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A supervisão e a transmissão do estilo empático na clínica psicanalítica*1 *1 Este artigo faz parte da pesquisa de pós-doutoramento realizada no psiA – Laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas, na Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil).

Supervision and transmission of empathic style in psychoanalytic clinic

La supervision et la transmission du style empathique dan la clinique psychanalytique

La supervisión y transmisión del estilo empático en la clínica psicoanalítica

A partir da ideia de que na clínica dos casos-limite o analista precisa permitir-se entrar em contato com sua contratransferência, de maneira a utilizar-se dela para produzir uma técnica e adaptar-se ao seu caso clínico, indagamo-nos se nossos processos de transmissão em psicanálise, em especial a supervisão, estão preparados para essa realidade. Para isso, buscamos compreender como era pensada a supervisão desde a Escola Húngara de Psicanálise até autores contemporâneos que trabalham com fenômenos como reflection process e parallel process. Dessa forma, chegamos a psicanalistas que apostam que, por meio da regressão em supervisão, vinculada ao ponto de identificação do caso, poderia produzir-se um lugar mais empático do analista em relação ao seu paciente. Por fim, trazemos um rápido exemplo de uma supervisão clínica para ilustrar um início de entendimento a respeito da proposta apresentada.

Palavras-chave:
Supervisão; casos-limite; contratransferência; regressão


Resumos

Based on the idea that in the clinic of limit cases, the analyst needs to allow him/herself to contact his/her countertransference, in order to use it to produce a technique and adapt him/herself to the clinical case, we ask ourselves if our transmission processes in psychoanalysis, especially supervision, are prepared for this reality. For this, we seek to understand how supervision used to be thought over the time, from the Hungarian School of Psychoanalysis throughout the contemporary authors, who work with phenomena such as reflection process and parallel process. In this way, we come to psychoanalysts who bet that, through the regression in supervision, connected to the case´s point of identification, it would be possible to produce some more empathic place for the analyst in relation to his/her patient. Finally, we show a quick example of clinical supervision to illustrate a beginning of understanding regarding the presented proposal.

Key words:
Supervision; limit cases; countertransference; regression

Partant de l’idée que dans la clinique des cas limites, l’analyste doit se permettre de contacter son contre-transfert afin de l’utiliser pour produire une technique et s’adapter à son cas clinique, nous nous demandons si nos processus de transmission en psychanalyse, en particulier la supervision, sont préparés pour faire face à cette réalité. À cette fin, nous cherchons à comprendre comment la supervision a été pensée, depuis l’École Hongroise de la Psychanalyse aux auteurs contemporains qui travaillent avec des phénomènes tels que le « reflection process » et le « parallel process ». On arrive ainsi à des psychanalystes qui affirment qu’à travers la régression en supervision, liée au point d’identification du cas, on pourrait créer une place plus empathique de cet analyste par rapport à son patient. Un exemple résumé de supervision clinique illustre un début de compréhension de la proposition présentée.

Mots clés:
Supervision; cas limites; contre-transfert; regression


Partiendo de la idea de que en la clínica de los casos límite el analista necesita permitirse entablar contacto con su contratransferencia, para utilizarla en la producción de una técnica y adaptarse a su caso clínico, indagamos si nuestros procesos de transmisión en psicoanálisis, especialmente, la supervisión, están preparados para esta realidad. Para ello, buscamos comprender cómo se concebía la supervisión, desde la Escuela Húngara de Psicoanálisis hasta los autores contemporáneos que trabajan con fenómenos como el reflection process y el parallel process. De esta forma, llegamos a psicoanalistas que apuestan a que, a través de la regresión en la supervisión, vinculada al punto de identificación del caso, el analista podría producir un lugar más empático con relación a su paciente. Finalmente, traemos un ejemplo rápido de supervisión clínica para ilustrar un comienzo de entendimiento con respecto a la propuesta presentada.

Palabras clave:
Supervisión; casos límite; contratransferencia; regresión


Introdução

A clínica além da neurose, a clínica da loucura, se pudermos generalizar, talvez nunca possa ser da ordem da assertividade ou da predição técnica. Contudo, se pensarmos em diferentes graus de loucura — na loucura que nos aparece de forma menos desorganizada e um pouco mais próxima da neurose, ou que se encontra no limite entre uma e outra — vemos que existe bastante efetividade nas técnicas de algumas abordagens psicanalíticas. Percebemos que a clínica possibilita alguma reconstrução subjetiva ou cicatrização traumática quando aposta no reconhecimento, na utilização da contratransferência e na capacidade empática como recursos analíticos, e não na rigidez do setting, na neutralidade radical e no posicionamento mais distante e racional do psicanalista. Como se, adaptando a clínica e a postura do analista, pudéssemos nos aproximar da loucura e dos núcleos psicóticos de nossos pacientes. Para isso, no entanto, provavelmente precisaríamos estar mais íntimos desses núcleos em nós mesmos. É possível que esse seja o maior desafio da clínica psicanalítica contemporânea: a possibilidade de usar a parte menos neurótica de nosso psiquismo, menos controlada pelo Ego e suas defesas, a serviço de, no mínimo, escutar o sofrimento de nossos pacientes de um lugar mais vitalizado. E assim, talvez só assim, exercitar o “sentir com” intensivo.

Esses casos, que aqui chamamos de “limite”, seguindo a denominação de Green (1982)Green, A. (1982). La double limite. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 25, 267-283., são justamente aqueles que nos convocam a repensar as propostas de formação dos analistas e de transmissão da psicanálise. Acreditamos que no campo psicanalítico já dispomos de um rico suporte teórico em relação à análise de pacientes-limite, porém, ainda há uma disponibilidade pouco ampla de pesquisas acerca do espaço de supervisão para os analistas que lidam com os mesmos. Desse modo, indagamos: de que maneira poderíamos pensar o setting de supervisão como aquele em que a transmissão do estilo clínico empático seria possível? Quais os limites do espaço de supervisão e de análise pessoal do analista em supervisão? Apresentaremos, a seguir, algumas ideias e propostas que indicam que o lugar da supervisão não precisa ser o da dissecação do caso ou da mera investigação, mas sim um lugar em que identificações inconscientes e criações compartilhadas possam acontecer.

