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Testemunhos do vazio: o valor da sublimação na psicanálise

Testimonies of emptiness: the value of sublimation in psychoanalysis

Témoignages du vide: la valeur de la sublimation en psychanalyse

Testimonios de lo vacio: el valor de la sublimación en psicoanálisis

Ao tomar como elemento norteador principal a fecunda discussão de Lacan em seu sétimo seminário sobre as relações entre a sublimação e o vazio, o principal objetivo deste trabalho é articular a sublimação, em sua vertente criacionista, à possibilidade de testemunhar o vazio, tanto na arte como no trabalho analítico. Por meio de uma revisão bibliográfica, primeiramente apresentaremos algumas ideias de Freud e Lacan sobre a sublimação, ressaltando a relação estreita da sublimação com a sexualidade por um lado e com a pulsão de morte e com o vazio, por outro. Após essa exposição teórica e conceitual acerca da sublimação, colocando em evidência sua vertente criacionista, interrogaremos como diversos artistas materializam e testemunham o encontro com o vazio em suas obras, discernindo questões que interessam diretamente à clínica psicanalítica, tais como o amor, a morte e o luto.

Palavras-chave:
Sublimação; psicanálise; arte; vazio


Resumos

By taking Lacan’s fruitful discussion in his seventh seminar on the relationship between sublimation and emptiness as the main guiding element, the main objective of this work is to articulate sublimation, in its creationist strand, to the possibility of witnessing emptiness, both in art as in analytical work. Through a bibliographic review, we will first present some ideas by Freud and Lacan about sublimation, highlighting the close relationship of sublimation with sexuality, on the one hand, and with the death drive and with emptiness, on the other. After this theoretical and conceptual exposition about sublimation, highlighting its creationist dimension, we will question how different artists materialize and witness the encounter with emptiness in their works, discerning issues that directly interest the psychoanalytic clinic, such as love, death, and mourning.

Key words:
Sublimation; psychoanalysis; art; emptiness

En prenant la discussion fructueuse de Lacan dans son septième séminaire sur la relation entre sublimation et vide comme principal élément directeur, l’objectif principal de ce travail est d’articuler la sublimation, dans son volet créationniste, à la possibilité de témoigner le vide, tant dans l’art comme dans le travail analytique. À travers une étude bibliographique, nous présenterons d’abord quelques idées de Freud et Lacan sur la sublimation, mettant en évidence le rapport étroit de la sublimation avec la sexualité d’une part et avec la pulsion de mort et avec le vide d’autre part. Après cet exposé théorique et conceptuel sur la sublimation, mettant en évidence sa dimension créationniste, nous nous interrogerons sur la manière dont différents artistes se matérialisent et témoignent leur rencontre avec le vide dans leurs œuvres, en discernant des questions liées directement à la clinique psychanalytique, comme l’amour, la mort et le deuil.

Mots clés:
Sublimation; psychanalyse; art; vide


Tomando como principal elemento conductor la fructífera discusión de Lacan, en su séptimo seminario sobre la relación entre sublimación y vacuidad, el objetivo principal de este trabajo es articular la sublimación, en su vertiente creacionista, a la posibilidad de presenciar la vacuidad, tanto en el arte como en el trabajo analítico. A través de una revisión bibliográfica, primero presentaremos algunas ideas de Freud y de Lacan sobre la sublimación, destacando la estrecha relación entre la sublimación y la sexualidad, por un lado, y entre la pulsión de muerte y el vacío, por otro. Tras este planteamiento teórico y conceptual sobre la sublimación, resaltando su dimensión creacionista, cuestionaremos cómo diferentes artistas materializan y presencian el encuentro con el vacío en sus obras, discerniendo temas que interesan directamente a la clínica psicoanalítica, como el amor, la muerte y el luto.

Palabras clave:
Sublimación; psicoanálisis; arte; vacío


Introdução

Desde as primeiras referências de Freud à sublimação podemos notar, de maneira latente, seu valor erótico, que se traduz em uma proposta de laço com o outro, fazendo com que esse conceito conquiste uma dimensão ética e estética, tal como trabalhado por Erik Porge (2019)Porge, E. (2019). A sublimação, uma erótica para psicanálise. São Paulo, SP: Aller.. A fim de interrogar o valor clínico e cultural da sublimação, buscamos como recurso principal os possíveis encontros entre a arte e a psicanálise que revigoram nossas questões clínicas e as situam de maneira ainda mais tangível.

Na obra Em torno do vazio, Regnault (2001)Regnault, F. (2001). Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Contracapa. afirma o lugar da arte em não se contentar em adornar e ilustrar a psicanálise, mas sim em propor uma organização em torno do vazio. Tomamos como ponto norteador principal a fecunda discussão de Lacan em seu sétimo seminário sobre as relações entre a sublimação e o vazio. Assim, o objetivo deste trabalho é articular a sublimação, em sua vertente criacionista, à possibilidade de testemunhar o vazio, tanto na arte como no processo analítico.

Num primeiro momento, apresentaremos algumas ideias de Freud e Lacan sobre a sublimação, ressaltando a relação estreita da sublimação com a sexualidade por um lado, e com a pulsão de morte e com o vazio, por outro. Após essa exposição teórica e conceitual acerca da sublimação, colocando em evidência sua vertente criacionista, interrogaremos como diversos artistas materializam e testemunham o encontro com o vazio em suas obras, discernindo questões que interessam diretamente à clínica psicanalítica, tais como o amor, a morte e o luto.

Freud e os impasses da sublimação

Não é nosso objetivo fazer uma reprodução exaustiva das ocorrências do conceito de sublimação na obra de Freud e no ensino de Lacan, mas apontar momentos teóricos que consideramos fundamentais ao trabalho presente. Já é conhecido o fato de que o artigo metapsicológico dedicado à sublimação foi perdido; no entanto, podemos encontrar inúmeras referências dispersas a esse respeito ao longo da obra de Freud.

Nos primeiros escritos de Freud, a sublimação aparece atrelada à fantasia e à transferência, diante do que já podemos inferir a relação entre a sublimação e os laços eróticos. Na “Carta 61” (1897/1996a)Freud, S. (1996a). Carta 61. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. I, pp. 296-297). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1897)., a sublimação tem como objetivo o embelezamento e aprimoramento dos fatos que se transformaram em lembranças. Uma vez que a fantasia é uma estrutura protetora, a sublimação teria a função de atenuar o caráter traumático dos acontecimentos.

A ideia de amortecimento e moderação é indicada em “Fragmentos da análise de um caso de histeria” (1905[1901]/1996b)Freud, S. (1996b). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. VII, pp. 13-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905[1901])., quando Freud aproxima a sublimação da transferência. Ele lança mão de uma metáfora editorial para repertoriar dois tipos de transferências que ocorrem na análise. Ao substituir a pessoa do analista por outra, o analisando pode fazê-lo sem grandes alterações em seu conteúdo erótico ou hostil, como reedições ou reimpressões inalteradas. Mas pode fazê-lo igualmente “com mais arte” por meio de “uma moderação de seu conteúdo, uma sublimação”, tornando-se “edições revistas” (Freud, 1905[1901]/1996bFreud, S. (1996b). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. VII, pp. 13-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905[1901])., p. 111). Desse modo, a sublimação amorteceria o caráter erótico e agressivo que a transferência carrega, relacionado às modalidades que Freud, mais tarde em 1915, vai distinguir como transferência negativa e erótica (Freud, 1915[1914]/2018Freud, S. (2018). Observações sobre o amor transferencial. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (pp. 165-182). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915 [1914]).).

