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A Psicopatologia em tempos sombrios e o sofrimento no circuito capitalista da produção e consumo*1 *1 Texto originalmente apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, nos dias 9 e 10 de setembro de 2022. Aqui publicado com ligeiras alterações.

Psychopathology in dark times and suffering in the capitalist circuit of production and consumption

Nos dias 9 e 10 de setembro deste ano de 2022, ocorreu o XVI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, organizado pela Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Dadas as condições sociopolíticas atuais, a Associação decidiu por abordar a questão da Psicopatologia em tempos sombrios, desafo necessário à comunidade psicanalítica. Em primeiro lugar, por nos convidar a refetir sobre um tema que marca nossa contemporaneidade, de modo a colocá-lo em relação com a experiência singular da clínica. Mas, certamente, essa não é tarefa simples, principalmente se lembrarmos da definição que Giorgio Agamben deu ao contemporâneo, a saber, aquilo que não podemos compreender. No caso, nosso contemporâneo é o neoliberalismo. É o caso aqui de avançar a respeito dos impactos psíquicos e sobretudo sobre suas estratégias de captura dos sujeitos das relações sociais.

Estes dois aspectos constituem, em princípio, duas tarefas diferentes. Diante das estratégias de captura do sujeito no neoliberalismo, temos o desafo de compreender a eficácia sobre o psiquismo das novas tecnologias do mundo digital, que transformaram o mundo que conhecíamos até há vinte e poucos anos, penetrando silenciosamente em nossa cultura, alterando nossa linguagem, nossas formas de nos relacionarmos com nosso corpo, com nossos outros, e de pensarmos nossos desejos e ideais. Não são pequenas transformações, é o mínimo que se pode dizer, o que dá ideia da dificuldade de enfrentar esse desafo do ponto de vista psicanalítico.

Já sobre a questão dos impactos dessas tecnologias sobre os sujeitos, questão incluída naquela da relação do sujeito com a dimensão social, a psicanálise tem mais experiência. Aqui cabe retomar o ponto de vista psicanalítico sobre a cultura, que parte da experiência clínica do sofrimento psíquico. Resumidamente, a teoria freudiana sobre o sofrimento apresenta duas causas, dois centros articulados entre si, o que nos permite representá-la com a figura de uma elipse (Silva Junior, 2017Silva Junior, N. (2017). O sofrimento como hífen na teoria social freudiana e sua atualidade. O exemplo das modificações corporais. In N. Silva Junior, & W. Zangari (Orgs.). A psicologia social e a questão do hífen. (pp. 135-148). Edgard Blücher.). O primeiro centro dessa elipse é definido pela passagem do estado humano selvagem para aquele da cultura, o que exige renúncias radicais das duas grandes fontes pulsionais, a saber: o amor e o ódio. Sem tais renúncias a cultura não se torna possível. O segundo centro causal diz respeito aos modos de narrar essas primeiras renúncias, e aqui estamos no campo da verdade, ou, mais precisamente, das modalidades de falta para com a verdade. Pois sempre encontramos formas disfarçadas de compensação para as renúncias pulsionais e as formas de narrarmos o sofrimento desse jogo costumam ser particularmente inverídicas. Parafraseando Fernando Pessoa, a psicanálise tem sido esse saber e essa prática sobre os nossos modos de nos desconhecermos. Não são poucos....

A importância dessa perspectiva sobre o sofrimento como fruto das renúncias pulsionais e das formas de desconhecê-las é tal, que ela coincide com a própria metodologia psicopatológica freudiana. Nessa metodologia, o sofrimento é, a cada vez, uma experiência singular, mas possui relações íntimas com a cultura que a transcende. De fato, o sofrimento é marcado sempre pelo excesso, pelos exageros de deformações inerentes à patologia como tal. Tais exageros são o que permite a Freud conceber as estruturas psíquicas que permanecem silenciosas na normalidade (Silva Junior, 2000Silva Junior, N. (2000, jun.). Metodologia psicopatológica e ética em psicanálise:o princípio da alteridade hermética. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, III(2), 129-133.). Note-se que a partir desta perspectiva metodológica, a normalidade como tal é silenciosa, o que implica uma política psicanalítica própria, em que o sujeito é pressuposto como entidade radicalmente desconhecida, o que permite que retornemos ao incompreensível de nosso contemporâneo.

