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A substancialização dos conceitos psicanalíticos: efeitos e impasses *1 *1 Trabalho realizado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC), Eixo 2 (Psicanálise, Educação e Cultura), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Baseado na dissertação de título Políticas de Leitura em Psicanálise: Enlaces entre Epistemologia, Ética e Clínica, de autoria de Thiago Pereira da Silva e orientada pela profa. dra. Simone Zanon Moschen, defendida no ano de 2020 na UFRGS, pelo PPG Psicanálise: Clínica e Cultura.

The substantialization of psychoanalytical concepts: effects and impasses

La substantialisation des concepts psychanalitiques: effets et impasses

La sustancialización de los conceptos psicoanalíticos: efectos e impases

Resumos

Este artigo se insere em um debate atual acerca das políticas conceituais do campo lacaniano. Ele procura explorar um dos traços distintivos desse debate: a crítica à progressiva tematização da insuficiência da linguagem e à substancialização dos conceitos psicanalíticos no movimento lacaniano, identificada no trabalho de alguns psicanalistas. Este trabalho, por sua vez, apontaria para outra leitura do texto lacaniano, vetorizada por um horizonte ético-epistemológico distinto, marcadamente antisubstancialista. Destacaremos nisso o lugar de uma política dos usos de três conceitos fundamentais a esse campo: real, gozo e corpo. A partir das articulações propostas, procuraremos apresentar o substancialismo como um obstáculo em potencial para a psicanálise lacaniana, além de explorar algumas de suas possíveis implicações éticas, clínicas e epistemológicas.

Palavras-chave:
Psicanálise; real; gozo; ética


This article is set in a current debate on the conceptual politics of the Lacanian field. It seeks to explore one of the distinctive features of this debate: the critique of the progressive thematization of language insufficiency and the substantialization of psychoanalytical concepts in the Lacanian movement, identified by the work of some psychoanalysts. This work, in turn, points to a different reading of the Lacanian text, vectorized by a distinct ethico-epistemological horizon, markedly anti-substantialist. We highlight the place of a politics of the use of three fundamental concepts in this field: real, jouissance and body. Based on the proposed reflections, we try to present substantialism as a potential obstacle for Lacanian psychoanalysis and explore some of its possible ethical, clinical and epistemological implications.

Key words:
Psychoanalysis; real; jouissance; ethics


Cet article s’inscrit dans un débat actuel sur les politiques conceptuelles du champ lacanien. Il cherche à explorer l’un des traits distinctifs de ce débat : la critique de la thématisation progressive de l’insuffisance du langage et la substantialisation des concepts psychanalytiques dans le mouvement lacanien, identifié dans le travail de certains psychanalystes. Ce travail, à son tour, pointerait vers une autre lecture du texte lacanien, vectorisée par un horizon éthico-épistémologique distinct, nettement anti-substantialiste. En cela, nous mettrons en évidence la place d’une politique d’usage de trois concepts fondamentaux dans ce champ : réel, jouissance et corps. Dans ces articulations, nous présenterons le substantialisme comme un obstacle potentiel à la psychanalyse lacanienne, en plus d’explorer certaines de ses possibles implications éthiques, cliniques et épistémologiques.

Mots clés:
Psychanalyse; réel; jouissance; éthique


Este artículo es parte de un debate actual sobre las políticas conceptuales del campo lacaniano. Busca explorar uno de los rasgos distintivos de este debate: la crítica a la tematización progresiva de la insuficiencia del lenguaje y a la sustancialización de los conceptos psicoanalíticos en el movimiento lacaniano, crítica identificada en el trabajo de algunos psicoanalistas. Este trabajo, por su parte, señalaría otra lectura del texto lacaniano, una lectura vectorizada por un horizonte ético-epistemológico diferente, marcadamente antisustancialista. Destacaremos el lugar de una política de uso de tres conceptos fundamentales en este campo: real, goce y cuerpo. A partir de las articulaciones propuestas, intentaremos presentar el sustancialismo como un potencial obstáculo para el psicoanálisis lacaniano, además de analizar algunas de sus posibles implicaciones éticas, clínicas y epistemológicas.

Palabras clave:
Psicoanalisis; real; goce; ética


Introdução

Talvez sejam poucos os campos que encontram no estabelecimento, na tradução e no trabalho de crítica da obra de um autor um conjunto tão amplo e persistente de problemas quanto o lacaniano. É inegável que a produção de Lacan apresenta no contexto psicanalítico uma dificuldade que lhe é característica, mesmo um de seus traços distintivos. Pela complexidade de suas proposições e pelos efeitos de seu estilo, o psicanalista francês é convencionado, por vezes ao nível do clichê, como um autor difícil. Ademais, o caráter majoritariamente oral de seu ensino, privilegiando o seminário como formato, tanto põe em evidência a processualidade de um pensamento em construção, com suas idas e vindas, imprecisões e ambiguidades, quanto brinda um problema fundamental: o da transcrição e do estabelecimento “oficial” de seu texto. Assim, notaremos que não raro uma história das querelas quanto à legitimidade das “versões” de Lacan se confunde com a própria história do movimento a que ele deu início.

Isso, é claro, não impediu o campo lacaniano de produzir uma série de estabilizações, compartilhadas mesmo entre correntes discordantes. Ao longo dos anos, pelo trabalho de comentário, formação e organização institucional, um conjunto de noções e pressupostos nele se sedimentaram em uma política de leitura que hoje goza de certos efeitos de consenso, ou, ao menos, de um considerável empuxo argumentativo. Empuxo que se faz sentir em contextos como espaços de ensino e de supervisão, exposições clínicas, produções teóricas, jornadas institucionais etc.

Tais efeitos de consenso, longe de autoevidentes, serão visibilizados por um trabalho de análise crítica que tem se intensificado nos últimos anos, especialmente a partir de estudos como os de Eidelsztein (2008Eidelsztein, A. (2008). Por un psicoanálisis no extraterritorial. El rey está desnudo. 1, 75-103.; 2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva. e de Goldenberg (2015Goldenberg, R.(2015). Seminário sobre a obra de Lacan: Debate com Ricardo Goldenberg sobre “Gozo e Significante”. [Arquivo de vídeo].Recuperado em 20 nov. 2018 de: <https://www.youtube.com/results?search_query=goldenberg+usp>.
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; 2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage.. Trabalhos como esses questionam a forma como, a partir de uma obra tão complexa e com enunciados por vezes de difícil coesão entre si, algumas afirmações difundem-se e estabilizam-se como leituras compartilhadas, mesmo evidências primeiras, ao passo que outras, também presentes com frequência nos mesmos textos de base, não são trabalhadas ou sequer reconhecidas da mesma forma. Nesse movimento, veríamos localizada a produção paulatina e sistemática de uma “versão oficial” da posição lacaniana, em um processo que, na opinião dos autores, traria como consequência a surpreendente manufatura de um Lacan talvez muito pouco… lacaniano. Ou seja, uma versão em que se perderia algo que marca o mais interessante e subversivo de sua proposta.1 1 Como dissemos, essa querela não é nova. Já nos anos 80, pouco após a morte de Lacan, autores como Allouch (1986a, 1986b) analisavam as formas como o estabelecimento de seu texto oficial por vezes invertia o sentido de sua proposta e apagava o estilo de sua transmissão — fala de um “Lacan censurado” —, bem como a forma como o lacanismo amalgama o psicanalista francês à figura de Freud, como se suas propostas não diferissem.

