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O momento estético como potencialidade de vida e de futuro

The aesthetic moment as a potentiality for life and the future

Le moment esthétique comme potentialité de vie et de l’avenir

El momento estético como potencial de vida y futuro

Este artigo é uma reflexão teórica acerca de algumas potencialidades do momento estético: este se configura, a um só tempo, como refúgio das intempéries do presente, como possibilidade de fortalecimento dos laços do indivíduo com a vida e como abertura para o futuro. A relação do pianista inglês James Rhodes com a música clássica, conforme narrada por ele em sua autobiografia, é apresentada como expressão de tais potencialidades. Em nossa argumentação, descrevemos o momento estético como momento de afrouxamento das fronteiras do self, que atualiza, até certo ponto, a relação primordial do bebê com o objeto materno. Enfatizamos os limites do momento estético, já que este não substitui a necessidade do encontro humano, mas indicamos que ele pode se apresentar como uma espécie de lugar de espera suportável que mantém aberto o horizonte do encontro.

Palavras-chave:
Momento estético; psicanálise; futuro; música


Resumos

This paper is a theoretical reflection on some potentialities of the aesthetic moment: this is configured, at the same time, as a refuge from the storms of the present, as a possibility to strengthen the individual’s ties with life, and as an opening to the future. The English pianist James Rhodes’s relationship with classical music, as narrated by him in his autobiography, is presented as an expression of such potentialities. During its argumentation, the text describes the aesthetic moment as a moment of loosening of the boundaries of the self, which updates, to a certain extent, the infant’s primordial relationship with the maternal object. The article emphasizes the limits of the aesthetic moment, as it does not replace the need for human interaction, while indicating its potential as a kind of bearable waiting place which keeps the horizon of the encounter open.

Key words:
Aesthetic moment; psychoanalysis; future; music

Cet article est une réflexion théorique sur certaines potentialités du moment esthétique: celui-ci se configure, à la fois, comme un refuge contre les tempêtes du présent, comme une possibilité de renforcer les liens de l’individu avec la vie, et comme une ouverture vers l’avenir. La relation du pianiste anglais James Rhodes avec la musique classique, telle qu’il la raconte dans son autobiographie, est présentée comme une expression de ces potentialités. Au cours de l’argumentation, le texte décrit le moment esthétique comme un moment de relâchement des frontières du soi, qui actualise, dans une certaine mesure, la relation primordiale du nourrisson avec l’objet maternel. L’article souligne les limites du moment esthétique, car il ne remplace pas le besoin de la rencontre humaine, tout en indiquant son potentiel comme une sorte de lieu d’attente supportable qui maintient ouvert l’horizon de la rencontre.

Mots clés:
Moment esthétique; psychanalyse; futur; musique


Este artículo es una reflexión teórica sobre algunas potencialidades del momento estético: se configura, al mismo tiempo, como refugio de las tormentas del presente, como posibilidad de fortalecer los lazos del individuo con la vida y como apertura al futuro. La relación del pianista inglés James Rhodes con la música clásica, narrada por él en su autobiografía, se presenta como una expresión de tales potencialidades. En nuestro argumento, describimos el momento estético como un momento de afojar los límites del yo, que actualiza, hasta cierto punto, la relación primordial del bebé con el objeto materno. Destacamos los límites del momento estético, ya que éste no sustituye a la necesidad del encuentro humano, pero indicamos que puede presentarse como una especie de lugar de espera soportable que mantiene abierto el horizonte del encuentro.

Palabras clave:
Momento estético; psicoanálisis; futuro; música


A vida do pianista inglês James Rhodes, conforme narrada na autobiografia Instrumental: memórias de música, medicação e loucura, parece uma verdadeira odisséia. Como Ulisses, saindo de Tróia após a guerra, tentando voltar à Ítaca, seu lar, Rhodes também parece buscar um tipo de retorno. No entanto, o lar para o qual ele busca retornar não é um lugar físico, mas ao seu eu infantil, inteiro, antes de começar a ser estuprado1 1 Usamos aqui diretamente a palavra estupro, em vez de expressões como abuso ou violência sexual, para tentar preservar a força do próprio relato de Rhodes. O pianista não hesita em escancarar a violência atroz que sofreu. Ele diz, por exemplo: “Fui usado, fodido, quebrado, me fizeram de brinquedo e me estupraram desde os seis anos de idade. Repetidas vezes, durante anos e anos”. (Rhodes, 2014/2017, p. 10). aos seis anos de idade pelo professor de educação física da escola. A experiência concreta de horror, o estupro, durou cinco longos e desesperadores anos, mas internamente o horror permaneceu em Rhodes (além de graves consequências físicas, que levaram, entre outras coisas, à necessidade de cirurgias na coluna), como uma guerra constante, como um Ulisses que saiu de Tróia mas que levou a guerra consigo. Rhodes expressa essa sensação de guerra interior de diversos modos ao longo do livro, como: “Estou exausto o tempo inteiro. É uma espécie de Eu tóxico, corrosivo, difuso, penetrante, negativo, tudo de ruim” (Rhodes, 2014/2017, p. 8Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. (Trabalho original publicado em 2014).). Ou: “Sou movido por cem mil formas diferentes de terror” (p. 49).

