Acessibilidade / Reportar erro

O psiquiatra em conflito: fatos, valores e virtudes nas internações involuntárias

The conflicted psychiatrist: Facts, values and virtues in the dilemma of involuntary commitment

Castellana, Gustavo Bonini. O psiquiatra em conflito. Blucher, 2021. 192

Resultado da tese de doutorado apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em setembro de 2019, sob orientação da profa. dra. Lilia Blima Schraiber. É fruto da experiência do autor como psiquiatra forense na orientação a médicos residentes junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor) do Instituto de Psiquiatria.

O escopo da obra, mediante metodologia qualitativa, é o de avaliar as condições subjacentes à deliberação do psiquiatra em casos clínicos “difíceis”, isto é, quando ele se vê em um dilema ético entre a indicação de tratamento em regime de internação e a recusa do paciente em acatá-la; ou seja, o de impor um procedimento involuntário ao enfermo, quando os supostos benefícios a este (tais como a proteção à vida) equivalem a eventuais danos (tais como o sofrimento moral em face da coerção à livre vontade de decidir sobre si).

A estrutura do livro se dá pela seguinte sequência: no capítulo 1, a explicitação dos métodos qualitativos referendados para a análise dos casos clínicos dilemáticos dispostos em seu material empírico; no capítulo 2, a condição epistemológica obscura e ambígua do diagnóstico psiquiátrico, seja pela questão disputada da realidade ontológica da doença (ou transtorno?) mental, seja pela diversidade e imprecisão das matrizes teóricas classificatórias da nosologia psiquiátrica; no capítulo 3, os valores bioéticos (beneficência, autonomia e outros) que substanciam a ação moral dos psiquiatras nos casos clínicos fronteiriços, disposta, no mais das vezes, num continuum entre um paternalismo forte e um paternalismo fraco; no capítulo 4, as qualidades necessárias do psiquiatra para uma sabedoria prática, ou deliberação prudencial (do grego: phronesis), diante da natureza complexa e da significativa irredutibilidade eidética da expressão fenomênica dos eventos mentais; no capítulo 5, a legalidade da internação involuntária (lei federal 10.216/2001) à prova de sua necessária legitimidade, dada pela racionalidade técnico-científica e ética que, numa concepção weberiana, deve obedecer a objetivos e valores adequados à recuperação e à defesa da saúde, assim como à preservação da dignidade humana em contexto de iminente privação de liberdade; no capítulo 6, os relatos e coleta de dados dos 17 sujeitos de pesquisa, médicos residentes, e a análise dos fatores dispostos e cotejados na decisão pela implementação ou não da internação involuntária, a saber: o diagnóstico e o prognóstico da crise mental, a magnitude dos riscos ou agravos à saúde, a qualidade assistencial prevista para o tratamento extra-hospitalar, a capacidade de decisão do paciente, a qualidade do seu vínculo com a equipe de tratamento e sua família, além dos valores, por vezes confitantes, entre todos os atores envolvidos; no capítulo 7, a experiência prévia dos entrevistados com o próprio sofrimento mental, na graduação e na residência médica, alguns deles tendo mesmo passado por crises psíquicas.

Dados os resultados da inquirição, o autor desenvolve a sua interpretação e análise crítica, cotejando distintas chaves de compreensão praticadas pela Psiquiatria vigente: a modalidade sintomatológica-criteriológica, sob matriz neurocientífica, mediante perspectiva objetivante, hipotético-dedutiva, e de terceira pessoa; psicodinâmica-psicanalítica, em perspectiva da relação sujeito/objeto, transferencial e contratransferencial, e, portanto, de segunda pessoa; e fenomenológica-antropológica, de natureza qualitativa, a partir dos conteúdos vivenciais e elocução narrativa de primeira pessoa, a pessoa que sofre.

Nesse sentido, não houve variação significativa nos diagnósticos noso-gráficos elencados pelos residentes, dado interpretado pelo autor em face da formação teórica convergente dos mesmos, com a prevalência da visão classificatória tradicional da formação médica. No entanto, o autor considera que não é a classificação diagnóstica apenas, e seus agravantes correlatos, que há de nortear e legitimar a indicação de uma internação psiquiátrica involuntária, mas, sim, a consideração global do indivíduo que, enfermo, provisória e parcialmente incapaz, e sob risco iminente à sua integridade biopsíquica, se totaliza como sujeito de direitos, pessoa singular, detentora de dignidade e valores próprios, em um dado contexto normativo e cultural. Importa, então, à prática psiquiátrica, a necessidade de um autoquestionamento reflexivo constante de sua ambiguidade epistemológica e condição fronteiriça entre as ciências que respondem pelo psiquismo humano: segundo Windelband (2002)Dufour, E. (2002). La philosophie de Wilhelm Windelband. In Windelband, W. Qu’est-ce que la Philosophie et autres textes. Vrin., as ciências nomotéticas da natureza, universalizantes, e as ciências do espírito ou da cultura, em chave idiográfica, cujo alvo é a compreensão dos sentidos que confguram e movem a singularidade de cada um.

Dignas de nota, ainda, as referências que o autor faz às experiências prévias dos residentes, antes ou durante a graduação médica, e que influenciam as suas respostas mais imediatas, e menos refetidas, ao sofrimento do outro. Vale dizer: espera-se do psiquiatra uma visão sinóptica de tudo quanto envolve, estrutura (e desestrutura) a pessoa humana em sofrimento mental, inclusive os seus próprios pressupostos teóricos ou valorativos.

Para isso, o psiquiatra cioso e competente deve habituar-se a uma vigilante metapsiquiatria, porque, ao pensar sobre o seu pensamento e a sua prática, há de aprimorar o seu instrumental intuitivo e analítico para julgamentos clínicos e tomadas de decisão mais pertinentes e prudenciais.

Além disso, é precisamente em Husserl (2006Husserl, E. (2006). Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. (Marcio Suzuki, Trad.). Ideias & Letras., 2012)Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental – uma introdução à filosofia fenomenológica. (Diogo Falcão Ferrer, Trad.). Forense Universitária., pai da fenomenologia flosófica, fonte fecunda de todas as psicopatologias fenomenológicas, desde Jaspers, Minkowski e outros, que o psiquiatra pode aperfeiçoar seu ato perceptivo de investigador frente ao objeto investigado. Pareando os conteúdos dados de intenções formalizantes e conceituais, próprias da atitude transcendental, com os recebidos de futuação atencional cognitivo/afetiva livre e passivamente empática, em tudo permeável à imanência viva do fenômeno.

Enfim, a lição mais preciosa que nos fica da leitura da presente obra é a da necessária humildade com que se busca a compreensão daquele que sofre. Compreensão corroborada pela orientadora do autor que, em sensível posfácio, e a partir de sua experiência de trinta anos como clínica de atenção a adultos, assevera que, assim como na Psiquiatria, em toda a Medicina, a ciência e arte de cuidar é sempre um ato de particularização do geral em face do concreto, e que a virtude do médico requer, no caso, a assunção da complexidade única daquele de quem se cuida.

Referências

  • Dufour, E. (2002). La philosophie de Wilhelm Windelband. In Windelband, W. Qu’est-ce que la Philosophie et autres textes Vrin.
  • Husserl, E. (2006). Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. (Marcio Suzuki, Trad.). Ideias & Letras.
  • Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental – uma introdução à filosofia fenomenológica (Diogo Falcão Ferrer, Trad.). Forense Universitária.
Editor/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com