Este artigo procura explorar um dos traços distintivos desse debate: a progressiva tematização da insuficiência da linguagem e a substancialização dos conceitos psicanalíticos no movimento lacaniano, identificadas por esse trabalho de crítica. Uma tendência progressiva de valoração teórico-clínica dos limites externos da linguagem, aliada a uma pergunta por aquelas instâncias ou categorias que, no pensamento psicanalítico, abarcariam o que dela se situa mais-além ou mais-aquém.

Entendemos a proposta substancialista como uma política de leitura que se organiza, produz, infere, e/ou se sustenta pela suposição de uma instância “por baixo” ou “por dentro” das coisas sobre as quais opera. Uma instância frequentemente presumida como prévia à leitura mesma, e que aponta para algo como o núcleo essencial de uma positividade em si, não raro assumido como pré-discursivo. O substancialismo, destacamos, é também uma política de resguardo: ela blinda a leitura construída pela suposição dessa existência prévia, que lhe garante.

Para pensarmos esse processo destacaremos o lugar privilegiado de uma política dos usos correntes de três conceitos fundamentais ao campo lacaniano: real, gozo e corpo. A partir das articulações propostas, e em diálogo com os autores supracitados, procuraremos aqui apresentar o substancialismo como um obstáculo em potencial para a psicanálise lacaniana.

Nosso interesse com isso não consistirá em um recenseamento ou na legitimação de modelos de apropriação conceitual da obra lacaniana, mas antes em uma reflexão sobre as implicações éticas e clínicas que acompanham nossas distintas políticas conceituais. Acreditamos que o interesse na constatação desses desencontros está muito menos em afirmar uma “verdade” ou uma “origem” do texto lacaniano do que em analisar as consequências de suas leituras para a atualidade da psicanálise enquanto campo, prática e disciplina. Ou seja, apostamos que esse contraste anima uma reflexão — que preferimos contínua — sobre as formas como a psicanálise constitui suas inteligibilidades clínicas, como ela pensa a especificidade de suas operações, como ela concebe os elementos sobre os quais opera e, por fim, o que ela acaba estabelecendo, de uma forma ou de outra, como o horizonte ético de sua prática.

Linhas de empuxo

Partiremos pela identificação da tendência mencionada. Ainda que não se resuma a essa perspectiva, a problemática apontada encontra considerável expressão nos estudos que enfatizam a produção tardia de Lacan como um ponto de corte com relação a seus aportes anteriores, delimitando um “último ensino”. Nessa perspectiva, assume-se uma visada evolutiva do percurso lacaniano em recortes progressivos: de um primeiro período de estudo do registro imaginário, a um segundo, de primazia do simbólico e, por fim, a um terceiro, de prevalência do real. Deste último participaria uma tematização dos limites da linguagem e uma nova centralidade da noção de gozo como operador conceitual e baliza clínica, intimamente articulado a um foco sobre esse real e sobre o corpo em seu estatuto de corpo vivo. Essa leitura, compartilhada por uma série de autores/as de proeminência no campo lacaniano, não raro apresenta a concepção de gozo como uma instância real, primária, articulada ao corpo vivo e anterior ao significante e ao campo da linguagem, sobre a qual estes operam. Trata-se de um movimento que Dunker (2019, p. 101)Dunker, C. I. L. (2019). The forgetfulness of Ontology and the Metaphysical Tendencies of Contemporary Lacanism. Crisis and Critique, 6(1), 86-113. designa como “realismo” ou “naturalização” do gozo no campo lacaniano, entendido como uma de suas tendências metafísicas. Ela teria sido construída como resposta a certos riscos de um “idealismo do significante” — igualmente metafísico para o autor — por uma “inversão metodológica” deste:

Contra o monismo do significante, a naturalização do gozo e sua incorporação a um sistema ontológico clássico emerge. Há uma substância fixa, apesar de inacessível. Ela não é a natureza, mas o gozo. Do outro lado do dualismo partícula-onda, está o significante, que traduz posições, pontos de vista e perspectivas no gozo, como a forma molda a matéria, como as categorias apreendem a experiência. O excesso de gozo corresponde a um déficit do significante, enquanto a intrusão do real deve ser encarada por processos simbólicos. Há uma única substância e múltiplos pontos de vista, valores ou culturas (significantes-significado) sobre ela. A ontologia é fixa, a epistemologia variável. (Dunker, 2019, p. 101Dunker, C. I. L. (2019). The forgetfulness of Ontology and the Metaphysical Tendencies of Contemporary Lacanism. Crisis and Critique, 6(1), 86-113.; tradução nossa)

Como expoentes desse movimento no lacanismo, Dunker (2019)Dunker, C. I. L. (2019). The forgetfulness of Ontology and the Metaphysical Tendencies of Contemporary Lacanism. Crisis and Critique, 6(1), 86-113. destacará autores como Miller, Pommier, Melman, Lebrun e Soler. Aqui, muito embora enxerguemos a pertinência de uma análise mais minuciosa das particularidades de cada um desses autores, interessa-nos sublinhar o fato de que essa naturalização identificada não é exclusiva a uma ou outra vertente, mas uma posição aparentemente compartilhada por autores entre os quais a disputa doutrinal não apenas é presente como notória, marcando inclusive pontos de dissenção radical na história do movimento lacaniano. Isso nos indica mais uma vez que o problema que aqui posicionamos envolve, antes, a composição de linhas de empuxo, de lógicas e políticas de leitura que operam sem fronteiras institucionais rigidamente delimitadas.

Como limitação necessária, daremos aqui um maior enfoque à produção milleriana, sublinhando que ela não é exclusiva no que situamos como localização de um centro de gravidade substancialista. Agregaremos a ela algumas outras produções mais adiante. Para Miller (2003)Miller, J.-A. (2003). Lo real y el sentido. Buenos Aires, AR: Colección Diva., o “último ensino” de Lacan teria como programa uma espécie de retorno às coisas mesmas, em um enfoque ao nível dos dados imediatos da experiência analítica. Isso lhe permitiria abordar tanto os limites do campo do sentido quanto da lógica em psicanálise, forte até ali, mas que cederia seu lugar à poesia. Encontraremos ecos dessa leitura em Guerra e Souza (2006)Guerra, A. M. C., & Souza, P. V. E. (2006). Reforma psiquiátrica e psicanálise: diálogos possíveis no campo da inserção social. Psicologia para América Latina, 5(5). Recuperado em 13 abr. 2019 de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2006000100007&lng=pt&tlng=pt.>.
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, por exemplo, quando indicam a composição de uma segunda clínica em Lacan, em que:

subjaz a esse sistema de leis um real de dados imediatos que não caberia decifrar. Haveria uma espécie de matéria bruta dos fatos, sem nenhuma estrutura lógica, anterior a esse sistema de ordenação estrutural. Sobre ela se construiria a elucubração do sentido, um saber. Isso teria conduzido Lacan a uma nova fenomenologia, a ordenar um real fora do sentido, prévio àquele que a estrutura confere e que, por isso mesmo, não pode ser definido. (p. 12; grifos nossos)

