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Nosografia dos Transtornos Afetivos: um recorte histórico de Kraepelin ao DSM-5

Nosography of Affective Disorders: A historical review from Kraepelin to DSM-5

Nosographie des troubles affectifs: un aperçu historique de Kraepelin au DSM-5

Nosografia de los trastornos afectivos: un corte histórico de Kraepelin al DSM-5

Resumos

A nosografia dos transtornos do humor e do afeto relaciona-se diretamente com as formas de apreensão dos quadros clínicos em cada contexto histórico. É indagado se o resgate histórico contribuiria para melhor compreensão e utilização da atual nosologia dos transtornos de humor. Objetiva-se realizar uma revisão histórica e crítica acerca de suas transformações conceituais e nosológicas com enfoque ao campo médico-psiquiátrico. O recorte pretendido se inicia com a proposição da “Insanidade Maníaco-Depressiva” por Emil Kraepelin em 1899, que é confrontada com as propostas pós-kraepelianas, em especial as de Karl Leonhard. Analisa-se a influência dessas na criação dos sistemas diagnósticos operacionalizados, DSM e CID. O “Transtorno Bipolar” foi um constructo introduzido pelo DSM-III e se mantém em uso até os dias atuais. Aborda-se também propostas posteriores, como a do “Espectro Bipolar”.

Palavras-chave:
Nosografia; transtornos afetivos; revisão crítica; história


Nosography of mood and affective disorders is directly related to how clinical pictures are understood in each historical context. Inquiring on whether a historical recollection would contribute to a better understanding and use of the current nosology of mood disorders, the study carries out a historical and critical review of its conceptual and nosological transformations on the medical-psychiatric field. Starting from Emil Kraepelin’s “Manic-Depressive Insanity,” proposed in 1899, the text confronts this concept with post-Kraepelian proposals, especially those of Karl Leonhard. It then analyzes their influence in the creation of two operationalized diagnostic systems — DSM and ICD. “Bipolar Disorder,” a construct introduced by the DSM-III, remains in use today. Later proposals are also addressed, such as the “Bipolar Spectrum”.

Key words:
Nosography; affective disorders; critical review; history


La nosographie des troubles de l’humeur et des troubles affectifs est directement liée à la manière dont les tableaux cliniques sont compris dans chaque contexte historique. En se demandant si un rappel historique contribuerait à une meilleure compréhension et utilisation de la nosologie actuelle des troubles de l’humeur, l’étude procède a un examen historique et critique de ses transformations conceptuelles et nosologiques dans le domaine médico-psychiatrique. Partant de la “Folie maniaco-dépressive” d’Emil Kraepelin, proposée en 1899, l’article confronte ce concept aux propositions post-Kraepeliennes, notamment celles de Karl Leonhard. On analyse ensuite leurs influence dans la création de systèmes de diagnostic opérationnalisés — le DSM et la CIM. Le “trouble bipolaire”, une construction introduite par le DSM-III, est toujours utilisé aujourd’hui. D’autres propositions sont égalemment abordées, comme le “spectre bipolaire”.

Mots-clés:
Nosographie; troubles affectifs; revue critique; histoire


La nosografía de los trastornos afectivos está directamente relacionada con las formas en que se aprehenden las condiciones clínicas en cada contexto histórico. Se pregunta si la revisión histórica contribuiría a una mejor comprensión y uso de la nosología actual de los trastornos del humor. El objetivo de este artículo es realizar una revisión histórica y crítica de sus transformaciones conceptuales y nosológicas con un enfoque en el campo médico-psiquiátrico. El recorte comienza con la propuesta en el texto “Locura maníaco-depresiva”, de Emil Kraepelin, en 1899, que se enfrenta a propuestas postkraepelianas, especialmente las de Karl Leonhard. Se analiza la influencia de estas propuestas en la creación de sistemas diagnósticos operacionalizados, el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales (DSM) y la Clasificación Internacional de Enfermedades (CID). El “trastorno bipolar” es una construcción introducida por el DSM-3 y sigue en uso hoy. También se abordan propuestas posteriores, como la del “espectro bipolar”.

Palabras claves:
Nosografía; trastornos afectivos; revisión crítica; historia


Introdução

Ao longo da história, diversas classificações acerca das perturbações do humor e do afeto foram consideradas. O que se conhece hoje como “Transtorno Afetivo” ou “do Humor” engloba condições que convergiram a um mesmo grupo, não necessariamente em sincronia, mas a partir de afinidades em suas características. Isso se liga intrinsecamente às diferentes formas de captar as manifestações comportamentais humanas, tendo cada contexto e época sua própria lente. Assim, acaba sendo singular cada interpretação e descrição de fenômenos psicopatológicos (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Com o tempo, muitos significados e conceitos se preservam, ao passo que outros perdem sua pertinência ou legitimidade. A ressignificação de categorias clínicas de um discurso psiquiátrico ao outro está ligada à constante mudança das regras que permeiam tal discurso (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.).

Um importante exemplo disto foi a guinada epistemológica de Emil Kraepelin com a concepção da “Insanidade Maníaco-Depressiva” na transição do século XIX ao XX, cujo marco conceitual ainda tem significativa influência na Psiquiatria atual (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). Sua herança foi muito transformada, sendo incorporada, não de forma homogênea ou contínua, nos sistemas classificatórios de doenças. Atualmente, critérios operacionalizados são usados de forma disseminada, até mesmo no ensino clínico.

Nesse contexto, levanta-se a hipótese de que o resgate de elementos históricos poderia contribuir na compreensão e uso crítico de tais nosologias. Com isso, objetiva-se retomar e analisar transformações conceituais e nosológicas atribuídas aos transtornos afetivos ou do humor. Considerar-se-á um enfoque predominantemente internalista ao campo médico-psiquiátrico (Magalhães, 2018Magalhães, G. (2018). Por uma dialética das controvérsias: O fim do modelo positivista na história das ciências. Estudos Avancados, 32(94), 345-362. https://doi.org/10.1590/s0103-40142018.3294.0022
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). O recorte histórico pretendido se inicia focalizando a identificação do método clínico-evolutivo de Emil Kraepelin e a proposição da “Insanidade Maníaco-Depressiva” em 1899. Pretende-se, posteriormente, confrontá-las às propostas pós-kraepelianas, em especial as de Karl Leonhard, analisando criticamente, em seguida, a criação dos sistemas diagnósticos operacionalizados e do que se apreende como “Transtorno Bipolar”, constructo introduzido pelo DSM-III e em uso até os dias atuais.

