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É isto um cidadão?, É isto uma cidadã?

Is this a citizen?, Is this a she citizen?

Para refletir sobre o horror que estamos assistindo acontecer no Brasil, me ocorreu recorrer à obra-prima do químico e escritor italiano Primo Levi, É isto um homem?. Publicado pela primeira vez em 1947, trata-se de uma narrativa da vivência do autor no complexo de Auschwitz, entre os meses de fevereiro de 1944 a janeiro de 1945. Uma obra poética, fruto da “necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes da realidade do Campo (...), uma necessidade que alcançou o ‘caráter de impulso imediato e violento’, até o ponto de competir com outras necessidades violentas” (Levi, 1988Levi, P. (1988). É isto um homem? (Luigi Del Re, Trad.). Rocco., p. 8). O imperativo ético de dar voz aos prisioneiros ausentes, os “muçulmanos”,1 1 “Muçulmano”: termo utilizado em Auschwitz para designar os prisioneiros considerados fracos, ineptos, os destinados à câmara de gás. Aos “muçulmanos” era negado o direito de qualquer expressão subjetiva e roubado do direito a ter vontade de viver. A origem do termo é árabe, “muslim”: nomeia aquele que se submete incondicionalmente a Deus. O uso do termo para identificar os prisioneiros que não tinham outra opção a não ser a de se curvar aos mandatos obscenos que lhes eram impostos, é indicativo do gozo sádico que os nazistas obtinham em praticar toda sorte de crueldades no Campo (Cf. Bravo, 2013, pp. 89-90). aqueles que foram silenciados pela inexistência física no pós-guerra, aos que foram as verdadeiras testemunhas da Shoá,2 2 Palavra hebraica que significa, literalmente, “destruição”, “ruína”, “catástrofe”. Utiliza-se esse termo para designar o genocídio cometido nos campos de extermínio. a catástrofe histórica que inundou o século XX de sangue, dor e vergonha, levou Levi a escrever, conforme confessa no prólogo de É isso um homem?, de modo fragmentário, isto é, sem obedecer ao critério de sucessão lógica, apenas se deixando guiar pela ordem da urgência de trazer à luz a institucionalização de um processo torturante que causou a paralisia e morte psíquica do sujeito, antes de atirá-lo à câmara de gás. Em outro de seus livros que fazem parte da literatura testemunhal dos horrores perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial, Afogados e sobreviventes, Levi declara que os “muçulmanos”, ainda que tivessem papel e tinta não teriam testemunhado, porque começaram a morrer antes mesmo da morte corporal. “Semanas, meses antes de morrer, já tinham perdido a capacidade de observar, recordar, medir e se expressar” (Levi, 2004Levi, P. (2004). Os afogados e os sobreviventes. Paz e terra., p. 74). Narrar a “não vida” dos prisioneiros semimortos no Campo, exigiu de Levi o esforço penoso de recordar a degradação do humano.

Entre as páginas da obra É isto um homem?, o leitor se depara com uma passagem detalhada sobre o processo de transformação das vítimas em “cadáveres” perambulantes — judeus, homossexuais, negros, ciganos, doentes mentais, e opositores ao regime nazista —, tinham perdido a força de reação à crueldade do outro. Através da escrita Levi, em sua trajetória ética, política e estética, revela a verdade do que não se pode negar ou desmentir: não há palavra capaz de expressar essa ofensa que é a aniquilação da própria essência da vida humana. Vejamos:

A história — ou melhor, a não-história — de todos os “muçulmanos” que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão para o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa de sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento (p. 131). A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os ‘muçulmanos’, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para compreendê-la. (Levi, 1988Levi, P. (1988). É isto um homem? (Luigi Del Re, Trad.). Rocco., p. 91)

