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Psicanálise e violência social de gênero*1 *1 Trabalho apresentado originalmente no VI Congreso de AUDEPP e X Congreso de PLAPSIPP “Figuras actuales de la violencia. Retos ao Psicoanálisis Latinoamericano", na cidade de Montevidéu, em maio de 2019.

Psychoanalysis and social gender-based violence

Psychanalyse et violence sociale de genre

Psicoanálisis y violencia social de género

Neste texto, discuto algumas colaborações e resistências da psicanálise à violência social de gênero, evidenciando conflitos e tensões no âmbito de suas práticas. Reflito especialmente sobre a noção da diferença de sexos, segundo Freud e Lacan, dada a sua posição estratégica nas abordagens psicanalíticas sobre sexuação e subjetividades LGBTQI+. Apresento algumas vinhetas teóricas de autores contemporâneos, organizando-as em torno de três eixos que visam, respectivamente: reposicionar e/ou transpor o Édipo; desconstruir o binarismo e pensar/clinicar com a noção de corpo aberto, e problematizar o sujeito epistêmico no dispositivo da escuta analítica.

Palavras-chave:
Gênero; diferença de sexos; Édipo; sujeito epistêmico


Resumos

This paper discusses some collaborations and resistences of psychoanalysis to social gender-based violence, highlighting conflicts and tensions therein. It examines the notion of gender difference, according to Freud and Lacan, given its strategic position in psychoanalytic approaches to sexuation and LGBTQI+ subjectivities. Finally, the paper presents some theoretical vignettes from contemporary authors, organized into three axes aiming to: repositioning and/or overcoming the Oedipus Complex; deconstructing binary reasoning and working with the notion of open body; and problematizing the epistemic subject within the analytical listening.

Key words:
Gender; gender difference; Oedipus; epistemic subject

Cet article discute certaines collaborations et résistances de la psychanalyse à la violence sociale de genre, en mettant en évidence les conflits et les tensions qui en découle. Il examine la notion de différence de sexes, selon Freud et Lacanétant donné sa position stratégique dans les approches psychanalytiques de la sexuation et des subjectivités LGBTQI+. Enfin, l’article présente quelques vignettes théoriques issues d’auteurs contemporains, en les organisant en trois axes qui visent, respectivement, à : repositionner et/ou dépasser l’Œdipe ; déconstruire le binarisme et travailler avec la notion de corps ouvert, et problématiser le sujet épistémique au sein de l’écoute analytique.

Mots clés:
Genre; différence de sexes; Oedipe; sujet épistémique


En este texto analizo algunas colaboraciones y resistencias del psicoanálisis a la violencia social de género, destacando conflictos y tensiones en el ámbito de sus prácticas. Reflexiono especialmente sobre la noción de diferencia de sexos, según Freud y Lacan, dada su posición estratégica en los enfoques psicoanalíticos de la sexuación y las subjetividades LGBTQI+. Presento algunas viñetas teóricas de autores contemporáneos, organizándolas en torno a tres ejes que tienen como objetivo, respectivamente: reposicionar y/o transponer el edipo; deconstruir el binarismo y pensar/clinicar con la noción de cuerpo abierto, y problematizar el sujeto epistémico en el dispositivo de la escucha analítica.

Palabras clave:
Género; diferencia de sexos; Édipo; sujeto epistémico


No Brasil, os casos de racismo, ódio e agressão contra a mulher e a população LGBTQI+ são assombrosos, ganhando a frente no ranking mundial. A antropóloga Regina Facchini (2018)Facchini, R. (2018). Direitos humanos e diversidade sexual e de gênero no Brasil. Jornal da UNICAMP, Edição web, em 25/6/2018. afirma que, no combate à violência de gênero, apesar das campanhas governamentais e das diversas medidas públicas como reconhecimento jurídico de uniões homoafetivas; autorização para o uso civil do nome social por pessoas trans; início do Processo Transexualizador no sistema de saúde pública em 2008 etc., os atentados se multiplicam, não havendo estatísticas oficiais precisas a respeito. A autora conclui: “Uma primeira dificuldade ao se fazer um balanço dos direitos de LGBT decorre do modo como se produz conhecimento sobre esses sujeitos”. Bem, o que a psicanálise tem mostrado a esse respeito? De que modo atendemos e conhecemos pessoas LGBTQI+? Essas pessoas procuram assento nos institutos de formação em psicanálise? Sofrem preconceitos aí também?

Sentido e política nas teorias psicanalíticas

Já é conhecida a ideia de que a prática psicanalítica pode reforçar e instaurar efeitos normalizadores e patologizadores das novas formas do viver e, por outro lado, produzir e sustentar movimentos emancipatórios e afirmativos com respeito a essas mesmas formas. Os conceitos de Freud e Lacan sobre Édipo, falo e castração, por exemplo, carregam pressupostos patriarcalistas e heterossexistas, sustentando, por vezes, práticas psicanalíticas misóginas e preconceituosas. Filósofos como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida estabeleceram críticas importantes a esse respeito, mantendo um diálogo fecundo com a psicanálise. Muito se tem pensado sobre isto no transcorrer do movimento psicanalítico. Atualmente, psicanalistas como Michel Tort (2008)Tort, M. (2008). Fin del dogma paterno. Paidós. (Trabalho original publicado em 2005)., Thamy Ayouch (2014Ayouch, T. (2014). A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções. Revista Brasileira de Psicanálise, 48, 58-70.; 2019Ayouch, T. (2019). Psicanálise e hibridez: gênero, colonialidade e subjetivações. Calligraphie.), Márcia Aran (2006Aran, M. (2006). O avesso do avesso: feminilidade e novas formas de subjetivação. Garamond.; 2009Aran, M. (2009, set-dez.). A psicanálise e o dispositivo diferença sexual. Revista Estudos Feministas, 17(3).) e outros(as), que veremos a seguir, discutem as contradições e paradoxos da psicanálise, os seus aspectos normalizadores e revolucionários.