O DSM-III é reconhecido por oficializar a divisão nosológica da Doença Maníaco-Depressiva em Transtorno Bipolar e Transtorno Depressivo Maior. Resgata-se o caminho de pesquisas impulsionadas pela crítica da sua frágil validade diagnóstica, cujos autores advogam a favor de formatos dimensionais ou espectrais, em oposição à apreensão clínica categorial de transtorno. Isso abre margem também a inúmeras críticas, como desconsideração da vivência subjetiva dos pacientes.

Houve escolha intencional de três produções literárias consagradas acerca do tema, que nortearam o trabalho: Uma história da psiquiatria clínica Volume II - As Psicoses Funcionais, de G. E. Berrios e R. Porter, 2012; Os fundamentos da clínica: história do saber psiquiátrico, de P. Bercherie, 1989Bercherie, P. (1989). Os fundamentos da clínica. História e estrutura do saber psiquátrico (Tradução autorizada da segunda edição francesa revista, publicada em 1985 por Navarin Editeur, de Paris, França, na série Bibliothèque des Analytica). Jorge Zahar.; e “Mania: A short history of bipolar disorder”, de D. Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.. Realizou-se busca por revisões e revisões sistemáticas, em inglês ou português, desde o ano de 1990, em uma base de dados (Medline) e em um jornal da área contemplada (Elsevier/DirectScience: Journal of Affective Disorders), utilizando, respectivamente, os descritores [“Bipolar Spectrum OR Bipolar OR Bipolar Disorders OR Bipolar Disorders OR Affective Disorders OR Soft Bipolar OR Bipolarity OR Hypomania OR Manic-Depressive OR Mood Disorders OR Mania OR Bipolar Mood Disorder OR Manic OR Melancholia OR Cycloid Psychoses OR Bipolar Depression OR Depression” AND “Concept OR Spectrum OR Classification OR Composition OR Diagnostic Criteria OR Nosology OR Course OR Historical Aspects OR Psychopathology OR Definitions OR Dimensional OR Paradigm OR Concepts OR Nosologists OR Historical Perspectives OR Boundaries OR Nosologic OR Clinical Characterization OR Reinstatement”] e [“Bipolar” AND “Concept”]. A partir da leitura dos títulos e abstracts das 392 publicações encontradas, foram incluídas somente as que abordavam especificamente um panorama histórico dos conceitos e nosologias acerca dos transtornos afetivos/transtorno bipolar. Posteriormente, foi realizada busca intencional por autores reconhecidos no campo científico do Transtorno Bipolar, como Jules Angst, Nassir Ghaemi, Hagop S. Akiskal e Athanasios Koukopoulos, na base de dados Medline, em cujo título de trabalhos houvesse o termo “bipolar”. Ao final, foram acrescentadas publicações de maneira intencional quando se notava que dado tema necessitava de maior profundidade.

O postulado kraepeliano

Emil Kraepelin (1856-1926) é reconhecido por suas proposições acerca das chamadas psicoses endógenas. Segundo seus preceitos, os fenômenos clínicos deveriam ser descritos objetivamente, o que levaria às “entidades naturais de doença”, postulado central de sua nosologia. Tais entidades existiriam na natureza, independentemente do examinador, observáveis pela aplicação adequada do método científico (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.; Steinberg & Angermeyer, 2001Steinberg, H., & Angermeyer, M. C. (2001). Emil Kraepelin’s years at Dorpat as professor of psychiatry in nineteenth-century Russia. History of Psychiatry, 12(3--47), 297-327. https://doi.org/10.1177/0957154x0101204703
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). Ele considerava que fenômenos mentais ocorriam pelas vinculações entre processos somáticos e psicológicos, não reduzindo-se a causas por danos em localizações cerebrais. A partir desse referencial paralelístico, demarcava que conjuntos de sintomas deveriam persistir no tempo para constituir uma doença, ou seja, deveria haver um “curso de doença” (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Através da análise estatística de suas coortes de pacientes, correlacionou, dentro de cada grupo, a apresentação sintomática e o desfecho. Mesmo de forma simples, tal processo forneceu um banco de dados suficiente para gerar evidência empírica (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.).

Foi na 6ª edição de seu manual (1899) que emoldurou o conceito de um transtorno afetivo sob uma visão unitária superinclusiva (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). Propôs uma dicotomia para as psicoses endógenas, separando-as em Dementia Praecox e Loucura Maníaco-depressiva. Na 8ª edição de seu tratado, finalizada em 1915, incluiu qualquer forma de mania ou depressão sob o diagnóstico da insanidade maníaco-depressiva. Como já havia proposto desde a 6ª edição, retoma os pontos-chave que constituiriam a unidade da loucura maníaco-depressiva. Seu curso seria, então, formado por um estado mórbido permanente, independente de influências externas, que se daria por “ataques” periódicos ao longo da vida. Seu prognóstico não levaria a “um enfraquecimento intelectual profundo” e a hereditariedade seria um elemento importante (Kraepelin, 2006Kraepelin, E. (2006). A loucura maníaco-depressiva (Vol. III). Climepsi.). O que Kraepelin nomeou como ataques seriam os estados maníacos, os estados depressivos ou melancólicos e os estados mistos, estados agudos que nunca ocorriam isoladamente na vida do paciente, ou seja, a doença era sempre “bipolar” se vista longitudinalmente (Bercherie, 1989Bercherie, P. (1989). Os fundamentos da clínica. História e estrutura do saber psiquátrico (Tradução autorizada da segunda edição francesa revista, publicada em 1985 por Navarin Editeur, de Paris, França, na série Bibliothèque des Analytica). Jorge Zahar.). Para ele, os sinais essenciais do primeiro tipo incluíam a fuga de ideias, o humor alegre e o aumento da necessidade por atividade; no segundo, tristeza, angústia, penúria no pensar e no agir (Kraepelin, 2006Kraepelin, E. (2006). A loucura maníaco-depressiva (Vol. III). Climepsi.).