Analisando a “não-história” dos muçulmanos, a partir das perspectivas de Giorgio Agamben (2002)Agambem, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. (Henrique Burigo, Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. acerca da “vida nua”, a vida que não merece ser vivida, ter se tornado o objeto da política do Estado totalitário, e o Campo como espaço político dessa “vida nua”, pode-se considerar que a vida biológica, a “vida nua”, passará a constituir “o espaço da intervenção biopolítica moderna, e conceitos como “vida” e de “morte” tornaram-se conceitos políticos o que faz com que a figura do “muçulmano” passe a ter também, um significado político (Bravo, 2013Bravo, G. P. Campo de extermínio (s): O “muçulmano” como paradigma da vida nua. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP. Edição maio de 2013, pp. 89-103. https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/levs/article/view/3011
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, p. 92). Nos termos de Bravo, leitor do filósofo italiano, a

fabricação do “muçulmano” durante o III Reich, institucionalizou o campo de concentração como espaço no qual o estatuto jurídico-político do indivíduo transformado em estado de exceção, deixou de ser uma temporária suspensão da lei para se tornar permanente. Ocorreu, então, a institucionalização de um experimento ainda impensado, no qual para além da vida e da morte o muslim era obrigado a submeter-se a um massacrante processo de desubjetivação de tal ordem que logo se transformaria politicamente em algo irrelevante; e, como tal, a sua vida, “vida sacra”, pode ser impunemente eliminada. (Agamben, 2002Agambem, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. (Henrique Burigo, Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 146)

Poucos foram os prisioneiros que sobreviveram ao encontro catastrófico com o algoz detentor da vida e da morte e cuja palavra tornou-se lei, o Füher do Nacional Socialismo Alemão. Entretanto, a experiência e a maldição acompanham o liberto do Campo: “[os muçulmanos] povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento” (Levi, 1988Levi, P. (1988). É isto um homem? (Luigi Del Re, Trad.). Rocco., p. 91). Lucíola Freitas de Macedo chamará atenção para esse sentimento de culpa insuperável que tomou conta do escritor e Levi, pela “suposição de ter vivido no lugar do outro, no lugar da chamada ‘testemunha integral’” (Macedo, 2014Macedo, L. F. (2014). Primo Levi, a escrita de um trauma. Subversos., p. 281). Assim, “movido pela pressão obsedante de um mundo não escrito, ao qual era preciso dar a palavra” (p. 281), o escritor se empenha em permanecer vivo para oferecer um testemunho da maquinaria nazi.

Na epígrafe da obra É isso um homem?, uma poesia que mais tarde ganha o título imperativo de Shemà “escuta!”,3 3 Shemà, termo hebraico (em português escuta!), é a primeira palavra de um mandamento da Torá (Lei, Revelação) no qual é afirmada a unicidade do Deus rigorosamente impensável e inassimilável do judaísmo e ressaltado o dever do povo judeu de reconhecer a verdade das palavras que compõem a reza. Alguns versos da poesia de Levi parafraseiam essa reza que deve ser repetida duas vezes ao dia. encontra-se a mais contundente das provas do esforço de Levi em transmitir o inaudível às futuras gerações.

“Shemà É isso um homem? Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome, sem mais força para lembrar, vazios os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los”.

Observa-se que se o título da poesia obedece ao tempo do verbo no imperativo, isso não significa que o leitor esteja obrigado a compreendê-la; as palavras graves e solenes que povoam seus versos ultrapassam qualquer capacidade de compreensão e controle. O imperativo de escutar está diretamente ligado ao dever de recordar e repetir as letras que bordejam, como dito acima, o inaudível (Barenghi, 2015Barenghi, Mario. (2015). Por que acreditamos em Primo Levi? (Trad. Pedro Spinola Pereira Caldas,Trad.). Revista Digital do NIEJ, 5(9). https://niej.files.wordpress.com/2016/07/04-primolevi.pdf
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, p. 12).

Devo embrenhar-me por esse caminho para apresentar minha questão — É isso um cidadão? É isso uma cidadã? Ou melhor, devo fazer minhas as palavras de Levi para expressar a perplexidade e a dor que sinto frente à situação política de discriminação, seja pela raça, sexo, gênero, ou classe social, no Brasil? Mas a cada vez que penso nas cenas dantescas que povoam nossa história recente, digo a mim mesma que parafrasear Levi é um meio legítimo de alertar e ao mesmo tempo refletir sobre os traumas cotidianos aos quais estamos todos expostos.