Baseados nesses estudos, observamos elementos de uma ordem não conservadora nos mesmos conceitos de sexualidade, Édipo e castração, conforme enfatizemos a indeterminação e a contingência dos objetos da pulsão, bem como a multiplicidade de posições não hierarquizadas da sexualidade infantil, aspectos que apontam a diversidade, a plasticidade e a alteridade na constituição dos sujeitos, o que permite uma psicanálise aberta às formas de subjetivação não hegemônicas. Como se vê, os conceitos não possuem um único sentido fixo. Por exemplo, tomar o Édipo em suas definições clássicas como universal, atemporal e indispensável à cultura humana é muito diferente de tomá-lo como um modo de subjetivação datado, hegemônico, próprio das sociedades ocidentais patriarcais. Assim, o que define direções mais ou menos conservadoras às práticas psicanalíticas não se refere exclusivamente às teorias em si, mas ao modo de agenciá-las, considerando ou negando seus marcos históricos e ideológicos.

O ponto nodal da diferença de sexos

Desde as formulações freudianas iniciais, o conceito/dispositivo da diferença de sexos tem gerado debates acalorados entre os psicanalistas que se alternam entre afirmá-lo como um referente universal ordenador do simbólico, por um lado, ou como postulado ideológico calcado em bases binárias e falocêntricas, por outro. Depois de Freud, o crescimento dos movimentos feministas, o surgimento da pílula anticoncepcional, a entrada da mulher no mercado de trabalho, as novas modalidades de família e conjugalidade, o surgimento das teorias queers e decoloniais, o movimento LGBTQI+, dentre outros fatores, constituíram novos paradigmas sociais, políticos, clínicos e epistemológicos, interpelando fortemente os fundamentos patriarcais da psicanálise. Nessa linha, temos, por exemplo, os trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010)Deleuze, G., & Guattari (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Ed. 34. (Trabalho original publicado em 1972). em O anti-Édipo, Michel Tort (2008)Tort, M. (2008). Fin del dogma paterno. Paidós. (Trabalho original publicado em 2005). em Fin del dogma paterno e Frantz Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA. (Trabalho original publicado em 1952).; 2020Fanon, F. (2020). Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Ubu Editora. (Trabalhos originais publicados de 1951 a 1959).) em Pele negra, máscaras brancas e Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos (o último autor na particular reflexão sobre o racismo e o colonialismo nas práticas psicanalíticas). Há também as(os) autoras(es) que discutem a conflituosa e fecunda relação entre feminismo e psicanálise, como Luce Irigaray, Gayle Rubin, Monique David-Ménard, Jane Gallop, Julia Kristeva, Jessica Benjamim, Nancy Chodorow, Lélia Gonzalez, Regina Neri, Márcia Aran, Patrícia Porchat, Rafael Kalaf Cossi, entre muitas(os) outras(os), cujos estudos mobilizam a noção de gênero desenvolvida pelos estudos queers. Nesse campo, destacam-se os trabalhos de Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Teresa de Lauretis, Paul B. Preciado e, no chamado eixo do sul global, Gayatri Spivak, Gloria Anzaldúa, Sueli Carneiro, Berenice Bento, Carla Rodrigues, dentre outras(os). O quadro aqui apenas esboçado oferece uma ideia da extensão do debate em torno de conceitos psicanalíticos ligados aos temas da sexualidade e do gênero.

Apresentarei, a seguir, um breve recorte das contribuições de Lacan sobre o postulado freudiano da diferença de sexos, seus avanços e pontos cegos, uma vez que tal diálogo gerou algumas das questões cardinais discutidas nos trabalhos contemporâneos.

Para Freud (1923/1996aFreud, S. (1996a). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XIX). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).; 1923/1996bFreud, S. (1996b). O ego e o id. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XIX). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).; 1925/1996cFreud, S. (1996c). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XIX). Imago. (Trabalho original publicado em 1925).), a diferença de sexos é uma resultante do complexo de Édipo, marcando a passagem do binômio fálico-castrado, referido a um único sexo (o masculino), cuja origem remontaria à percepção infantil da presença-ausência do pênis, para o binômio masculino-feminino, que reconhece a existência de dois sexos distintos. Lacan (1957-58/1999)Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)., por sua vez, afasta a castração do campo da percepção anatômica, reformulando a noção freudiana de falo, deslocando-o da referência ao pênis. A partir do Seminário 20, Lacan (1975/1985)Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 20. mais, ainda. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975). conclui que “homem” e “mulher” são posições discursivas que os seres falantes assumem independentemente do sexo biológico e correspondem a duas modalidades distintas de gozo: o homem é todo ele submetido ao gozo fálico, a mulher é não-toda referida a esse gozo, o que lhe confere um gozo suplementar, denominado gozo a mais. Lacan chega assim às fórmulas da sexuação que não se restringem às prescrições do Édipo, uma vez que extrapolam o campo da lógica fálica.