Curso periódico, bom prognóstico e caráter endógeno foram, então, algumas das características principais postuladas por Kraepelin (Bercherie, 1989Bercherie, P. (1989). Os fundamentos da clínica. História e estrutura do saber psiquátrico (Tradução autorizada da segunda edição francesa revista, publicada em 1985 por Navarin Editeur, de Paris, França, na série Bibliothèque des Analytica). Jorge Zahar.; Berrios, 1991Berrios, G. E. (1991). Affective disorders in old age: A conceptual history. International Journal of Geriatric Psychiatry, 6(6), 337-346. https://doi.org/10.1002/gps.930060603
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; Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Para além disso, ele trouxe uma visão de “doença espectral” tanto pela reafirmação dos “estados mistos” como pela apresentação dos tipos clínicos maníacos e depressivos como manifestações de um mesmo processo mórbido. Em curto período, o modelo médico de Kraepelin, pautado na importância da observação do quadro clínico, do curso longitudinal das doenças e de fatores psicológicos e sociais do paciente, alcançou grande aceitação da psiquiatria europeia (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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; Mason, Sherwood Brown, & Croarkin, 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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). É importante notar o esforço de Kraepelin para afastar ideias especulativas ou não objetivas na psiquiatria. Assim, seus critérios estavam sendo suficientes, pelo menos, para limitar a quantidade de descrições diagnósticas da época. No entanto, tal direcionamento objetivo de pesquisa clínica caía no risco de menosprezar aspectos qualitativos e subjetivos (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.).

Da doutrina da localização cerebral ao DSM

A virada do século XIX para o século XX foi também a época de ouro da visão etiológica puramente organicista das entidades naturais de doença mental. Diversas descobertas neurológicas reconhecidas vinham a público, como as de Paul Broca (1824-1880) e Theodor Meynert (1833-1892), o que certamente exercia influência. Em 1874, Karl Wernicke (1848-1905), um dos principais rivais acadêmicos de Kraepelin, descreveu a área cerebral relacionada à compreensão da fala. Posteriormente, expandiu seu modelo do mecanismo da afasia para os sintomas psicopatológicos no geral, incluindo os sintomas psicóticos, e os relacionou a localizações de patologias no cérebro. Muito publicou sobre a doutrina da localização cerebral nas três últimas décadas do século XIX (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Considerando observações transversais e longitudinais, suas descrições psicopatológicas o levaram a postular a “teoria da disjunção”, em que perdas de conexões entre sistemas neurais levariam a perdas ou alterações funcionais. Acinesia, hipercinesia ou paracinesia, termos cunhados por ele, poderiam ocorrer na área da psicomotricidade, mas outras áreas que poderiam estar comprometidas seriam a do pensamento e a da vontade, por exemplo. Suas propostas consideravam explicações puramente neurológicas a partir do que se podia observar e medir para explicar os transtornos mentais. Desconsiderando vivências subjetivas e a influência do contexto vivido, ganharam fortes oponentes, como Karl Jaspers, que o chamou de “mitologista do cérebro” (Leonhard, 1999Leonhard, K. (1999). Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology. In H. Beckmann (Ed.), Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology (2nd, revis ed.). Springer Vienna. https://doi.org/10.1007/978-3-7091-6371-9
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, p.VII).

Karl Kleist (1879-1960), o principal discípulo de Wernicke na Alemanha, o sucedeu na Universidade de Frankfurt da década de 1920 a 1950. Ele também não considerava a classificação dicotômica de Kraepelin satisfatória para sua visão das psicoses endógenas, na qual estas seriam o resultado de lesão ou disfunção cerebral. Além da influência de Wernicke, a obra de Kleist retomou sua própria experiência na I Guerra Mundial, em que investigou as alterações clínicas após as injúrias encefálicas e os traumas cefálicos, chegando ao conceito de Psicoses Cicloides (Neumärker & Bartsch, 2003Neumärker, K.-J., & Bartsch, A. J. (2003). Karl Kleist - a pioneer of neuropsychiatry. History of Psychiatry, 14(4), 1879-1960.).

Ao longo da primeira metade do século XX, enquanto a Europa se via, por um lado, influenciada fortemente pela Insanidade Maníaco-Depressiva de Kraepelin e, por outro lado, pela escola neuropsiquiátrica, ascendente nos EUA, a partir de influências europeias, principalmente dos psiquiatras ingleses a escola “psicobiológica” de Adolf Meyer (1866-1950), em que os transtornos mentais passaram a ser vistos sob um ângulo psicodinâmico. Ao longo das três primeiras décadas do século XX, ele se oporia fortemente ao postulado kraepeliano de doença maníaco-depressiva com uma trajetória mais ou menos determinada (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). Meyer foi eleito presidente da Associação Americana de Psiquiatria (APA) em 1927-1928. A partir da influência de seu grupo, a nosologia norte-americana das doenças afetivas passaria a se basear em pressupostos psicanalíticos, o que se manteria até a década de 1970.

O DSM-I, de 1952, foi um reflexo desse movimento e tomou a doença maníaco-depressiva como um distúrbio psicótico em que haveria uma “reação afetiva” de origem psicogênica (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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; McHugh, 2017McHugh, P. R. (2017). Adolf meyer his achievements and legacy. Journal of Nervous and Mental Disease, 205(4), 253-259. https://doi.org/10.1097/NMD.0000000000000577
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). Haveria reações maníacas e depressivas com tendência à remissão e recorrência. Dentro da classe dos transtornos psiconeuróticos, foi também descrita uma forma de Reação Depressiva fora da Psicose Maníaco-De- pressiva cujas principais características seriam ansiedade, depressão, auto-depreciação e culpa, sendo ela geralmente associada a situações atuais de vida, como perdas (APA, 1952APA, A. P. A. (1952). Diagnostic and Statistical Manual: Mental Disorders: [DSM I]. American Psychiatric Pub, I. https://doi.org/10.1097/00001888-195209000-00035
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). Com o advento do DSM-II (1968), a “Doença Maníaco-Depressiva” passa a ser classificada como um transtorno afetivo, saindo do grupo dos transtornos psicóticos. Apesar do ponto de vista psicodinâmico preponderante, passou-se a considerar o estado de humor alterado como não sendo precipitado por algum evento específico da vida. Ele teria a tendência de remitir e recorrer por si só, a algo similar ao conceito de endogenicidade (Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

A visão leonhardiana e outras influências ao DSM-III

Ao mesmo tempo que a psiquiatria norte-americana de cunho psicanalítico passava a influenciar outras práticas pelo mundo, o crescimento paulatino da indústria psicofarmacêutica já se dava desde o final da década de 1940. Baseando-se em achados como a proposição da Hipótese Monoaminérgica da Depressão na década de 1950, que é ainda hoje ensinada de forma obsoleta, modelos fisicalistas para as doenças mentais ganhavam mais adeptos (Ferreira, 2011Ferreira, S. (2011). A evolução do conceito de depressão no século XX: Uma análise da classificação da depressão nas diferentes edições do manual diagnóstico e estatístico da associação americana de psiquiatria (DSMS) e possíveis repercussões destas mudanças na visão de mundo. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto, 10(2), 78-90. https://doi.org/10.12957/rhupe.2011.8855
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; Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.).

