunológicas e inflamatórias; variações genéticas e epigenéticas. Para uma revisão, ver Muhle et al. (2018). Aquilo que Bergson sugeriu ao abordar outras modalidades de patologias da memória e do reconhecimento poderia, guardadas as diferenças entre os quadros, ser aplicado ao autismo. Disfunções neuronais levariam a prejuízos sensório-motores que impedem o corpo de tomar a atitude motora adequada à seleção da lembrança útil, situando a questão especialmente no polo da memória-hábito ou do reconhecimento instantâneo. Além disso, afetariam o polo imaginativo, não permitindo que as memórias-lembranças alcancem o ponto do corpo no qual se prolongariam em ação. Tanto numa situação quanto na outra, a suposta disfunção cerebral autista atingiria o movimento centrífugo que vai do passado ao presente, impedindo a lembrança de se atualizar em movimento e prejudicando o aparecimento de ações intencionais com significado social compartilhado na linguagem.

Ainda no registro da psicopatologia bergsoniana, pode-se considerar o autismo uma forma de perturbação da atenção à vida, talvez o mais alto grau de dissociação entre a memória e a ação. Ainda que se reconheça, hoje, o espraiamento do autismo num espectro de intensidades variáveis, o traço unificador, do autista com retardo até os de alto funcionamento, seria o afrouxamento da ligação entre a vida mental e sua aplicação pragmática, como indicam a desconexão entre a linguagem e sua significação social compartilhada, a tendência da consciência a se perder em pormenores e a limitação nas respostas criativas aos obstáculos encontrados.

Asperger (1944/1991)Asperger, H. (1991). ‘Autistic psychopathy’ in childhood. In U. Frith (Ed.), Autism and Asperger syndrome (pp. 37-92). Cambridge: Cambridge University Press. (Trabalho original publicado em 1944). havia notado que, em seus pacientes, o potencial criativo era diretamente proporcional ao grau de afastamento do ambiente. Ou seja, o aumento na sua capacidade de criação de objetos artísticos ou científicos exigia uma redução na criatividade social ou intersubjetiva, pois, como bem disse Bergson (1911/2009b)Bergson, H. (2009b). A consciência e a vida. In A energia espiritual (pp. 1-27). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1911)., o “[...] criador por excelência é aquele cuja ação, sendo intensa, é capaz de intensificar também a ação dos outros homens [...]” (p. 24). É isso que as dificuldades autistas no campo da intersubjetividade não permitem atingir de modo pleno, sendo difícil para a pessoa com autismo, de baixo ou alto funcionamento, ultrapassar a barreira da repetição estereotipada, da memorização decorada, das altas habilidades desencaixadas do contexto.

Conclusão

Patologia da memória pragmática, perturbação da atenção à vida, prejuízo na potência criativa. Será que, ao abordarmos o autismo, não seria possível dispensar o viés pessimista ou as metáforas negativas, as quais, como mostram Cavalcanti e Rocha (2002)Cavalcanti, A. E., & Rocha, P. S. (2002). Autismo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., marcaram distintas teorias sobre o quadro? Não acreditamos que as teses aqui defendidas, ao destacarem as limitações autistas, devam ser usadas para respaldar o imobilismo ou o conformismo quanto às expectativas sociais, familiares ou pessoais de conquistas futuras.

Apostamos que as hipóteses aqui desenvolvidas permitam entender, a partir de uma única matriz, os diversos aspectos do quadro autista e, em decorrência, organizar ao seu redor toda uma linha de pesquisa e investigação. Uma série de alterações em funções psicológicas têm sido associadas ao TEA, envolvendo a teoria da mente, a coerência central e as funções executivas, assim como as capacidades intersubjetivas (Lima, 2019Lima, R. C. (2019). Investigando o autismo: teoria da mente e a alternativa fenomenológica. Revista do NUFEN, 11(1), 194-214.), as quais podem ser articuladas em distintos níveis com nossa tese. A maior contribuição, acreditamos, é a de permitir uma nova compreensão dos modos autistas de ser e sofrer, ampliando a possibilidade de um diálogo entre variadas maneiras de experimentar o mundo.