Rhodes começa seu livro dizendo que a música “literalmente” salvou sua vida: “Ela [a música] provê companhia quando não se tem ninguém, compreensão quando se está confuso, consolo onde há afição e uma energia pura e não contaminada onde há um vazio de devastação e fadiga” (p. xii). No entanto, poucas páginas adiante, diz se sentir um “fracassado de um doente mental” (p. xviii). Com isto, ficamos sabendo, já de saída, que seu livro não pretende vender uma salvação utópica. Não se trata de afirmar algum poder milagroso que afugentaria permanentemente todos os demônios.

Avançando ainda algumas poucas páginas, encontramos Rhodes pluralizando as causas de sua salvação, indicando que, além da música, as pessoas, os bons encontros, o sustentaram no caminho. Ele afirma, a respeito de seu melhor amigo, seu empresário, sua mãe e sua namorada: “Essas pessoas são minha espinha dorsal (...), elas são as forças de luz, o norte da minha vida, o motivo mais forte possível de eu ter permanecido vivo (isso mesmo, permanecido vivo) durante os tempos sombrios” (p. 3). A ênfase de Rhodes no fato de ter “permanecido vivo”, somado ao uso da palavra “literalmente”, no prelúdio, nos indica a que tipo de salvação Rhodes está se referindo. Inicialmente uma salvação literal, da morte física, visto que o pianista muitas vezes esteve à beira da morte por suicídio. E, depois, pequenas inscrições de vida em suas áreas internas mortas.

Rhodes narra a experiência arrebatadora que teve com a música clássica. Com sete anos de idade, encontrou uma fta cassete com uma gravação ao vivo da Chacona, de Sebastian Bach, transcrita para piano por Ferruccio Busoni; escutou em seu gravador Sony, e, de repente, sentiu algo extraordinário. O pianista narra que enquanto era estuprado, “viajava” para se proteger. Sentia-se fora de seu corpo, vagando no teto, ou até mesmo além, atravessando portas, paredes, distante de onde a cena horrenda estava acontecendo. Isto permaneceu, na vida adulta, como um tipo de mecanismo de defesa: “na hora em que um sentimento ou uma situação se tornar insuportável, eu não estou mais lá” (p. 28), diz ele. Ao ouvir pela primeira vez a Chacona de Bach-Busoni, o menino viu-se também em uma espécie de viagem, mas, desta vez

(...) não para voar perto do teto e me afastar da dor física do que acontecia comigo; ao contrário, voo para mais dentro de mim. A sensação é como se eu estivesse passando muito frio e, de repente, entrasse num edredon ultraquente e hipnoticamente confortável, tendo embaixo de mim um daqueles colchões de três mil libras, projeto da NASA. Eu nunca, nunca havia experimentado algo assim. (p. 36)

O autor prossegue, dizendo: “Eu não sabia que raios estava acontecendo, mas literalmente não conseguia me mexer” (p. 36). A partir de então, a peça de Bach-Busoni, transforma-se, para o pequeno Rhodes, em seu local seguro. Toda vez que se sentia ansioso ele “mergulhava dentro dela como se fosse uma espécie de labirinto musical e ficava vagando por ela, perdido e feliz” (p. 37).

A poetisa portuguesa Matilde Campilho, em uma entrevista concedida a Eric Nepoceno,2 2 Link da entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mexr5UgYW60&t=389s relata uma experiência (resguardadas as devidas peculiaridades) semelhante à de Rhodes. Ela conta uma situação em que visitando um museu em Londres, foi impactada por uma obra de Jackson Pollock. Conta que seus joelhos fraquejaram ao se ver diante da obra: “Foi uma bofetada de beleza e de espanto”.