O conceito de sublimação ganha seu alcance mais pungente nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2010b)Freud, S. (2010b). Tres ensayos de teoría sexual. In Obras Completas (vol. VII, pp. 109-224). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905)., quando Freud introduz o conceito de pulsão. A sublimação é caracterizada como uma aquisição do período de latência, período em que a criança, na sua condição perverso-polimorfa, atravessa seu desenvolvimento libidinal. Nessa fase, as moções sexuais infantis seriam desviadas, por meio da sublimação, de seu uso propriamente sexual para outros fins. Os importantes empreendimentos culturais, entre os quais se encontram as atividades artísticas, surgem a partir das moções sexuais infantis ou, mais especificamente, às expensas delas (Freud, 1905/2010bFreud, S. (2010b). Tres ensayos de teoría sexual. In Obras Completas (vol. VII, pp. 109-224). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905).). Dessa forma, podemos entender a sexualidade como o grande motor da arte e da vida cultural do homem.

Expressa pela pulsão de saber, a curiosidade infantil em relação à sexualidade leva a criança a desviar a pulsão sexual, isto é, pulsão parcial, de uma satisfação direta e ligada aos orifícios do corpo, em direção a uma intensa atividade investigatória cujo problema inicial é o enigma “de onde vêm os bebês?”, para posteriormente se ocupar de questões relativas à diferença sexual (Freud, 1905/1996bFreud, S. (1996b). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. VII, pp. 13-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).). A partir de 1905, assim, Freud revela as implicações entre a sexualidade, a sublimação e a pulsão de saber.

Ao debater o tema da abstinência sexual em “Moral sexual cultural e nervosismo moderno” (1908/2011)Freud, S. (2011). Moral sexual cultural e nervosismo moderno. In N. Braustein, & B. Fuks, 100 anos de novidade. A Moral sexual cultural e nervosismo moderno de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. (Trabalho original publicado em 1908)., Freud afirma que a capacidade de sublimação só é reservada a uma minoria de pessoas e de forma intermitente. É igualmente impossível sublimar toda quota libidinal da pulsão, da mesma forma que não é possível transformar todo calor em energia mecânica nas máquinas, sendo necessária certa quantidade de satisfação sexual direta, sem a qual o sujeito adoece (Freud, 1908/2011Freud, S. (2011). Moral sexual cultural e nervosismo moderno. In N. Braustein, & B. Fuks, 100 anos de novidade. A Moral sexual cultural e nervosismo moderno de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. (Trabalho original publicado em 1908).). Quando Freud profere suas cinco conferências na Universidade Clark nos EUA, ele encerra sua última exposição chamando atenção para esse elemento inerente à pulsão: sendo seu alvo (Ziel) obter a satisfação, a força da pulsão impede que ela seja totalmente sublimada, mas exige sempre uma parcela de satisfação direta corporal.

O tema da abstinência sexual, em sua relação com a sublimação tam- bém comparece em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910/2015b)Freud, S. (2015b). Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci. In Arte, literatura e os artistas. Obras Incompletas de Sigmund Freud (pp. 69-166). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1910).. A partir de dados biográficos de Leonardo da Vinci, Freud enfatiza a “fria negação da sexualidade” (p. 78) do artista que podemos de- preender de seus escritos de natureza casta (como fábulas sobre animais, contos) e outros escritos que trazem problemas de aparência puramente científica. Sua sexualidade e seus afetos teriam sido convertidos em pulsão de pesquisa, que Freud qualifica como a pulsão dominante da vida psíquica de Leonardo; e, devido à força dessa pulsão, presume-se que ela já agia intensamente em um período remoto de sua infância. Freud considera as duas vias sublimatórias do artista dirigidas à ciência e à arte.

Em “As pulsões e seus destinos” (1915/2014)Freud, S. (2014). As pulsões e seus destinos. In Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte, MG: Autêntica (Trabalho original publicado em 1915). marca-se a peculiaridade da sublimação como um dos destinos — ou desvios — quanto à meta (ou alvo) da pulsão, a satisfação direta. Lembremos que a pulsão é uma força constante cuja aspiração é eliminar a excitação que surgiu em sua fonte, ou seja, no corpo. O que Freud (1915/2014)Freud, S. (2014). As pulsões e seus destinos. In Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte, MG: Autêntica (Trabalho original publicado em 1915). nomeia como “vicissitudes da pulsão”, na verdade são as defesas contra a mesma (Freud, 1916/2015dFreud, S. (2015d). Transitoriedade. In Arte, literatura e os artistas. Obras Incompletas de Sigmund Freud (pp. 221-226). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1916)., p. 35), ou seja, contra sua satisfação direta (Jorge, 2017). A sublimação e o recalque se revelam como os principais destinos pulsionais que tentam evitar a satisfação direta da pulsão. O recalque continuaria lidando com o sexual por meio das satisfações substitutivas, como o sintoma. Segundo Jorge (2000), o recalque lida com a satisfação sexual no domínio do proibido, enquanto a sublimação revela para o sujeito a dimensão do impossível em jogo na satisfação pulsional.

Marco Antonio Coutinho Jorge eleva a sublimação à categoria de “conceito imprescindível” (Jorge, 2000), pois nela “acha-se evidenciado o impossí-vel em jogo na satisfação pulsional” (p. 150); ou seja, ela é “a vicissitude da pulsão que dá a esta seu legítimo estatuto” (p. 154). É necessário ressaltar que a teoria freudiana sobre a sublimação se encontra referida ao sexual, à pulsão sexual, e, mais essencialmente ainda, à ideia de um desvio da satisfação direta dessa pulsão. O autor ainda indica que podemos compreender a ideia de dessexualização, que ocorre no processo de sublimação, levando-se em conta que a sublimação visa a um mais além do objeto sexual, tendo das Ding, o vazio da Coisa, como referência. Assim, faz-se necessário nos voltarmos para a perspectiva lacaniana que elucida as relações da sublimação com a pulsão de morte.

Sublimação e vazio

Para situar o campo da sublimação, Lacan (1959-60/1997)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). estabelece a diferença entre o objeto altamente imaginarizado que comparece na análise, marcado como um ponto de fixação da satisfação pulsional do neurótico e o objeto de coleção, tal como as caixas de fósforos do poeta francês Jacques Prévert. Essa imensa coleção de caixinhas vazias que se encaixavam umas nas outras, formando uma fita, exemplifica o objeto desprovido de utilidade, supérfluo, mas que revela sua coisidade, em outras palavras, a Coisa que subsiste por trás do objeto. Portanto, o interesse do colecionador se volta inteiramente para das Ding e não para a caixa de fósforos em si. Lacan (1959--60/1997)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). ressalta a peculiaridade da palavra Ding, escolhida por Freud: das Ding apresenta-se como avesso ao simbólico, um resto que não se associa, tal como o fazem os significantes nas cadeias inconscientes.

Uma das principais formulações sustentadas por Lacan nesse momento, a propósito da sublimação, é “elevar o objeto à dignidade da Coisa”. A sublimação não se prestaria a representar a Coisa, o objeto perdido, mas a recriar o vazio deixado trazendo à cena a dimensão do que é fundamentalmente irrepresentável.