Na Alemanha, no final da década de 1950, seguindo a tradição de Wernicke e Kleist, Karl Leonhard (1904-1988) introduziu novos conceitos em relação à classificação das “psicoses afetivas”, que separou em “fásicas” e “cicloides” e as diferenciou das “esquizofrenias”. Nas sucessivas edições de seu tratado de psiquiatria, cuja primeira publicação ocorreu na Alemanha em 1957, delineou 35 tipos de psicoses endógenas, a partir de critérios como sintomatologia, presença de hereditariedade e prognóstico. Para isso, acompanhava pacientes em internações, depois a longo prazo e juntava dados familiares para justificar explicações genéticas. Em certos momentos, parecia desconsiderar as limitações desse tipo de estudo observacional para o que afirmava. No mais, suas classificações eram embasadas em sua observação clínica, o que tentava a posteriori confirmar em estudos observacionais maiores: “Anteriormente deduzi isso apenas da minha observação clínica e sem prova estatística”, afirma Leonhard na página 257 de sua obra sobre certa diferença entre doença maníaco-depressiva e formas puras.

Comparando a psiquiatria à neurologia, que enfatizava já possuir centenas de diagnósticos possíveis nas décadas de 1960-1970, Leonhard considerava deletéria e incompleta uma classificação das psicoses em somente duas entidades. Ele acreditava na existência de diversos tipos específicos de carga genética, com padrões diferentes de transmissão hereditária, para as várias doenças que descreveu (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). No entanto, diferentemente de Kleist, fielmente inspirado em Wernicke, Leonhard não acreditava na localização de áreas cerebrais para determinados sintomas (Teichmann, 1990Teichmann, G. (1990). The influence of Karl Kleist on the nosology of Karl Leonhard. Psychopathology, 23(n. 4-6), 267-276.).

Em 1979, K. Leonhard apresentou (1) as “Psicoses Fásicas”, incluindo em seu grupo a “Doença maníaco-depressiva”, a “Melancolia”, a “Mania pura”, a “Depressão pura” e a “Euforia pura”; (2) as “Psicoses cicloides”, que englobavam as “Psicoses de Angústia/Felicidade”, “Confusional Excitada/Inibida” e da “Motilidade Hipercinética/Acinética”; e (3) as “Esquizofrenias”. Para ele, a mania seria composta de “euforia, que pode facilmente evoluir para irritação, autoconsciência elevada, fuga de ideias, pressão da fala e hiperatividade”, enquanto a melancolia incluiria “um humor depressivo tedioso, sentimentos de insuficiência, pensamentos paralisados, retardo psicomotor, dificuldade em tomar decisões e construções de ideias depressivas”.

O autor considerava a melancolia e a mania pura formas necessárias para a compreensão da doença maníaco-depressiva, em que essas síndromes raramente apareceriam em seu estado puro, mas de maneira mesclada. A forma de doença unipolar ou pura teria curso periódico sempre com a mesma sintomatologia, não associada a nenhuma outra síndrome. Leonhard retomou Kleist ao dividir as “psicoses fásicas” em bipolares e em unipolares, ou em polimorfas e puras, respectivamente. Para ele, a forma bipolar ou polimórfica de doença não significava uma variância entre dois polos, mas cada fase mostrando diferentes apresentações ao mesmo tempo. Assim, não se podia descrever claramente uma síndrome pelas várias transições entre diversos quadros que se davam num mesmo momento (Leonhard, 1999Leonhard, K. (1999). Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology. In H. Beckmann (Ed.), Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology (2nd, revis ed.). Springer Vienna. https://doi.org/10.1007/978-3-7091-6371-9
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).

Para diferenciar melancolia pura e mania pura das depressões puras e euforias puras, Leonhard advogava que tanto na melancolia quanto na mania não somente o afeto se perturbava, como também o pensamento e a vontade. Assim, as depressões e euforias puras representavam para ele psicoses endógenas em que somente o lado afetivo estaria alterado, pelo menos majoritariamente (Leonhard, 1999Leonhard, K. (1999). Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology. In H. Beckmann (Ed.), Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology (2nd, revis ed.). Springer Vienna. https://doi.org/10.1007/978-3-7091-6371-9
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). Apesar disso, suas descrições incluem alterações que vão muito além de emoção, afeto e humor.

Nas “psicoses cicloides” salientou características clínicas “bipolares”, ou seja, manifestações de diversas ordens ocorrendo dentro de um mesmo episódio. Para Leonhard, haveria recuperação total após cada fase, de modo que, após repetidas crises e hospitalizações, o paciente manteria seu “vigor”, o que também ocorreria na doença maníaco-depressiva (Leonhard, 1999Leonhard, K. (1999). Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology. In H. Beckmann (Ed.), Classification of Endogenous Psychoses and their Differentiated Etiology (2nd, revis ed.). Springer Vienna. https://doi.org/10.1007/978-3-7091-6371-9
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). Apesar disso, para o autor, a discussão de diagnóstico diferencial das psicoses ciclóides estava muito mais inclinada às suas esquizofrenias do que à psicose maníaco-depressiva (Teichmann, 1990Teichmann, G. (1990). The influence of Karl Kleist on the nosology of Karl Leonhard. Psychopathology, 23(n. 4-6), 267-276.).

A classificação de Leonhard demorou a ser conhecida mundialmente e não teve tão grande impacto quanto havia tido Kraepelin na virada do século. Leonhard vivia na Alemanha Oriental no pós-II Guerra Mundial (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). A primeira edição de seu manual foi apresentada em 1957 e em língua alemã, época em que, na Europa, as concepções de Bleuler e Kraepelin já haviam sido universalmente aceitas. Sua conexão com Kleist e Wernicke facilmente evocava a ideia de localização cerebral de lesões, o que estava sendo tomado como obsoleto e falho. Assim, foi visto com descrédito. Além do mais, a aplicação de seu sistema se mostrou difícil à prática clínica. Suas ideias ficariam retidas por décadas em território germânico, até a tradução de seu tratado para o inglês em 1979, responsável pela influência que teria nos EUA (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.).