Podemos dizer que tanto Rhodes quanto Campilho viveram momentos estéticos. Na definição de Berenson, o momento estético é

aquele instante fugidio, tão rápido ao ponto de ser atemporal, quando o espectador está irmanado com a obra de arte no momento em que a observa visualmente; ou quando vê qualquer coisa que pessoalmente considere como sendo artística (...). Ele não é mais o seu self corrente, e o quadro de um edifício, estátua, paisagem ou qualquer vivência estética não está mais fora de si mesmo. os dois tornam-se uma única entidade. (Berenson, 1950, s.p, apud Milner, 1952/1987, p. 103Milner, M. (1987). O papel da ilusão na formação dos símbolos. In A loucura suprimida do homem são (pp. 89-117). Imago. (Trabalho original publicado em 1952).)

Christopher Bollas (1987/2015)Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado. Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). descreve os momentos estéticos como encontros com o espírito do objeto, momentos em que há um reconhecimento silencioso que foge a qualquer representação; há “uma cesura no tempo, quando o sujeito se sente acolhido em simetria e solidão pelo espírito do objeto” (p. 66). O encontro com esse objeto gera em nós um sentimento de gratidão, como se a nós fosse concedida uma dádiva. Sentimos como se fossemos escolhidos pelo destino para vivenciar esse momento único.

Em sua entrevista, Matilde Campilho prossegue, dizendo que mesmo que fosse criança, sentiu que aquela experiência teve a função de salvação, ainda que fosse apenas naqueles cinco ou dez minutos: “Eu acho que a arte faz isso, salva momentos”, ela afirma. O encontro com a arte, vivida como momento estético, pode, de fato, salvar um momento da vida? É isto que aconteceu com Rhodes? De momento a momento a música salvou sua vida inteira? Deixemos, por ora, essas questões em suspenso.

Momento estético e objeto transformacional

Bollas relaciona o momento estético a seu conceito de objeto transformacional. Ele utiliza a expressão objeto transformacional para descrever o objeto primário a partir de uma perspectiva intersubjetiva, enfatizando a experiência vivida pelo bebê do encontro com o objeto. O objeto primário seria reconhecido pelo bebê não como um objeto de representação, mas como um processo que ele identifica com as múltiplas transformações do self:

Este conceito de mãe sendo vivenciada como uma transformação é sustentada em diversos aspectos. Em primeiro lugar, ela assume a função de objeto transformacional porque modifica constantemente o ambiente do bebê para ir ao encontro das necessidades dele. Não há nenhuma ilusão operando na identificação que o bebê faz da mãe com as transformações do ser por meio do conhecimento simbiótico; isto é um fato, pois na realidade ela transforma o mundo dele. (1987/2015, p. 51)

Esta descrição de Bollas remete-nos a um trecho da música Uma canção e só, entoada pelo cantor e compositor Lenine (2011)Lenine (2011). Chão [CD Recording]: Casa 9, Universal Music.:

Desde de que eu me encanto, sigo a voz do vento, Já faz tanto tempo, canto, intento. A cantoria que me levaria a qualquer lugar, A melodia que transformaria a quem escutar, assim num piscar.

Embora Lenine, enquanto músico, aluda aqui à busca de uma canção, referindo-se a algo próprio de seu universo artístico, esta busca não é privativa dos músicos nem mesmo dos artistas de modo geral. Na visão de Bolla, todos nós buscamos experiências transformacionais; nossa melodia, digamos, pois não se trata aqui de experiências artísticas, e sim estéticas.

De acordo com Bollas, essas experiências teriam raiz no encontro inter-subjetivo com o objeto primário que nos transmite certa estética. Somos transformados, inicialmente, pela estética materna, pelo seu modo de ser e de se relacionar. Vivenciamos nosso primeiro grande momento estético, portanto, quando estamos dentro do outro, na estética do outro, sendo transformados por esse outro que ainda nem sabemos da existência. Temos notícias desse outro a partir das transformações que ocorrem gradualmente em nosso próprio ser. Podemos dizer, portanto, que os versos de Lenine ecoam algo de um momento da infância primeva. Um momento em que realmente escutamos uma melodia que nos transformou, assim num piscar. Nas palavras de Bollas (1987/2015)Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado. Escuta. (Trabalho original publicado em 1987).: “A dor da fome, um momento de vazio, é transformada pelo leite da mãe em uma experiência de plenitude. Esta é uma transformação fundamental: vazio, agonia e raiva se tornam plenitude e contentamento” (p. 68). Procuramos mergulhar no quadro, na música, na paisagem, na voz da pessoa amada ou em seu abraço, tal como um dia estivemos mergulhados na estética materna. Nesta perspectiva, os momentos estéticos são, portanto, momentos transformacionais.