Notaremos que essa noção de subjacência participará também de um reposicionamento do conceito de inconsciente sugerido por Miller (2012b)Miller, J.-A. (2012b). Um real para o século XXI. Recuperado em 29 out. 2017 de: <https://wapol.org>.
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, que identificará em Lacan a proposição de um inconsciente real, situado por baixo do inconsciente simbólico ordenado pela transferência. Nessa transição, o inconsciente simbólico passaria a ser concebido como defesa em relação ao real que lhe subjaz — e o desmonte das defesas ante esse real comportaria o novo objetivo do trabalho analítico. Esse giro no ensino de Lacan, posterior ao momento de primazia do simbólico, sugeriria a consideração de um “ser prévio” ao sistema significante: “Esse ser prévio é um ser de gozo, quer dizer, um corpo afetado de gozo” (Miller, 2012aMiller, J.-A. (2012a). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, 3(7), 1-49., p. 30). Isso traria como consequência fazer do gozo “uma instância primária a partir da qual situamos o significante e o sujeito” (Miller, 2005Miller, J.-A. (2005) Do caráter primário e real do gozo. In Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar., p. 124; grifos nossos), que seria a “origem do significante” (p. 124). Frente a isso, que afirma o “caráter real do gozo”, o significante e “a própria estrutura do discurso” acabam reduzidos ao semblante (p. 125).

Em “Os seis paradigmas do gozo”, Miller (2012a)Miller, J.-A. (2012a). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, 3(7), 1-49. apontará que o que define a última visada de Lacan sobre o tema “é que ele toma como ponto de partida o gozo como fato. […] O ponto de partida dessa perspectiva não é A relação sexual não existe, mas, pelo contrário, é um . Há gozo.” (p. 41). Lançando mão da concepção de substância gozante, qualificará essa proposição da seguinte maneira: “Há gozo enquanto propriedade de um corpo vivo, ou seja, trata-se de uma definição que relaciona o gozo unicamente ao corpo vivo” (p. 42). Um gozo do corpo sem qualquer relação com o Outro, que conduz ao “Um-totalmente-só” (p. 43), e que se torna manifesta no individualismo contemporâneo. “A demonstração de Lacan é que todo o gozo efetivo, todo gozo material é gozo Uno, quer dizer, gozo do corpo próprio” (p. 44), que “não se dirige ao Outro”(p. 46) e “pertence ao real” (p. 46).

Interessa-nos agora analisar o estatuto desse corpo. Alguns anos antes, Miller (2009b)Miller, J.-A. (2009b). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 6 de maio. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_05_06.html>.
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afirmava:

O corpo, a entidade do corpo, é o que há que supor para que o gozo tenha um suporte.

É o que faz objeção ao conceito do sujeito do significante. É o que conduzirá Lacan a conceitualizar o paciente, na experiência analítica, como um parlêtre — é o que o obriga a voltar a pôr o ser no assunto. O analista não escapa disso; não é sob o pretexto de que faz interpretações que vai tomar-se como um sujeito do significante. Resta algo que se chama sua presença; isso não pode ser simplesmente uma nota de rodapé; ademais, está presente; é que ele também aporta seu corpo. Quando imaginamos que tudo isso são sujeitos do significante, é simples, fazemos análise por telefone (risadas). Isso os faz rir! Vocês são bons parisinos, bons francesinhos. A análise por telefone se pratica. Em nome de Lacan. Sujeito do significante a sujeito do significante. Recuperei alguns daqueles que passaram por esse moinho, e bem! posso dizer-lhes: não tem nenhuma importância, não existe! É uma piada. Ruim. É uma pena! Imaginem o campo que se nos abriria pela internet (risadas). (Miller, 2009bMiller, J.-A. (2009b). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 6 de maio. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_05_06.html>.
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, s/p; tradução nossa)

O corpo, referido como entidade, é pensado a partir de uma modalidade de presença irredutível à dimensão do significante. Ela será concebida como uma instância positiva que faria frente ao caráter negativo da estrutura significante — e concebida claramente nos termos de uma presença física. Para Miller (2009bMiller, J.-A. (2009b). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 6 de maio. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_05_06.html>.
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, s/p; tradução nossa) a noção de substância gozante restitui ao pensamento psicanalítico a “entidade do corpo” e a “unidade do organismo”. Parece-nos válido, portanto, assumir que aqui corpo e organismo se aproximam, bem como intui-se o gozo como uma propriedade desse organismo. Miller frisa: “é necessário que haja corpo no assunto, presença, como se diz. Corpo.” (2009b, s/p; tradução nossa). Mais uma vez, corpo e presença se igualam, e uma presença concreta, tal como justamente nos demonstra o exemplo trazido: a impossibilidade presumida de uma análise à distância, pelo telefone ou pela internet, pela falta de corpo presente.2 2 Curioso notar que o período de produção desse artigo é marcado por uma pandemia (COVID-19) que não apenas demanda o isolamento social da maior parcela possível da população dos países afetados, como também convida o conjunto de psicanalistas a pensarem a possibilidade da análise à distância — e, com isso, a reconsiderar as modalidades de teorização da presença na cena analítica.

Essa matriz positiva também comparecerá quando Miller aponta para a presença ineliminável de um resto de gozo ao término de uma análise. Ele propõe que, ao passo que “o desejo implica uma negatividade essencial”, “pelo contrário, o gozo é uma positividade”, que aceitará variações quantitativas (mais ou menos), mas que será “impossível de negativizar” (Miller, 2009aMiller, J.-A. (2009a). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 8 de abril. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_04_08.html>.
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, s/p, tradução nossa). A positividade figura como característica compartilhada entre corpo e gozo. Com isso, aponta-se que uma nova formulação possível para o final da análise seria a de “reconciliação, de aliança com esse gozo, em que não preside o não — n. ã. o3 3 Non (não) e nom (nome) são homofônicos em francês. —, mas o sim, o sim à contingência que me fez o que sou” (2006b, s/p, tradução nossa) — tomando esse “o que sou” como “a maneira em que isso se goza”. O fim da análise (em seus dois sentidos) reconduziria o sujeito a um gozo impossível de negativizar, com o qual ele poderia reconciliar-se.

Duas ressalvas se fazem importantes quanto à leitura dos excertos recolhidos. A primeira, retomando o que dissemos ao início, é que não consideramos tais proposições como propriedades privadas da perspectiva milleriana. A segunda é de que não se trata de supor aqui que suas produções — da mesma forma que as de Lacan — comporiam algo como uma totalidade inequívoca. Acreditamos que a questão apresenta maior complexidade, certamente. Reconhecemos, por exemplo, que essa vertente conta com um trabalho conceitual sobre a noção de lalangue que poderia participar em momentos de um modelo de anterioridade do gozo não estritamente extralinguístico. Também consideramos o argumento possível de que a anterioridade de que se trata nessas categorias é, antes, uma anterioridade lógica, e que isso teria consequências para a reflexão. Por fim, não descartamos a possibilidade de que a noção de corpo possa em outra parte ser trabalhada por Miller a partir de uma definição mais distanciada do orgânico do que a que sublinhamos.