A supervisão na psicanálise

A formação do psicanalista, como conhecemos, é baseada no tripé composto por estudo teórico, análise pessoal e supervisão. Esta última, objeto principal do nosso artigo, é definida por Laplanche e Pontalis (1976, p. 497)Laplanche, J., & Pontalis, J-B (1976).Vocabulário da psicanálise(2a ed.). Santos, SP: Martins Fontes. como uma “psicanálise conduzida por um analista em formação e da qual presta contas, periodicamente, a um analista experimentado, que o guia na compreensão e direção do tratamento e o ajuda a tomar consciência de sua contratransferência”.

Segundo Roudinesco e Plon (1998)Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., desde o início do movimento psicanalítico, com a primeira escola de formação de psicanalistas criada por Karl Abraham e Max Eitington em 1920 na Alemanha, a supervisão era apontada como fundamental para a transmissão do saber psicanalítico, principalmente de suas técnicas. Para Eitington, o supervisor deveria ser alguém diferente do analista, para evitar que o analista em formação repetisse posturas e técnicas baseadas somente em seu processo analítico. Todavia, para Sándor Ferenczi, o primeiro supervisor deveria ser o próprio analista, para que fosse possível a análise da contratransferência. Com o objetivo de regulamentar a formação do psicanalista, em 1925, no Congresso de Bad-Homburg, a Associação Psicanalítica Internacional determinou que o supervisor não deveria ser o próprio analista (este último, inclusive, passou a ser chamado de analista didata) adotando assim a proposta do Instituto Psicanalítico de Berlim, liderado por Eitingon (Kupermann, 2014Kupermann, D. (2014). Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro, RJ: Revan.).

Durante esse período, em vez de tais regras quebrarem com a idolatria a Freud e criarem relações mais amistosas entre os candidatos, seus analistas, seus professores e seus supervisores, a formação tornou-se, ao contrário, um culto à autoridade, notadamente ao criador da psicanálise. Michael Balint (1954)Balint, M. (1954). Analytic training and training Analysis. The International Journal of Psychoanalysis, 35, 157-162., nesse contexto, afirma que a formação psicanalítica acaba cumprindo a função de incorporar o superego do supervisor no analista, que o dominará em sua vida. Como descrevem Roudinesco e Plon (1998)Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.: “em consequência disso, seus herdeiros [de Freud] passaram a correr o risco de se transformar em discípulos devotos de mestres medíocres, quer por se tomarem por novos profetas, quer por aceitarem em silêncio a esclerose institucional” (p. 18).

Até hoje podemos encontrar nas sociedades de formação a determinação de que um analista só pode ser denominado dessa maneira caso seja submetido a uma análise didática e a um processo de supervisão, tal qual ditado desde 1925. A importância da supervisão é evidente na construção do percurso de um analista: constitui, como vimos, um dos pilares fundamentais da formação. Contudo, apesar de sua essencialidade, não encontramos vasta literatura a respeito do que seria uma supervisão, seus fundamentos, suas regras, seus problemas, seus tipos.

Fazer supervisão, muitas vezes, acaba por ser um momento de descrição de casos a um psicanalista que organizará a sua condução teórica. Via de regra, nas associações psicanalíticas mais tradicionais, o supervisor é aquele que avalia a formação do supervisionando. A exploração contratransferencial é, na maioria das vezes, deixada de lado em prol da exposição da boa conduta clínica. O espaço escolhido para a análise da contratransferência passa a ser, na melhor das hipóteses — isto é, quando temos um analista em formação preocupado com seus pontos cegos — a análise pessoal.

A supervisão na Escola Húngara de Psicanálise

Da mesma maneira que utilizamos amplamente as teorias das relações objetais para tratarmos nossos pacientes difíceis, devemos vasculhar como tais autores pensam a supervisão clínica e a formação do psicanalista. É possível achar tesouros nos discípulos de Ferenczi, como Michael Balint e Vilma Kovács, ambos membros da Sociedade de Psicanálise de Budapeste. Esses achados se encontram principalmente em Kovács, que se debruçou mais diretamente sobre o tema da supervisão em seu texto de 1936Kovács, V. (1936). Training and Control-Analysis. International Journal of Psychoanalysis, 17, 346-354., no qual afirma que o reconhecimento dos afetos na contratransferência é o essencial do ponto de vista da formação.

Segundo Stein (1979/1992)Stein, C. (1992). A supervisão na psicanálise. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1979)., Kovács defende que deveria existir uma espécie de mistura entre análise e supervisão, o que também percebe em Françoise Dolto, que oferecia sessões suplementares para que seus analisandos falassem de seus próprios pacientes. A importância de suas contribuições está no fato de que existe um analista no supervisor, mas também um supervisor no analista, de maneira que cada triângulo candidato-analista--supervisor representa uma rede de significações diferentes, em que suas funções nunca estão claramente determinadas e separadas.

Nas propostas de Kovács e Ferenczi para formação analítica, encontramos um contínuo desejo de produção e troca de conhecimentos. Ferenczi sustenta suas pesquisas referentes à técnica psicanalítica mantendo as bases freudianas, mas com inovações em relação ao setting e à transferência. Desse modo, os membros da Escola Húngara tinham em Ferenczi um incentivo para fazerem o mesmo, “com cada analista buscando também, em seus empreendimentos teóricos e práticos, investigativos, suas próprias lutas e interesses originais, variantes da teoria e da técnica mais clássicas” (Casadore, 2016Casadore, M. M. (2016). A Escola Húngara de psicanálise e sua influência no movimento psicanalítico. Londrina, PR: Eduel. Livro Digital., posição 881). A figura de Ferenczi marca uma posição de liderança que segue a ideia de uma inspiração, e não de uma doutrina a demandar obediência. Como afirma Casadore:

A ideia de uma doutrina ou de um sistema teórico estabelecido a partir de um mestre (como ocorre, por exemplo, com as escolas francesas de psicanálise, que foram denominadas Escola freudiana de Paris e Causa Freudiana, e sua relação com a figura de Jacques Lacan, fundador e idealizador de suas diretrizes e funcionamento) não aparece dessa maneira na Escola Húngara. (posição 1007)

Segundo Soreanu (2018)Soreanu, R. (2018). O estilo epistêmico de Michael Balint. Cadernos de Psicanálise (CPRJ), 40(39), 229-250., os seminários sobre técnica psicanalítica liderados por Kóvacs eram permeados por encontros clínicos e discussões a respeito da contratransferência. Desse modo, escreve a autora, “é também neste contexto que surgem as particularidades do sistema formação húngaro, que fazia da análise da contratransferência do analista ao seu paciente uma parte essencial da formação psicanalítica” (p. 237). O sistema de formação húngaro, portanto, era baseado na crença de que a análise da contratransferência era fundamental para que a análise fosse possível, e que somente o analista do analista poderia promover tal empreitada. Dessa maneira, o primeiro caso do analista em formação era supervisionado pelo seu próprio analista didata, e somente assim seria possível um trabalho aprofundado da contratransferência.

A diferença era norteada a partir da ideia de que haveria casos em que a presença de conteúdos contratransferenciais seriam evidentes e fortes, por remeterem o analista à sua própria história, e casos em que estes conteúdos não seriam tão distintos, pois não possuem relação com suas questões pessoais. Porém, esses esforços não teriam sido suficientes para sanar os problemas e complicações dos processos de supervisão, de forma que “este ‘lugar’ para trabalhar com a contratransferência permaneceu um ideal” (Soreanu, 2018, p. 238). A Escola Húngara se desfez em consequência da ascensão do fascismo na Europa, e encontrou seu fim por volta dos anos de 1930, sendo no exílio que seus principais membros encontraram possibilidades de avançar seus desenvolvimentos teórico-clínicos.

É dentro dessa perspectiva que vislumbramos um caminho bastante promissor na compreensão do espaço da supervisão no contexto da formação analítica, principalmente a partir da tradição ferencziana. Soreanu (2019)Soreanu, R. (2019). Supervision for our times: coutertransference and the rich legacy of the Budapest School. The American Journal of Psychoanalysis. 79(3), 1-23. nos explica que a supervisão ferencziana é aquela que produz um double dreaming ou concentric dreaming, como um sonho dentro de outro, ou um sonho sonhando outro sonho. Podemos compreender essa afirmação como se o analista sonhasse o paciente e o supervisor pudesse sonhar o sonho que o analista tem de seu paciente. Para que isso seja possível, no entanto, a supervisão também precisaria explorar dimensões mais simétricas, pois a hierarquização do processo apenas provocaria uma reconstituição da obediência infantil, da mesma maneira que Ferenczi defende que análise deve conter uma dimensão de maior “horizontalidade”, De acordo com Kupermann (2018)Kupermann, D. (2018).O chiaroscuro da supervisão psicanalítica. In D. Kupermann, & M. L. Moretto (Orgs.), Supervisão: a formação clínica na Psicologia e na Psicanálise (pp. 31-44). São Paulo, SP: Zagodoni., Ferenczi nos ajuda a evitar o risco de realizar supervisões iatrogênicas. De acordo com o autor, o excesso de interpretações por parte do supervisor instituiria uma situação de confusão de línguas, em que este estaria transmitindo o saber analítico no estilo da linguagem da paixão descrita por Ferenczi, ou seja, de modo a parecer onisciente, tendendo a ser intrusivo ao seu supervisionando. Além disso, o excesso de saber e dizer em supervisão tenderiam a produzir um analista que também falaria demais com seu paciente, por meio do que Ferenczi denominou “identificação com agressor”. O supervisor deveria, portanto, evitar toda e qualquer intrusão e ser capaz de transmitir a sensibilidade empática necessária a qualquer escuta psicanalítica.

Reflection Process e Parallel Process

Como já sabemos, a relação entre supervisor e supervisionando é insuficientemente explorada na literatura psicanalítica. Temos poucos constructos específicos relacionados a esse encontro, restando-nos utilizar conceitos psicanalíticos criados para dar conta da relação analítica para compreendermos também o que se passa na supervisão. Contudo, claro, isso deve ser feito com todos os cuidados para que não ocorram confusões, mesmo porque, apesar de ainda estarmos tratando de duas relações interpessoais psicanalíticas, elas têm objetivos diferentes.

Thomas Ogden (2005)Ogden, T. H. (2005). On psychoanalytic supervision. International Journal of Psychoanalysis, 86(5), 1265-1280. admite que o seu trabalho como supervisor possui três níveis de atuação principais: o primeiro nível diz respeito a ajudar o analista a voltar a ser capaz de sonhar a experiência analítica com seu paciente, caso esteja com o processo interrompido; o segundo seria organizar, no setting de supervisão, a cena fictícia sonhada pelo analista do que ocorre nas sessões; e o terceiro seria tornar consciente a relação inconsciente entre supervisor e supervisionando — que estaria sendo reproduzida a partir da relação entre analista e seu paciente.

Essa última função do trabalho do supervisor, segundo Ogden, refere-se ao conceito de reflection process de Harold Searles (1955/1965)Searles, H. (1965). The informational value of the supervisor’s emotional experiences. In H Searles, Collected papers on schizophrenia and related subjects (pp. 157--176). New York, NY: Int. Univ. Press. (Original work published in 1955).. Searles cria esse termo a partir de seu trabalho supervisionando psicanalistas que atendiam casos de esquizofrenia e borderline. Segundo ele, “os processos que estavam ocorrendo atualmente no relacionamento entre paciente e analista eram frequentemente refletidos no relacionamento entre analista e supervisor” (Searles, 1955/1965Searles, H. (1965). The informational value of the supervisor’s emotional experiences. In H Searles, Collected papers on schizophrenia and related subjects (pp. 157--176). New York, NY: Int. Univ. Press. (Original work published in 1955)., p. 157; tradução nossa). Ou seja, as vivências emocionais do supervisor durante o setting de supervisão, podem ser reflexos da situação analítica do supervisionando com seu paciente. Segundo Searles, essas experiências podem ter características contratransferenciais e, como tais, são referentes ao passado desse supervisor e estão vindo à tona em virtude desse supervisionando, advindas do reflection process.

