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A historiografia francesa a serviço da desconstrução metódica da psicossociologia de Judith Butler

French historiography at the service of methodical deconstruction of Judith Butler‘s psychosociology

Éric Marty é professeur agregé de letras modernas e obteve seu Doctorat d’État em 1996 sobre a obra de Gide. Ensina literatura contemporânea desde 1998 em Paris VII e é membro sênior do Instituto Universitário da França. Seu encontro com Roland Barthes em 1976, como ele mesmo relata em seu livro “Roland Barthes, le métier d’écrire”, foi decisivo para sua orientação intelectual. “Le sexe des modernes” nasceu destinado a se tornar um clássico. Quando afirmo isso, não se trata de pura retórica. A erudição de seu autor corta o fôlego do leitor. A agilidade que demonstra ao atravessar a obra de diversos autores da modernidade francesa — que se popularizou nos Estados Unidos por meio da alcunha de “French Theory” — sem jamais se abandonar a análises superficiais, já seria motivo suficiente para admirar essa obra. Porém, não se trata apenas de uma revisão competente desta literatura. Éric Marty abraça um projeto de exame crítico da apropriação indevida, pelo pensamento sociológico americano, de autores tais como Jacques Lacan, Roland Barthes, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel FoucaultFoucault, M. (2018). Histoire de la sexualité 4. Les Aveux de la chair. Éditon établie par Fréderic Gros, Bibliothèque des Histoires NRF. Paris, FR: Gallimard., à serviço da ideologia de gênero, do ideal psicossociológico de desconstrução e de sua radical redução da lei simbólica à norma social.

O gênero, ele esclarece, é “a última grande mensagem ideológica do Ocidente enviada ao resto do mundo”. Ela abala a crença fundamental no caráter natural da diferença entre os sexos. Essa mensagem instaurou eventualmente, pela força da lei, novas regras morais, normas gerenciais em grandes empresas internacionais e modificou as línguas graças a um vocabulário novo povoado de novas siglas: LGBT+, MtF, além de um novo regime articulatório da expressão oral e escrita inclusiva. As resistências a essas mudanças não devem ser subestimadas pois, é possível observar a permanência — mesmo quando a ideologia de gênero parece reinar — de atitudes, comportamentos, hábitos enraizados que exaltam o caráter natural dos sexos e a hierarquia de gênero, bem como normas sociais baseadas da distinção entre eles.

Segundo seu autor, a ambição deste livro é a de pensar o que gênero quer dizer em sua dupla dimensão: ideológica de nova evidência universal e conceitual de ferramenta epistemológica. Um instrumento ou método para desdobrar um real através de certos significantes e a partir de certos lugares de saber. Este livro responde a ambiguidade do gênero em sua relação à coisa sexual. Seria, talvez, muito simplificador pensar que o gênero — uma vez que apreendemos o sexo como construção social — não faria parte da história geral da diferença sexual. Existe ainda uma outra ambiguidade mais concreta do gênero que explica a segunda parte do título: pensamento do Neutro e teoria do gênero. O gênero é uma invenção americana, expressão evidente da ideologia americana à despeito da pretensão de inspirar-se na French Theory. O vocabulário inglês é indissociável das mensagens relativas ao gênero, ao ponto culminante que uma parte considerável daquilo que se veicula nesse campo dos estudos de gênero ser intraduzível pelas instituições, os espíritos, as mensagens publicitárias e as comunicações intelectualizadas.

O essencial da reflexão se apoia sobre a obra de Judith Butler, pois o autor encontrou nela um dispositivo de pensamento de grande unidade, e muitos instrumentos que já se tornaram clichês, conceitos ready-made, passe par tout tais como: performatividade de gênero, resignificação, agency. Ela retirou os gêneros das ancoragens da tradição contestadora dos campi universitários americanos, por meio de uma reflexão nova sobre o poder e os processos de dominação, através de uma adaptação de Foucault ao contexto americano. A pergunta que Éric Marty se faz é: porque Butler escolheu sustentar um pensamento de gênero essencialmente sociológico e psicosociológico, alimentado de pragmática e filosofia analítica por meio de arsenal teórico antagônico daquele que foi chamado na França, nos anos 1970, de a Teoria? Transferida da Europa para os Estados Unidos, foi preciso uma vigorosa contra-transferência intelectual para desfazer o imenso labirinto de empréstimos aos mais importantes pensadores franceses para bricolar o dispositivo discursivo do conceito de gênero. É preciso abrir sua história a uma contra-história que responda à questão: que fizeram os Modernos?