O que o capitalismo instaura como ordem social, e quais são suas consequências para cada um hoje? A reflexão sobre estratégias de captura dos sujeitos passa por aquela da teoria freudiana da dominação e por seu confronto com as suas formas atuais. Esse retorno servirá para isolarmos a diferença essencial entre o tempo da crítica freudiana à moral sexual vienense e o nosso, a saber, o fato de que os processos de dominação passaram da instrumentalização de narrativas essencialmente patriarcais para a produção de discursos que colocam em jogo a renúncia ao gozo e sua compensação. Em outras palavras, nas tecnologias de poder em jogo ao longo do último século, passamos do segundo centro causal da elipse freudiana do sofrimento, aquele das faltas para com a verdade, para o primeiro centro, isto é, aquele das renúncias pulsionais sem as quais um humano não pode entrar na cultura. A diferença é simples, mas, ao mesmo tempo, fundamental.

Vejamos como funciona a crítica freudiana ao poder como deformação da verdade. Na análise do poder sobre o sujeito, a psicanálise se concentrou inicialmente na problemática inaugurada por La Boétie conhecida pelo enigma da servidão voluntária. Freud aborda a submissão aos líderes pela chave das representações substitutivas da instância paterna. Do ponto de vista econômico, essa abordagem se dá tanto pela lógica do erotismo e dos ideais (como, por exemplo, em “Totem e tabu”, de 1913, e “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921, quanto pela lógica da segunda teoria das pulsões, que opõe o desamparo à função de equilibração do masoquismo (“O problema econômico do masoquismo, de 1924, e “O mal-estar na civilização”, de 1930). Trata-se de um dispositivo teórico extremamente útil para compreendermos o fascínio das massas em relação a líderes calculadamente estúpidos, como diz Ian Parker, e, portanto, de extrema atualidade no mundo, e, mais particularmente, no Brasil.

Mas com a evolução do capitalismo nossos valores, nosso certo e errado, o que cada um de nós deve almejar ser, ou seja, os principais elementos da cultura passaram a um outro regime, aquele de função instrumental no circuito produção e consumo. Diante disso a psicanálise é convidada a reconhecer novas formas de alienação do sujeito. Em Lacan temos um avanço importante na interpretação psicanalítica da alienação com os matemas do discurso do capitalista, onde o objeto a, expropriado do trabalhador na forma de mais-valia, retorna como isca na forma de mercadoria. Em outras palavras, se a mais valia priva o sujeito de uma parte de seu tempo de vida, os objetos de consumo prometem uma compensação na lógica do mais-de-gozar.

Trata-se de um avanço na análise do poder diferente da análise freudiana, na medida em que aborda a alienação no registro pulsional, o primeiro centro da elipse, e não mais narrativo, centrado no segundo centro. Passamos das formas edípicas de narração dos ideais, onde vigora uma sintaxe do desejo e das identificações, para uma gestão do gozo, ou seja, da falta original e as possibilidades de sua obturação. Tal avanço é apropriado para o desvelamento da dominação em um novo campo, inscrito nos próprios discursos, para além das instâncias ideais, como era o caso de Freud. Com essa teoria, estamos em discussão direta com o campo do que Foucault descreveu como a presença do biopoder nos modos de subjetivação, isto é, os modos pelos quais os humanos se entendem como sujeitos de certa sociedade, isto a partir do que os discursos dessa sociedade dizem sobre o que é a verdade, o que é o correto e o errado, e o que cada um deve fazer para cuidar de si nesse lugar.