As pessoas com TEA, espontaneamente ou com ajuda, de seu modo e em seu tempo, vão superando obstáculos impostos por sua constituição peculiar. Isso pode ocorrer, mais raramente, por meio de prodígios artísticos ou científicos, mas principalmente mediante simples avanços cotidianos. É no registro da criação do indivíduo comum, que “extrai muito do pouco, alguma coisa do nada” (Bergson, 1911/2009bBergson, H. (2009b). A consciência e a vida. In A energia espiritual (pp. 1-27). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1911)., p. 23) que os esforços autistas podem ser valorizados e estimulados. Tal criação, defende Bergson, tem como principal indicador a alegria, anunciando o triunfo da vida: “quanto mais rica é a criação, mais profunda é a alegria” (p. 22). A alegria pode ser, portanto, signo do poder de criação autista, do sucesso das intervenções terapêuticas e da instalação de outro tipo de subjetividade, mesmo que muito diferente daquela desejada pelos pais ou tida como normal pela cultura vigente. Como lembrou Trotignon (1997)Trotignon, P. (1997). Durée et mémoire: une difficulté dans la philosophie bergsonienne. In P. Gallois, & G. Forzy (Eds.), Bergson et les neurosciences (pp. 161-167). Lille, FR: Institut Synthélabo. em sua análise sobre as noções bergsonianas de duração e memória, os homens não são indivíduos no mesmo grau, sendo a individualização o produto da tensão entre a memória-hábito e a memória-lembrança em cada um. O autismo é exemplo de que diferentes tensões produzem diferentes subjetividades, podendo ser descrito tanto como patologia quanto como modo distinto ou atípico de se inserir na duração e recortar o fluxo contínuo do mundo.

Agradecimento: Ao professor Jurandir Freire Costa, pela orientação sempre inspirada e pela generosa disponibilidade.

  • *1
    O presente artigo, que contou com atualização bibliográfica, foi baseado na pesquisa de doutoramento do autor, sob orientação do Professor Jurandir Freire Costa, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, defendida no ano de 2010, com o título “Autismo como transtorno da memória pragmática: teses cognitivistas e fenomenológicas à luz da filosofia de Henri Bergson”. Parte da pesquisa teve subvenção do CNPQ e o período de doutorado-sanduíche em Berlim, Alemanha foi subvencionado pela CAPES
  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Brasília, DF, Br) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Brasília, DF, Br)/ This work is supported by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Brasília, DF, Br) and Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Brasília, DF, Br).
  • 1
    A memória perceptual é automática ou inconsciente, tendo como objeto itens discretos simples ou complexos; a memória procedural inclui o condicionamento, a memória-hábito, a aquisição de habilidades sensoriomotoras ou cognitivas e de conceitos básicos. A memória episódica envolve informações contextualizadas sobre eventos experimentados pela pessoa; a memória semântica envolve informação factual não pessoal, incluindo o significado de palavras (Boucher, Mayes & Bigham, 2012Boucher, J., & Mayes, A. (2012). Memory in ASD: have we been barking up the wrong tree? Autism,16(6), 603-611.).
  • 2
    Além dessas, também é descrita a “memória de trabalho”, que não será explorada neste artigo (ver Boucher, Mayes & Bigham, 2012Boucher, J., & Mayes, A. (2012). Memory in ASD: have we been barking up the wrong tree? Autism,16(6), 603-611.).
  • 3
    A memória autobiográfica engloba a memória episódica pessoal, ou seja, os eventos experimentados pelo sujeito, e a memória semântica pessoal, que diz respeito às informações mais gerais sobre a personalidade (Crane & Goddard, 2008Crane, L., & Goddard, L. (2008). Episodic and semantic autobiographical memory in adults with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 38(3), 498-506.).
  • 4
    Imagem é o termo utilizado por Bergson como equivalente à matéria, e que seria “uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do que aquilo que o realista chama uma coisa” (Bergson, 1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896)., pp. 1-2). Entre a coisa e a representação, a imagem estaria lá onde o senso comum a localizaria.
  • 5
    Duração é o conceito usado por Bergson (1896/1999Bergson, H. (1999). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1896).; 1911/2006)Bergson, H. (2006). A percepção da mudança. In O pensamento e o movente (pp.149-182). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1911). para se referir ao caráter indivisível do tempo, ao fluxo contínuo da mudança.
  • 6
    Memória procedural é considerada uma forma de memória implícita.
  • 7
    Essa tese pode ser aproximada, grosso modo, da noção de “marcadores somáticos” proposta por António Damásio.
  • 8
    Parafraseamos aqui a afirmação de Kanner (1943)Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250. de que o “patognomônico” nas crianças com autismo seria “a incapacidade de se relacionar de maneira normal com pessoas e situações, desde o princípio de suas vidas” (p. 242; grifo do autor).
  • 9
    As pesquisas neurocientíficas sobre os Transtornos do Espectro do Autismo envolvem distintos achados, que vão além do escopo deste artigo. Destacam-se, atualmente, os estudos sobre as seguintes temáticas: anomalias da neuroconectividade; problemas envolvendo a migração neuronal, a sinaptogênese e a morfologia dos dendritos; desequilíbrio entre sistemas inibitório e excitatório; disfunções em neurônios-espelho; alterações imunológicas e inflamatórias; variações genéticas e epigenéticas. Para uma revisão, ver Muhle et al. (2018)Muhle, R. A., Reed, H. E., Stratigos, K. A., & Veenstra-VanderWeele, J. (2018). The emerging clinical neuroscience of autism spectrum disorder: a review. JAMA psychiatry, 75(5), 514-523..

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Editor/Editor: Prof. Dr. Claudio E. M. Banzato

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2020
  • Revisado
    23 Jul 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
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