Em um livro posterior, falando sobre os sonhos, Bollas (1992/1998)Bollas, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter. (Trabalho original publicado em 1992). afirma que estar num sonho é “uma contínua reminiscência de estar no mundo materno quando se era de algum modo uma figura receptiva dentro de um ambiente compreensivo” (p. 5; itálicos nosso). E diz ainda: “O sonho parece ser uma memória estrutural do inconsciente do bebê, uma relação objeto de pessoa dentro do processo do inconsciente do outro” (p. 5; itálicos nosso). O sonho, então, é uma constante atualização da relação primordial com o primeiro objeto transformacional. Ou seja, o que definiria uma vivência transformacional é a existência do par figura receptiva/ambiente compreensivo.

O par figura receptiva/ambiente compreensivo está subjacente aos processos transformacionais, pois esse par que se inicia na relação mãe-bebê e que se transforma na estrutura onírica, se desloca também para os objetos estético-culturais. Assim como o ego cria o sonho, recriando a situação transformacional primária (mãe-bebê), a cultura criou todo um aparato de objetos culturais que são ambientes compreensivos potenciais para os quais o sujeito pode se entregar como figura receptiva. Desse modo, a relação do indivíduo com esses objetos serve como uma espécie de evocação do holding materno. A esse respeito, Bollas (1987/2015)Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado. Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). afirma que o momento estético é uma “experiência de holding que promove a memória psicossomática do holding ambiental” (pp. 73-74), configurando-se como um “registro pré-verbal e essencialmente pré-representativo da presença materna” (p. 74). Nesse sentido, embora não seja possível dizer que o momento estético substitui a presença materna, podemos pensar que esses momentos são potencialmente propiciadores de elementos de cuidado presentes originalmente na figura materna. Sharon Chirban (2000)Chirban, S. (2000). Oneness experience: looking through multiple lenses. Journal of Applied Psychoanalytic Studies, 2(3), 247-264 é uma autora que apoia esse ponto de vista. Ela estabelece uma relação entre os momentos de rebaixamento das fronteiras do self, e o relacionamento primitivo mãe-bebê, que seria marcado pela indiferenciação, pela unidade. Desse modo, sendo derivados da união primeva, os momentos estéticos são definidos por Chirban como experiências de unidade. A autora argumenta que essas experiências impulsionam a integração e expansão do self (tal como a experiência de indiferenciação primitiva mãe-bebê). Para compreender essas afirmações, nos reportemos à relação mãe-bebê para depois retornarmos à questão do momento estético.

A unidade com a mãe impulsiona a relação com o outro, na medida em que ela apresenta o mundo ao bebê em pequenas doses que ele pode suportar, oferecendo-lhe abrigo do mundo turbulento (mundo interno e externo), deste modo o bebê pode conhecer o mundo a partir do seu próprio gesto, de maneira que o mundo adquire gradativamente sentidos pessoais. Inversamente, a ausência da unidade coloca o bebê diante da amplitude esmagadora do mundo, decorrendo daí as angústias impensáveis das quais Winnicott (1963/2005)Winnicott, D. (2005). O medo do colapso. In Explorações psicanalíticas. Artmed. (Trabalho original publicado em 1963). nos fala. Seguindo essa lógica, podemos dizer que se as experiências de imersão nos objetos, tais como as experiências de Rhodes e Campilho, refetem, em certo nível, a experiência de unidade primitiva com a mãe, elas levam então à individuação e à capacidade de estabelecer relações íntimas sem perder-se no outro, pois quando o indivíduo “se perde” no objeto e encontra nele partes suas, o objeto fica “pessoalizado”. Isto impulsiona o indivíduo na direção do mundo: dos encontros pessoais, dos objetos, em suma, na direção do futuro.