Searles afirma ainda que, segundo sua experiência, essas sensações afetivas se apresentam em menor intensidade do que aquelas experimentadas pelo supervisionando e pelo paciente. Além disso, geralmente são oriundas de conteúdos não verbalizados, seja durante o processo de supervisão, seja no processo de análise do paciente. O autor dá alguns exemplos, inclusive, em que, quando verbaliza sua sensação, recebe de seu supervisionando um retorno como “o que você me diz sentir é exatamente como o paciente me faz sentir”, ou “o que você diz sentir é como o paciente diz sentir em relação a mãe quando era criança” (Searles, 1955/1965Searles, H. (1965). The informational value of the supervisor’s emotional experiences. In H Searles, Collected papers on schizophrenia and related subjects (pp. 157--176). New York, NY: Int. Univ. Press. (Original work published in 1955)., p. 174; tradução nossa).

Apesar de sua teoria ser muito bem aceita na comunidade psicanalítica americana, o termo reflection process foi reformulado pela necessidade de separar de forma mais clara a relação analítica da relação de supervisão. Por isso, poucos anos depois, dois psicólogos do ego, Ekstein e Wallerstein (1958/1972)Ekstein, R., & Wallerstein, R. S. (1972). The teaching and learning of psychotherapy. New York, NY: International Universities Press. (Trabalho original publicado em 1958). reorganizaram o conceito nomeando-o de “parallel process”. Segundo esses autores, o processo de paralelismo entre o que ocorria nos atendimentos e na supervisão deveria beneficiar o paciente e era importante evitar o máximo possível que a discussão fosse centrada no supervisionando. O receio era de que, ao focar em demasiado no supervisionando, fosse criada uma atmosfera persecutória na supervisão.

Segundo Sarnat (2019)Sarnat, J. E. (2019). What’s new in parallel process? The evolution of supervision’s signature phenomenon. The American Journal of Psychoanalysis, 79, 304-328., esse receio era coerente com uma estrutura hierárquica de formação na qual o supervisor ocupava uma posição superegoica de avaliação. Uma supervisão que compreendesse o parallel process focada no supervisionando deveria ser caracterizada pela horizontalidade, pois somente dessa forma o supervisionando apreenderia que o supervisor estava ali com ele, criando uma atmosfera de confiança, sem incorrer na paranoia de tudo saber. Para Sarnat, no entanto, seria somente a partir dos anos 1980, com a emergência das teorias das relações objetais e, mais explicitamente, com as teorias de Winnicott, Ogden e Bion sendo cada vez mais absorvidas nas universidades e instituições psicanalíticas, que teria sido possível compreender a importância da função de holding (Winnicott, 1956/2000Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).) e de continente (Bion, 1962/1966Bion, W. R. (1966). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962).) do supervisor em relação ao seu supervisionando.

Mendelsohn (2012)Mendelsohn, R. (2012). Parallel Process and Projective Identification in Psychoanalytic Supervision. Psychoanalytic Review, 99(3), 297-314. definiu parallel process como um “fenômeno que pode ocorrer na supervisão psicanalítica em que conflitos, impulsos e defesas do paciente são comunicados inconscientemente ao analista, que, então, comunica inconscientemente esse mesmo material para o supervisor” (p. 298). Desse modo, considerar as contribuições da teoria das relações objetais ao setting de supervisão que tem o parallel process como método principal de trabalho tornou a supervisão um dispositivo muito mais pessoal e próximo de uma relação clínica.

Podemos observar a inserção da teoria das relações objetais no processo de supervisão na afirmação de Castellano (2013)Castellano, D. (2013). Trauma Triangles and Parallel Processes: Geometry and the Supervisor/Trainee/Patient Triad, Psychoanalytic Dialogues. The International Journal of Relational Perspectives, 23(6), 720-732., segundo a qual

“supervisor suficientemente bom” é justamente aquele que, como representante parental, deverá sair do lugar de idealização que o supervisionando o coloca e, ao mesmo tempo, promover o amparo e proteção que ele precisa. Este processo de desilusão, segundo a autora, ajudaria o analista a desenvolver seu próprio sentido de ser “bom o suficiente” para seu analisando. (p. 730)

Importante salientar que Castellano denuncia que a estrutura autoritária das instituições psicanalíticas muitas vezes faz colapsar os espaços transicionais de aprendizagem e, através das supervisões, repetem intrusões traumáticas e desmentidos sociais.

Ogden (2005)Ogden, T. H. (2005). On psychoanalytic supervision. International Journal of Psychoanalysis, 86(5), 1265-1280. opta por não utilizar o termo parallel process, pois, segundo ele,

o processo de supervisão é tudo menos paralelo: os dois processos vivem em tensão um com o outro e estão sempre recontextualizando e alterando um ao outro. O relacionamento analítico e o relacionamento de supervisão constituem duas facetas de um único conjunto de relações inconscientes de objetos internos e externos envolvendo supervisor, supervisonando e paciente. (p. 1268; tradução nossa)

A alternância dialética entre os sujeitos implicados no processo de supervisão indicada por Ogden é bastante importante, pois aponta para certa impossibilidade de separação rígida entre os dois settings. Isso ocorre justamente porque o analista, em supervisão, compartilha seu psiquismo e suas angústias com ambos, apesar de não ocupar o mesmo lugar subjetivo. Aquilo com que é difícil de lidar numa díade, é levado à outra díade, e vice-versa. Sarnat (2019)Sarnat, J. E. (2019). What’s new in parallel process? The evolution of supervision’s signature phenomenon. The American Journal of Psychoanalysis, 79, 304-328. entende que, quando temos duas díades relacionais parecidas em termos de atmosfera de confiança e respeito, a tendência é justamente que o paralelismo possa ser transmitido de maneira mais intensa e constante. O problema é justamente que a transmissão ocorrerá dos dois lados: quando algo difícil na relação entre supervisor e analista não consegue ser percebido e verbalizado, a tendência é que se repita na relação entre esse analista e seu paciente também.