Hannah Arendt está na primeira fileira dos pensadores modernos que se dedicam a pensar o conceito de cidadania. Analisando a situação dos apátridas e das minorias entre a Primeira e a Segunda Guerras, a filósofa conclui que a igualdade política entre pessoas requer pertencer a um espaço público, isto é, um espaço comum a todos e no qual as ações e palavras de cada sujeito são significativas. Por essa razão Arendt celebra a cidadania como o direito de se ter direito. O reconhecimento do direito a se ter direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, só ocorreu a partir das centenas e milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e que se encontravam sem chance de recuperá-lo. Daí o porquê da expressão “direito a ter direitos”, de acordo com os estudos desenvolvidos por Silvana Winkler (2004)Winckler, S. (2004, jul.-dez.).Igualdade e cidadania em Hannah Arendt. Direito em Debate, XII(22), 7-22. Recuperado de: <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/711>.
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sobre os conceitos de igualdade e cidadania em Hannah Arendt, designa um direito fundamentalmente distinto dos deveres cívicos: o direito a ter direitos é o direito de se ter uma pátria, de pertencer a uma comunidade política, a um povo.

É a partir do conceito de cidadania que Arendt irá defender a impossibilidade de se sustentar que o artigo 1º da Declaraçao Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, seja crível pelo fato de supor que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade de direitos. Dentro dessa perspectiva, tornamo-nos iguais apenas como membros de uma coletividade, em função da decisão conjunta que garante a todos direitos iguais (Winkler, 2004, p. 13). Isso significa que para a autora da obra A condição humana (Arendt, 1987Arendt, H. (1987). A condição humana. (Roberto Raposo, Trad.). Forense.) a igualdade só é possível na esfera política, pois trata-se de uma construção elaborada pela ação conjugada entre cidadãos. Consequentemente, a identidade entre os membros de uma comunidade só pode advir de elementos exteriores a ela; isto é, não pode ser aferida por nenhum elemento biológico, racial ou geográfico, como reza a ideologia nazista. Daí o porquê de os campos de concentração constituírem, para Arendt, testemunhos fidedignos da usurpação maior à cidadania. No entanto, em países não totalitários quando alguns cidadãos se encontram em situação de não-direito à ação e à palavra, a situação de “não-direito” pode retornar de maneira violenta para determinados grupos sistematicamente segregados.

Precisei dar essa volta pelo pensamento de Hannah Arendt, ainda que brevemente, antes de parafrasear o poema de Levi, pois as perguntas que dão título a este editorial incidem sobre situações em que o pertencimento do sujeito a determinado segmento da população, significa uma possiblidade real de perder a condição de cidadão. O que se observa é que nessas comunidades inúmeras vidas se encontram em perigo, quer seja pela proximidade com a morte psíquica ou por meio do assassinato a céu aberto e, nessas condições, estamos certamente muito próximos ao vivido no campo de concentração.

É isto um cidadão? É isto uma cidadã? Nós que vivemos seguros em nossas casas aconchegantes, nós que voltando à noite encontramos comida quente, pensem bem se isso é um cidadão, que trabalha sem receber, que é morto a pauladas por um bando de cidadãos tomados pelo ódio. Pensem bem se isto é uma comunidade de cidadãos que lutam por preservar seu habitat sistematicamente incendiado, que se banha no rio envenenado, que tem negado o direito de receber água potável. Pensem bem se isso é um cidadão, ou uma cidadã, que carrega o corpo esquálido do filho morto pela pobreza e miséria violentas em que vivem. Pensem bem se isso é uma cidadã, que é estuprada e tem ameaçada a prerrogativa do aborto. Pensem bem se isto são cidadãos e cidadãs que lutam pelo direito de escolha sexual, que são assassinados por um sim ou por um não. Pensem que tudo isto está acontecendo diante dos nossos olhos. Gravem essas cenas em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas aos seus filhos. Porque a crueldade é sem fim e nossas pulsões são o que são, não deixem que a indiferença tome conta de seus lares; digam não a barbárie, antes que seja tarde.