O autor (Lacan, 1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).) elabora suas fórmulas tendo como referência o mito freudiano do pai da horda, vendo este último como “ao menos um” não castrado, o Um universal, exceção que funda o conjunto dos demais homens no campo do significante. Já as mulheres, uma vez não referidas a “ao menos uma”, não formariam conjunto, não havendo exceção que lhes pudesse fazer existir totalmente no campo do significante. Por isso, a mulher seria não-toda submetida ao gozo fálico, constituindo, ao mesmo tempo, um limite e um excesso à ordem simbólica. A mulher não é toda ela fora do gozo fálico, e sim não-toda referida a esse gozo. De todo modo, segundo Lacan, qualquer que seja o caso, homem ou mulher, a inscrição da diferença de sexos se daria sempre a partir da incidência do significante fálico, ou seja, da castração simbólica. Fora dela, inexiste a significação fálica, o que inviabilizaria a definição de uma posição sexuada, situação relativa às psicoses. A diferença de sexos seria um atributo da ordem simbólica, havendo dois modos distintos de gozo, estabelecendo-se, aqui também, uma estrutura binária. Entretanto, em contraste com a noção freudiana, a diferença pensada por Lacan não se acha no campo de uma simetria ou de uma correspondência qualquer; homem e mulher não são posições opostas ou complementares entre si, pois não há propriamente uma relação entre elas. Eis o que Lacan indicou com a máxima de que a relação sexual não existe.

Mas será que a diferença de sexos assim concebida supera os impasses freudianos com respeito à mulher? Não é o que parece. Indizível na sua radicalidade, a alteridade da mulher se faz no registro da história pelo referente fálico, cuja propriedade é tornar dizível. A mulher não é toda dita, mas o que se diz dela, o é pelo referente fálico. Voltamos, assim, à gerência do falo. Em Lacan, a proclamada diferença de sexos, marca insofismável da ordem simbólica, é também um fundamento ideológico do binarismo e da hierarquia entre os gêneros, tornando-se, por vezes, um argumento na defesa conservadora do modelo heteronormativo à procriação humana, e na censura às formas alternativas de parentesco.1 1 É o que vimos, por exemplo, nos posicionamentos públicos de psicanalistas contra a parentalidade homossexual nos anos 2000, na França, frente à aprovação do PaCS (união civil de pessoas do mesmo sexo). Entretanto, no caminho progressista da formulação lacaniana, o giro dado em relação à noção freudiana a libertou da referência anatômica que associava as posições sexuais aos sexos biológicos correspondentes, desvinculando a mulher da inveja do pênis e localizando a sexuação no campo da linguagem. Neste ponto, Lacan desconstrói a sentença freudiana de que “a anatomia é o destino”, embora — e recuamos novamente para o conservadorismo — não rompa com a armadura do binarismo. Esta báscula se produz não apenas no âmbito epistemológico das teorias, mas no cotidiano da vida social, nos avanços e retrocessos que se sucedem no campo da diversidade de gêneros.

Resistir (re-existir) à psicanálise

Acompanhemos, agora, algumas posições teóricas atuais que ultrapassam o clássico postulado da diferença de sexos e o correspondente binário masculino–feminino, formulando conceitos para a multiplicidade, a diversidade e a indeterminação de sexo/gênero no campo das práticas psicanalíticas. Essas contribuições se colocam efetivamente como instrumentos clínico-políticos contra a violência de gênero, possibilitando uma clínica mais criativa e inclusiva, não sendo essa, entretanto, uma garantia intrínseca aos próprios conceitos, conforme já vimos. Apresentarei um conjunto de vinhetas teóricas a partir de três eixos, marcando os giros conceituais e as operações clínicas que realizam, respectivamente:

1) Reposicionar e/ou transpor o Édipo

No final de sua obra, Jean Laplanche (2015)Laplanche, J. (2015). Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006. Dublinense. esboçou uma teoria bastante promissora, integrando a noção polissêmica de gênero ao campo psicanalítico. O autor considera que o gênero antecede a sexuação; ele é primeiro, múltiplo, atribuído à criança pelo pequeno socius que a rodeia, e não apenas pela família, no tempo dos primeiros cuidados. Junto às designações de gênero, os adultos transmitem conteúdos inconscientes díspares, ambíguos e conflitivos, relativos à própria sexualidade, estabelecendo mensagens enigmáticas que requerem a tradução da criança. Além disso, a onda portadora dessas mensagens veicula também alguns códigos que auxiliam o trabalho tradutivo, dentre os quais o código da castração precoce. Diferentemente da castração edípica, onde a distinção dos gêneros feminino e masculino resulta de uma falta atribuída à sanção de um terceiro, a castração precoce ou pré-edípica estabelece essa distinção desatrelada de um sentido causal, a partir de uma chave binária, baseada na percepção (imaginária) da diferença anatômica dos sexos. Para Laplanche, a castração precoce é um código social produzido no contexto histórico ocidental moderno, regido por referentes essencialistas e binários, estruturado pelos índices de presença/ausência, reduzindo a multiplicidade a duas possibilidades de gênero: o feminino e o masculino.