Apesar dessas dificuldades e do seu menor prestígio, a nosologia leonhardiana teve seus trabalhos replicados durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, inicialmente por Carlo Perris (1966, 1988) e Jules Angst (1966) na Europa, e posteriormente por George Winokur (1979) nos Estados Unidos, todos de forma independente (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Foram justamente tais trabalhos iniciais na década de 1960 que fizeram mais conhecida a teoria de que haveria uma separação entre doenças unipolar e bipolar.

Perris começou sua pesquisa sobre as diferenças entre depressões bipolares e unipolares em termos genéticos (Perris, 1966 apud Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.). Perris desejou reafirmar tais resultados, justificando-os pela existência encontrada de mais casos de bipolaridade em parentes de pacientes com depressão bipolar, enquanto haveria mais casos de depressão unipolar em parentes de pacientes com tal quadro. Todavia, isso não era verdadeiro no caso da mania. Mesmo considerando apenas os resultados das formas de depressão, isso não garantia que as manifestações unipolares e bipolares fossem condições distintas, como defendeu. Ao defender Leonhard, Perris desconsiderou a possibilidade de manifestações diversas de uma mesma doença a partir de diferentes modulações genéticas. Assim, apesar de certa manifestação ser esperada na família, ela pode não se dar, ocorrendo outra forma da mesma doença em seu lugar. Apesar das muitas tentativas, os estudos de Perris não conseguiram estabelecer diferenças significativas em biomarcadores entre as depressões uni e bipolares no que tange ao diagnóstico diferencial, além do já considerado episódio maníaco (Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.).

Na Suíça, Angst iniciou a replicação dos trabalhos de Leonhard a partir do acompanhamento de uma coorte em Zurique desde o final da década de 1950. Os dados prospectivos acumulados serviram para apoiar, naquele momento, a nosologia baseada na subdivisão da doença afetiva nas categorias unipolar e bipolar (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). A partir de resultados colhidos nas décadas seguintes, no entanto, reportou alto número de formas intermediárias de depressão, tanto nos pacientes com diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior (TDM) quanto de Transtorno Bipolar (TB), considerando, de forma anacrônica, os critérios do DSM-IV. Foi surpreendido pelo fato de que cerca de metade de todos os episódios depressivos em ambos os grupos de sua pesquisa envolviam, na verdade, estados mistos. Sendo assim, muitos diagnósticos que inicialmente corroboravam a existência da depressão unipolar apresentavam, na verdade, características bipolares se o curso de doença fosse examinado longitudinalmente. Após décadas, Angst mudou sua posição e passou a apoiar a visão Kraepeliana (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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).

Tais pesquisas significaram um novo impulso na fronteira científica da psiquiatria biológica e acabaram por incentivar a criação de um programa colaborativo de pesquisa em transtornos depressivos (Collaborative Research Study on Depressive Disorders) do NIMH, em 1969. Contudo, foi rapidamente identificado que a nosologia utilizada pela psiquiatria americana estava aquém da acurácia diagnóstica requerida para esse tipo de estudo. A falha persistente em encontrar preditores de diagnósticos psiquiátricos foi atribuída às distinções pouco delimitadas entre os transtornos. A falta de um padrão-ouro para os diagnósticos seria, então, um obstáculo às pesquisas biológicas. Na falta de marcadores diagnósticos moleculares ou de neuroimagem, o uso de critérios diagnósticos operacionais se fazia extremamente necessário (Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.).

Paralelamente a isso, desde os anos 1960, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Associação Americana de Psiquiatria (APA) trabalhavam de forma colaborativa em suas classificações, o que veio a culminar em sua harmonização (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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). Isso também teria influência significativa nas futuras propostas da CID e do DSM em relação aos transtornos afetivos. Concomitantemente, desde o início da década de 1970, nos EUA, diversos departamentos acadêmicos de Psiquiatria estavam desenvolvendo seus próprios critérios diagnósticos para os transtornos mentais, já que o momento científico demandava a validação das síndromes clínicas, além da estratificação das informações e dos resultados nos estudos. Essas tendências convergiram na publicação do DSM-III pela APA, em 1980, havendo maior peso na contribuição dos pesquisadores da Universidade de Washington (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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; Ghaemi & Dalley, 2014Ghaemi, S. N., & Dalley, S. (2014). The bipolar spectrum: Conceptions and misconceptions. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 48(4), 314--324. https://doi.org/10.1177/0004867413504830
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).

No DSM-III, cada transtorno mental foi definido, de forma operacional, em uma lista de sinais e sintomas coletados a partir da observação do examinador e do relato do paciente. Tal relato era apreendido basicamente de maneira objetiva, deixando de lado sua experiência subjetiva para o trâmite diagnóstico. O diagnóstico seria validado se certo número de critérios fosse preenchido a partir de parâmetros definidos em relação ao número de sinais e sintomas presentes, à duração do quadro, a características do curso da doença e a critérios de exclusão. Apesar de desenhadas inicialmente para a área de pesquisa, aspirava-se que as definições operacionalizadas permitissem que, independentemente da orientação teórica, qualquer profissional de saúde mental com bom treinamento pudesse realizar um diagnóstico clínico. Esperava-se também um maior rigor científico, assim como uma maior concordância diagnóstica entre diferentes examinadores (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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).

É de se espantar que, mesmo com seus critérios operacionais, o DSM-III não tenha considerado majoritariamente dados de pesquisa em sua elaboração. Havia poucos estudos com relevância estatística para tal, sendo grande parte de seus alicerces construídos com base em consensos de especialistas (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). A despeito disso, a aceitação do DSM-III foi surpreendentemente maior do que a de suas edições anteriores e da CID-9. Passou a ser usado nas pesquisas clínicas e na prática médica, na criação de entrevistas clínicas estruturadas, por planos de saúde e seguradoras americanas, e nas pesquisas e regulações de organizações científicas e agências federais norte-americanas, como o NIMH (The National Institute of Mental Health) e o FDA (Food and Drug Administration), respectivamente (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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). Assim, por meio da utilização de seus critérios diagnósticos, as preferências políticas de dentro da APA se propagavam e aumentavam sua influência tanto nos EUA quanto internacionalmente (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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).