Permito-me fazer essa convocação já que tenho a convicção de que cabe ao psicanalista expressar em palavras o que testemunha no campo sociopolítico de seu tempo. É preciso lembrar que Freud, ainda que tenha endossado em “O mal estar na cultura” (1930/2020) a máxima de Plauto — Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem] —, não deixou de defender a ideia de que a psicanálise não poderia ficar indiferente às pulsões de crueldade e de destruição. No seu entender, à psicanálise, enquanto saber e prática do inconsciente, caberia alertar que essas diferentes faces da pulsão de morte, são forças constante que querem se satisfazer: “Se não aprendermos a distrair nossas pulsões do ato de destruir a nossa própria espécie, se continuarmos a nos odiar um ao outro por pequenas disputas, que espécie de futuro nos aguarda?” (Freud, 1960/1982Freud, S. (1982). Correspondência de amor e outras cartas (1873-1939). Org. Ernst L. Freud. Nova Fronteira. (Trabalho publicado originalmente em 1960)., p. 398). Endereçada a R. Rolland, o novelista pacifista laureado com o prêmio Nobel da literatura no decorrer da Primeira Guerra Mundial, essa pergunta não deixa de ser uma convocação ao estranhamento. Isto é, ela nos coloca frente a frente com o que há de mais estranho e, ao mesmo tempo, de mais íntimo em nós mesmos — a vocação de “satisfazer [no próximo] a tendência à agressão, de explorar a sua força de trabalho sem uma compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e assassiná-lo” (Freud, 1930/2020Freud, S. (2020). O mal-estar na cultura. In Obras Incompletas de Sigmund Freud. Cultura, Sociedade e Religião. (Maria Rita Salzano Moraes, Trad.). Autêntica. (Trabalho publicado originalmente em 1930)., p. 108).

Talvez seja essa percepção de algo estranho e familiar desencadeador da angústia, o afeto que não engana, o sinal mais preciso para o psicanalista convergir sua escuta em direção ao momento político traumático que o Brasil atravessa. Nos últimos anos assistimos: o aumento brutal do racismo, os negros representam 78% da população morta por armas de fogo; a escalada de grupos neonazistas que passaram de 75 cédulas em 2015 para 520 no último ano; o crescimento de 20%, em 2021, da violência criminosa contra o grupo LGBTQIA+; o número de brasileiros que vivem na pobreza quase que triplicou em 2021; e, por fim, os ataques à população indígena chegam à beira do genocídio. Por si só essas são situações de asfixia do direito de se ter direito à vida e ao laço social. São fenômenos que exigem de nós atenção extrema e precisa, vigilância, ao discurso de ódio ao outro vigente em nosso país e no mundo.

Cito de novo a passagem acima — “precisamos aprender a distrair nossas pulsões” — porque diante de tal afirmativa, não há como não lembrar da única formulação freudiana sobre a ética da psicanálise “Onde Isso era, devo advir”. “É um trabalho da cultura — que não deixa de ter semelhança com a drenagem do Zuidersee”4 4 Zuirdersee”: projeto de aterro e construção de diques no Reno (Holanda), onde o mar do Norte invadia a terra. (Freud, 1933/1976Freud, S. (1976). Nuevas conferencias de introdución al psicoanálisis. Conferência 31. In Obras completas (V. XXII. pp. 53-74. James Strachey, Trad.). Amorrortu. (Trabalho publicado originalmente em 1933)., p.74) psicanálise encontra uma analogia com o trabalho da cultura, uma vez que sua forma de atuação engloba, entre outras coisas, investir na contenção do desvario pulsional. E nesse sentido a palavra da psicanálise em relação à destruição, à crueldade e à violência social, é um sinal de alerta e quiçá de garantia ao futuro das próximas gerações, na medida em que o psicanalista não pode minimizar nem tampouco fomentar ilusões acerca dessas forças que habitam o humano.