Lacan, tal como Foucault, são herdeiros de uma guinada na crítica à ideologia feita por Heidegger, guinada marcada basicamente pelo fato deste incluir a constituição do sujeito no problema da alienação. Esse passo foi necessário pois ficara claro que uma mera crítica à ideologia, entendida como “falsa consciência”, era impotente para a emancipação do capitalismo e de suas estratégias discursivas. Para Marx havia uma possibilidade de conscientização da alienação pelo saber, isto é, pelo desvelamento da verdade do modo capitalista de produção e, a partir desse evento, uma emancipação do lugar ocupado pelo proletariado nessa forma de produção. Para Heidegger, em sua crítica à técnica, essa emancipação pela consciência se torna inviável. Pois a técnica de que se trata é aquela que precede e constitui os sujeitos na forma de discurso estruturado como “extração e acúmulo”, isto é, na objetivação, instrumentalização e precificação total do mundo. Heidegger apontou uma saída pela via poética, ou seja, pela recusa da forma técnica do dizer. Tal saída poética para o dizer técnico mostra bem onde se localiza o problema da alienação: não mais na consciência, mas na linguagem com a qual pensamos e dizemos. Estamos num impasse, e ninguém denunciou mais claramente que o lugar desse impasse da alienação era a própria língua do que Paul Celan (apud Carone Netto, 1973Carone Netto, M. (1973). Paul Celan: a linguagem destruída. Folha de S.Paulo, 19.8.1973.(incluir nas referências), poeta judeu que escrevia em alemão: “Minha língua materna, escreve Celan, é a língua dos assassinos de minha mãe”.

Diante desse impasse inscrito na linguagem, cada um a seu modo, Heidegger, Lacan e Foucault fazem a aposta que, se é na língua que o sujeito se aliena, isto não acontece de forma absoluta. Em Lacan uma série de elementos conceituais garantem que essa alienação não é total: temos o objeto pequeno a, para sempre perdido, nomeado objeto causa do desejo; temos a falta constitutiva da entrada do sujeito na linguagem e temos também o provocativo princípio de toda possibilidade de separação no psiquismo: “Não há relação sexual”. A alienação, por sua vez, se reconstitui em formas sintomáticas por meio de uma segunda série, que podemos chamar de série de suplências, ou seja, as formas de obturação dessa falta do objeto ou desse hiato fundamental nas relações. Seja a lógica metonimicamente infinita do desejo, seja o culto da própria imagem, de uma identidade, seja o amor, o ódio ou a estupidez, e cada uma a seu modo, essas suplências possuem uma dupla dimensão: por um lado se organizam narrativamente no campo do sentido, por outro, são modalidades de gozo com função de obturação da falta constitutiva. As tecnologias de persuasão do capitalismo, descritas por Adorno e Horkheimer sob a denominação de Indústria Cultural, capturam elementos dessa série. Mas, cada vez mais, capturam o sujeito pela dimensão do gozo na série de suplências, criando sequências infinitas de mercadorias, de gadjets, de must haves, e de formas de pensar e de agir que potencializam o circuito fechado da produção e consumo. Podemos aqui voltar ao que Lacan propôs como o discurso capitalista, para isolar mais claramente a dimensão onde essa captura e modula o gozo pulsional descrito no primeiro centro da elipse freudiana.

Um exemplo relativamente simples da captura do sujeito na lógica do gozo no discurso capitalista é dado pelo circuito formado entre o trabalho e sua falsa oposição, o turismo. Considerando o capitalismo a partir de sua essência, isto é, pela objetivação e extração de uma parcela do tempo de vida do trabalhador sob a forma de mais-valia, Lacan avança que essa perda vital se insere nas trocas sociais como um elemento de valor inestimável, o mais-de-gozar. O turismo é uma dessas trocas. De fato, o turismo oferece a promessa de uma recuperação de uma parte do gozo privado do trabalhador, essa parcela perdida de si. Contudo, ao prometer as experiências que o recuperariam, o turismo, na verdade, dá continuidade ao processo de extração de tempo do trabalhador pela produção capitalista. Temos aqui a lógica do “lugarzinho” tão bem descrita em certa crônica de Luís Fernando Veríssimo: o “lugarzinho” é uma experiência rara, acessível apenas para os entendidos, certo prato em certo restaurante fora do circuito turístico, uma amizade improvável com o dono e seus privilégios únicos. A falta, velha conhecida do trabalhador, é recolocada no “lugarzinho” ausente, e a promessa de gozo futuro coloca o turista em seu novo trabalho, aquele de consumidor. De fato, considerado pela perspectiva da desapropriação do gozo, o turista não se distingue do trabalhador, tem as mesmas angústias, os mesmos prazeres fugazes, as mesmas vitórias e derrotas. Enquanto trabalha, o sujeito sonha em recuperar esse gozo de tempo perdido no futuro. Nesse futuro, pensa ele, irá consumir no presente cada experiência de gozo objetivada como se estivesse fora da lógica da promessa de gozo futuro. Quando finalmente está em férias, trabalha como consumidor em busca da experiência de gozo, mas quando a encontra, ele de algum modo sabe que não está fora dessa lógica, pois deve “entregar” seu gozo para um outro. Essa é a razão pela qual não para de tirar fotos de cada uma dessas experiências: cada prato de comida exótica, cada marco histórico ou local pitoresco deve ser devidamente registrado como prova futura do “gozo usufruído”. Na verdade, nesse momento, o gozo continua a ser promessa futura, isto é, aquele implícito na função de repórter de si próprio. Nesse sentido, o circuito da falta e da promessa de gozo no tempo de trabalho e no tempo de turismo são processos indistinguíveis no discurso capitalista.