Sarnat (2019)Sarnat, J. E. (2019). What’s new in parallel process? The evolution of supervision’s signature phenomenon. The American Journal of Psychoanalysis, 79, 304-328. sublinha que teria ocorrido no campo psicanalítico um retorno à teoria do reflection process de Searles, de maneira que agora é possível que o supervisionando acesse estados primitivos de relação no setting de supervisão, com seu supervisor. Ou seja, pretende-se que o espaço de supervisão se dê em uma atmosfera mais acolhedora e continente, que o supervisor esteja mais apto ao vínculo intersubjetivo e, de maneira horizontal, disponível para que ocorram repetições ou reflexos inconscientes (se usarmos o vocábulo de Searles). Dessa forma, nas supervisões, assistiríamos estados regressivos por parte dos supervisionandos e, em vez de isso indicar qualquer estado psíquico patológico, tratar-se-ia de um importante caminho de entendimento do caso clínico a ser supervisionado.

A técnica da regressão

Os estados regressivos que ocorrem na clínica com os pacientes- -limite são importantes meios de compreensão dos casos. Desde Ferenczi (1931/2011b)Ferenczi, S. (2011b). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (pp. 79-95). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931). já entendemos que, mesmo lidando com adultos, muitas vezes trabalharemos com crianças. Entendemos a regressão como um processo importante na clínica dos casos-limite e temos em Balint o principal autor que nos orienta na organização de uma teoria a respeito de seus fenômenos e manejo clínico. Nos livros A falha básica (1967/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967). e Thrills and Regressions (1959/1987Balint, M. (1987). Thrills and Regressions. Connecticut: International University Press. (Trabalho original publicado em 1959).), encontramos uma organização bastante importante a respeito do fenômeno da regressão, em que Balint, como analista experiente e discípulo de Ferenczi, diferencia a técnica clássica criada por Freud — e aprimorada por seus seguidores — da clínica desenvolvida pela Escola Húngara e, posteriormente, pelos teóricos das relações objetais. Na verdade, contudo, trata-se de uma só psicanálise, porém com mais recursos técnicos de adaptação às necessidades psíquicas do paciente e sua linguagem possível.

Para Balint, os pacientes regridem porque precisam recomeçar, porque é necessário corrigir algo que deu errado, reparar um dano, uma falha. E, para isso, o analista deve estar disponível para que a regressão aconteça de maneira que esse novo vínculo não produza uma repetição igual à que ocorreu no passado do seu paciente, mas um vínculo diferente, para que seja possível um novo começo (Balint, 1967/1993Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967).). Todavia, nem toda regressão produzirá tal efeito, ou seja, será benigna. Desde Ferenczi, era possível observar que alguns pacientes conseguiam estabelecer uma atmosfera de confiança com seu entorno ao regredirem, enquanto outros estabeleciam uma relação toxicômana, na qual tudo que seus analistas faziam era considerado insuficiente. Como, segundo Balint, a regressão é um fenômeno interpessoal, ou seja, tanto analista quanto paciente são responsáveis, sua aposta era de que existiria algo na contratransferência que produziria tal diferença entre os pacientes:

Essa trágica situação possui diversos determinantes. Um é a natureza da regressão, a qual, por sua vez, é determinada pelo caráter do paciente, sua estrutura egoica e sua doença; outro, é a resposta do analista ao paciente, em regressão ou regressivo, preparado por sua técnica, ou seja, por sua contratransferência. (Balint, 1967/1993Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967)., p. 130)

De acordo com Balint, entre as características técnicas mais importantes que o analista precisa observar, seguramente a primeira imprescindível é evitar ao máximo ocupar o lugar de onipotência aos olhos de seu paciente. Pacientes profundamente traumatizados — que sofreram graves falhas no provimento de suas necessidades mais fundamentais de cuidado em momentos cruciais de seu desenvolvimento psíquico — estabelecem relações abismais com seus objetos. Ou seja, são sujeitos que veem seus objetos a partir de uma distância tamanha que somente os desejos e anseios destes importam. São pacientes obedientes e submissos, que justamente tentarão repetir tal relação com seus analistas e solicitarão inconscientemente que eles ocupem o lugar de onipotentes e poderosos. É indispensável, portanto, que os analistas não correspondam a esse chamado, atentando-se sempre para suas próprias tendências narcísicas e inseguranças contratransferenciais.

O paciente espera e pede de seu analista promessas e garantias e o analista, por sua vez, vê-se tentado a ocupar o lugar de quem conseguirá atender a tais demandas. Essa é a armadilha narcísica mais importante a se considerar nesses casos, pois é exatamente no lugar de onipotência que o analista poderá produzir a chamada regressão maligna, ou seja, a relação toxicômana dentro da análise. O analista onipotente e onisciente mantém e amplia o abismo e, consequentemente, cria uma relação de dependência com o paciente, em que ele acaba por manter-se numa situação de desigualdade traumática. Assim, analista como adulto e paciente infantil não conseguem se comunicar: linguagem da paixão e linguagem da ternura apenas se confundem. O analista, em vez de se adaptar à criança em seu paciente, força o paciente a adaptar-se a ele, numa constante reatualização da cena traumática.

Ao contrário, ao perceber essa tendência e evita se colocar em tal lugar de onipotência e poder, o analista entende que deve ser menos invasivo e mais substância primária. A regressão benigna “[...] pressupõe um entorno que aceite e consinta em carregar o paciente, como a terra ou a água sustenta e carrega um homem que apoia seu peso nelas” (Balint, 1967/1993Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967)., p. 134). Ou seja, a principal diferença, como entendemos, é a demanda que o paciente faz do entorno e a maneira como esse entorno responde. O paciente em regressão maligna demandará gratificações pulsionais constantes do analista; já o paciente em regressão benigna, demandará o reconhecimento de suas necessidades, um ajuste adaptativo do entorno, sem fazer grandes exigências ao analista. Esse diagnóstico diferencial, como aponta Balint, organizará a atitude do analista, propondo que sua postura oriente de que maneira a regressão poderá ser conduzida intersubjetivamente.