Segundo o autor, esse código precoce é agenciado pelo complexo de Édipo, esquema narrativo culturalmente transmitido, que assenta a multiplicidade em diferença de sexos, erigindo-se, assim, a castração edípica. As posições não assimiláveis a esse quadro redutor constituem um resto recalcado, dando origem às formações do inconsciente.

Concluindo, Laplanche considera o complexo de Édipo um esquema narrativo histórico, ideológico, não único mas hegemônico, estruturado na lógica fálica, cuja finalidade é reduzir a multiplicidade e plasticidade do sexual à diferença binária e identitária de sexos. Uma clínica baseada nestas referências amplia a escuta analítica para além do foco familiarista, marca por excelência das análises clássicas cuja tendência é reduzir o infantil à infância vivida com pais e irmãos; mobiliza ou agencia repertórios identificatórios nem sempre referidos à chamada “novela familiar dos neuróticos”, surpreendendo novos arranjos sublimatórios antes vistos como soluções patológicas, identificando lógicas sexuais não alinhadas à lógica edípica. Difícil imaginar outra possibilidade nos atendimentos aos adolescentes de hoje, por exemplo, situados frente a lógicas sexuais coletivas chamadas de “lógicas desigualadas”, por Ana Maria Fernandez (2012)Fernandez, A. M. (2012). Las lógicas sexuales: amor, política y violencias. Nueva Vision., que indicam outros códigos tradutivos da cultura menos afeitos a posições binárias e excludentes.

Em outra visada, Phillippe Van Haute e Tomas Geyskens (2016)Haute, P. V., & Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Autêntica. reconhecem duas vertentes contraditórias na obra freudiana. A primeira, chamada patoanálise, estabelece a continuidade entre normalidade e patologia, acentuando as mesmas problemáticas humanas tanto nas formas do adoecimento psíquico quanto nas construções coletivas sublimatórias. Assim, Freud aproxima a histeria da literatura, a neurose obsessiva da religião e a paranoia da filosofia, postulando uma clínica de base antropológica. A segunda vertente, apresentada como desenvolvimentista, é centrada no complexo de Édipo e na perspectiva da integração adulta majoritária das pulsões parciais à genitalidade, distinguindo soluções e comportamentos normativos e patológicos. A linha desenvolvimentista foi dominante na psicanálise (mesmo em Freud), constituindo um movimento de forte edipianização que desativa suas bases antropológicas, afastando-a dos referentes sociais e políticos de cada tempo, resultando numa prática normalizadora, conduzida pela lógica fálica.

Os autores revisam o desenvolvimento freudiano do conceito de complexo de Édipo, identificando o seu surgimento associado à problemática obsessiva do Homem dos Ratos, sendo, a partir dali, generalizado como complexo nuclear das neuroses e, mais ainda, como um elemento fundante da civilização humana. No percurso dessa ascensão meteórica e ideológica, elementos importantes da vertente patoanalítica foram deixados de lado, o que resultou numa séria despolitização das teorias e práticas psicanalíticas. Uma análise clínica inspirada nessa referência não toma o dispositivo edípico como organizador central dos diferentes modos de subjetivação, o que se mostra, por exemplo, no tratamento dado à histeria. Os autores afirmam que em “seus trabalhos tardios, Lacan não mais associa a histeria à recusa ao papel de objeto de troca (que caracterizaria a mulher estruturalmente). A referência a esse papel é parte integrante de uma explicação edipiana da histeria e, do mesmo modo, sustenta seu caráter normativo” (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 178Haute, P. V., & Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Autêntica.). Ressaltando a bissexualidade como central na leitura freudiana da histeria antes de ser sombreada pelo domínio do Édipo, os autores observam que as fórmulas da sexuação de Lacan recolocam a problemática da bissexualidade em outras bases, além da chave fálico edípica, contrariando uma forte tendência à normalização presente tanto em Freud como no primeiro Lacan.

Há, também, posições mais radicais que propõem uma psicanálise pós-Édipo. Nessa linha, Joel Birman (2006Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Civilização Brasileira.; 2016Birman, J. et al. (Org.) (2016). Amar a si mesmo e amar o outro: narcisismo e sexualidade na psicanálise contemporânea. Zagodoni.) apresenta as sucessivas críticas ao Édipo feitas desde a década de 1970 por Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari, Butler etc., que o apontam como um dispositivo de poder que visa o cerceamento das formas mais livres e dispersivas do erotismo através da Lei da castração, instituindo um forte recalque da homossexualidade (tese discutida por Butler), fixando a sexualidade no âmbito da família, reforçando, assim, o patriarcalismo. De outro lado, menciona os conceitos de sexualidade perverso polimorfa infantil (Freud), máquina desejante e corpo sem órgãos (Deleuze e Guattari) que acentuam o caráter múltiplo, aberto e não agenciável das pulsões ao domínio completo do poder.