É possível objetar que o exemplo está ultrapassado, pois com a crescente precarização do trabalho e dos direitos do trabalhador, a falsa polaridade entre o trabalho e o lazer chegou ao seu fim. A uberização do trabalho, a recodificação dos trabalhadores em empreendedores de si se expande de um modo inimaginável até há pouco. Não havendo mais férias, não há mais turismo. Concedo que o exemplo está em vias de se tornar obsoleto nos tempos atuais, mas não a lógica de extração e promessa de gozo que ele pretende ilustrar. Nesse sentido, o exemplo ainda é válido, e a compulsão de selfes como registros de gozo recuperado demonstra que o gozo continua a ser extraído dessa impressionante massa de empreendedores.

O sofrimento no circuito da produção e consumo

Diante dessa leitura lacaniana da alienação através do discurso capitalista, a questão do sofrimento em tempos sombrios, que inicialmente dividimos entre os processos de captura dos sujeitos e os impactos psíquicos do capitalismo precisa ser reconsiderada. Pois claro está que no nível de produção de discurso no qual opera, em seu circuito de produção e consumo, o capitalismo simultaneamente produz a falta e os possíveis objetos de sua satisfação. Em outras palavras, a divisão entre, por um lado, captura do sujeito e, por outro, os impactos psíquicos do capitalismo sobre ele, supõe ainda que o sujeito exista separado da cultura e que possa ser afetado por ela como se esta fosse exterior a ele. Essa era a premissa de Marx, e ela condicionava sua solução, pois haveria uma verdade escondida do trabalhador que poderia ser revelada a ele. A alienação era entendida como contingente, e não como constitutiva.

Mas na lógica contemporânea do sofrimento, não há mais nada a ser revelado, pois nada mais está escondido. Este é, em essência, o sentido dado por Hannah Arendt aos tempos sombrios. Isto diz respeito à psicanálise, cuja representação social a reconhece apenas como uma prática do desvelamento.

Vimos que a partir da perspectiva inaugural de Freud, o sofrimento é uma experiência singular cujas formas são condicionadas pelos conflitos da cultura dos sujeitos. Nas formas de alienação vigentes no início do século XX, a adesão aos ideais culturais implicava um falseamento da relação do sujeito com seus desejos e, desse falseamento, se originavam as neuroses. A terapêutica implicava o reconhecimento dessa relação deficitária com a verdade. A psicanálise nasceu, de fato, sob a chave do desvelamento.

Mas a indústria cultural não se estrutura mais a partir de ideais já previamente existentes, como então. A sexualidade, por exemplo, não é mais um elemento intolerável nos ideais planificados para produção de consumo. Pelo contrário, nessa produção, a sexualidade é apresentada com um ideal, e integra a série de suplências do gozo expropriado pelo trabalho. Em outras palavras, o valor verdade do sintoma, sua função de dissidência política, como escreve Colette Soler (Soler, 2009Soler, C. (2009). Lacan, l’inconscient reinventé. P.U.F.), não pode mais funcionar e nem aparecer do mesmo modo.