O principal cuidado para que a regressão benigna ocorra é propor, sempre que for viável, uma relação baseada no mínimo de desigualdade possível, o que evitaria a ampliação do abismo: “[...] quanto mais o analista puder reduzir a desigualdade entre seu paciente e ele e quanto menos importuno e comum puder permanecer aos olhos de seu paciente, maiores as oportunidades de uma forma benigna de regressão” (p. 159). Nesse sentido, o analista deve estar despido de suas próprias exigências, não impondo ao seu paciente a necessidade de que ele corresponda às suas expectativas e anseios interpretativos, já que o paciente regredido não pode compreender sua linguagem edípica racional e, muitas vezes, excessivamente intelectualizada.

O analista que trabalha com casos-limite, com pacientes que regridem ao nível da falha básica, deve ser mais tolerante ao sofrimento e suportar a impotência diante dele. Somos muitas vezes compelidos a tentar buscar amenizar tal sofrimento, talvez pela dor que nos cause quando sentimos com eles. No entanto, quando compreendemos o argumento de Balint, é exatamente nesse ponto que precisamos cuidar para não produzir um vínculo tóxico, iatrogênico, com nosso paciente. Por fim, como vimos, a regressão benigna tem por conclusão o que Balint chama de “novo começo”, que seria uma nova forma de existência, possibilitada justamente por essa atitude diferenciada do analista, em que o paciente consegue estabelecer uma relação mais satisfatória com seu entorno. Esse novo começo, ou nova descoberta, é caracterizado nos exemplos clínicos trazidos por Balint como algo da ordem de um comportamento livre, criativo e relaxado, como se nessa relação fosse possível então, pela primeira vez, uma comunicação espontânea.

A regressão em supervisão

Percebemos que pensar a regressão dentro do setting de supervisão não é consenso na literatura entre os autores que encontramos durante a pesquisa, além de causar um estranhamento inicial bastante natural. Por exemplo, Albert Solnit (1970)Solnit, A. J. (1970). Learning from psychoanalytic supervision. International Journal of Psychoanalysis, 51, 359-362. afirma que a supervisão é um dispositivo didático e o supervisor deve ser entendido como objeto de identificação e não transferencial, para, justamente, não encorajar a regressão. Porém, a maioria dos autores que trabalha com o entendimento do parallel process entende que a regressão é inerente ao vínculo de supervisão e seria diferente da regressão que vemos no setting clínico (Yerushalmi, 2014).

De acordo com Sarnat (1998)Sarnat, J. E. (1998). Rethinking the role of regressive experience in psychoanalytic supervision. Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 26, 529-543., a regressão em supervisão poderia aparecer de maneiras diferentes, por exemplo: sonhos sobre a supervisão, ou sobre a análise, e do analisando com a supervisão e sonhos com o supervisor; sentimentos intensos ou conflitivos direcionados ao supervisor ou ao paciente; atuações (o que a autora considera uma manifestação de parallel process em supervisão); experiências de alteração de consciência; experiências de dissociação e até mesmo somatizações. A autora considera tais experiências regressivas, pois são consideradas mais primitivas em relação aos modelos mais maduros e organizados de funcionamento. Quando esses fenômenos ocorrem, não significa que os supervisionandos sejam psicóticos ou casos-limite, mas que determinadas questões relativas ao caso estão sendo trazidas para a relação com o supervisor por serem muito difíceis ou até mesmo impossíveis de lidar sozinho.

Considerando que a regressão é um fenômeno clínico, precisamos levar em conta, primeiramente, que o supervisor é um analista. Mais especificamente, o analista que trabalha com a teoria das relações objetais tem, em geral, um lugar mais aberto ao acolhimento continente e ao holding. Essa posição subjetiva, esse self, não pode ser retirável de sua personalidade analítica em prol de um outro lugar, mais didático, que seria o de supervisor. Esse lugar provoca certa abertura à escuta do supervisionando e, consequentemente, a um vínculo transferencial, de confiança e de projeções. Ou até mesmo, como entende Mendelsohn (2012)Mendelsohn, R. (2012). Parallel Process and Projective Identification in Psychoanalytic Supervision. Psychoanalytic Review, 99(3), 297-314., de identificações projetivas que, segundo ele, estão sempre presentes nesses vínculos. Todavia, esse vínculo compreende também um contrato diferente, permeado pela didática, pelo ensino da psicanálise, pelo princípio de realidade e, muitas vezes, por uma hierarquia institucional. Dessa forma, o supervisionando costuma manter, mesmo que em estados regressivos, uma postura de maturidade e sobriedade em que o funcionamento egoico consegue operar em estado organizado.

Yerushalmi (2014)Yerushalmi, H. (2014). On regression and supervision. International Forum of Psychoanalysis, 23(4), 229-237. afirma que a supervisão visa a desenvolver o self analítico e entende que, para isso, o aparecimento de estados regressivos em supervisão são inevitáveis. Mais que isso, a regressão em supervisão é importante para que os analistas em treinamento aprendam a desenvolver a empatia.

Certamente, uma regressão limitada e momentânea é inevitável e até importante para a participação de todas as partes das personalidades dos supervisionando no processo de se relacionar com seus pacientes e com os significados que eles darão para eventos no mundo. Além disso, pode enriquecer a experiência dos supervisionandos com seus pacientes e estabelecer sua empatia (Yerushalmi, 2014, p. 231; tradução nossa). Isso nos faz retornar à famosa questão colocada por Freud a Ferenczi em 1928, na qual o indaga sobre a possibilidade de o tato ser aprendido ou não por analistas iniciantes. De fato, em nossa clínica contemporânea, precisamos nos indagar se temos dispositivos de ensino capazes de formar analistas disponíveis para o trabalho com a regressão. Sabemos, desde Ferenczi, que a análise do próprio analista é essencial neste processo, mas e quando os entrelaçamentos do próprio caso necessitam de um olhar para aquele processo, aquele vínculo intersubjetivo gerado a partir daquele encontro específico?