A nosologia diagnóstica proposta pelo DSM-III acabou por dividir a Doença Maníaco-Depressiva em dois grandes transtornos, o Transtorno Bipolar (TB) e o Transtorno Depressivo Maior (TDM), ambos na categoria de transtornos afetivos. Havia, assim, a possibilidade do diagnóstico de depressão bipolar e depressão unipolar, cada uma delas “pertencendo” a seu respectivo transtorno (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). Uma das mais significativas mudanças advindas do DSM-III foi a criação do conceito de “episódio”, delimitado a partir da presença de critérios específicos. O diagnóstico de um transtorno seria, então, formado a partir da ocorrência de certos tipos de “episódio”, o que representou uma mudança radical em relação ao caminho percorrido por Kraepelin para o diagnóstico de “Insanidade Maníaco-Depressiva”. Se, para este, o ponto principal era a recorrência de mania ou depressão, não sendo necessária a manifestação de ambas no curso de doença de um indivíduo “maníaco-depressivo”, a partir do DSM-III quem definia o diagnóstico de Transtorno Bipolar era a presença de pelo menos um episódio maníaco (Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

Foram considerados como validadores dos diagnósticos pelo DSMI-III a presença de características que se diferenciavam em cinco grupos. No grupo dos “sintomas”, foi fixado que episódios maníacos só ocorreriam no TB. Com relação à “história familiar”, a herança genética seria mais significativa nos casos de mania ou depressão bipolar do que de depressão unipolar. O “curso de doença” de cada um tinha suas particularidades: enquanto no TDM os episódios depressivos teriam menor frequência e maior duração, no TB os episódios maníacos e depressivo recorreriam de forma mais frequente e com duração curta, tendo os sintomas maníacos uma rápida escalada em intensidade; no primeiro caso, a idade de início poderia se dar em qualquer fase da vida, podendo ser mais tardia, enquanto, no segundo, o início era mais precoce e geralmente com um episódio inicial maníaco. No validador de “resposta ao tratamento”, considerou-se melhora clínica da depressão unipolar com antidepressivos tricíclicos e da depressão bipolar com o uso do lítio. Na depressão unipolar, foram considerados deficitários os sistemas noradrenérgico e serotoninérgico, ao passo que a anormalidade em “marcadores biológicos” em quadros com mania ocorreria no sistema dopaminérgico (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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).

No entanto, poucas dessas propostas conceituais se amparavam em dados científicos, como marcadores genéticos, mecanismos fisiopatológicos e respostas terapêuticas do TDM. Elas também estavam bem distantes do que se tinha por Insanidade Maníaco-Depressiva no início do século XX. O que definia a doença bipolar para Kraepelin se firmava na recorrência dos quadros afetivos e tinha amparo em seus dados de pesquisa. No entanto, o que se tornou relevante para o DSM-III era a ocorrência de uma natureza de episódio, pelos menos, o maníaco. Isso foi, outrora, irrelevante. Além disso, a abordagem categorial do DSM-III assumiu limites claros entre depressão unipolar no TDM e bipolar no TB, sendo apreendidos como comórbidos os sintomas que antes seriam considerados associados em um continuum clínico. Isso contrastou com o entendimento kraepeliano, que incluía toda disfunção de humor em um mesmo espectro (Henry & Etain, 2010Henry, C., & Etain, B. (2010). New ways to classify bipolar disorders: Going from categorical groups to symptom clusters or dimensions. Current Psychiatry Reports, 12(6), 505-511. https://doi.org/10.1007/s11920-010-0156-0
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). Assim, podemos considerar que Karl Leonhard, falecido em 1988, teve alguns de seus conceitos incorporados ao DSM-III mesmo que de forma indireta, contribuindo para o ideário que circunda os transtornos de humor nas classificações atuais (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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).

Dessa forma, as regras operacionalizadas estreitaram a definição de doença bipolar e estavam muito mais próximas da divisão proposta pela escola de Wernicke, Kleist e Leonhard, especialmente a feita na década de 1950 por este último, que influenciaria o DSM-III, apesar de quase nunca lembrada (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). A despeito do enfraquecimento da visão espectral kraepeliana com o DSM-III, a partir de 1980, a divisão dos transtornos de humor em bipolares e unipolares gerou uma espécie de piada acerca do grupo de St. Louis, que passou a ser amplamente chamado de “neo-kraepeliano”. Infelizmente, a piada foi tomada por muitos como legítima e se sustenta até hoje no imaginário histórico da Psiquiatria. O “neo-kraepelianismo” e seus diagnósticos psiquiátricos operacionalizados, no entanto, vão na contramão da posição inclusiva de Kraepelin (Healy, 2008Healy, D. (2008). Mania: A short history of bipolar disorder. In Johns Hopkins biographies of disease. The Johns Hopkins University Press.).

Desdobramentos após o DSM-III

Após a publicação do DSM-III, ao longo das décadas de 1980 e 1990, a utilização de seus critérios operacionais em pesquisas deu margem a novos achados (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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). Foram consideráveis as inconsistências e a falta de clareza dos critérios quanto a informações de prevalência, curso de doença, herança genética, entre outros aspectos. A validade frágil daquela estrutura diagnóstica, baseada em critérios de sintomas, dava impulso a estudos que levariam à sua própria crítica (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Com relação aos transtornos afetivos, Athanasios Koukopoulos (1931-2013), na Europa, e Hagop Akiskal (1944-2021), nos EUA, são pesquisadores reconhecidos. Tanto Akiskal quanto Koukopoulos encontrariam em Kraepelin a confirmação de suas descobertas (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). Um dos pontos focados por ambos concernia ao estado misto. Ele foi reconhecido de maneira codificada no DSM-III, apesar de já muito contemplado nas obras de Kraepelin e outros autores anteriores. Ainda assim, se mantém o debate acerca de sua existência como um episódio independente ou um período de transição entre episódios de humor (Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

Na Universidade da Califórnia, em San Diego, durante a década de 1970 Akiskal iniciou seus estudos clínicos em transtornos do humor. Apesar de ter aceitado inicialmente a dicotomia bipolar-unipolar da depressão ao fazer parte do processo de criação do DSM-III, encontrou também resultados que iam em sua contramão. Ele ressaltou a alta prevalência de “depressão mista” tanto nos diagnósticos de TB como nos de TDM em seus pacientes (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). Akiskal resgatou o conceito de Ciclotimia, já antes considerado por Kraepelin e Kretschmer, ao descrevê-la como a ocorrência de manifestações afetivas de “baixo grau”, tais como depressão e hipomania “subsindrômicas”, e também considerou o temperamento hipertímico em sua classificação (Akiskal et al., 2000Akiskal, H. S., Bourgeois, M. L., Angst, J., Post, R., Möller, H.-J., & Hirschfeld, R. (2000). Re-evaluating the prevalence of and diagnostic composition within the broad clinical spectrum of bipolar disorders. Journal of Affective Disorders, 59, S5-S30. https://doi.org/10.1016/S0165-0327(00)00203-2
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; Akiskal & Pinto, 1999Akiskal, H. S., & Pinto, O. (1999). The soft bipolar spectrum: Footnotes to Kraepelin on the interface of hypomania, temperament and depression. In Bipolar Disorders (pp. 37-62). Kluwer Academic Publishers. https://doi.org/10.1007/0-306-47521-9_2
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).