Segundo o autor, as condições históricas atuais têm promovido a desconstrução do Édipo em sua suposta universalidade, dando lugar a formas de subjetivação baseadas no modelo do narcisismo negativo, de André Green, e não no modelo freudiano do narcisismo primário, que constituiria egos robustos ao modo de “sua majestade o bebê”. Para o autor, vivemos hoje numa sociedade pós-Édipo, onde não se sustenta mais a ilusão de que mediações simbólicas (como o nome-do-pai) possam nos proteger contra o desamparo iminente. Consequentemente, Birman (2006)Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Civilização Brasileira. afirma que uma análise clínica não deve reproduzir as relações hierárquicas reprodutoras da figura do Um (conforme previstas no dispositivo edípico) e as lógicas da servidão voluntária, respostas defensivas possíveis ao desamparo, o que implica considerar os jogos de poder entre os sujeitos da análise como um exercício legítimo e constitutivo da própria experiência, não estando o analista “numa posição de exceção na economia das trocas intersubjetivas” (Birman, 2006, p. 335Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Civilização Brasileira.), “disfarçado” pela regra da abstinência e, portanto, no lugar de um poder soberano conforme se viu muitas vezes na história da psicanálise.

No campo dos estudos de gênero, vale destacar o trabalho inovador e influente da filosofa Judith Butler (2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira. (Trabalho original publicado em 1990).; 2010Butler, J. (2010). Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Paidós.; 2014Butler, J. (2014). O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. UFSC.). Em suas reflexões críticas sobre o Édipo, ela sugere um novo paradigma à psicanálise, propondo o mito grego de Antígona no lugar de Édipo Rei. Antígona não se encaixa no papel de mulher submissa, esposa e mãe reprodutora, mostrando sua posição problemática nas relações de parentesco, sendo filha e irmã de seu pai Édipo, e também no campo do gênero, assumindo atributos masculinos na luta pública contra o tirano Creonte. Segundo Butler, Antígona representa uma vida que não pode ser reconhecida e legitimada, pois afronta os padrões normativos de gênero e parentesco. Tal é a condição em que vivem, hoje, as pessoas LGBTQI+ e as famílias que não reproduzem o padrão normativo da diferença de sexos e o clássico trio edipiano mãe-pai-filho. O mito de Antígona explode as equações normativas de gênero e família, abrindo caminho para uma psicanálise pós-Édipo, mais inclusiva com respeito às diversidades humanas.

2) Descontruir o binarismo e pensar/clinicar com a noção de corpo aberto

Thamy Ayouch (2014)Ayouch, T. (2014). A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções. Revista Brasileira de Psicanálise, 48, 58-70., referido aos estudos de Monique Schneider, afirma que, na teoria freudiana, o dimorfismo fálico-castrado nem sempre é binário, mas resulta de uma série de combinações, misturas, indistinções, sobreposições, entrelaçamentos, proximidades, semelhanças e dessemelhanças. Desse modo, não haveria apenas um feminino e um masculino essenciais, mas múltiplos femininos e masculinos, conforme se associam inexoravelmente a outros componentes da vida social, ligados à raça, classe social, religião etc. Assim, por exemplo, diversos femininos existem no campo sexual quando se considera, por exemplo, a mulher heterossexual branca, a mulher lésbica negra, a mulher islâmica ou a mulher transexual, contrariamente ao que se poderia pensar com Lacan, cujas fórmulas “... definem uma postura feminina e masculina na relação com o falo e o gozo (...) [apontando] grupos universais dos ‘homens’ e das ‘mulheres’, distinguidos de forma binária pela convocação do pai da horda primitiva” (Ayouch, 2014, p. 62Ayouch, T. (2014). A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções. Revista Brasileira de Psicanálise, 48, 58-70.).

Mesmo que inicialmente a mulher não integre (ou não deva integrar...) um grupo universal, ela acaba por ser vista na situação de um agrupamento peculiar, o grupo dos seres não-todo fálicos, a partir da própria lógica lacaniana, numa espécie de efeito rebote. Ocorre que o pai primevo evocado por Lacan é míope em função da ignorância de sua condição histórica; não enxerga bem o lado da mulher por razões político-ideológicas e não em razão de um suposto mistério insondável que não se deixa formular no campo do significante. O pai primevo, baliza importante com a qual Lacan opera as suas fórmulas da sexuação, figura mítica de caráter atemporal, o Um universal, exceção que funda o mundo dos filhos castrados, enfim, assim descrito, o pai primevo não é reconhecido na dimensão de uma produção social datada e circunstanciada. Assemelhado ao que o jurista e filósofo Hans Kelsen chamou de “norma fundamental” no campo do Direito, o pai pré-histórico lacaniano fixa os termos da inteligibilidade cultural, delimitando as fronteiras da ordem simbólica em termos fálico-masculinos. Do lado de lá das lentes fálicas, até onde a vista alcança, está o conjunto informe das mulheres.2 2 Conforme Haute e Geyskens (2016): “... a impossibilidade de expressar esse ‘Outro gozo’ (feminino) na linguagem confirma a ideia de que a ordem simbólica é essencialmente falocêntrica e que não existe um significante para a mulher” (p. 170).

Além disso, e por isso mesmo, não há no cálculo binário das tábuas lacanianas um lugar para as posições nem homem e nem mulher, as quais são ejetadas do campo da sexuação, conforme o caso das chamadas transexualidades, classificadas no grupo das psicoses por alguns autores dessa linha. Entretanto, será que as indeterminações e multiplicidades que existem no indizível e na particularidade das mulheres, contadas uma a uma, poderiam advir como tais no campo inteligível da sexuação, sem a mediação da significação fálica? E se pensarmos que a significação fálica realiza o que Laplanche postulou como o efeito de um código tradutivo hegemônico e contingencial da cultura, que reduz a multiplicidade da sexualidade perversa polimorfa infantil em diferença binária, sendo possível a existência de outros códigos mais plásticos e inclusivos? Na posição da mulher, o indizível não estaria silenciado pela lógica fálica, perspectiva reconhecida de valor universal? As fórmulas lacanianas sustentariam ou não o trabalho com essas questões?