O que pretendemos demonstrar é que esta matriz de conceitualização, se não endossa inequivocamente uma posição substancialista, ao menos abre as vias para uma prática efetiva de leitura que o seja, além de apresentar em si uma série de insistências que marcam essa lógica. O impacto dessa perspectiva pode ser reconhecido em trabalhos como o de Klautau, Winograd e Souza (2014)Klautau, P., Winograd, M., & Souza, O. (2014). O pré-discursivo na teoria lacaniana. Psicologia USP, 25(2), 115-124., por exemplo, para quem o período final do ensino de Lacan consolidaria “um lugar privilegiado para a dimensão pré-discursiva da experiência humana” (p. 116), em um recuo “em direção aos momentos inaugurais da vida psíquica” (p. 116), anteriores à aquisição da fala. Nessa leitura, informada pela proposta milleriana, os autores argumentam que Lacan teria modificado suas concepções de forma a incluir em seu ensino, e na cena analítica, um campo pré-discursivo de elementos que escapam à rede significante. Uma operação que aproximará real, gozo e corpo como instâncias prévias, e que situará nelas um fundamento para os processos analíticos.

Além disso, tais equalizações se evidenciam com mais força quando se trata de produções em que a psicanálise busca oferecer um diagnóstico da cultura, ou então dialogar com outras áreas do conhecimento. A noção de um gozo primário, por exemplo, comparecerá em trabalhos como os de Hoffmann (2012aHoffmann, C. (2012a). O desejo de servidão voluntária e a violência: O corpo do poder, o corpo social e o corpo do gozo. Estudos de Psicanálise, 38, 45-51.; 2012b)Hoffmann, C. (2012b). O sujeito e seus modos de gozo. Ágora, 15(1), 9-13.. Debruçando-se sobre questões políticas, o autor propõe distinguir o que chama de gozo sexual, introduzido pela linguagem, de “um gozo mais primário que é o do vivo, em que o corpo goza num autismo que franqueia o acesso à ‘fúria destrutiva’” (Hoffmann, 2012bHoffmann, C. (2012b). O sujeito e seus modos de gozo. Ágora, 15(1), 9-13., p. 12). Esse gozo inerente ao corpo vivo, destrutivo, autista, e anterior, será intermediado pela linguagem em uma transposição para o gozo sexual, em uma teoria do processo humanizador: “O simbólico faz mais do que simplesmente metaforizar o real do gozo primário do corpo a corpo, ele transforma esse gozo em pulsão” (Hoffmann, 2012aHoffmann, C. (2012a). O desejo de servidão voluntária e a violência: O corpo do poder, o corpo social e o corpo do gozo. Estudos de Psicanálise, 38, 45-51., p. 49; grifos nossos). Essa proposta teórica lhe permitirá ler fenômenos sociais como a violência e a pornografia enquanto sintomas de um processo de “dessexualização” na cultura, de uma ausência de investimento libidinal no laço social promovida pela demanda capitalista de gozo ilimitado (Hoffmann, 2012bHoffmann, C. (2012b). O sujeito e seus modos de gozo. Ágora, 15(1), 9-13.). Isso abriria espaço para o predomínio da pulsão de morte articulada a esse gozo primário em contextos em que o laço social recua. Da mesma forma, o fenômeno da passagem ao ato será concebido como “uma regressão desse trabalho de subjetivação por um retorno em direção ao real do gozo mortífero” (Hoffmann, 2012aHoffmann, C. (2012a). O desejo de servidão voluntária e a violência: O corpo do poder, o corpo social e o corpo do gozo. Estudos de Psicanálise, 38, 45-51., p. 49).

Também nos debates e colaborações entre psicanálise e estudos de gênero constatamos a tendência substancialista referida. Dufour (2002)Dufour, D.-R. (2002). Il n’y a pas d’indistinction sexuelle. Essaim, 10. 5-24. discute a oferta da cirurgia de afirmação de gênero e a questão da possível “escolha” do sexo nos termos de uma “tentação de escapar do real do sexo como um ideal angélico, cristão e divino” (p. 24; tradução e grifos nossos). Esse “real do sexo” será apresentado da seguinte forma:

Se partimos do real, há dois sexos. Há dois sexos porque há dois textos, duas escrituras genéticas que agora sabemos ler com certeza: XY para o homem e XX para a mulher. Do ponto de vista do real, então, somos de um sexo ou de outro e isto é o real do sexo. É o real porque isto se refere às condições orgânicas do vivente geralmente indiferente a isso que dele se diz. (p. 7; grifos nossos)

Em outra parte, a expressão real do corpo também será empregada por autoras como Julieta Jerusalinsky (2018)Jerusalinsky, J. (2018). A criança diante do enigma da sexualidade em tempos do corpo montado. In R. M. M. Mariotto (Org.), Gênero e sexualidade na infância e adolescência: reflexões psicanalíticas (pp. 85-119). Salvador, BA: Ágalma. como referente ao plano do organismo na sexuação. Esta será por ela entendida “como uma operação de inscrição do sujeito do inconsciente desde a qual se tece uma lógica discursiva que não está determinada pelo real orgânico, mas que, ao mesmo tempo, não é indiferente a esse registro do corpo […].” (p. 103, grifos nossos). Semelhante proposição será feita por Teixeira (2018)Teixeira, M. R. (2018). Aportes teóricos para um estudo sobre sexo, gênero e gozo na psicanálise. In R. M. M. Mariotto (Org.), Gênero e sexualidade na infância e adolescência: reflexões psicanalíticas (pp. 51-71). Salvador, BA: Ágalma., ao afirmar que, para além de sua faceta imaginária, “o corpo enquanto organismo diz respeito ao Real como dado incontornável, que não depende da simbolização, tampouco da imaginarização” (p. 63).

Prosseguindo na temática dos processos de sexuação, veremos em Gomes (2018)Gomes, A. (2018). Diferenças anatômicas entre os sexos: consequências?. In R. M. M. Mariotto (Org.), Gênero e sexualidade na infância e adolescência: reflexões psicanalíticas (pp. 36-50). Salvador, BA: Ágalma. as expressões “Real da diferença sexual anatômica” (p. 41), “real do sexo”(p.44) e “real do corpo” (p. 44) utilizadas em equivalência. Para a autora, será esse real que aportará as questões que condicionarão o “trabalho do inconsciente de significar, cifrar, escrever alguma coisa” (p. 44) no processo de constituição subjetiva sexuada. No entanto, ela afirma, os discursos contemporâneos evidenciariam uma série de “atrapalhações” nas relações do sujeito com esse real, em certo empuxo à abolição da diferença sexual anatômica e suas consequências psíquicas — do que as intervenções nos corpos seriam um possível efeito.

Finalmente, Zucchi e Coelho dos Santos (2006)Zucchi, M. A., & Coelho dos Santos, T. (2006). O fantasma e o real: sobre a desigualdade entre os sexos. Psicologia Clínica, 18(2), 109-123. criticam o que veem como uma tendência, por parte das teorias de gênero e de alguns psicanalistas, “ao apagamento da materialidade do corpo como um referente essencial na determinação da sexualidade” (p. 120), sublinhando a importância da “materialidade real da diferença anatômica entre os sexos” (p. 120) para a constituição subjetiva. Por compor um limite às ficções linguageiras sobre a sexualidade, a anatomia seria para elas “o fundamento da sexuação. O que haveria de mais real” (p. 121).