A resposta, segundo compreendemos alicerçados nesses autores, seria partir do entendimento de que o vínculo de supervisão também gera um encontro intersubjetivo, como vimos, e que, com base nisso, produzem-se compreensões a respeito do caso clínico a ser discutido. Numa supervisão considerada ótima, ou melhor, “numa estrutura de aliança de aprendizagem, a liberdade deve estar garantida para que uma regressão possa acontecer de maneira que se desenvolva uma comunicação inconsciente entre supervisor e supervisionando” (Yerushalmi, 2014, p. 233). No entanto, infelizmente, temos pouca literatura e pesquisas a respeito desses processos em supervisão. Segundo Yerushalmi, isso se justificaria pelo fato de os supervisores não estarem, normalmente, preocupados ou atentos aos processos regressivos de seus supervisionandos, mas sim apenas nos pacientes deles.

Um importante problema que Yerushalmi (2014)Yerushalmi, H. (2014). On regression and supervision. International Forum of Psychoanalysis, 23(4), 229-237. destaca, e que parece ser comum, é que, quando a regressão do supervisionando acontece, alguns supervisores parecem não se responsabilizar pelo fenômeno, causando sérios danos para o processo analítico do paciente. Balint (1967/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967). já afirmava que, no setting clínico, a regressão é um fenômeno intersubjetivo e deve ser tratado pelo analista como tal, responsabilizando-se pelo estado regressivo de seu paciente. Entendemos, concordando com Yerushalmi, que no setting de supervisão devemos pensar da mesma maneira, já que o analista em formação precisa de suporte e holding confiáveis para que possa constituir-se um analista continente para seu paciente.

Um rápido exemplo1 1 Trata-se de caso clínico supervisionado por um de nós.

Numa supervisão a respeito de um de seus primeiros casos de atendimento na faculdade, a analista começa relatando sobre Cristina, sua paciente de trinta e poucos anos, com traços obsessivos e sérias dificuldades de confiar nos seus relacionamentos. A analista conta, com tranquilidade, a história infantil de Cristina, até que chega ao impactante momento em que relata a morte de seu pequeno irmão num acidente. Cristina tinha sete anos e cuidava de seu irmão de apenas três anos durante todo o dia, até que algum adulto chegasse em casa. No dia fatídico, Cristina precisou ferver água e deixou a panela no fogão; o menino puxou o cabo, queimando-se gravemente e morrendo alguns dias depois.

A analista faz o relato de maneira sóbria, porém repete de maneira clara em sua fala, que Cristina havia matado o irmão. Perguntamos se Cristina se sente culpada pela morte do menino, e a analista diz que sim, que Cristina sempre fala que foi ela quem matou o irmão. Apontamos para a analista que esse veredicto também está presente em seu relato em supervisão e ela se assusta. Percebemos que ao longo das sessões em que falou sobre o ocorrido, não discordou do entendimento de culpa da sua paciente e que, apesar de absurdo, acredita concordar com a responsabilidade de Cristina na morte do menino. Tal entendimento e percepção faz a analista cair em um momento regressivo, sentindo-se frágil e chorosa. Ela nos relata um misto de mal-estar — por pensar isso de sua paciente — e de medo, por sempre se responsabilizar por tudo, ser tão neurótica quanto Cristina — ou até mesmo pior.

Interpretamos que, talvez por identificação com Cristina, tenha sido mais simples para as duas recaírem na culpabilidade e na responsabilização, mas que ambas estavam desamparadas diante de um superego muito tirânico e cruel. A analista relata, entre outras coisas, que agora consegue ver que Cristina era apenas uma criança. Concordamos dizendo que ela tinha apenas sete anos, mas com responsabilidades de adulto e que era importante que ela, analista, conseguisse encontrar nas sessões aquela menina abandonada e desamparada. Afinal, de acordo com Ferenczi (1931/2011bFerenczi, S. (2011b). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (pp. 79-95). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931).; 1933/2011c)Ferenczi, S. (2011c). Confusão de línguas entre adultos e a criança. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (pp. 111-121). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933[1932])., uma condição traumática universal é a situação de inversão das posições de cuidado entre a criança em estado de vulnerabilidade e o adulto que deveria se ocupar dela — situação que se aplica bastante bem à relação entre Cristina e sua mãe. A analista confessa então sua dificuldade, mas diz entender a injustiça do seu veredicto. Convidamo-la a entender melhor o ocorrido na sua própria análise e seguimos com as orientações teórico-clínicas do caso.

Essa cena ocorreu há mais ou menos três anos e hoje, referindo-nos aos conceitos de parallel process e de regressão em supervisão, conseguimos compreender melhor como a supervisão do caso de Cristina era particular. O vínculo que existia entre um de nós e a analista em supervisão não era um vínculo simplesmente didático, de professor e aluno, mas um efetivo vínculo transferencial que lhe permitia acesso ao saber inconsciente. Um forte sinal disso é que até hoje, mesmo morando em outro país, essa analista ainda faz supervisão com um de nós. Acreditamos que a partir dessa experiência, bem como de outros encontros de supervisão, a analista tenha sido capaz de reconfigurar determinados limites que a impediam de perceber com sensibilidade a criança de sua paciente. A partir de uma simples pergunta, de um estranhamento na nossa escuta, pudemos acessar uma repetição sintomática característica, sua e de sua paciente, em que se identificavam e atuavam juntas uma prematuração traumática — acompanhada da incorporação da culpabilidade (Cf. Kupermann, 2019Kupermann, D. (2019). Por que Ferenczi? São Paulo, SP: Zagodoni., cap. 3). Hoje compreendemos que, ao revelar a presença no setting de análise da menina Cristina de sete anos, permitimos o surgimento também da menina presente na analista que, sentindo-se segura no vínculo de supervisão, sentiu-se acolhida e perdoada. Dessa maneira, a analista conseguiu, posteriormente, junto com o trabalho da sua análise pessoal, acolher e respeitar a criança de Cristina no espaço analítico que construiu para as duas.