Em breve artigo no jornal Libération, o filósofo queer Paul B. Preciado (2018)Preciado, P. B. (2018). Corps ouverts. In Liberation, chronique interzone. Recuperado em 13 dez. 2018 de: <http://www.liberation.fr/debats/2018/04/06/corps-ouverts_1641649>.
http://www.liberation.fr/debats/2018/04/...
comentou determinada polêmica médica, mencionando aqueles que não admitem haver região do corpo que não esteja mapeada pelos instrumentos modernos de pesquisa, e aqueles que consideram a possibilidade de novas descobertas. Preciado apontou o caráter político da discussão, identificando, de um lado, o que chamou de epistemologia do corpo fechado, onde este é visto como uma entidade natural, sagrada, regida por leis biológicas, cuja anatomia se mostra definida e acabada. De outro lado, haveria uma “epistemologia do corpo aberto, segundo a qual o corpo é redefinido e constantemente modificado pelos seus usos sociais e sua relação com a linguagem e a tecnologia”.

Para Preciado, o que está em jogo é uma luta política intensa acerca dos corpos trans e do reconhecimento/descoberta/invenção de outros órgãos que não se acham dentro do binarismo genital. A tecnologia médica permite a construção cirúrgica de um pênis e de uma vagina, mas não ousa a construção de outras anatomias que já estão presentes em experiências subversivas da multidão queer. Há também os aparatos e próteses, tal como o dildo (Preciado, 2014Preciado, P. B. (2014). Manifesto contrassexual. n-1 edições.), com os quais os sujeitos se lançam aos prazeres não heteronormativos, ampliando a categoria de órgão sexual.

Preciado mantém proximidades e distâncias marcantes em relação à psicanálise. Com respeito às proximidades, podemos comparar a sua noção de contrassexualidade (Preciado, 2014Preciado, P. B. (2014). Manifesto contrassexual. n-1 edições.) à noção freudiana de sexualidade perverso polimorfa infantil, ambas referidas à condição plástica e erógena de todo o corpo humano, sendo a prevalência da zona genital uma construção secundária e não natural. Além disso, segundo Patrícia Porchat e Vinicius M. Godeguezi (2017)Porchat, P., & Godeguezi, V. M. (2017). O corpo, o dildo, a carne e o fetiche: Preciado com Freud. Revista de Psicanálise da SPPA, 24(1), 105-122., as considerações de Preciado a respeito do dildo podem situá-lo como um objeto antifetiche ou contrafetiche, fora do campo das perversões cuja propriedade é negar e afirmar concomitantemente a castração do falo materno. Para os autores, o dildo atestaria a artificialidade do sexo, remetendo a noção de órgão sexual para além das fronteiras materiais do corpo biológico, bem como afirmando a castração mesmo na presença do pênis.

Por outro lado, Preciado (2014)Preciado, P. B. (2014). Manifesto contrassexual. n-1 edições. propõe um conjunto de práticas e novas tecnologias sexuais, denominadas contrassexuais, com a finalidade política de subverter os centros corporais de prazer condicionados pela norma heterossexual, construindo outras lógicas, zonas e possibilidades de prazer, estratégia que não parece totalmente sustentável do ponto de vista da psicanálise. Nesta ótica, a sexualidade é regida fundamentalmente pela pulsão, não sendo plenamente moldável por técnicas programadas e discursos deliberados, o que não quer dizer que ela esteja fora da história e imune às transformações sociais. Os circuitos pulsionais são políticos e históricos num sentido muito distinto da racionalidade militada por Preciado. A pulsão não se adapta propriamente às práticas discursivas que visam determinadas plataformas de ação política, conforme quer o filósofo, assim como não se adapta inteiramente nem mesmo à heteronormatividade. Ocorre que a noção de poder referida por Preciado, baseada em grande parte na teoria de Foucault, não considera propriamente a dimensão inconsciente da sexualidade, embora ele evoque frequentemente a noção freudiana da sexualidade perverso polimorfa infantil. Aqui, é preciso pensar o poder articulado ao conceito de inconsciente. Conforme afirma Alenka Zupancic (2021)Zupancic, A. (2021). Biopolítica, sexualidade e o inconsciente. In LavraPalavra, plataforma digital, traduzido por Rodolfo Rodrigues. Texto original publicado na revista Paragraph, 39(1), 49-64, 2016. University Press.,

... Lacan toma o conceito de inconsciente (e de Verdrandung) como algo crucial para compreender como (e porquê) o poder funciona. Não é [o inconsciente] somente parte do funcionamento do poder, tampouco simplesmente seus efeitos; em vez disso, é a sua fundação, seu “outro lado”, seu suporte. Discursivamente, o poder é estruturado ao redor e em cima de seu próprio lapso ou contradição. (...) Poderíamos dizer que o poder como fenômeno social é sempre uma resposta à impossibilidade (lacuna) da estrutura discursiva. (p. 53)

É o que vemos na expressão de Lacan “o inconsciente é a política”, sobre o que Marie-Hélène Brousse (2003)Brousse, M. H. (2003). O inconsciente é a política. Escola Brasileira de Psicanálise. reflete rigorosamente em livro com este mesmo título.