Em seu texto dedicado à análise da obra-prima da arte escultural “Moisés” de Michelângelo, Freud tenta explicar o deslumbramento que certas obras de arte causam nele, sobretudo as literárias e esculturais, nomeadamente suas favoritas.1 1 Não é anódino que Freud (1904/2010a) tenha comparado a análise à arte da escultura, utilizando-se da analogia de Leonardo da Vinci entre pintura e escultura, segundo a qual o pintor opera per via di porre, e o escultor per via di levare. Freud assimila a experiência analítica ao trabalho do escultor. Na escultura, trata-se de resgatar a forma que está nela encerrada, dos excessos que a encobrem. Conclui que o conteúdo da obra é mais atraente para o espectador do que seus aspectos formais e revela seu encanto pelo vazio que a obra de arte tem em seu âmago: “Algumas das criações artísticas mais extraordinárias e mais irresistíveis permanecem obscuras ao nosso entendimento. Nós as admiramos, sentimo-nos dominados por elas, mas não sabemos dizer o que elas representam” (Freud, 1914/2015cFreud, S. (2015c). O Moisés, de Michelangelo. In Arte, literatura e os artistas. Obras Incompletas de Sigmund Freud (pp. 183-220). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1914). p. 184).

Ainda sobre o lugar central do vazio na arte, Jorge (2009)Jorge, M. A C. (2009). Testemunhos do inconsciente. In M. Lima, & M. A. C. Jorge, (Orgs.), Saber fazer com o real: diálogo entre psicanálise e arte (pp. 41-56). Rio de Janeiro, RJ: Companhia das Letras. afirma que, mesmo no campo das artes, existem formas diferentes de o artista contornar o vazio. O autor cita as obras de Leonardo da Vinci e Edward Hopper como duas maneiras diferentes de indicar algo que excede o espaço imagético de representação na tela. O primeiro artista pinta figuras cujo dedo indicador aponta a ex-sistência de algo além da tela, enquanto Hopper indica, por meio do olhar das figuras retratadas, o lugar de extimidade da Coisa, o vazio central simultaneamente interno e externo à pintura. Ambos convocam a participação do espectador, e seu olhar é direcionado para algo que não pode ser visto. Ainda no tocante ao vazio em sua relação com as artes, o filósofo Georges Didi-Huberman volta-se para a arte minimalista, mais especificamente aos cubos do artista Tony Smith, ressaltando a particularidade de um cubo “incluir um vazio sempre potencial (Didi-Huberman, 2010, p. 88).

Assim, Lacan afirma que a arte se “caracteriza por certo modo de organização em torno desse vazio” (Lacan, 1959-60/1997Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., p. 162), ou seja, a arte inclui o vazio diferentemente da religião que se constitui pelo esforço em evitar o vazio e o discurso científico foracluí-lo.

A sublimação marca a relação do homem com o significante, na medida em que para representar o real pelo simbólico é necessário que o modele. A criação, então, consiste em representar a Coisa modelando o significante pelo simbólico em torno do vazio da Coisa, o real. Assim, segundo Lacan (1959--60/1997)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). “o homem é artesão de seus suportes” (p. 150).

Lacan utiliza o apólogo heideggeriano (Heidegger, 1950/2006Heidegger, M. (2006). A Coisa – Conferência de 6/6/1950. In Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1950).) do vaso para explicar como o homem modela o significante. O vaso se caracteriza por ser um elemento primordial da indústria humana e, em sua função de utensílio, podemos afirmar a presença humana em todo lugar onde o encontramos. Assim, sendo destituído de seu lugar de utensílio e tomado por Lacan em sua função significante, ou, mais radicalmente, como “o significante de tudo o que é significante” (Lacan, 1959-60/1997Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., p. 151), o autor estabelece uma analogia entre o vaso e o Outro, tesouro do significante.

O vaso, modelado pelo artesão, cria o vazio e a perspectiva de preenchê-lo. O significante é modelado, assim o vazio e o pleno podem entrar no mundo: “Há uma identidade entre a modelagem do significante e a introdução no real de uma hiância, de um furo” (p. 153).

O ato criador

O escritor austríaco Stefan Zweig se questiona sobre “o mistério da criação artística”, título de sua conferência proferida em 1940 em Buenos Aires. Para ele,

de todos os mistérios do universo, nenhum é mais profundo do que aquele da criação [...]. Cada vez que surge algo que antes não havia existido — quando nasce uma criança, ou da noite para o dia germina uma plantinha — nos dá a sensação de que aconteceu algo sobrenatural. (Zweig, 1940/2015Zweig, S. (2015). El misterio de la creación artística. Madrid, ES: Ediciones Sequitur. (Trabalho original publicado em 1940)., p. 13; tradução nossa)

Curiosamente, o autor já aponta que na criação trata-se de fazer surgir algo novo, que antes não existia, o que guarda afinidade com a ideia nomeada por Lacan (1959-60/1997, p. 153)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). de criação ex-nihilo, expressão latina cujo significado é “do nada”, o que sugere como indissociáveis o nada e o ato de criar.

A fim de compreender o mistério da criação artística, Zweig (1940/2015)Zweig, S. (2015). El misterio de la creación artística. Madrid, ES: Ediciones Sequitur. (Trabalho original publicado em 1940). questiona se seria eficiente reconstituir passo a passo todas as etapas desse processo, tal como é desempenhado pela criminologia, em relação a um assassinato. No caso desse último, a reconstituição ideal seria aquela que o assassino se empenhasse em descrever minuciosamente seu próprio crime. De forma análoga, para a apreensão do ato criador, seria igualmente necessário que o artista testemunhasse todas as etapas de sua criação, desde o que o inspirou no início até o final da execução da obra? Percebemos que essa é uma curiosidade frequente nas entrevistas com artistas, assim como é notório o interesse das pessoas em visitar seus ateliês, como se lá fosse surgir a verdade sobre o ato de criar. Contudo, o que se revela é a impossibilidade de se declarar tudo sobre o ato criador.

Romildo do Rêgo Barros (2012)Barros, R. R. (2012). Criação e sublimação. Latusa 1(1), 34-56. afirma que o objeto criado estará sempre atrelado ao gesto inaugural, sem o qual volta a tornar-se um objeto comum do campo dos bens, um utensílio. A propósito da Fonte, de R. Mtt (pseudônimo de Marcel Duchamp), Barros (2012)Barros, R. R. (2012). Criação e sublimação. Latusa 1(1), 34-56. propõe que a obra volta imediatamente a ser um mictório se for excluído o ato de Duchamp. Assim, quando olhamos tal obra, é necessário que estejamos implicados na reatualização do gesto criador de Duchamp, sem o qual não daremos à obra seu verdadeiro alcance. Assim, a criação sublimatória não se limitaria a um resultado, ao objeto final que foi criado, mas relaciona-se ao próprio ato. Isso nos autoriza a falar de criação como ato — o ato criador —, e aproximá-la da sublimação.