Pois bem, propomos que podemos ler nesta série de citações a constituição de uma tendência de leitura no interior do movimento lacaniano, em que participam certas equações entre real, gozo e corpo. Estes seriam presumidos como substâncias anteriores, sobre as quais se articularia o discurso com graus variáveis de (in)eficácia. Como vimos, tais modalidades de articulação poderiam ser tomadas, por um lado, no sentido de uma assimilação ou tradução de elementos substanciais em termos de linguagem como sistema representacional, ou, por outro, no de uma “modificação”, sempre precária, dessa substância prévia, decorrente desse processo. Aqui, não apenas apesar de um recurso ao indizível, ao irrepresentável ou à impossibilidade de seu acesso, mas não raro justamente apoiada nisso, operaria a suposição teórica de “algo por baixo” — e que mantém com a linguagem e o discurso uma relação de externalidade e/ou anterioridade presumidas. Isso as insere na tendência à naturalização que Dunker (2019)Dunker, C. I. L. (2019). The forgetfulness of Ontology and the Metaphysical Tendencies of Contemporary Lacanism. Crisis and Critique, 6(1), 86-113. aponta como uma ontologia clássica, ou no que referimos aqui como uma matriz substancialista.

Pontos de oposição

Parece-nos viável, contudo, ler também em Lacan a insistência de um programa epistemológico, clínico e ético consideravelmente distinto. Observemos as seguintes afirmações: a psicanálise trata de fatos de discurso (1972-73), “não há gênese senão de discurso” (p. 9), “não há a mínima realidade pré-discursiva” (p. 36; tradução nossa); “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (1956/1998, p. 277); “a pulsão é um eco no corpo do fato de que há um dizer” (1975-76, p. 6; tradução nossa); “a linguagem é condição do inconsciente” (1969-70, p. 17; tradução nossa); “o significante é a causa do gozo” (1972-73, p. 31; tradução nossa); a captura do inconsciente reside em um motérialisme4 4 Materialismo de palavra (mot). (1975); por fim, a “ideia mesma de matéria” só será “pensável estritamente” como “surgida do material significante, de onde ela encontra seus primeiros exemplos” (1974-75, p. 47; tradução nossa).

Quanto ao conceito de real, veremos que, ainda que conserve em determinados momentos a acepção comum do “concreto”, da substância e do “para-além” da linguagem, ele é também apresentado sistematicamente como impossível lógico-matemático (Lacan, 1971-72Lacan, J. (1971-72). Le séminaire. Livre 19. ... Ou pire. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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); impasse da formalização (Lacan, 1972-73Lacan, J. (1972-73). Le séminaire. Livre 20. Encore. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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); é associado com o número, com a letra matemática e com a estrutura (Lacan, 1972/2003Lacan, J. (2003). O Aturdito. In Outros Escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972).); deliberadamente separado de qualquer referência “corpórea” ou “material”, características da realidade (Lacan, 1971-72Lacan, J. (1971-72). Le séminaire. Livre 19. ... Ou pire. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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, p. 92), assim como diferenciado do biológico:

Não é pelo fato de ser biológico que isso é mais real: isso é fruto da ciência que se chama biológica. O real é outra coisa: […] é aquilo com que vocês se deparam justamente: por não poderem, em matemática, escrever qualquer coisa. (p. 27)

Essa leitura do real lacaniano se distancia decididamente de uma categoria substancial ou imediata. Como impossível lógico-matemático, seu acesso não poderia ser senão pelo simbólico, pois só nele a impossibilidade pode ser estabelecida: “o dito ‘real’, é no e através desse impossível que somente o simbólico define que o acessamos” (Lacan, 1971-72Lacan, J. (1971-72). Le séminaire. Livre 19. ... Ou pire. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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, p. 58, tradução e grifos nossos). Para Lacan, “se existe uma chance de captar algo que se chama o real, não é em outro lugar senão no quadro-negro […]” (Lacan, 1969-70Lacan, J. (1969-70). Le séminaire. Livre 17. L’envers de la psychanalyse. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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, p. 85, tradução nossa).

Autores como Eidelsztein (2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva. e Goldenberg (2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage. têm proposto um trabalho a partir dessas concepções. Nele, os autores não apenas apontam uma tendência do campo lacaniano a frisar as definições mais afeitas a uma matriz substancial, como também sustentam a pertinência teórico-clínica de uma ênfase a esse outro conjunto de definições.

Em uma proposta que toma pelo avesso a tendência apresentada, para essa segunda perspectiva o “caráter primeiro” não poderia ser senão da linguagem, de forma que a esta, o significante, o discurso e o simbólico seriam assumidos como logicamente anteriores ao que quer que se situe como “ser” ou como “substância” na experiência analítica — mesmo o real, o gozo e o corpo. Estes lhe seriam não a origem, mas sim o efeito. Perceberemos nisso, portanto, um paradigma radicalmente antisubstancialista.

Uma leitura que privilegia esse caráter do ensino de Lacan pode ser encontrada não apenas nos autores supracitados, mas também em outros. Por exemplo, Krymkievicz (2018)Krymkievicz, M. (2018). Antiontología Significante. El rey está desnudo, 12, 73-86. argumentará que o estatuto radical da ordem significante na teoria lacaniana introduzirá uma antiontologia. Cassin (2013)Cassin, B. (2013). Jacques el sofista: Lacan, logos y psicoanálisis. Buenos Aires, AR: Manantial., por sua vez, enxerga uma proximidade da proposta lacaniana com o discurso sofístico, na possibilidade de ruptura com a matriz aristotélica de regulação de logos (linguagem, discurso, razão). A essa regulação, proposta como adequação ao ser e suas propriedades, externos à língua, uma discursividade sofístico-analítica faria notar que o discurso do ser (ontologia) se esquece do fato de que ele é, também, um discurso. Para a autora, essa outra discursividade torna manifesta a dimensão radicalmente performativa do ato de linguagem: o discurso é “capaz de produzir um efeito-mundo” (Cassin, 2013Cassin, B. (2013). Jacques el sofista: Lacan, logos y psicoanálisis. Buenos Aires, AR: Manantial., p. 55; tradução nossa).

A recusa à substancialização dos conceitos psicanalíticos também figurará fortemente em trabalhos como o de Beividas e Ravanello (2009)Beividas, W., & Ravanello, T. (2009). Linguagem como alternativa ao aspecto quantitativo em psicanálise. Psicologia & Sociedade, 21(spe), 82-88. e Ravanello, Dunker e Beividas (2017Ravanello, T., Dunker, C. I. L., & Beividas, W. (2017). Uma via indireta para a abordagem do afeto: libido, gozo, pulsão escópica. Tempo psicanalitico, 49(1), 9-36.; 2018)Ravanello, T., Dunker, C. I. L., & Beividas, W. (2018). Para uma Concepção Discursiva dos Afetos: Lacan e a Semiótica Tensiva. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 172-185.. Nesses, encontramos como ponto em comum o projeto de pensar a linguagem como base fundamental para a abordagem dos afetos, do gozo e do problema quantitativo em psicanálise, opondo-se à perspectiva de sua redução a um fundamento substancial. Nessa visada:

a hipótese de bases semióticas para o econômico implica que conceitos como os de gozo e afeto sejam repensados numa matriz não substancialista, na qual a linguagem participa não somente como meio de propagação, mas também como forma de constituição. (Ravanello, Dunker e Beividas, 2017Ravanello, T., Dunker, C. I. L., & Beividas, W. (2017). Uma via indireta para a abordagem do afeto: libido, gozo, pulsão escópica. Tempo psicanalitico, 49(1), 9-36., p. 26)

Para os autores, ainda que talvez possamos ler em momentos da produção de Lacan um aparente “retrocesso” em direção ao substancialismo — especialmente a partir de interpretações de sua obra que sublinham a noção de substância gozante —, esse movimento deveria ser relativizado “em função do maior peso de outras formulações a ele contraditórias” (p. 26). Formulações tais como as que trouxemos acima.