O volumoso livro de mais de 500 páginas divide-se em quatro partes. A primeira delas aborda o tema do Neutro e do gênero como uma questão de método. No primeiro capítulo trata-se de abordar a ordem simbólica e o campo social. No segundo capítulo, trata-se da história de um conceito: a performatividade e o capítulo três aborda o tema da resignificação. A segunda parte se chama o sexo travestido. O primeiro capítulo trata da Drag Queen e travesti oriental. O segundo é sobre as invenções de Divine e o terceiro aborda Judith e Octavia. Na terceira parte, o autor fala da invenção do Neutro. O primeiro capítulo aborda o tema do Neutro e da perversão. O capítulo dois trata de Derrida e da lei do incesto.

O segundo fio deste livro interroga, justamente, a aventura que embora muito próxima do gênero, tomou a via oposta. O pensamento do Neutro inventa uma categoria que desconstrói radicalmente a diferença sexual e a oposição masculino/feminino: o degré zero de Barthes, o extra-être de Deleuze e a différance de Derrida. Há alguma coisa, portanto que dialoga e ao mesmo tempo diverge entre a Modernidade francesa e os ideólogos do gênero. A obra destes três autores, muito inventiva aliás, mantém uma dependência ambígua com o pensamento lacaniano e seus principais conceitos: phallus, castração, incesto, a lei, o objeto a. Conceitos potentes e aptos ao trabalho de escrita, trabalho de uma singularidade que visa fazer signo implicando um corpo sexuado. De acordo comm o autor, esse é o aspecto que melhor distingue os modernos dos teóricos do gênero, particularmente Judith Butler. Para os Modernos, o pensamento é acima de tudo uma escrita.

O sujeito do Neutro avança em direção à desconstrução da sociedade do medo, muito particularmente, de seu propósito de esconjurar as perversões. O pensamento do Neutro fará da perversão a via real para desconstruir as normas dominantes na questão sexual. Pensar essa categoria não foi apenas um trabalho de historiadores as ideias. Foi um trabalho crítico com respeito a uma nova moral dominante que emana — ainda que isso seja um grande paradoxo do ativismo LGBT como uma versão recente do vigiar e punir. Se houve alguém que rejeitou firmemente apegar-se a uma nova moral, foi Michel Foucault. Ele merecerá uma homenagem muito mais extensa ainda do que os demais.

A quarta parte intitula-se, justamente, Michel Foucault, o pós-europeu, A lei, a norma e o gênero. O primeiro capítulo faz a genealogia de uma ruptura na obra de Foucault. O capítulo 2 retoma “A vontade de saber” como um livro problemático, a redução da teoria à ideologia e, finalmente, as duas vertentes da modernidade. O terceiro capítulo retoma os temas do biopoder e das posições epistemo-políticas contrárias à ordem simbólica. O real sem lei e a hipótese de um Foucault neo-liberal surgem ao final dele. O capítulo quatro sobre a questão sexual é muito mais surpreendente. Nele, Éric Marty nos apresenta sua tese de que Foucault defendeu a política de comunidades monossexuais para enfrentar os efeitos de poder do dispositivo de sexualidade e promover a dessexualização contra os Modernos. Entre eles, ele teria elencado inclusive todos os gêneros: LGBTQI+. A tese central desse livro é arrebatadora. As comunidades monossexuais não são comunidades homossexuais. Não se trata de combater a heteronormatividade como Judith Butler propõe. Trata-se de combater o sexo Rei. Tratava-se de avançar uma política dos prazeres que nos livre do império da sexualização generalizada.

Referências

  • Foucault, M. (2018). Histoire de la sexualité 4. Les Aveux de la chair Éditon établie par Fréderic Gros, Bibliothèque des Histoires NRF. Paris, FR: Gallimard.

Editado por

Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Set 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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