Dessa maneira, a proposta de Marcel Duchamp acerca dos ready-mades é a de tomar um objeto cotidiano já existente e dar a ele um novo estatuto, fazer dele Outra Coisa. A criação não está necessariamente atrelada à con-fecção artesanal do objeto pelas mãos de um artista dotado de talento, mas, em última instância, refere-se à capacidade do artista em empreender um novo arranjo dos significantes existentes no mundo. Tal qual o sujeito em análise, que promove um novo arranjo de seus significantes primordiais, reconstruindo uma nova história.

Lacan relaciona a criação com a possibilidade de o objeto representar o vazio da Coisa. Esta é velada, representada sempre por outra coisa, a partir de seus reachados. Assim, o campo da sublimação se delimita pelo objeto reencontrado, conforme explicita Lacan (1959-60/1997)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).:

Esse objeto, não nos é dito que ele tenha sido realmente perdido. O objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido perdido é a consequência disso — mas só-depois. E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados. (p. 149)

A Coisa se traduz como aquilo que nunca possuímos ou representamos, mas que se repete em seu vazio. John Rajchman (1993)Rajchman, J. (1993). Eros e Verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. nos recorda com Freud que nossas histórias se constituem sob uma perda fundamental a qual reencontramos na posteridade. É somente a partir desse reencontro que a perda se transforma e se constitui como tal. O reencontro afirma, retroativamente, a perda e revela o abismo que há entre o objeto esperado e aquele obtido. Lacan toma a célebre frase de Picasso “Eu não procuro, acho” para descrever o que está em jogo na sublimação: o achar é anterior ao procurar. Dessa maneira, achar algo sem procurar previamente inclui o elemento surpresa, de encontro com o inesperado, como demonstra a surpresa do artista diante da própria obra e do ato criador.

Em seu breve e luminoso artigo “O ato criador” (1965/2002), Marcel Duchamp introduz a noção de coeficiente artístico que, segundo ele, se encontra presente em toda obra de arte. O coeficiente artístico é a diferença entre o que o artista intencionou realizar na obra e o que realizou de fato. Tal proposição aritmética revela não só que algo permanece como impossível de ser expresso na obra de arte, malgrado as intenções do artista, como também que algo é expresso de forma não intencional, causando surpresa ao próprio artista. Percebe-se aqui a importância da dimensão do acaso — do real, do encontro tíquico que ex-siste a qualquer sentido possível presente na criação artística e na análise.

Ao se referir ao artista como um ser “mediúnico”, Marcel Duchamp (1965/2002)Duchamp, M. (2002). O ato criador. In G. Battcock, A nova arte (pp. 71-74). São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1965). atribui ao acaso, ao real, o lugar de algo inerente à criação artística. Critica os artistas por eles terem “uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo que deveria acontecer” (p. 26).

Francis Bacon (apud Sylvester, 2007Sylvester, D. (2007). Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo, SP: Cosac Naify.), pintor irlandês, deu igualmente seu testemunho sobre a influência do acaso em sua obra:

Você sabe, no meu caso, toda pintura — e quanto mais velho fico, mais isso é verdade — é fruto do acaso. Bom, eu prevejo em pensamento, prevejo a imagem, mas dificilmente ela será feita como tinha sido prevista. Ela se transforma em decorrência da própria pintura. Eu uso pincéis muito grossos, e por causa disso muitas vezes não sei o que a tinta fará, e ela faz muitas coisas que são muito melhores do que se seguisse estritamente minhas ordens. (p. 16)

Ao delimitar o que não é o eixo do procedimento da psicanálise, Lacan (1967/2003a)Lacan, J. (2003a). Da psicanálise em suas relações com a realidade. In Outros Escritos (pp. 350-358). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1967). afirma que uma análise exclui a possibilidade de aquisição de um conhecimento iluminante ou transformador, obtidos por meio da interpretação do analista. Exclui também qualquer tipo de “orientação de alma” (p. 351), abertura da inteligência ou purificação. Segundo o autor, ao contrário, “ela joga com a não preparação”, com a surpresa, sendo que “o que temos que surpreender é algo cuja incidência original foi marcada como trauma” (p. 352). Assim, podemos aproximar o ato criador do artista e o ato analítico como aqueles que jogam com a surpresa e incluem o vazio e o real no cerne de sua ação.

Testemunhos do vazio

Conforme pondera Shoshana Felman (2000)Felman, S. (2000). Educação e crise ou as vicissitudes do ensino. In A. Nestrovski, & M. Selligman-Silva, Catástrofe e representação (pp. 13-72). São Paulo, SP: Escuta., a prática do testemunho é aplicável a diversos campos tais como Direito e História. Essa prática também é muito utilizada na literatura e cinema contemporâneos,2 2 Hiroshima mon amour (1959), de Alain Resnais e Marguerite Duras, assim como vários filmes da cineasta francesa Agnès Varda são exemplos do uso da narrativa testemunhal no cinema. tanto que a autora sugere o testemunho como a prática discursiva do nosso tempo, nomeado “era dos testemunhos” (p. 18). À ideia de testemunho, articula-se sempre a tentativa de se dizer a verdade de um fato acontecido. Lembremos que Lacan (1969-1970/1992)Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-70). descreve a relação entre saber, verdade e gozo considerando a verdade uma estrutura de ficção, já que só podermos semidizê-la, ou seja, não podemos dizê-la toda.

Já que o testemunho não pode ser delegado a outrem, substituído ou repetido, a autora aponta a solidão inerente ao ato de testemunho. Refere-se a uma experiência única e intransferível. Paradoxalmente, o testemunho não se relaciona apenas ao âmbito do privado, mas contém a promessa de laço com o outro, o que implica a possiblidade de transmissão de alguma coisa que transcende os limites biográficos daquele que testemunha:

Um “testemunho de vida” não é simplesmente um testemunho sobre uma vida privada, mas um ponto de fusão entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos penetrar como uma verdadeira vida. (Felman, 2000, p. 14)

O testemunho se colocaria como uma tentativa de relatar um excesso, ligado ao trauma e que, portanto, escapa à linguagem. Ou seja, o testemunho leva em consideração a própria impossibilidade de tudo se dizer. No âmbito da psicanálise, o passe não seria igualmente uma tentativa de testemunho e transmissão que implica um real impossível de se dizer? É nessa direção que Chawki Azouri (2014)Azouri, C. (2014). Testemunhos de um encontro com o vazio. In A. Didier-Weill (Org.), Nota azul: Freud, Lacan e a arte (pp. 27-32). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. indica que o passe se instaura como uma tentativa de testemunhar o encontro com o vazio no Outro no fim da análise. Apostamos que a própria análise, assim como a arte, oferece ao sujeito uma possibilidade de testemunhar sobre os efeitos traumáticos do encontro com o real.

Arte e espaço vazio

Lacan situa a sublimação em relação a das Ding, ao real, diferentemente da teoria kleiniana e pós-kleiniana, que fazem da sublimação uma função de restauração do corpo materno, tomando a mãe em seu aspecto imaginário. Ele retoma o artigo citado por Melanie Klein intitulado “O espaço vazio”, da analista kleiniana Karin Mikailis, que relata o caso clínico de uma mulher que se queixava da insistência de um espaço vazio nela mesma, que se mostrava impossível de preencher. Depois de casada, sua casa era preenchida por quadros do cunhado, pintor profissional. Um dos quadros é vendido e deixa um espaço vazio na parede. Tomada por angústia, a paciente resolve preencher o espaço vazio, compra tintas de cores o mais próximo possível daquelas utilizadas pelo cunhado. E, ainda que nunca tivesse pintado em toda sua vida, produz uma obra que todos duvidam ser sua, pelo requinte técnico empregado. Melanie Klein vê sua teoria — sobre as relações entre a sublimação e o corpo materno — confirmada nesse relato clínico e dá grande enfoque aos temas pintados pela paciente, para preencher esse espaço vazio, os quais giram em torno do objeto materno. Lacan critica a interpretação kleiniana que privilegia aspectos imaginários e não leva em conta o real que anima a criação. Para ele, o que está em jogo na sublimação é o real de das Ding, em torno do qual a obra é feita.