Sua posição questiona uma leitura que se estabelece como certo cânone no lacanismo, para a qual a tese do inconsciente estruturado como uma linguagem teria perdido seu peso paradigmático ao localizar-se como um período na obra de Lacan, ou como apenas um de seus registros (o do simbólico) (Beividas, Ravanello, 2009Beividas, W., & Ravanello, T. (2009). Linguagem como alternativa ao aspecto quantitativo em psicanálise. Psicologia & Sociedade, 21(spe), 82-88.). Os autores destacam o que percebem como perigos desse movimento: “Perdido o lastro paradigmático e relegada a tese a curto momento de ‘namoro’ de Lacan com a linguística e com o estruturalismo, sem algum casamento mais estável, a psicanálise pós-lacaniana corre o risco de estar deserdada epistemologicamente [...].” (p. 86). Nesse movimento arrisca-se a perda de sua especificidade enquanto disciplina e prática. Sem esse lastro paradigmático, segundo os autores, “a psicanálise dificilmente evitará o risco de se ver engolida pelo paradigma concorrente, o das ciências fisiológicas, mormente as neurociências” (p. 86). Isso lhe apresentaria uma escolha forçada:

Ou reata o compromisso teórico-conceptual com o paradigma semiótico, registro do sentido, episteme da linguagem […]; ou então ela não saberá defender-se de sua paulatina diluição numa ‘neuropsicanálise’ (o termo já é pleiteado hoje, aqui e ali), como etapa intermediária a uma neurobiologia final ou fatal. (p. 87)

Implicações ético-clínicas

Sublinhados os riscos epistemológicos do substancialismo, interessa-nos também interrogar algumas de suas possíveis consequências éticas e clínicas. Localizamos uma primeira a partir da contribuição de Eidelsztein (2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva.: se aquilo que assumimos como base dos processos psicanalíticos é um ser anterior, prévio, subjacente e sem estrutura lógica, nos caberia então ordenar a prática analítica de acordo com essa premissa. Assim, se a “causa” é concreta, anterior e subjacente à linguagem, ela sempre seria, de antemão, impossível de dizer, ou mesmo, no limite, de modificar. Extrai-se como possível consequência dessa manobra uma clínica que arrisca tornar-se uma economia resignada do inefável. Se o real é assumido como concreto, substancial, inacessível e imutável, haveria outra direção da cura que não uma proposta adaptativa, apaziguadora?

Os mesmos problemas participariam dos tratamentos do conceito de gozo: “O ser segundo Miller é ser de gozo; e este ser é o da ontologia: sem câmbio, impossível de negativizar, sem outro. […] E como o gozo é e será o que é, há que aliar-se com ele, não resta outra possibilidade” (Eidelsztein, 2015Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva., p. 278; tradução nossa). Aqui, retornamos à expressão “impossível de negativizar” como qualificadora do gozo, que implicaria, como vimos, considerá-lo uma positividade ineliminável. Para Eidelsztein (2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva., assim como para Goldenberg (2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., isso não apenas evidenciaria o enquadre substancial em que esse conceito é pensado, como seria contraditório com os aportes de Lacan.

Os autores destacam o caráter negativo do gozo, baseados primeiramente na seguinte citação: “Mas o que é o gozo? Aí está precisamente o que, pelo momento, se reduz para nós a uma instância negativa: o gozo é o que não serve para nada” (Lacan, 1972-73Lacan, J. (1972-73). Le séminaire. Livre 20. Encore. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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, p. 4; tradução e grifos nossos). Ademais, apontam como sistemático o esforço de Lacan em esvaziar de substância aquilo que concerne ao gozo, mesmo, e talvez especialmente, quando ele o articula ao conceito filosófico de substância — em diálogo com Descartes e Aristóteles (Eidelsztein, 2015Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva., Goldenberg, 2018Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage.). Ao inverso de Miller (2009aMiller, J.-A. (2009a). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 8 de abril. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_04_08.html>.
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; 2009b)Miller, J.-A. (2009b). Cosas de finura en psicoanalisis, lição de 6 de maio. Recuperado em 18 abr. 2020 de: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/curso/2008/09_05_06.html>.
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, para quem a consideração da substância gozante está referida à unidade do organismo, à entidade do corpo, à noção de presença e a uma positividade quantificável, os autores lançam mão de excertos como esse:

Para mensurar o que está envolvido em seus efeitos no gozo, convém estabelecer, ao nível desse termo, certo número de princípios. A saber, que, se nós introduzimos o gozo, é sobre o modo — lógico — daquilo que Aristóteles chama uma οὐσία [ousia], uma substância, ou seja, algo que muito precisamente não pode ser

é assim que ele se exprime em seu livro das Categorias

que não pode ser nem atribuído a um sujeito, nem posto dentro de nenhum sujeito. É algo que não é suscetível de “mais ou de menos”, que não se introduz em nenhum comparativo, em nenhum signo “menor ou maior”, ou até “menor ou igual”. (Lacan 1966-67Lacan, J. (1966-67). Le séminaire. Livre 14. Logique du Fantasme. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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, p. 183; tradução nossa)

Um gozo que não é próprio, que não é interno, e que não se estabelece em um espectro quantitativo, seja ele absoluto ou comparativo (muito/pouco, mais/menos, maior, menor ou igual). A partir de sua articulação com Descartes, ademais, o conceberíamos como uma instância que não pertence ao campo do pensamento consciente (res cogitans), mas tampouco ao da materialidade concreta (res extensa) (Lacan, 1972-73Lacan, J. (1972-73). Le séminaire. Livre 20. Encore. Recuperado em 28 out. 2017 de: <https://staferla.free.fr>.
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). No limite, para essa via de leitura, se o gozo consiste em uma substância, tratar-se-ia, antes, de uma substância… insubstancial (Eidelsztein, 2015Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva.).

Eidelsztein (2008Eidelsztein, A. (2008). Por un psicoanálisis no extraterritorial. El rey está desnudo. 1, 75-103.; 2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva. argumenta que a substancialidade presumida a conceitos como real, gozo e corpo no lacanismo guarda estreita relação com os processos de individualização e biologização do humano correntes na história (especialmente recente) da cultura ocidental. Para ele, em um apontamento similar ao de Beividas e Ravanello (2009)Beividas, W., & Ravanello, T. (2009). Linguagem como alternativa ao aspecto quantitativo em psicanálise. Psicologia & Sociedade, 21(spe), 82-88., ao voltar a definir real e gozo como propriedades naturais ao corpo, e equacionar esse corpo como o organismo prévio ao significante, a psicanálise lacaniana corre o risco de retornar ao paradigma biomédico do qual Lacan teria procurado separar-se. E, com isso, passaria a reforçá-lo: ela reassimilaria algumas das premissas implicadas na própria sustentação das modalidades de sofrimento sobre as quais opera.