Prosseguindo, as ideias de Preciado, assim como as de Butler e outros(as) estudiosos(as) do gênero, têm como importante referência o trabalho pioneiro de Donna Haraway, bióloga e filósofa norte-americana, cujo texto “A Cyborgs Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminism in the 1980s”, publicado pela primeira vez em 1985, constitui um marco conceitual e uma ferramenta política até os dias de hoje. Contrapondo-se às concepções essencialistas e naturalistas do corpo humano, Haraway (2018)Haraway, D. (2018). Manifiesto para cyborgs: ciencia, tecnologia y feminismo socialista a finales del siglo XX. Letra Sudaca Ediciones. (Trabalho original publicado em 1985). afirma que todos somos híbridos de carne e máquina, considerando todas as próteses que carregamos no corpo. A autora desenvolveu um novo paradigma científico–político em torno da figura do cyborg, um produto da realidade social constituído na intersecção entre ciência, tecnologia, práticas médicas e narrativas ficcionais, conforme retratado em obras da literatura e do cinema. O cyborg de Haraway rompe com os dualismos e essencialismos típicos da cultura ocidental (mente/corpo, cultura/natureza, homem/máquina), bem como com a ideia de um narcisismo unificante, afrontando as tradições do capitalismo racista, do patriarcalismo, da heterossexualidade normativa e da reprodução natural. Desse modo, ele (cyborg) afirma o múltiplo e o híbrido em lugar do Um e do ser original, postulando identidades parciais e provisórias em lugar das identidades essenciais e permanentes.

3) Problematizar o sujeito epistêmico no dispositivo da escuta analítica

Leila Dumaresq (2016)Dumaresq, L. (2016). Ensaio (travesti) sobre a escuta (cisgênera). Revista Periódicus: Revista de Estudos Interdisciplinares em Gêneros e Sexualidades, 5(I), 121-131., filósofa queer brasileira, refletindo sobre o diagnóstico e tratamento de transexuais, problematiza a constituição do sujeito epistêmico no âmbito dos atendimentos psicológicos. A autora menciona a invenção do termo cisgênero como uma conquista política e científica, uma vez que nomeia uma categoria hegemônica invisível sob o véu da normalidade, interpelando-a desde a perspectiva epistêmica transgênera. No campo das relações raciais, o mesmo se passa quando se identifica a branquitude da raça branca. Assim, o sujeito branco cisgênero não se acha interpelado nas/ pelas relações sociais de raça e de gênero tal como os sujeitos estigmatizados, não se vendo partícipe da matriz política reguladora dos gêneros. Em posição de vantagem nas redes normalizadoras do poder social, ele se acha alheio e acrítico aos processos de racialização e generificação, o que não lhe permite subjetivar facilmente esses atributos identitários.

Inspirados pela filósofa, vamos refletir sobre esse problema no âmbito específico da clínica psicanalítica. Consideremos a transferência, sítio e veículo da análise. Em rica discussão com Ferenczi, Freud (1937/1996d)Freud, S. (1996d). Análise terminável e interminável. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XXIII). Imago. (Trabalho original publicado em 1937). afirmou que a transferência analítica se assenta sobre uma assimetria irredutível, necessária e operativa da análise, limite imposto pelo que chamou de rochedo da castração. Assim, ao final das análises, não haveria como liquidar completamente o vínculo transferencial, o que reivindicava Ferenczi, havendo sempre um resto a movimentar o próprio processo da análise, agora na ausência da pessoa do analista. Superando a lógica fálica do argumento freudiano, sem afastar-se do essencial, Lacan entende tal assimetria como relativa à condição de alteridade radical presente na linguagem humana, figurada no Outro da matriz simbólica e disposta justamente na posição de suposto saber do analista, um fundamento da transferência. O suposto saber, não sendo um saber de fato, constitui uma relação de assimetria entre os agentes da análise, cuja condução pelo analista faz retornar ao analisante suas questões e enigmas. Agenciar e fazer-se suporte do Outro, sem encarná-lo, eis o que caracteriza, de modo geral, a posição do analista na relação transferencial, possibilitando o advento do sujeito epistêmico da análise, referido ao par analítico.

Voltando às questões levantadas por Dumaresq, podemos pensar que, numa sociedade normalizadora, a desigualdade epistêmica entre cisgêneros e transgêneros, bem como a objetificação social destes últimos, não se convertem na assimetria necessária e operativa da transferência analítica. Pelo contrário. A transferência exige alteridade radical, sujeitos epistêmicos e seus correlatos objetos de conhecimento. A assimetria constitutiva da transferência não diz respeito a uma desigualdade epistêmica entre os seus agentes, senão à alteridade e ao respeito incondicional às suas próprias verdades. O atendimento analítico de pessoas transexuais, tanto quanto de homossexuais, heterossexuais, bissexuais etc., requer dos analistas que se identificam como cisgêneros exatamente isto: implicação subjetivada no que já estão implicados, não no sentido de afirmar uma identidade essencial, mas de reconhecer as identificações que os constituem, bem como os estereótipos em que se baseiam. Surpreender-se cisgênero é ver-se interpelado pelo transgênero, é reconhecer uma condição subjetiva e social nada óbvia, embora hegemônica, é posicionar-se como sujeito e objeto de conhecimento em relação aos sujeitos transgêneros, rompendo — em si mesmo e no dispositivo da análise — o silenciamento epistemológico e a objetificação social dirigidos a esses últimos.