O momento estético e os futuros

Christopher Bollas afirma que estamos continuamente alternando de estados de self complexo para estados de self simples, e vice-versa. O self simples é o self que está imerso na experiência, que a vive como um personagem, como quando estamos no sonho, isto é, quando somos uma figura receptiva em um ambiente compreensivo. O self complexo é o self que medita, que refete. A este respeito Bollas (1992/1998)Bollas, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter. (Trabalho original publicado em 1992). descreve os estágios da experiência do self. Vejamos:

Eu uso o objeto. Quando pego um livro, vou a um concerto ou telefono para um amigo, eu seleciono o objeto de minha escolha.

Eu sou influído pelo objeto. No momento em que uso o objeto, sua particularidade específica (sua integridade) acaba por me transformar: pode ser a Oitava Sinfonia de Bruckner me sensibilizando, uma novela que contenha associações evocativas ou um amigo me persuadindo.

Eu fico perdido em minha experiência do self. A distinção entre o sujeito que usa o objeto para realizar seu desejo e o sujeito que é tocado pela ação do objeto não é mais possível. O sujeito está no interior da terceira área de experiência self. O estado anterior de seu self e a simples integridade do objeto estão ambos “destruídos” na síntese da experiência do efeito mútuo. Eu observo o self como um objeto. Emergindo de sua própria experiência do self, o sujeito refete sobre onde esteve. Este é o lugar do self complexo. (Bollas, 1992/1998, p. 19Bollas, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter. (Trabalho original publicado em 1992).; itálicos do autor).

O terceiro estágio é o lugar do self simples, o quarto é o do self complexo. O principal objetivo do self complexo é “objetivar da melhor maneira possível onde alguém esteve ou o significado de suas ações” (p. 6). Estamos sempre oscilando entre a posição de observadores objetivos e a condição de figura receptiva dentro de um ambiente compreensivo. Nestes últimos estados retornamos à não integração, somos “ilhas espalhadas de potenciais organizados dirigindo-se para o ser” (p. 6). James Rhodes (2014/2017)Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. (Trabalho original publicado em 2014). narra a experiência de imersão na Chacona de Bach-Busoni e, ao longo do livro, imersões em diversas outras peças musicais que foi conhecendo ao longo do tempo. Em certa ocasião, por exemplo, estando internado em um hospital psiquiátrico, conta que um amigo lhe levou escondido dentro de uma embalagem vazia de shampoo (os visitantes não podiam levar qualquer presente, exceto produtos de higiene), um iPod repleto de música, o que lhe propiciou a seguinte experiência:

Eis que me encontro debaixo das cobertas. Fone de ouvido bem apertado. Meia-noite. Escuro, silêncio total. E eu apertei o play e ouvi uma peça de Bach que ainda não tinha ouvido. E isso me levou a um lugar de tamanha magnificência, entrega, esperança, beleza e espaço infinito, que foi como tocar a face de Deus. Juro que tive algumas vezes uma espécie de epifania. A peça era o Adágio, de Bach-Marcello (...). Glenn Gould estava tocando isso no seu Steinway, e conseguiu há quarenta anos viajar mais trezentos anos até o passado, fazendo-me saber que as coisas não só iriam ficar bem, como também iriam ficar absolutamente sensacionais. A sensação era como se eu tivesse sido plugado a um soquete elétrico. (...). Aquilo me arrasou e liberou algum tipo de delicadeza interior que não via a luz do dia havia trinta anos. (p. 133; itálico no original)

Arriscamos dizer que nesse momento Rhodes está no terceiro estágio da experiência do self descrito por Bollas. O lugar do self simples. No entanto, o trajeto de Rhodes na música clássica não é feito apenas de experiências de imersão nas peças, mas também de um trabalho de reflexão sobre essas experiências, sobre o campo comercial ligado à música e sobre os compositores das peças. Desse modo, cada um dos capítulos do livro é iniciado com uma breve biografia de algum compositor. A experiência de Rhodes com a música, portanto, está muito além do impacto advindo dela. Se expande para o compartilhamento de sua experiência (na própria publicação do livro e nos concertos que realiza) e para a identificação com os diversos compositores e suas histórias trágicas. A começar por Bach, órfão aos dez anos, sofrendo abusos na escola, tendo perdido 11 (!) filhos e a esposa. Passando por Beethoven (que emergiu de uma família alcoolista onde se praticava violência doméstica, que morre surdo e infeliz), Ravel (que carregava o trauma de ter servido na Primeira Guerra Mundial e ter sofrido danos cerebrais severos em função de uma colisão de automóveis), Brahms (que, segundo Rhodes, vivia em uma família tão desestruturada que, ainda criança, precisou tocar em bordéis para ganhar dinheiro), Schumann (que tentou se matar lançando-se no rio Reno e, ao não conseguir, internou-se voluntariamente em um hospital, onde morreu dois anos depois), entre outros.