Para Eidelsztein (2008Eidelsztein, A. (2008). Por un psicoanálisis no extraterritorial. El rey está desnudo. 1, 75-103.; 2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva., podemos conceber que o sofrimento ao qual responde a psicanálise surge, na modernidade, como fruto de uma matriz discursiva composta fundamentalmente por três eixos: individualismo, niilismo e biologicismo. Se esse for o caso, argumenta, diversas das formulações mais atuais no lacanismo (como o gozo singular, o sem-sentido, a inexistência do Outro e a prevalência de um “real do corpo”) parecem curiosamente ir ao encontro justo do reforço dessa matriz. Ele sublinha como essa política conceitual envolve com frequência a projeção de um fim de análise direcionado ao locus de um ser verdadeiro para além dos semblantes — ocupado pelo ‘real do gozo’ singular a cada falante. O autor questiona, então, se a partir desses pressupostos “não estaremos trabalhando com a ideia de que a direção da cura é alcançar o individualismo mais absoluto” (Eidelsztein, 2009, p. 99; tradução nossa), se não estaríamos vislumbrando como meta clínica um “modo corporal do solipsismo” (p. 99, tradução nossa) — lembramos aqui do “Um-totalmente-só” de Miller (2012a, p. 43)Miller, J.-A. (2012a). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, 3(7), 1-49.. No entanto, se aceitamos que o individualismo é um dos traços constitutivos do sofrimento com o qual a psicanálise opera, não seria um contrassenso que esta lhe faça oposição por meio de um dispositivo de tratamento que o acentua?

Eidelsztein sustenta que a psicanálise deveria se posicionar em sentido contrário a essa matriz, envolvendo nisso o horizonte de sua produção conceitual. Trata-se de uma perspectiva, identificada em Lacan, que a questiona ao retomar a linguagem, a articulação significante, o discurso e o laço social como causas do sofrimento, do sintoma, do gozo e do corpo que concernem a uma psicanálise. Como enfatiza: “Para Lacan, tanto o corpo como o gozo provêm da inexistência, porque habitam e se originam no furo que somente existe a partir da função legalizada da articulação significante no espaço do discurso como laço social […]” (Eidelsztein, 2015Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva., p. 429; tradução nossa).

Outra faceta teórico-clínica fundamental ao processo de naturalização dos conceitos no campo lacaniano trata de sua inflação como categoria explicativa. Como refere Goldenberg (2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage.:

hoje, novamente, só se fala em gozo, em detrimento de todas as outras noções. […] Tudo é “gozo” e gozo apenas. Gozar é gozo. Não gozar, é gozo. Machucar-se ou divertir-se, é gozo. Ler e escrever? Gozos! Fazer um filme ou cozinhar um prato, assim como assisti-lo ou comê-lo, são gozos. Um câncer? é gozo! Broxar é gozo. E permanecer ereto sem gozar jamais, também é gozo. (p. 82)

Aponta-se para uma disseminação generalizada dessa noção como resposta comum, em que seu indiscernimento por vezes é tão notável quanto sua onipresença. Dinâmica que guarda uma série de paralelos com o apontado por Bachelard (1938/1996)Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1938). a respeito do substancialismo como obstáculo epistemológico para a produção científica. Nesse, a causa dos fenômenos será concebida como manifestação das propriedades de uma substância, ignorando o campo efetivo de relações em que eles emergem, o estatuto ativo do pesquisador, o lugar fundamental da hipótese, entre outros. Essa posição, defende ele, incorreria em uma monotonia explicativa5 5 O substancialismo seria uma “explicação monótona das propriedades pela substância” (Bachelard, 1996, p. 27). que “susta a investigação, em vez de provocá-la” (p. 27; grifos nossos).

Visibilizam-se com isso as formas com que enunciados como “há um gozo aí”, “porque ele goza”, ou “é muito gozo” (por vezes qualificado como “mortífero” ou “perverso”), são não raro alçados ao lugar de causa última ou verdade revelada — especialmente em situações de impasse clínico. Caberia interrogarmo-nos acerca do efetivo alcance explicativo e operatório dessa política conceitual. No limite, não incorreríamos aqui na monotonia explicativa que denuncia Bachelard? De que vale uma categoria que se aplica a tudo, de forma aparentemente homogênea? Ademais, o que seu acionamento produz?

Notemos de passagem que um emprego conceitual que se organiza dessa forma é, no limite, francamente metafísico. Cunha-se algo como um ponto central, ao qual sempre se retorna, do qual tudo se origina, e que governaria como causa última o conjunto amplo de nossas inteligibilidades. Assim, teríamos uma semelhança a considerar entre tais empregos e a tendência metafísica ao estabelecimento de um “ser último ou irredutível, de um primo ens em que todos os demais consistem” (Ferrater Mora, 1965, p. 323Ferrater Mora, J. (1965). Diccionario de Filosofia (Tomo II – L-Z). Buenos Aires, AR: Editorial Sudamericana. (Trabalho original publicado em 1941).; tradução nossa). Isso não se daria a ler em uma definição do gozo como um ser primeiro, uno, real, origem do significante e do sujeito, anterior à linguagem?

De fato, a figura de uma “monotonia explicativa” abre-nos uma importante via de reflexão. Poderíamos ler em autores como Goldenberg um questionamento acerca dos efeitos de circularidade dos argumentos clínicos que se valem de uma lógica de conceitualização como essa. Em uma conferência na Universidade de São Paulo em 2015, ele comenta:

Não entendo como não se dão conta de que responder “porque goza” à pergunta “por que tem esse sintoma?” não responde nada, não quer dizer absolutamente nada. Ou pior: a referência a seu gozo apela a uma psicologia que faz do paciente o culpado do que lhe acontece, originando um modo de tratá-lo no qual o analista vira pouco menos que um inquisidor. (Goldenberg, 2015Goldenberg, R.(2015). Seminário sobre a obra de Lacan: Debate com Ricardo Goldenberg sobre “Gozo e Significante”. [Arquivo de vídeo].Recuperado em 20 nov. 2018 de: <https://www.youtube.com/results?search_query=goldenberg+usp>.
https://www.youtube.com/results?search_q...
)

Assim, se por um lado a “monotonia explicativa” aponta para uma possível deserção ou estagnação epistêmica da psicanálise lacaniana, por outro há que considerar que as lógicas de leitura que se reiteram nessa detenção (a concepção dos processos de causalidade, por exemplo) são fundamentais aos ordenamentos de uma prática clínica que seguirá tomando lugar. Novamente, abre-se a questão de se essa política dos conceitos não contribui para a manutenção de um laço analítico que preserva em sua operância os móveis mesmos do sofrimento neurótico.