Tal posição requer uma escuta analítica atenta aos efeitos do discurso do analisante sobre o analista, àquilo que se enuncia como resposta/resistência/indagação frente às intervenções e/ou abstinências do analista, considerando-as na sua dimensão positivada de saber e não apenas e sempre como manifestações defensivas ou sintomáticas, dirigidas ao Outro abstrato da linguagem. Os processos de análises intergêneras mobilizam tensões e conflitos que se acham presentes nos vínculos sociais maiores, os quais devem ser reconhecidos em suas manifestações singulares e não recalcados ou banidos da relação transferencial, reproduzindo-se, assim, a violência social de gênero.

Ainda neste item, podemos citar o trabalho de Silvia Federici (2017)Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Ed. Elefante. (Trabalho original publicado em 2004)., feminista marxista italiana, que reflete sobre a exploração econômica e sexual das mulheres na origem e na manutenção do sistema capitalista, reforçando as denúncias sobre a escravização social (trabalho doméstico não remunerado), a violência e o silenciamento epistemológico a que estão permanentemente submetidas, inclusive nos escritos revolucionários de Marx e Foucault, autores nos quais ela se baseia. A autora reflete sobre o fenômeno da caça às bruxas que se instituiu nos séculos XVI e XVII, afirmando que tal perseguição “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu das suas terras” (Federici, 2017, p. 26Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Ed. Elefante. (Trabalho original publicado em 2004).). Reavivadas no cenário moderno do capitalismo globalizado, a caça, a violência e a destruição das mulheres e dos sujeitos coloniais, no âmbito concreto dos seus corpos, segue como um pilar fundamental do sistema, o que não foi devidamente examinado por Marx e Foucault, o que reflete e colabora para o silenciamento epistemológico desses sujeitos.

Aqui, vale um parêntese para a sensibilidade clínica e política de Freud, tendo compreendido as questões e sofrimentos da mulher sob o ângulo da histeria, considerando justamente o corpo em seus registros eróticos e fantasmáticos, lócus dos sintomas conversivos e outros tantos, enfim, o corpo psíquico/subjetivado/anatomizado da mulher conforme “forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho” (p. 34), nas palavras de Federici (2017)Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Ed. Elefante. (Trabalho original publicado em 2004)..

Vale ainda citar o psiquiatra e filósofo Frantz Fanon (2008)Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA. (Trabalho original publicado em 1952)., dizendo que “... nem Freud, nem Adler, nem mesmo o cósmico Jung em suas pesquisas pensaram nos negros” (p. 134). Ele denuncia os fundamentos colonialistas e racistas das práticas psicanalíticas que, indiferentes aos marcadores sociais de classe, raça e etnia, universalizam e naturalizam o padrão subjetivo do homem branco europeu. Fanon argumenta, por exemplo, que “... nas Antilhas Francesas, 97% das famílias são incapazes de produzir uma neurose edipiana. Incapacidade da qual nos felicitamos enormemente” (p. 134).

Isto posto, devemos nos indagar se os aportes da psicanálise, nas contribuições “seminais” de Freud e de seus(suas) seguidores(as), reproduzem o referido silenciamento epistemológico, concomitante e contraditoriamente ao reconhecimento e à voz que dão às mulheres, tendo repartido com elas, especialmente com as histéricas, a autoria na fundação de uma prática clínica revolucionária, conforme afirmou o próprio Freud. Assim, no campo atual de uma ética-política da psicanálise, é preciso problematizar os sujeitos epistêmicos que constituímos em nossa prática, aqueles que reconhecemos, recalcamos, recusamos, forcluimos e até mesmo dizimamos. Para tanto, os estudos feministas, queer, pós-coloniais e multiculturais são de grande ajuda, uma vez que recuperam as múltiplas vozes amordaçadas na história do Ocidente moderno, possibilitando-lhes novas condições de enunciação. Dentro de certa perspectiva, não seria esta uma vocação do dispositivo clínico psicanalítico? Concluindo, e voltando ao título do trabalho, é preciso pensar se, quando e como a psicanálise reproduz a violência social de gênero e outras correlatas, bem como se, quando e como resiste a elas, criando experiências mais inclusivas, reconhecendo os novos sujeitos epistêmicos subsumidos no quadro da patologização social.

  • 1
    É o que vimos, por exemplo, nos posicionamentos públicos de psicanalistas contra a parentalidade homossexual nos anos 2000, na França, frente à aprovação do PaCS (união civil de pessoas do mesmo sexo).
  • 2
    Conforme Haute e Geyskens (2016)Haute, P. V., & Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Autêntica.: “... a impossibilidade de expressar esse ‘Outro gozo’ (feminino) na linguagem confirma a ideia de que a ordem simbólica é essencialmente falocêntrica e que não existe um significante para a mulher” (p. 170).
  • *1
    Trabalho apresentado originalmente no VI Congreso de AUDEPP e X Congreso de PLAPSIPP “Figuras actuales de la violencia. Retos ao Psicoanálisis Latinoamericano", na cidade de Montevidéu, em maio de 2019.

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2021
  • Revisado
    17 Nov 2022
  • Aceito
    04 Dez 2022
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