A excitação com a qual Rhodes narra essas histórias, nos faz recordar de um trecho de uma carta da poetisa Florbela Espanca, enviada à sua amiga Julia Alves em 1916, na qual ela diz o seguinte:

A única coisa que consola os tristes é a tristeza, não te parece? A alegria irrita, e eu hoje tendo no regaço a bíblia dum grande desgraçado, tive mais uma vez a prova disto, porque o livro consolou-me. Chama-se o desgraçado Silva Pinto; chama-se o livro Neste vale de lágrimas, conheces o desgraçado? Conheces o livro? É belo e consolador; lê-lo é evocar saudosamente todas as relíquias de esperança de um passado morto. Como o compreendi e como tão da alma o sinto. (Dal Farra, 2002, p. 213Dal Farra, M. L. (2002). Florbela, a inconstitucional. In F. Espanca (2002), Afinado desconcerto: contos, cartas e diário. Iluminuras; itálicos no original)

Parece que por meio das biografias dos compositores Rhodes também consola-se. Suas tragédias ressoam a sua própria tragédia. Por outro lado, ele admira a potência desses autores, o potencial de criar mesmo em meio à desolação e, por vezes, a partir dela. Em Bach, por exemplo, seu grande ídolo, exalta a capacidade de seguir adiante e viver da maneira mais criativa que consegue, mesmo em meio a toda tristeza, e de ter deixado um legado que Rhodes considera estar além da compreensão da maioria dos humanos.

Rhodes transita, portanto, entre momentos estéticos (momentos de self simples) e momentos de reflexão sobre a experiência e sobre si mesmo, utilizando-se das peças e de todo o universo musical que a circunda, para pensar sobre si mesmo e caminhar na direção do futuro. Por meio das biografias de compositores mortos há séculos, Rhodes parece, assim como Florbela, evocar relíquias de esperança de um passado morto. Mas não apenas saudosamente, visto que os compositores com os quais se identifica, e todo o universo da música clássica, parecem lhe dar força para, no presente e no futuro, encontrar e criar novas relíquias (tais como seus concertos e seu livro), forjadas por dor e esperança, que podem ser compartilhadas com outros. Ou seja, os estados de imersão nas peças musicais propiciam não apenas experiências de êxtase, mas incrementam a esperança e o movem para o futuro.

Neste ínterim, para pensar esse movimento de Rhodes, recorremos novamente a Bollas. Ele afirma que da mesma maneira que possuímos memórias, pode-se dizer que possuímos futuros. Ele nos lembra que na teoria econômica, fala-se em investir no futuro. Semelhantemente investimos psiquicamente no futuro a partir do uso que fazemos dos objetos do presente. Os objetos atuais estão “impregnados de futuros”, nos diz o autor. Igualmente, assim como reprimimos memórias, é possível haver uma repressão dos futuros, já que uma pessoa que passou por experiências muito dolorosas pode ter seus objetos impregnados de futuros dolorosos: “Não há, então, nenhum desejo de evocar futuros, uma vez que a pessoa não deseja evocar memórias dolorosas” (Bollas, 1989/1992, p. 58Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano. Imago. (Trabalho original publicado em 1989).). No entanto, nas palavras de Bollas, “se tudo decorrer bem, uma criança desenvolverá interesses apaixonados pelos objetos, muitos dos quais projetam a criança no futuro” (p. 49). Assim, uma criança pode se imaginar nadando, outra tocando piano, jogando futebol etc. É por meio desse interesse apaixonado por determinados objetos, que a criança se move para o futuro. Esse é um processo que permanece ao longo de toda a vida, de maneira que todos nós, ao utilizarmos objetos do presente, estamos nos movimentando para o futuro. Ao projetar nos objetos as nossas próprias disposições, constituímos “as primeiras formações do caminho do desejo” (p. 50).