Podemos perceber, na obra Fantômes, da artista francesa Sophie Calle, uma semelhante relação entre vazio e criação, sendo que, nesse caso, a criação se posiciona do lado do espectador, incitada pela ausência da obra. Em 1989, no Museu de Arte Moderna de Paris, e, em seguida, em 1991, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, alguns quadros foram temporariamente retirados, deixando seu espaço vazio. Sophie Calle pediu a pessoas que estiveram em contato diário com as obras, como guardas e pessoas que trabalhavam nos museus, que descrevessem esses quadros ou os desenhassem.

A artista substitui, portanto, o espaço vazio por essa lembrança, construída pelas pessoas convidadas. De maneira semelhante, em 1990, após o roubo de quadros do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, a artista fotografa essa “colocação em cena involuntária da ausência” (Calle, 2013Calle, S. (2013). Fantômes. Arles, FR: Actes Sud., p. 67; tradução nossa) e, novamente, pede aos funcionários do museu para descreverem as obras ausentes. Quatro anos após o episódio do roubo dos quadros, suas molduras foram devolvidas a seus respectivos lugares, recortando a ausência das telas. Calle convidou visitantes e funcionários, outra vez, a dizerem o que viam dentro das molduras. Diante do vazio, os fantasmas (Fantômes): a fantasia, que se constitui como uma tessitura simbólico-imaginária face ao real traumático (Jorge, 2010), a qual dá a ver — e, por vezes, a ouvir — diante de um objeto que não está lá, mas cumpre sua função de causar o desejo e a angústia. Um participante descreve: “Uma pintura surge, ainda mais forte que sua ausência. Vejo agora melhor este quadro no veludo, que na própria reprodução. Vejo músicos: nós olhamos um quadro silencioso, mas nós os escutamos” (Calle, 2013Calle, S. (2013). Fantômes. Arles, FR: Actes Sud., p. 145; tradução nossa). Um outro visitante relata:

Vejo um quadro que ganhou importância no momento que ele não estava mais lá. Tive um avô maravilhoso e sempre repetia aos meus amigos “vocês deveriam conhecê-lo”. Eles não iam. E então, um dia, recebi uma ligação “Li no jornal que seu avô morreu. Posso passar aí para ver a cadeira onde ele costumava se sentar?”. No minuto mesmo que essa pintura desapareceu, ela se tornou uma obra-prima. (p. 152; tradução nossa)

Outros decidem por manter o vazio inelutável do objeto perdido: “Vejo a ausência de algo desconhecido” (p. 152). Ou: “Vejo uma moldura que mostra uma ausência. Vejo um prazer recusado a todos. Vejo uma falta indescritível. Vejo algo que não posso ver” (p. 146). Ou ainda, outros veem a si mesmos: “Vejo meu reflexo, vejo minha tristeza” (p. 151).

Curiosamente, a maioria dos relatos se inicia por “Eu vejo” ou “Eu não vejo”, apontando a estreita relação entre olhar, vazio e objeto. Nesta mesma via, Georges Didi-Huberman (2010)Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha. São Paulo, SP: Ed. 34. sustenta, a partir do jogo do Fort-Da, descrito por Freud (1920/2010) com a observação da brincadeira de seu neto — o qual joga com o vazio — que, quando aquilo que vemos é suportado por “uma obra de perda”, um fundo de ausência, aquilo nos olha, ocorrendo uma desestabilização da lógica especular imaginária do “eu vejo”. Segundo Didi-Huberman (2010)Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha. São Paulo, SP: Ed. 34.,

quando uma criança pequena, deixada sozinha, considera diante dela os poucos objetos que povoam sua solidão — por exemplo uma boneca, um carretel, um cubo, ou simplesmente o lençol da sua cama — o que ela vê exatamente, ou melhor, como ela vê? Imagino-a na expectativa: ela vê no estupor da espera, sobre o fundo da ausência — racha a criança ao meio e a olha. Algo, enfim, com o qual ela irá fazer uma imagem. (p. 79)

O carretel, um objeto insignificante em si mesmo, só ganha seu sentido dentro do jogo no qual aparece e desaparece. À maneira do Fort-Da, a arte lança mão de imagens que, jogando com o visível e o invisível, desestabilizam o campo especular e inventa lugares para o vazio. Como propõe Claude Rabant (1996/2014)Rabant, C. (2014). O vazio, o enigma In A. Didier-Weill, Nota azul: Freud, Lacan e a arte (pp. 33-40). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. (Trabalho original publicado em 1996)., na arte, trata-se menos de fazer objetos do que criar espaços entre eles.

A morte e a persistência da memória

Maria Angelica Melendi (2017)Melendi, M. A. (2017). Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó. observa a preocupação — até mesmo a obsessão — com a preservação da memória no século XXI, ao contrário do século anterior durante o qual incitava-se o desprezo ao passado, fomentado sobretudo pelos manifestos futuristas.3 3 Refere-se ao movimento artístico e literário que surgiu em 1909 com a publicação do Manifesto Futurista, pelo poeta italiano Filippo Marinetti, na capa do jornal francês Le Figaro. Esse texto incitava o desafio à história e a tradição, portanto, à destruição de museus e bibliotecas (Foster & Krauss, 2004). A autora relata a perplexidade durante sua última viagem à Itália, ao ver placas pintadas em pedra ou bronze que se espalhavam profusamente nas cidades, com os nomes de pessoas assassinadas pelo fascismo, trazendo à superfície visível das ruas as memórias da morte. Nessa mesma perspectiva, Alain Didier-Weill4 4 Observação feita por Alain Didier Weill durante a série de três conferências realizadas por Marco Antonio Coutinho Jorge no Corpo Freudiano Seção Paris, Maison de l’Argentine, outubro de 2017. observa que diante da perda irreparável de um ente querido, o traumatizado não cessa de não esquecer essa pessoa e esse fato, o tempo todo.

Na contramão dessa persistência da memória, lembremos que o recalque se apresenta como o esquecimento em sua radicalidade, na medida em que envolve o deslocamento de um conteúdo de uma instância a outra, do consciente ao inconsciente, tornando-se inacessível para o sujeito (Jorge, 2010). Dessa maneira, questionamos: há um outro destino para a memória que não seja nem um lembrar invasivo do traumatizado nem um recalque implacável?