Por fim, dado que termino a escrita deste editorial no momento em que a Rússia declara guerra à Ucrânia, provocando em todos nós indignação e angústia, talvez seja o caso de também parafrasear as palavras de Freud em seu êxodo de Viena, cidade em que é confiscada sua condição de cidadão, a Londres: “Vivemos numa época particularmente curiosa. Descobrimos com espanto que o progresso selou uma aliança com a barbárie” (Freud (1939/2014Freud, S. (2014). O homem Moisés e o monoteísmo. (Renato Zwick, Trad.). LP&M. (Trabalho publicado originalmente em 1939), p. 89). Nada mais atual!

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    “Muçulmano”: termo utilizado em Auschwitz para designar os prisioneiros considerados fracos, ineptos, os destinados à câmara de gás. Aos “muçulmanos” era negado o direito de qualquer expressão subjetiva e roubado do direito a ter vontade de viver. A origem do termo é árabe, “muslim”: nomeia aquele que se submete incondicionalmente a Deus. O uso do termo para identificar os prisioneiros que não tinham outra opção a não ser a de se curvar aos mandatos obscenos que lhes eram impostos, é indicativo do gozo sádico que os nazistas obtinham em praticar toda sorte de crueldades no Campo (Cf. Bravo, 2013Bravo, G. P. Campo de extermínio (s): O “muçulmano” como paradigma da vida nua. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP. Edição maio de 2013, pp. 89-103. https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/levs/article/view/3011
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    , pp. 89-90).
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    Palavra hebraica que significa, literalmente, “destruição”, “ruína”, “catástrofe”. Utiliza-se esse termo para designar o genocídio cometido nos campos de extermínio.
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    Shemà, termo hebraico (em português escuta!), é a primeira palavra de um mandamento da Torá (Lei, Revelação) no qual é afirmada a unicidade do Deus rigorosamente impensável e inassimilável do judaísmo e ressaltado o dever do povo judeu de reconhecer a verdade das palavras que compõem a reza. Alguns versos da poesia de Levi parafraseiam essa reza que deve ser repetida duas vezes ao dia.
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    Zuirdersee”: projeto de aterro e construção de diques no Reno (Holanda), onde o mar do Norte invadia a terra.

Referências

  • Arendt, H. (1987). A condição humana (Roberto Raposo, Trad.). Forense.
  • Agambem, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I (Henrique Burigo, Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
  • Barenghi, Mario. (2015). Por que acreditamos em Primo Levi? (Trad. Pedro Spinola Pereira Caldas,Trad.). Revista Digital do NIEJ, 5(9). https://niej.files.wordpress.com/2016/07/04-primolevi.pdf
    » https://niej.files.wordpress.com/2016/07/04-primolevi.pdf
  • Bravo, G. P. Campo de extermínio (s): O “muçulmano” como paradigma da vida nua. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP Edição maio de 2013, pp. 89-103. https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/levs/article/view/3011
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  • Levi, P. (1988). É isto um homem? (Luigi Del Re, Trad.). Rocco.
  • Levi, P. (2004). Os afogados e os sobreviventes Paz e terra.
  • Freud, S. (1976). Nuevas conferencias de introdución al psicoanálisis. Conferência 31. In Obras completas (V. XXII. pp. 53-74. James Strachey, Trad.). Amorrortu. (Trabalho publicado originalmente em 1933).
  • Freud, S. (1982). Correspondência de amor e outras cartas (1873-1939) Org. Ernst L. Freud. Nova Fronteira. (Trabalho publicado originalmente em 1960).
  • Freud, S. (2014). O homem Moisés e o monoteísmo (Renato Zwick, Trad.). LP&M. (Trabalho publicado originalmente em 1939)
  • Freud, S. (2020). O mal-estar na cultura. In Obras Incompletas de Sigmund Freud. Cultura, Sociedade e Religião (Maria Rita Salzano Moraes, Trad.). Autêntica. (Trabalho publicado originalmente em 1930).
  • Macedo, L. F. (2014). Primo Levi, a escrita de um trauma Subversos.
  • Winckler, S. (2004, jul.-dez.).Igualdade e cidadania em Hannah Arendt. Direito em Debate, XII(22), 7-22. Recuperado de: <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/711>.
    » https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/711
Editores/Editors: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr. e Profa. Dra. Maria Livia Tourinho Moretto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    08 Mar 2022
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