Isso é bastante claro na história de James Rhodes. Desde que iniciou o contato com a música clássica, ele sonhou em ser também um concertista tal como os grandes músicos que escutava. Desse modo, as músicas tornaram-se para ele não apenas um lugar de refúgio da atrocidade que sofria, mas uma promessa de dias e encontros melhores, o que se depreende de uma afirmação sua, quando narra a sensação que teve após apresentar o seu primeiro concerto: “(...) eu compreendi que todas aquelas fantasias sobre dar concertos que eu tinha na infância, que me mantiveram vivo e resguardado na minha mente, eram precisas. De fato, é algo que tem esse poder” (Rhodes, 2017, p. 114Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. (Trabalho original publicado em 2014).; itálicos nosso).

Durante todo o seu relato autobiográfico James Rhodes afirma algumas vezes que a música o salvou ou que a vida o manteve vivo. No entanto, no epílogo de sua autobiografia, ao falar sobre o momento otimista em que se encontra, ele adverte, de maneira honesta, que não faz ideia se esse momento durará muito tempo: “Já estive em situações em que me sentia sólido, confável, bom e forte, e tudo foi pro espaço” (p. 245). De fato, acompanhamos muitas dessas situações ao longo do livro. Momentos em que um raio de esperança surgia para logo ser coberto pela neblina (várias internações psiquiátricas, tentativas de suicídio, reincidência na automutilação e no uso abusivo de álcool e drogas etc.). Com base nisso, poderíamos, com certa razão, adentrar pelo caminho do ceticismo e duvidar da solidez da melhora de Rhodes. Poderíamos apostar que em não muito tempo ele iniciaria novamente uma descida a uma espécie de abismo (e é mesmo bem possível que isso tenha acontecido após a escrita do livro, visto que esse foi lançado há mais de seis anos). No entanto, se tomarmos apenas essa via estaríamos, como diz o ditado, “lançando fora água da banheira com o bebê dentro”, pois apesar das constantes recaídas do pianista, parece-nos inegável que muitos momentos de sua vida foram salvos pela música e pelas pessoas de seu entorno.

Fato inegável também é que à despeito da violência atroz que sofreu durante anos a fo, hoje James Rhodes é um homem de 46 anos, exímio pianista que realiza concertos, escreve artigos, concede entrevistas etc. Não sabemos de fato onde e como ele estará em um ano ou dois, ou mesmo em um dia ou dois (e quem sabe como cada um de nós estará?), mas sabemos que inúmeras pessoas que sofreram atrocidades semelhantes às que ele sofreu sucumbiram ao suicídio ou estão há décadas enclausuradas em níveis extremos de loucura. Como negar, então, que, de alguma maneira, a música, se não o salvou, ao menos teve um papel importante na sua sustentação até aqui, isto é, um papel fundamental (ao lado dos amigos, da família, dos terapeutas) em mantê-lo vivo? Esta reflexão leva-nos à seguinte pergunta: como podemos compreender ou dimensionar o potencial da música (ou da arte em geral) nesse processo de manutenção da vida? No tópico seguinte recorreremos a alguns autores na tentativa de esboçar uma compreensão.

Momento estético e progressão na direção da vida

A respeito da experiência primitiva de unidade que se refete nos posteriores momentos estéticos, Chirban (2000)Chirban, S. (2000). Oneness experience: looking through multiple lenses. Journal of Applied Psychoanalytic Studies, 2(3), 247-264 marca uma diferença entre experiências de unidade progressiva e fantasias de unidade regressiva. No primeiro caso trata-se de uma experiência íntima que impulsiona à abertura, à expansão, à relação objetal. No segundo, estamos diante da fuga da realidade, do enclausuramento. O momento estético se situaria no primeiro campo, o da progressão. Progressivo aqui é entendido como movimento em direção à vida, à integração e diferenciação egoica. Regressivo, por outro lado, é compreendido como afastamento das relações, desligamento, movimento em direção à morte psíquica.3 3 Deixamos de lado, nesta discussão, a regressão enquanto fator terapêutico, dimensão discutida por Winnicott (1954/2000) e Balint (1968/1993). Ideia que também está presente em Freud, como mostra Balint: “(...) aprendemos com Freud que, clinicamente, a regressão pode ter quatro funções: a) como mecanismo de defesa, b) como fator da patogênese, c) como uma potente forma de resistência e d) como fator essencial da terapia analítica” (p. 118). Para o objetivo deste artigo chamamos atenção apenas para regressão enquanto afastamento da vida, em contraposição à progressão. A fim de embasar essa compreensão a respeito de progressão e regressão, recorremos a algumas afirmações de Abraham, Freud e Winnicott. Vejamos. Já em 1924, Abraham (1924/1970b)Abraham (1970b). Breve estudo do desenvolvimento da libido. In Teoria psicanalítica da libido (pp.161-173). Imago. (Trabalho original publicado em 1924). referia-se ao estágio mais primitivo de desenvolvimento psicossexual como sendo pré-ambivalente e apontava a tendência regressiva melancólica em direção a esse estágio. Se essa regressão radical for efetuada, o resultado pode ser o suicídio (Santos e Migliavacca, 2020Santos, J. F. S., & Migliavacca, E. M. (2020). Reflexões conceituais sobre a metapsicologia do suicídio do melancólico. Revista Brasileira de Psicanálise. 53(4), 67-82.). Muitos anos antes, Abraham (1911/1970a)Abraham, K. (1970a). Notas sobre as investigações e o tratamento psico-analítico da Psicose Maníaco-Depressiva e Estados Afins. In Teoria psicanalítica da libido (pp. 32-50). Imago. (Trabalho original publicado em 1911). indicava que a tendência do melancólico ao afastamento seria uma expressão da negação da vida. Ou seja, Abraham equalizava regressão e afastamento da vida.