Discussão

As constantes dificuldades com esses casos aparecem nas supervisões e nos indagam, enquanto supervisores, acerca de como agiríamos se fôssemos nós no lugar de nossos supervisionandos. No entanto, talvez, para além disso, devêssemos pensar nos dispositivos que possuímos para construir o self analítico daquele que nos procura para auxiliar nessa caminhada tão intensa de afetos e aprendizados. Não seria mais justo propor-nos a abrir um espaço potencial para que esse encontro promova o amadurecimento do analista em formação, do que constantemente retirá-los de seus lugares e nos colocarmos em troca, dizendo como faríamos ou como eles deveriam fazer?

A supervisão psicanalítica não é somente um processo didático, nem pode ser caracterizada como um processo analítico. Entretanto, existe algo em sua estrutura que mistura um pouco dos dois, principalmente quando estamos pensando na supervisão de casos-limite, em que trabalhamos com a ideia de uma clínica do contemporâneo, atravessada pelo estilo clínico empático. Como analistas, somos convocados a compor uma parte importante da organização psíquica do paciente, em vínculos interpsíquicos muitas vezes desgastantes e de difícil manejo. A respeito desses pacientes, Balint (1967/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967). destaca que é como se eles pudessem ver o que se passa dentro do analista, fazendo-o sentir como se ele soubesse mais a seu respeito do que o nível verbal-consciente permitiria. Nesse sentido, parece natural presumir que as supervisões de tais casos seriam, consequentemente, mais permeadas de fenômenos como parallel ou reflection process e estados regressivos.

Apesar de ser estranho pensar um processo eminentemente clínico como a regressão no setting de supervisão, entendemos ser uma regressão diferente, como defende Yerushalmi: mais controlada, mais dominada pelo princípio de realidade. Esse controle caberia principalmente ao supervisor, que, ao mesmo tempo, deve entender a importância da regressão caso ela ocorra, mas também respeitar seus limites. Pensamos que a melhor forma de delimitar esse fenômeno é circunscrever o aprofundamento da regressão ao ponto em que ela seja fundamental para o processo analítico do paciente — e que qualquer tentativa de ir além disso, por parte do supervisor, poderia ser caracterizado como uma invasão de cunho perverso. Da parte do supervisionando, qualquer tentativa de aprofundamento para além da circunscrição do caso seria uma tentativa de converter o enquadre de supervisão em enquadre analítico. Por esse motivo, cabe aqui indagar: seria possível, então, a transformação desse vínculo em uma análise? Talvez esta decisão caiba somente à dupla.

Esse limite e esse uso da regressão estão esboçados no exemplo trazido acima, quando a analista em supervisão reflete a repetição vivida por Cristina através de seu discurso. Entendemos que teria ocorrido algo da ordem de um reflection process, pois existiram pontos de identificação inconscientes nas histórias pessoais das duas e, na medida em que o lugar da supervisora se instaura como um lugar materno de repetição superegoica, o abismo se impõe e a culpa — tanto de Cristina quanto da analista — se apresenta. Aos olhos da supervisionanda, a supervisora culparia Cristina pela morte do irmão, assim como a responsabilizaria pelo sucesso ou insucesso do caso. A expectativa da supervisionanda parece ser quebrada quando a supervisora não se reconhece nesse lugar, abrindo espaço para uma relação menos vertical e punitiva, e, então, um pouco mais horizontal e relaxada. A possibilidade dessa regressão, que entendemos ter sido da ordem de uma regressão benigna, teve como consequência a chance de uma ruptura de um padrão vincular da supervisionanda para que fosse possível a criação de um novo começo, uma nova relação entre ela e sua supervisora e, consequentemente, entre ela e sua paciente.

Uma questão que pode ser levantada a partir dessa supervisão, é sobre o risco do uso da regressão de maneira narcísica pelo supervisor. Como vimos em Balint (1967/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967)., a regressão maligna é possível principalmente quando, no caso do setting clínico, o analista mantém uma postura onipotente e distante. Curiosamente, é Balint (1948)Balint, M. (1948). On the psycho-analytic training system. The International Journal of Psychoanalysis, 29, 163-173. que também denuncia a formação psicanalítica em seu caráter superegoico, que podemos ver em algumas instituições psicanalíticas até hoje, o que ofereceria um grande problema caso transportássemos essa ideia para o setting de supervisão. O paciente de um analista onipotente e superegoico poderá regredir e produzir estados toxicômanos, como afirma Balint (1967/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1967)., tornando-se dependente e docilmente manipulável, de maneira que só os desejos do outro importam. Questionamos se o supervisor que reproduz tal lugar de onipotência narcísica também não produziria no setting de supervisão regressões malignas com seus supervisionandos, gerando seguidores e meros reprodutores, em vez de analistas autênticos e passíveis de adaptar-se empaticamente às necessidades de seus pacientes.

Contudo, a escassez de literatura a respeito do tema, principalmente a respeito da transmissão e supervisão voltada para a clínica contemporânea, nos coloca ainda muito mais dúvidas e receios do que caminhos traçados. O espaço de supervisão deveria, no entanto, ser mais valorizado por nossos pesquisadores, afinal de contas, constitui parte do tripé que nos sustenta e orienta. Tanto a supervisão individual quanto a realizada em grupo são dispositivos de aprendizado enriquecedores que permitem pensar a clínica para além do estudo teórico e do registro da sessão. Por fim, entendemos que a supervisão é um espaço de troca sempre original, como nos ensina Kupermann (2018)Kupermann, D. (2018).O chiaroscuro da supervisão psicanalítica. In D. Kupermann, & M. L. Moretto (Orgs.), Supervisão: a formação clínica na Psicologia e na Psicanálise (pp. 31-44). São Paulo, SP: Zagodoni., em um encontro privilegiado entre as experiências do supervisor e as vivências do supervisionando, criando um espaço intermediá- rio criativo e sempre potencial.

  • 1
    Trata-se de caso clínico supervisionado por um de nós.

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Editado por

Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Set 2021

Histórico

  • Recebido
    3 Set 2020
  • Aceito
    21 Jan 2021
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