Na Itália, Koukopoulos percebeu que os dados de seus estudos também não confirmavam as divisões estereotípicas de depressão, já que muitos casos se mostravam de forma mista (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). Em 2009, Koukopoulos defendeu a tese que cunhou como “Primazia da Mania” (PM). Sua nova noção do espectro bipolar defendia que as síndromes depressivas nunca aconteceriam de forma independente, sendo sempre precedidas por mania, coincidindo com sintomas maníacos ou até com formas de temperamento (hipertímico ou ciclotímico). Incluindo as “formas leves de doença”, Koukopoulos amplificou o conceito de mania, incluindo até momentos de psicomotricidade aumentada, maior intensidade de sintomas ansiosos e temperamentos hipertímicos ou ciclotímicos, ou seja, qualquer forma de excitação. A PM pode ser considerada uma crítica à possibilidade de depressão unipolar leonhardiana, ou seja, depressão apartada da mania (Ghaemi & Vohringer, 2017Ghaemi, S. N., & Vohringer, P. A. (2017). Athanasios Koukopoulos’ Psychiatry: The Primacy of Mania and the Limits of Antidepressants. Current Neuropharmacology, 15(3), 402-408. https://doi.org/10.2174/1570159X14666160621113
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; Koukopoulos & Ghaemi, 2009Koukopoulos, A., & Ghaemi, S. N. (2009). The primacy of mania: A reconsideration of mood disorders. European Psychiatry, 24(2), 125-134. https://doi.org/10.1016/j.eurpsy.2008.07.006
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; Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

Em 1994, a partir da publicação do DSM-IV, o estado misto foi definido por parâmetros rígidos: tanto critérios para episódio maníaco e depressivo deveriam ser preenchidos na maior parte dos dias por, no mínimo, uma semana. Essa definição expunha a falta de compreensão dos estados mistos de Kraepelin, para quem os sintomas de polos opostos se mesclariam ao longo de dias, mas nunca todos ao mesmo tempo (Del-Porto & Del-Porto, 2005Del-Porto, J. A., & Del-Porto, K. O. (2005). História da caracterização nosológica do transtorno bipolar. Revista de Psiquiatria Clinica, 32(SUPPL. 1), 7-14. https://doi.org/10.1590/s0101-60832005000700002
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). Nessa mesma edição, a hipomania ganhou status oficial de episódio. Em 1976, Dunner já enfatizara a importância clínica dos quadros de hipomania, cunhando a expressão “TB do tipo II” (Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

Somente a partir da década de 1990, Akiskal passou a propor a manutenção da divisão entre TB e TDM, mas com a ampliação do Transtorno Bipolar para um formato dimensional. Dentro do “Espectro Bipolar” de Akiskal também seriam contempladas as apresentações atípicas de depressão, assim como tipos de temperamentos (Angst & Marneros, 2001Angst, J., & Marneros, A. (2001). Bipolarity from ancient to modern times: Conception, birth and rebirth. Journal of Affective Disorders, 67(1-3), 3-19. https://doi.org/10.1016/S0165-0327(01)00429-3
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). Verificou-se que determinados sintomas, chamados de atípicos, como hipersonia, agitação psicomotora e aumento de apetite, indicariam a depressão no TB tipo II, em comparação com a depressão unipolar do TDM. Isso aproximava a ideia da depressão com sintomas atípicos do espectro bipolar (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). No entanto, estava sendo criado mais um diagnóstico no DSM-IV. Críticas à parte, foi também considerado que um possível ‘quadro misto’ levantaria a hipótese diagnóstica de transtorno bipolar. Como o critério de duração máxima de sintomas de quatro dias para o episódio hipomaníaco era para Akiskal arbitrário, ele propôs a subtipagem em forma de protótipos para que o TB pudesse abranger mais manifestações, incluindo também o que denominou como “soft bipolar” (Akiskal & Pinto, 1999Akiskal, H. S., & Pinto, O. (1999). The soft bipolar spectrum: Footnotes to Kraepelin on the interface of hypomania, temperament and depression. In Bipolar Disorders (pp. 37-62). Kluwer Academic Publishers. https://doi.org/10.1007/0-306-47521-9_2
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; Mason et al., 2016Mason, B. L., Sherwood Brown, E., & Croarkin, P. E. (2016). Historical underpinnings of bipolar disorder diagnostic criteria. Behavioral Sciences, 6(3). https://doi.org/10.3390/bs6030014
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).

A questão das incongruências nosológicas e conceituais dos transtornos afetivos caminha até o presente. Pelo DSM-5 é apontado que a presença de sintomas mistos em um episódio depressivo unipolar é um “fator de risco significativo para o desenvolvimento de transtorno bipolar tipo I ou bipolar tipo II”. Essa nota presente na página 185 do Manual corrobora uma diferença fundamental com o conceito kraepeliano (APA, 2013APA (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-5®). American Psychiatric Pub. https://doi.org/10.1097/00001888-195209000-00035
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). Para este, caso houvesse recorrência do quadro, ele já estaria incluído em sua entidade, ou seja, não seria um episódio maníaco ou hipomaníaco definidores de doença e seria impensável o desenvolvimento de uma entidade a partir de outra.