Pensamos a aproximação entre a arte e a memória que resulta em como cada artista consegue materializar o vazio. Vera Beatriz Siqueira (2009)Siqueira, V. (2009). Iberê Camargo: origem e destino. São Paulo, SP: Cosac Naify. aponta a relação da obra de Iberê Camargo, artista plástico brasileiro, com a memória. De acordo com a autora, Iberê propõe, a partir de sua obra, uma “nova temporalidade”, na medida em que transfigura a memória pela forma estética. O artista narra seu processo de criação a partir da perda:

Lembro do dia em que fui ao cemitério visitar o túmulo de meu pai em Restinga Seca. Era um dia de céu completamente azul, de inverno. O cemitério ficava em uma pequena colina. Estava eu ali em um momento de luto, separação, quando ao longe, de repente, surgiu uma Maria Fumaça. Uma locomotiva à vapor que passava ao longe, deixando uma enorme mancha branca no céu. Aquela mancha branca ficou por um momento naquele azul profundo e logo se dissipou, e eu fiquei ali, pensando. Era um momento poético que passou, mas ao mesmo tempo ficou para mim, para sempre. Como meu pai. (Camargo apud Siqueira, 2009, p. 86)

Em A câmara clara, obra de Roland Barthes publicada pouco depois da morte de sua mãe e pouco antes de sua própria, vemos a relação estabelecida pelo autor entre fotografia, transitoriedade e morte. Para ele, toda fotografia traz em seu cerne um “isso foi”, que representa a passagem de algo que se pôs diante da objetiva da câmera fotográfica e não existe mais como tal, apontando que algo foi perdido. A fotografia, para o autor, traz a evidência da morte e da transitoriedade, apontando sempre para o vazio irremediável do objeto. A verdade da fotografia indica a certeza da morte: “Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo, ela vai morrer. Estremeço [...] Que o sujeito esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe” (Barthes, 2015Barthes, R. (2015). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 81).

O real, impossível de suportar, evidencia sua potência na perda do amor, uma das variantes da castração, segundo Freud. Marco Antonio Coutinho Jorge cria o sintagma “clínica da separação” (2010, p. 160; 2017, p. 220) para declarar a profusão de relatos clínicos da dor face à separação amorosa, o que comprova que esta é “uma das formas mais corriqueiras em que o real da morte marca sua presença na vida” (Jorge, 2017, p. 221). O autor constata que diante da perda do amor, o que se desencadeia é o que já estava sempre ao lado dele: a morte. Na medida em que toda pulsão é, afinal, pulsão de morte, a pulsão sexual se apresenta como a fração da pulsão que foi sexualizada pela linguagem e se encontra sob a égide do princípio de prazer. Tal sexualização funciona como um freio ao empuxo-ao-gozo da pulsão de morte que, quando aparece desfusionada o sujeito se encontra desamparado, sob o império da Coisa. Em outras palavras, a perda do objeto sexual faz o sujeito se encontrar com o vazio da Coisa. Como reencontrar esse vazio da Coisa que subjaz aos objetos eróticos sem que esse encontro produza uma saída melancólica5 5 Em 1917(1915/2010c), Freud diferencia luto e melancolia como duas respostas do sujeito face à perda de um objeto, seja ele um ente querido ou uma abstração: a liberdade, o país, algum ideal. A melancolia refere-se a uma resposta patológica. Ambos têm como efeito a inibição da atividade e um desligamento com o mundo externo; contudo, a melancolia exibe algo que não se encontra no luto: um radical empobrecimento do eu. Freud coloca o luto na condição de um trabalho psíquico que o sujeito tem que realizar. para o sujeito? Como testemunhar esse encontro?

A partir do texto de Sade, Lacan questiona a noção freudiana de pulsão de morte como tendência de retorno ao inanimado, apontando uma face criacionista da mesma. Assim, a pulsão de morte se traduziria como uma “vontade direta de destruição [...] vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante” (Lacan, 1959-60/1997Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., p. 259). A pulsão de morte seria esse tipo de “sublimação criacionista” (p. 260) por meio da qual, estando no terreno da linguagem, lidamos com a dimensão-limite do significante com o real. Nossa aposta é que, pelo viés da criação sublimatória, arte e psicanálise guardam a afinidade de uma posição ética e estética diante do encontro com a Coisa, trazendo a pulsão de morte em sua “função vivificante” (Didier-Weill, 2006Didier-Weill, A. (2006). Por um lugar de insistência. In M. A. C. Jorge, Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro, RJ: Contracapa., p. 113).

O encontro com o real produzido pela separação amorosa é testemunhado por Sophie Calle, em sua obra Douleur exquise (2003), definido pela artista como “dor viva e claramente localizada” (Calle, 2003Calle, S. (2003). Douleur exquise. Arles, FR: Actes Sud., s/p.; tradução nossa). O adjetivo exquis, de difícil tradução, tem as acepções de extraordinário, requintado, fino, delicioso, o que aponta para a importância da dor na economia psíquica do sujeito, como Freud insistiu na sua teorização final sobre o masoquismo em “O problema econômico do masoquismo” (Jorge, 2010).

Nessa obra-testemunho, a artista relata todos os 92 dias transcorridos de sua viagem de estudos no Japão até o marco zero, de seu retorno a Paris, quando viveu o momento mais doloroso de sua vida. Num segundo momento, a artista testemunha a dor de sua separação ao mesmo tempo em que recolhe depoimentos de outras pessoas, orientados pela pergunta: “Quando você mais sofreu?” (Calle, 2003Calle, S. (2003). Douleur exquise. Arles, FR: Actes Sud., s/p.; tradução nossa). A obra é tecida por meio das memórias da dor e pela maneira como cada um consegue dar forma ao va- zio da perda amorosa. Iberê Camargo também ressalta a afinidade entre dor e arte: “Toda obra que tem um significado nasce da dor” (Siqueira, 2009, p. 18), assim como Freud afirma que “o doloroso também pode ser verdadeiro” (Freud, 1916/2015Freud, S. (2015a). O poeta e o fantasiar. In Arte, literatura e os artistas. Obras Incompletas de Sigmund Freud (pp. 53-68). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1908)., p. 222).

O trabalho da artista colombiana Doris Salcedo evoca de forma impres-sionante como o luto, a dor e a ausência se imbricam no testemunho artístico do vazio. Segundo a artista, seu trabalho é impelido pelo desejo de “tornar visível a experiência das vítimas de violência política, mais vulneráveis e anônimas” (Salcedo & Enriquez, 2017Salcedo, D., & Enriquez, M. (2017). Doris Salcedo: the materiality of Mourning. Cambridge, MA: Harvard and museums., p. 7; tradução nossa), não apenas em seu país, mas em todo o mundo. De acordo com Mary Schneider Enriquez (Salcedo, Enriquez, 2017), a artista rompe com a longa história da escultura na qual a memória é traduzida em monumentos. Dessa maneira, Salcedo utiliza um vasto tipo de materiais pessoais pertencentes a testemunhas de ex- trema violência. Seu trabalho se relaciona fortemente com outros artistas da tradição escultural pós-guerra como Christian Boltanski, Eugenio Dittborn, Mona Hautom e Rachel Whiteread, os quais também evocam em suas cria- ções os temas da memória, luto e opressão (Salcedo & Enriquez, 2017Salcedo, D., & Enriquez, M. (2017). Doris Salcedo: the materiality of Mourning. Cambridge, MA: Harvard and museums.). As esculturas de Salcedo guardam o caráter narrativo e testemunhal, ainda que não se refiram às suas experiências pessoais, evocando a extimidade própria de seu ato criador. Segundo a artista,

toda peça se inicia com o testemunho de uma vítima cuja experiência é o requisito para a existência do meu trabalho [...] Meu trabalho é baseado em experiências que me faltaram, portanto, é feito de um lugar infamiliar, instável e simultaneamente, estranho e próprio. (p. 7; tradução nossa)