Os sintomas da captura do sujeito nesse circuito de fato não resultam mais dos conflitos entre a sexualidade e os ideais, mas da incapacidade em atingir seus ideais. A literatura sobre isso é extensa, a começar pelo livro de Ehrenberger sobre A fadiga de ser si mesmo (Ehrenberger, 2000Ehrenberger, A. (2000). La fatigue d’être soi: Dépression et societé. Odile Jacob.). Outras formas prevalentes dos efeitos dessa nova lógica de alienação são as variedades das compulsões. Mas não abordarei o campo das formas psicopatológicas produzidas pelo discurso capitalista e sim o tratamento do sofrimento nesse discurso. De fato, esse circuito fechado, ilustrado pela falsa oposição entre o trabalho e o turismo, gerencia não apenas as formas de gestão do prazer de nossa contemporaneidade, como também suas formas de gestão do sofrimento.

A respeito disso, a primeira constatação que se impõe é que a antiga potência do sintoma de revelação da verdade é anulada por dois movimentos sequenciais de desvalorização do sofrimento do sujeito na recente história da psicopatologia, particularmente visíveis nas recentes transformações da psiquiatria.

O sofrimento nos tempos do capitalismo se insere nesse circuito da produção e consumo inicialmente através de uma revolução da epistemologia psiquiátrica (Silva Junior, 2016Silva Junior, N. (2016, nov.). Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: novos modos de subjetivação. Styllus, 33, 227-239.; Silva Junior et al. 2021Silva Junior, N., Neves, A., Ismerim, A., Costa, F., Santos, L., Senhorini, M., Beer, P., Bazzo, R., Ambra, P., Coelho, S., & Carnizelo, V. (2021). A Psiquiatria sob o Neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In V. Safatle, N. Silva Junior, & C. Dunker (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. (pp. 117-167). Autêntica.). Em primeiro lugar, pelo movimento de esvaziamento conceitual das categorias causais da psicopatologia, atribuindo-as hipoteticamente a causas somáticas, e amputando-as de sua relação com a história do sujeito. O termo original em inglês disorder é bastante preciso nesse sentido, pois remete a uma quebra ou falha frente à ordem vigente, que diferentemente da psicopatologia freudiana, não é questionada nessa nova psicopatologia. O mais importante é que essa recodificação do sofrimento permitiu à psiquiatria uma associação extremamente lucrativa com o marketing farmacêutico. Essa associação se encarrega tanto da descoberta de novos sofrimentos, de sua divulgação em forma de patologias até então desconhecidas, mas de causa exclusivamente orgânica e, finalmente, da apresentação de uma solução eficaz com o medicamento específico para a disfunção somática. Tal como na relação do trabalho com o turismo, falta e promessa de obturação da falta fazem parte de um mesmo sistema de produção.

De fato, com a associação ao marketing farmacêutico, a psiquiatria passa a definir as patologias de sua competência de um modo a posteriori, organizando-as em torno dos agrupamentos de sintomas que desaparecem sob a ação de drogas com ação neuroquímica, muitas vezes descobertas de modo não intencional. Para ficarmos com apenas um exemplo, este foi o caso da introdução na nosografia do Transtorno Disfórico Pré-menstrual, cujo tratamento é realizado com o mesmo princípio ativo do Prozac, a fluoxetina. Mas o Prozac estava associado a transtornos mentais, o que causava uma rejeição ao medicamento pelo público feminino. “Assim, o fabricante de Prozac lançou o mesmo princípio ativo no mercado, mas sob nova embalagem estampando girassóis, mulheres bonitas, com pílulas de cor lavanda e outro nome: Safarem” (Silva Junior, 2016, p. 233Silva Junior, N. (2016, nov.). Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: novos modos de subjetivação. Styllus, 33, 227-239.). A gestão da psiquiatria neoliberal do sofrimento segue o circuito fechado do discurso capitalista, no caso, numa versão chave/fechadura, onde o problema é apresentado com sua solução: o medicamento chancela a unidade da patologia e a patologia chancela a eficácia do medicamento.

Ora, um processo de transformação da psiquiatria mais recente, mas não menos importante, a coloca ainda mais em uníssono com o circuito fechado do discurso capitalista. Trata-se da ultrapassagem da oposição saúde/doença, e sua substituição lenta e gradual por uma psiquiatria do aprimoramento, que busca potencializar as capacidades psíquicas dos consumidores, de modo a serem mais produtivos no trabalho. Um exemplo que todos conhecem é o uso de Ritalina, inicialmente indicada para o TDAH, como potencializador das capacidades de concentração em situações de provas escolares. Pesquisas já foram feitas com uso de antidepressivos em pessoas sem depressão aqui no Brasil.