Para Goldenberg (2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., o processo de naturalização do gozo participa da constituição de uma clínica que tomaria para si, talvez inadvertidamente, a ataraxia6 6 A ausência de qualquer sensação ou sentimento. como ideal terapêutico. Uma tal clínica, segundo ele, assumiria a possibilidade de modificação dessa substância pela via de uma intervenção específica, que visaria um real “puro”, fora da elucubração do simbólico. Com isso buscar-se-ia “varrer de gozo” as manifestações do sujeito, fazê-lo parar de satisfazer-se com aquilo de que padece. Contudo, o autor refere que o que decanta disso é a composição de um horizonte não apenas impreciso teoricamente, como impossível.

Existe uma clínica baseada na ataraxia que promove a falta, a carência, a abstinência, a renúncia, o desapego, enfim, o ideal de não sentir nada como o horizonte de uma psicanálise. Vagamente estoico como ética. Entretanto, como não sentir nada é impossível, o que de fato acontece é que se está promovendo um incremento da culpa, do martírio e da autopunição. (Goldenberg, 2018Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., p. 166)

Nessa perspectiva, o sofrimento neurótico ocultaria em si um gozo pessoal como causa que caberia revelar — e pela qual o falante haveria de fazer-se cargo. Teremos nisso uma teoria da agência, especialmente exacerbada ao articular-se a determinada teoria da causa. Uma segunda via possível, defendida por Goldenberg (2018)Goldenberg, R. (2018). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., lê nessa primeira um risco, senão a certeza, de um incremento da culpa neurótica. Que o analista proponha o “gozo perverso” como interpretação a um sintoma neurótico não faria senão reforçar a leitura que condiciona o sujeito a seu próprio impasse. E, assim, a cena analítica se torna um diálogo em que se reitera uma estrutura confirmatória: “Isso tudo é minha culpa” — “Sim, é verdade”.

Eidelsztein (2015)Eidelsztein, A. (2015). Otro Lacan: estudio crítico de los fundamentos del psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires, AR: Letra Viva. sublinha que isso seria a resposta social comum ao sintoma: as coisas são como são, o gozo é o que é, haveria de se fazer cargo e deixar de se queixar. Ele adiciona: “nisso radica o Discurso Mestre” (p. 232; tradução nossa), contraditório ao Discurso do Analista.

Consideremos os argumentos de Eidelsztein e Goldenberg naquilo que eles anunciam como consequências desse paradigma. Teriam aí lugar processos de reiteração do sofrimento, de supressão da queixa e, agregamos, de desresponsabilização do analista no que tange à condução de sua prática? Parece-nos fundamental que nos perguntemos, como praticantes da psicanálise, até que ponto frases como “mas ela/e goza com isso” ou “é muito gozo”, ditas em nossos contextos de reflexão clínica, vêm no sentido de sublinharmos a necessária implicação do falante em seu padecimento, ou se essas mesmas expressões não estariam por vezes mais a serviço do apaziguamento da angústia do analista frente a seus impasses clínicos. A conta, assim, trocaria muito facilmente de bolso: se o analisante sofre, é porque ele, individualmente, goza com isso, e, se isso não cede, deve ser porque ele goza demais. A questão passa a ser a de um sujeito que não abre mão de seu gozo, apesar dos esforços de seu analista, e não das lógicas de leitura e intervenção das quais este tem se servido no tratamento — e do por que de estas não terem produzido efeitos de corte.

Assim, faz-se necessário considerar de que forma uma teoria se relaciona, se articula, e mesmo habilita uma política de tratamento. Nessa visada, propomos que a matriz substancialista seja tomada no campo lacaniano pelo que é: como uma política de leitura que faz obstáculo à psicanálise como prática e disciplina. Aqui, também sublinharemos de passagem como a política conceitual da psicanálise indica os compromissos ético-políticos que ela adota nos contextos em que se insere. Nisso, ressaltaremos o caráter por vezes conservador de suas propostas no debate com os estudos de gênero, suportado pela leitura substancializada do real, como trouxemos acima.

Nessa produção de diferenças, condição imprescindível para o estabelecimento de qualquer leitura crítica, acreditamos que um trabalho sobre as formas alternativas de conceitualização apresentadas abrem caminhos não só profícuos como necessários para a reflexão psicanalítica. Um trabalho sobre o real como impossível lógico-matemático poderia advertir-nos dos momentos em que nossos usos desse conceito indicam a produção de um lócus essencial da verdade — frequentemente suposta como fora da linguagem — e dos apelos normativos que acompanham essa produção. De outra parte, o trabalho do gozo como causado pelo significante, e determinado de forma lógica como a ousia aristotélica — que não assume mais ou menos, que não é de um sujeito, nem predicável a um sujeito — desmantelaria seus usos como uma propriedade individual e como uma ferramenta clínico-conceitual individualizante. Com isso, ambas proposições, ao pertencerem a (e produzirem) um enquadre de leitura distinto para pensar a psicanálise, sugeririam como horizonte possível outra experiência analítica. Apontamos para a pertinência de estudos futuros que possam recolher mais detidamente os efeitos dessa matriz, em suas potências e possibilidades, mas também nos novos problemas e impasses que ela, invariavelmente, trará consigo. Acreditamos que é nesse confrontamento dos possíveis, na crítica e no trabalho com a contradição, que nos permitiremos um posicionamento mais implicado.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio. / This work received no funding.
  • *1
    Trabalho realizado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC), Eixo 2 (Psicanálise, Educação e Cultura), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Baseado na dissertação de título Políticas de Leitura em Psicanálise: Enlaces entre Epistemologia, Ética e Clínica, de autoria de Thiago Pereira da Silva e orientada pela profa. dra. Simone Zanon Moschen, defendida no ano de 2020 na UFRGS, pelo PPG Psicanálise: Clínica e Cultura.
  • 1
    Como dissemos, essa querela não é nova. Já nos anos 80, pouco após a morte de Lacan, autores como Allouch (1986aAllouch, J. (1986a). Freud desplazado. In Lacan censurado. Littoral, textos de psicoanálisis (pp. 27-42). Córdoba, ES: Editorial La Torre Abolida., 1986b)Allouch, J. (1986b). Lacan censurado. In Lacan censurado. Littoral, textos de psicoanálisis (pp. 9-26). Córdoba, ES: Editorial La Torre Abolida. analisavam as formas como o estabelecimento de seu texto oficial por vezes invertia o sentido de sua proposta e apagava o estilo de sua transmissão — fala de um “Lacan censurado” —, bem como a forma como o lacanismo amalgama o psicanalista francês à figura de Freud, como se suas propostas não diferissem.
  • 2
    Curioso notar que o período de produção desse artigo é marcado por uma pandemia (COVID-19) que não apenas demanda o isolamento social da maior parcela possível da população dos países afetados, como também convida o conjunto de psicanalistas a pensarem a possibilidade da análise à distância — e, com isso, a reconsiderar as modalidades de teorização da presença na cena analítica.
  • 3
    Non (não) e nom (nome) são homofônicos em francês.
  • 4
    Materialismo de palavra (mot).
  • 5
    O substancialismo seria uma “explicação monótona das propriedades pela substância” (Bachelard, 1996, p. 27Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1938).).
  • 6
    A ausência de qualquer sensação ou sentimento.
  • Citação/Citation: Silva, T. P. da, & Moschen, S. Z. (2021, dez.). A substancialização dos conceitos psicanalíticos: efeitos e impasses. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(4), 659-681. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n4p659.9
  • Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

Referências

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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2020
  • Aceito
    04 Abr 2021
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