Enriquez (Salcedo & Enriquez, p. 9) observa que o trabalho de Doris Salcedo lança mão de forte presença material — cadeiras, mobílias, roupas, sapatos e até cabelos — para tentar representar o vazio, enunciando o empenho em propor certa “materialidade do luto” por meio da obra. Uma possível moterialidade6 6 Neologismo criado por Lacan para designar a inequívoca condição material da palavra, mot. do luto, a nosso ver, já que este se configura como um trabalho da palavra — da linguagem — no esforço de narrar o impossível de se dizer. A artista diz que trabalha com “narrativas de histórias, precariamente contadas e recontadas, sempre incompletas e fragmentadas”, as quais fazem borda com o impossível: “Impossível é a palavra que define o ato criativo, [...] para mim, trabalhar com arte é trabalhar com o impossível” (p. 11; tradução nossa). O real como o impossível se presentifica em Irreversible witness (Testemunha irreversível) (1993-98), que ainda aponta a inelutável vinculação entre o testemunho e o real — este definido por Jorge (2017)Jorge, M. A C. (2017). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol 3: a prática analítica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. como o “irreversível”,7 7 Comunicação oral na primeira das três conferências realizadas por Marco Antonio Coutinho Jorge no Corpo Freudiano Seção Paris, Maison de l’Argentine, outubro de 2017. diferentemente do simbólico cuja característica principal é a reversibilidade.

Em sua ampla potência criativa, a transitoriedade comparece nas esculturas efêmeras da artista, como em Untitled (2003). Para compor essa obra, elaborada para a oitava edição da Bienal de Istambul, Salcedo utilizou cerca de 1.500 cadeiras, em referência aos conflitos étnicos que marcaram a história da Turquia, assim como a constante violência civil da Colômbia. A obra foi realizada entre três prédios, numa avenida pouco movimentada. A instalação se tornou surpreendente não apenas por sua grandiosidade, mas também pelo fato de ter ocupado um lugar outrora “esquecido, não visto” (Salcedo & Enriquez, 2017Salcedo, D., & Enriquez, M. (2017). Doris Salcedo: the materiality of Mourning. Cambridge, MA: Harvard and museums., p. 82), onde apenas se encontravam lojas de computadores. A artista, assim, recria o espaço urbano, alternando o visível e o invisível.

Figura 1

Figura 2

A morte se insinua de maneira ainda mais pungente em Atrabiliarios (1992--2004). Os sapatos, objetos comumente usados pelas mulheres como atrativos (atrabiliarios), a fim de causar o desejo — tornando-se, eles mesmos, objetos de desejo feminino — convertem-se em anunciadores da morte. Comumente, os sapatos auxiliam na identificação e reconhecimento dos corpos de mulheres assassinadas. Desprovido de seu valor erótico, o sapato usado é inserido em um nicho e só podemos vê-lo, obscurecido, através de um véu — um anteparo, como nomeia Lacan (1964/1998b)Lacan, J. (1998b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). — que media nosso encontro com o objeto em sua máxima potência de horror, tal como a fantasia, que media nosso encontro com o real (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).). Contudo, esse véu, fabricado a partir de pele de animal, é igualmente atravessado pela morte e ausência. Significativamente, em Atrabiliarios, Salcedo nos convoca a olhar através da pele.

Figura 3

Jorge (2010)Jorge, M. A C. (2010). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol 2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. identifica que o próprio processo de análise pode ser identificado com o trabalho de luto, na medida em que “ambos são simbolizações da experiência da perda originária, e na medida, igualmente, em que o luto coloca de forma radical o problema geral do objeto enquanto perdido” (p. 225). Diante do inominável da dor, o trabalho analítico oferece ao analisando possibilidades de construir palavras em torno dela (Jorge, 2010). Tal como na criação sublimatória, constrói-se em torno do vazio, como foi metaforizado por Lacan em seu apólogo do vaso. Alain Didier-Weill (1993)Didier-Weill, A. (1993). Os três silêncios. In A. Didier-Weill (Org.), Fim de uma análise, finalidade da psicanálise (pp. 11-32). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. sintetiza que o trabalho de luto oferece uma outra possibilidade de relação do sujeito com o objeto perdido, através da qual faz com que “o ausente seja suficientemente existente para deixar de ser, segundo após segundo, inesquecível” (p. 15).

Ao resgatar do texto freudiano a concepção de “amar e trabalhar” como os dois novos destinos pulsionais a serem conquistados pelo sujeito no final de análise, Jorge (2017)Jorge, M. A C. (2017). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol 3: a prática analítica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. relaciona o “trabalhar” à sublimação, que assegura um destino pulsional distinto do recalcamento, que opera de maneira “automática e excessiva” (p. 118). Aproxima-se aqui o trabalho de sublimação — em jogo no ato criativo — do trabalho do luto, ambos como um trabalho simbólico face ao encontro com o real decorrente do atravessamento da fantasia. Assim, Alain Didier-Weill (2014)Didier-Weill, A. (2014). O artista e o psicanalista questionados um pelo outro. In A. Didier-Weill (Org.), Nota Azul: Freud, Lacan e a arte (pp. 17-26). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. convoca tanto o analista como o artista na maior responsabilidade de ambos: resistir contra o desfalecimento da palavra. Tal convocação sugere, para nós, a insistência do artista e do analista no trabalho que implica a sustentação do simbólico como maneira de mediação em relação ao horror.

O artista e o analista estão presentes: o valor erótico da sublimação

Lacan (1959-60/1997)Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). aponta o limite do texto de Freud acerca da arte e da sublimação. Para Freud, de acordo com a leitura de Lacan, o resultado final da criação artística implicaria um retorno da obra para o campo dos bens, ou seja, a criação se tornaria mercadoria à qual todos poderiam ter acesso. O autor levanta a questão a partir da afirmação de Freud de que a sublimação permitiria dar às moções pulsionais um destino que se conformaria às exigências da civilização. Ao situar a sublimação no cerne da ética da psicanálise, Lacan afirma que não se trata de amansar as pulsões indomáveis por meio da sublimação, nem de submeter o que é individual à ordem coletiva.

A sublimação conjuga o destino pulsional de um sujeito aos laços sociais que ele pode estabelecer a partir de objetos de arte. Contudo, o laço que se estabelece entre obra e espectador não se funda numa relação de complementaridade e que atenda às exigências do serviço de bens — pautados na ideia de um Bem —, mas a partir do real, em que o singular e o inédito irrompem e algo pode ser transmitido.

A nosso ver, Marina Abramovic expõe uma modalidade de laço semelhante em sua obra The artist is present (2010). De acordo com Klaus BiesenbachBiesenbach, K. (2010). Marina Abramovic: the artist is present. The artist was present. The artist will be present. In K. Biesenbach (Org.), Marina Abramovic. The artist is present (pp. 12-21). New York, NY: The Museum of Modern Art.8 8 Curador geral do Museum of Modern Art de Nova York. (2010), a performance promove um corte em relação aos trabalhos anteriores da artista, extremos e repletos de riscos graves e danos físicos, ainda que possua enorme intensidade na inusitada proposta de permanecer imóvel e em silêncio durante oito horas por dia ao longo de várias semanas.