Considerações finais

A classificação de Kraepelin que introduziu a Insanidade Maníaco--Depressiva significou uma grande transformação. Tornou-se rapidamente muito influente e ainda é referência para diversas proposições acerca dos transtornos de humor. Propostas alternativas como a da escola de Wernicke--Kleist-Leonhard têm sua importância, mas não foram capazes de se equiparar científica e clinicamente (Porter & Berrios, 2012Porter, R., & Berrios, G. E. (2012). Uma História da Psiquiatria Clínica: A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. Volume II - As Psicoses Funcionais (Coleção Pathos). Escuta.). Ainda assim, a Psiquiatria de orientação puramente biomédica, que guia os sistemas classificatórios atuais, tenta embasar as teorias acerca dos transtornos mentais pesquisando sua etiologia em alterações de estruturas cerebrais, em diversos processos bioquímicos e na biologia molecular. No entanto, apesar da expansão nesse tipo de conhecimento, ainda não se confirmaram substratos anatomopatológicos ou genéticos específicos como causa etiológica para cada transtorno. Assim, os sistemas classificatórios se mantêm majoritariamente fundamentados nos comportamentos observáveis dos pacientes (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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).

Apesar de suas limitações, tais sistemas se mostram de fundamental importância para facilitar a comunicação entre os profissionais e para que esses lidem de forma mais organizada e possam processar um imenso número de informações complexas (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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). Todavia, para que isso seja possível, os fenômenos psicopatológicos, tais como vividos subjetivamente pelos pacientes e que norteiam clinicamente um diagnóstico, não podem ser deixados de lado. A clínica não pode se resumir a um quebra-cabeça de sintomas observáveis servindo como critérios operacionais para o diagnóstico em categorias estanques. Ou seja, os sistemas classificatórios devem ser uma ferramenta à clínica e não o contrário (Clark et al., 2017Clark, L. A., Cuthbert, B., Lewis-Fernández, R., Narrow, W. E., & Reed, G. M. (2017). Three approaches to understanding and classifying mental disorder: ICD-11, DSM-5, and the National Institute of Mental Health’s Research Domain Criteria (RDoC). Psychological Science in the Public Interest, 18(2), 72-145. https://doi.org/10.1177/1529100617727266
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).

A apreensão clínica categorial dos transtornos de humor, por exemplo, se opõe a uma visão em forma de continuum de apresentações clínicas. Retomando a Insanidade Maníaco-Depressiva, fica fácil perceber as distorções embutidas na sua comparação com o Transtorno Bipolar. Uma vez que, para Kraepelin, o que definia a doença era a recorrência de episódios de humor, independentemente se maníacos ou depressivos, a equivalência com o TB proposta pelo DSM-III não se aplica, já que nesse somente a presença de um episódio maníaco o determina (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). Além disso, a abordagem categorial do DSM-III, ainda bastante influente nas versões posteriores do manual, assume limites claros entre depressão unipolar e o TB. Isso contrasta com o entendimento kraepeliano, que incluía toda disfunção de humor no mesmo espectro. Portanto, a visão espectral presume uma abordagem dimensional (Henry & Etain, 2010Henry, C., & Etain, B. (2010). New ways to classify bipolar disorders: Going from categorical groups to symptom clusters or dimensions. Current Psychiatry Reports, 12(6), 505-511. https://doi.org/10.1007/s11920-010-0156-0
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). Nela, os diversos tipos de disfunção do humor se encontram espalhados em um continuum e sua gravidade considera os sintomas associados, em vez de comórbidos.

Apesar de testável cientificamente e historicamente cunhado, o conceito de Espectro Bipolar é tido por muitos como inclusivo ao extremo e de contornos imprecisos, assim como sua validade é comumente criticada. Com seu uso, preocupa-se com a dificuldade de diagnóstico diferencial com alguns transtornos, tais como Borderline, de Personalidade Histriônica, de Estresse Pós-Traumático e Dissociativo. Isso mostra duas questões. A primeira é a de que o uso do termo “transtorno” esconde e simplifica as diferentes naturezas ontológicas existentes entre essas formas clínicas. A segunda é a do que se considera sintoma de ocorrência comum que poderia causar essa confusão. Para Kraepelin, o diagnóstico de certo tipo de doença devia estar ancorado em características clínicas e no curso que a refletissem. Ao longo dessa observação longitudinal o que se repetia fazia o diagnóstico. Assim, torna-se vaga e indefinida a alocação de sintomas soltos e não específicos sob a denominação de “transtorno” (Ghaemi & Dalley, 2014Ghaemi, S. N., & Dalley, S. (2014). The bipolar spectrum: Conceptions and misconceptions. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 48(4), 314--324. https://doi.org/10.1177/0004867413504830
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).

Ghaemi lembra que focar em sintomas soltos, como labilidade de humor ou impulsividade, pode tanto levar ao diagnóstico de transtorno de personalidade borderline ou doença maníaco-depressiva, por exemplo. No entanto, ao se considerar os principais validadores diagnósticos (curso de doença com múltiplos episódios de humor e aumento da psicomotricidade; presença de história familiar) e sintomas nucleares é esperada uma melhor acurácia diagnóstica (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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). Isso também responde ao receio de “sobrediagnóstico” ou aumento de falsos positivos “bipolares”. Esse pensamento ainda leva em consideração um método de diagnóstico operacionalizado, baseado em listas de sintomas (Ghaemi & Dalley, 2014Ghaemi, S. N., & Dalley, S. (2014). The bipolar spectrum: Conceptions and misconceptions. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 48(4), 314--324. https://doi.org/10.1177/0004867413504830
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).

Outro ponto na crítica do Espectro Bipolar desconsidera trabalhos recentes. Akiskal, por exemplo, defendeu a subtipagem e resgatou os tipos de temperamentos a fim de confirmar a visão dimensional da doença. Koukopoulos e Angst encontraram mais argumentos a favor dos estados mistos do que das formas puras de depressão e mania. Algumas décadas depois, no entanto, o DSM-III cunhou como “transtorno” a distimia e a ciclotimia, além de excluir a hipertimia (Ghaemi, 2013Ghaemi, S. N. (2013). Bipolar spectrum: A review of the concept and a vision for the future. Psychiatry Investigation, 10(3), 218-224. https://doi.org/10.4306/pi.2013.10.3.218
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).

As críticas e considerações acima construídas só foram possíveis após a formulação de um anteparo argumentativo embasado no resgate histórico internalista do pensamento psiquiátrico sobre as afecções do humor. Para além disso, foram contrapostas visões categóricas e dimensionais com seus diferentes embasamentos e validades científicas. A análise de nosologias e conceitos de diferentes contextos permitiu a exposição de compreensões conflitantes presentes em sua própria gênese. Isso deixa como questões a importância do registro histórico da Psiquiatria e de como deve ser o uso racional dos sistemas classificatórios atuais.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding..

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2021
  • Revisado
    16 Nov 2021
  • Aceito
    10 Jan 2022
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