A particularidade da psiquiatria do aprimoramento é que ela vai além, isolando a essência do que vimos na falsa oposição entre trabalho/turismo. Neste último caso, o trabalho aparecia como o momento de privação de gozo do sujeito e o turismo como a promessa de sua compensação. Na psiquiatria do aprimoramento, a falsa oposição é aquela entre produzir mais ou produzir menos, demonstrando como a lógica da privação/promessa de gozo funciona de modo independente dos substratos materiais sobre os quais ela incide.

Nessas duas fases de sua progressiva adaptação à logica capitalista, a psiquiatria nomeia experiências de sofrimento decorrentes dessa mesma lógica, mas o faz de modo a manter ou reintroduzir essas experiências no interior de seu circuito fechado. Assim, o sofrimento, que potencialmente indicaria as falhas da cultura neoliberal, é recuperado como produção de valor, fechando assim o circuito da dominação do sujeito no capitalismo atual.

Este cenário convida a comunidade psicanalítica a se posicionar teórica e clinicamente, atualizando sua vocação política diante do sofrimento. Como fazê-lo? Não gostaria de concluir sem ao menos propor uma direção para saídas possíveis. Se tomarmos o fo condutor da linguagem, claro está que todos esses circuitos fechados operam em um regime de totalidades e certezas com relação às polaridades que, a cada vez, estão em jogo. Neste cenário de tempos de iluminação excessiva da linguagem, na verdade, tempos de desvitalização da língua, onde, por um lado, a palavra é esvaziada de sua riqueza semântica e reduzida a referências biunívocas e, por outro, onde a coerência de suas sentenças foi absorvida na pobreza de seu uso instrumental. Aqueles que diagnosticaram esse tipo de sombra paradoxal indicaram saídas diferentes mas convergentes em sua direção. Heidegger apontou a saída pela poética, Foucault pela estilística da existência, Lacan pela ética do bem dizer, saídas que apostam na emancipação deste regime de certezas e excesso de iluminação da linguagem pela recuperação de suas sombras, isto é, pelo resgate da equivocidade do sentido na linguagem. Estamos aqui próximos da significação do sentido segundo Paul Celan (1993)Celan, P. (1993). De limiar em limiar. In J. Barrento, & Y. K. Centeno. Sete rosas mais tarde – Antologia poética (João Barrento e Y. K. Centeno, Trad.). Cotovia, 1993. em seu poema Fala tu também.

Fala- Mas não separa o não do sim. Dá sentido ao teu dizer: dá-lhe a sombra
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    Texto originalmente apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, nos dias 9 e 10 de setembro de 2022. Aqui publicado com ligeiras alterações.

Referências

  • Carone Netto, M. (1973). Paul Celan: a linguagem destruída. Folha de S.Paulo, 19.8.1973.
  • Celan, P. (1993). De limiar em limiar. In J. Barrento, & Y. K. Centeno. Sete rosas mais tarde – Antologia poética (João Barrento e Y. K. Centeno, Trad.). Cotovia, 1993.
  • Ehrenberger, A. (2000). La fatigue d’être soi: Dépression et societé Odile Jacob.
  • Silva Junior, N. (2016, nov.). Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: novos modos de subjetivação. Styllus, 33, 227-239.
  • Silva Junior, N. (2017). O sofrimento como hífen na teoria social freudiana e sua atualidade. O exemplo das modificações corporais. In N. Silva Junior, & W. Zangari (Orgs.). A psicologia social e a questão do hífen (pp. 135-148). Edgard Blücher.
  • Silva Junior, N. (2000, jun.). Metodologia psicopatológica e ética em psicanálise:o princípio da alteridade hermética. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, III(2), 129-133.
  • Silva Junior, N., Neves, A., Ismerim, A., Costa, F., Santos, L., Senhorini, M., Beer, P., Bazzo, R., Ambra, P., Coelho, S., & Carnizelo, V. (2021). A Psiquiatria sob o Neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In V. Safatle, N. Silva Junior, & C. Dunker (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (pp. 117-167). Autêntica.
  • Soler, C. (2009). Lacan, l’inconscient reinventé P.U.F.
Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr. e Profa. Dra. Maria Livia Tourinho Moretto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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