O nome da obra surgiu numa conversa entre Marina e Biesenbach, que relatava que, quando criança, já amante da arte na Alemanha, entusiasmara-se muito com os convites sob a forma de cartões postais que eram enviados para sua casa, anunciando alguma mostra ou exposição. Os que lhe suscitavam uma excitação ainda maior, eram aqueles que diziam no final “o artista está presente”. Saber que o artista estará na galeria significaria mais, para ele, do que simplesmente ir olhar quadros ou esculturas.

Segundo Abramovic (2017)Abramovic, M. (2017). Pelas paredes. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio., a ideia parte igualmente da perda de dois importantes relacionamentos amorosos (com Ulay e Paolo Canevari) e buscar se centrar no relacionamento com o público, inventando uma modalidade inédita de laço que tenta contornar e incluir a impossibilidade da relação sexual. A performance A artista está presente (2010) repete alguns elementos de Nightsea crossing (1985), na qual Marina e Ulay se sentariam em duas cadeiras, dispostas em lados opostos de uma mesa e ali permaneceriam por horas, olhando-se. Só que em A artista está presente Abramovic estaria sozinha. “Sozinha com o público”, segundo ela mesma (2017, p. 350).

Figura 4

M. D. Magno (1983)Magno, M. D. (1983). O Pato lógico. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra. destaca a singular característica da análise de o paciente estar numa posição nem só, nem acompanhado — quer dizer, o analisando não fala sozinho. Lacan (1956-57/1995) já ressaltara que é impossível falar sozinho, é sempre ao Outro que se dirige — mas nem por isso ele está sendo acompanhado pelo analista. Não há relação entre os dois, ainda que algumas modalidades de tratamento se fundamentem no logro imaginário, denegando tal impossibilidade. O analista, a partir da transferência coloca em cena que “não há relação sexual” (Lacan, 1973/2003bLacan, J. (2003b). O aturdito. In Outros Escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 454), na medida em que o próprio dispositivo analítico apresenta esta impossibilidade através do interdito da regra da abstinência, declarada por Freud.

A obra A artista está presente torna-se resultado do encontro, sempre inédito, entre artista e público. Afirma-se um lugar da artista diferente daquele de um ator munido de um papel preestabelecido, mas abre a via para o imponderável, a não preparação e o imprevisível que surgirá do encontro com o espectador,9 9 Desde os anos 1970, Marina Abramovic já ressaltava a importância do acaso em suas obras. Em seu “Manifesto sobre a Arte Vital”, ela coloca como instruções: “Sem ensaios, sem fim previsto, aceitação de riscos e exposição ao acaso” (Abramovic, 2017, p. 109). Marcel Duchamp incorporou igualmente o acaso em sua produção artística, e, quando Le Grand Verre (La mariée..) ao ser transportado teve seu vidro estilhaçado, ele exclamou : “Agora está pronto!” de modo semelhante ao encontro analítico, que coloca em cena, a partir da transferência, algo inédito a cada sessão com cada analisando.

A performance não se encontra pronta de saída, é necessário que o espectador intervenha para construí-la, junto com a artista, que atribui ao espectador um papel ativo. A posição da artista reflete semelhante atividade, na medida em que, voluntariamente, ela se cala, utiliza-se do silêncio.10 10 Em seu “Manifesto da vida de um artista”, Marina Abramovic enumera princípios que orientam a relação do artista com a solidão e o silêncio. Sobre este, a artista adverte que “O artista tem de criar um espaço para o silêncio entrar na sua obra” (Abramovic, 2017, p. 349). Tal como o artista, o analista está presente como objeto, diante do qual o sujeito é convidado a aparecer.

  • 1
    Não é anódino que Freud (1904/2010a)Freud, S. (2010a). Sobre psicoterapia. In Obras Completas (vol. VII, pp. 243-258). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905[1904]). tenha comparado a análise à arte da escultura, utilizando-se da analogia de Leonardo da Vinci entre pintura e escultura, segundo a qual o pintor opera per via di porre, e o escultor per via di levare. Freud assimila a experiência analítica ao trabalho do escultor. Na escultura, trata-se de resgatar a forma que está nela encerrada, dos excessos que a encobrem.
  • 2
    Hiroshima mon amour (1959), de Alain Resnais e Marguerite Duras, assim como vários filmes da cineasta francesa Agnès Varda são exemplos do uso da narrativa testemunhal no cinema.
  • 3
    Refere-se ao movimento artístico e literário que surgiu em 1909 com a publicação do Manifesto Futurista, pelo poeta italiano Filippo Marinetti, na capa do jornal francês Le Figaro. Esse texto incitava o desafio à história e a tradição, portanto, à destruição de museus e bibliotecas (Foster & Krauss, 2004Foster, H., & Krauss, R. (Orgs.). (2004). Art since 1900: 1945 to the present (vol.1). New York, NY: Thames & Hudson.).
  • 4
    Observação feita por Alain Didier Weill durante a série de três conferências realizadas por Marco Antonio Coutinho Jorge no Corpo Freudiano Seção Paris, Maison de l’Argentine, outubro de 2017.
  • 5
    Em 1917(1915/2010c)Freud, S. (2010c). Duelo y melancolia. In Obras Completas (vol. XIV, pp. 235-256).Beunos Aires, AR: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1917[1915])., Freud diferencia luto e melancolia como duas respostas do sujeito face à perda de um objeto, seja ele um ente querido ou uma abstração: a liberdade, o país, algum ideal. A melancolia refere-se a uma resposta patológica. Ambos têm como efeito a inibição da atividade e um desligamento com o mundo externo; contudo, a melancolia exibe algo que não se encontra no luto: um radical empobrecimento do eu. Freud coloca o luto na condição de um trabalho psíquico que o sujeito tem que realizar.
  • 6
    Neologismo criado por Lacan para designar a inequívoca condição material da palavra, mot.
  • 7
    Comunicação oral na primeira das três conferências realizadas por Marco Antonio Coutinho Jorge no Corpo Freudiano Seção Paris, Maison de l’Argentine, outubro de 2017.
  • 8
    Curador geral do Museum of Modern Art de Nova York.
  • 9
    Desde os anos 1970, Marina Abramovic já ressaltava a importância do acaso em suas obras. Em seu “Manifesto sobre a Arte Vital”, ela coloca como instruções: “Sem ensaios, sem fim previsto, aceitação de riscos e exposição ao acaso” (Abramovic, 2017, p. 109). Marcel Duchamp incorporou igualmente o acaso em sua produção artística, e, quando Le Grand Verre (La mariée..) ao ser transportado teve seu vidro estilhaçado, ele exclamou : “Agora está pronto!”
  • 10
    Em seu “Manifesto da vida de um artista”, Marina Abramovic enumera princípios que orientam a relação do artista com a solidão e o silêncio. Sobre este, a artista adverte que “O artista tem de criar um espaço para o silêncio entrar na sua obra” (Abramovic, 2017, p. 349).

Referências

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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Set 2021

Histórico

  • Recebido
    2 Out 2020
  • Revisado
    25 Abr 2021
  • Aceito
    22 Maio 2021
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