Freud (1923/2013)Freud, S. (2013). Oeueoid. In Sigmund Freud Obras completas: Oeueoid, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (pp. 13-75). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)., no contexto da segunda teoria pulsional, argumenta que cada etapa do desenvolvimento psicossexual é marcada por um progresso da ligação da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. Assim, nas fases mais primitivas haveria uma preponderância da pulsão de morte, enquanto ao longo do desenvolvimento a fusão pulsional levaria a um incremento de pulsão de vida. A regressão a estágios mais primitivos do desenvolvimento levaria a uma desfusão pulsional e, portanto, a um incremento da pulsão de morte. Vemos então, em Freud e Abraham, a concepção de progressão como movimento para a vida, e de regressão como movimento para a morte

Também em Winnicott encontramos a ideia de progressão em direção à vida, embora sobre bases bastante diferentes de Freud, uma vez que a teorização do autor inglês não se assenta sobre o conflito pulsional (pulsão de vida x pulsão de morte). Em “O bebê como organização em marcha”, Winnicott (1957/1979)Winnicott, D. (1979). O bebê como organização em marcha. In A criança e seu mundo. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957). nos fala da presença de uma centelha vital nos bebês, uma tendência inata para a vida. Tendência que precisa ser sustentada pelo ambiente. Winnicott refere-se a mães que perdem o prazer do cuidado por acreditarem-se responsáveis pela vivacidade de seus bebês, certificando-se continuamente que estão vivos, ou fazendo “malabarismos” para animá-los quando os veem rabugentos ou taciturnos. Ou seja, essas mães obstaculizam a marcha/progresso natural das crianças na direção da vida. A essas crianças “nunca é permitido sequer, nos primeiros tempos, que fiquem simplesmente deitadas e entregues às suas divagações. Perdem assim muito e pode-lhes fugir a sensação de que elas próprias querem viver” (p. 30). Esta citação winnicottiana remete-nos a uma descrição, feita por Sara Nettleton, de uma criança que explora criativamente o mundo, enriquecendo seu mundo interno por meio dessa exploração:

Imaginemos que um bebê está deitado em seu berço, sozinho e em estado de calmo devaneio. Sua mãe aparece, sorri, diz olá, e pendura, no suporte do berço, um brinquedo móvel vermelho, o qual se move em um padrão aleatório. A atenção do bebê é imediatamente atraída para isso e vários elementos se juntam: a chegada familiar e reconfortante da mãe, um novo objeto inesperado em seu campo de visão, uma cor vermelha estimulante, o movimento imprevisível e a experiência prazerosa de sua própria resposta física, enquanto seu corpo expressa surpresa e excitação. O ponto importante aqui é que vários aspectos dessa nova experiência se inscrevem no inconsciente e ganham significado, não porque são recalcados, mas porque são recebidos por razões criativas. No inconsciente do bebê cada um dos elementos individuais irá se vincular a um conjunto formado por experiências anteriores. Com cada novo evento, esses conjuntos se expandem e fomentam o desejo de uma excitação prazerosa. O bebê então procurará mais do mesmo em seu ambiente exterior — o reaparecimento da mãe, outras coisas que são vermelhas ou que se movem de certa maneira, e assim por diante. (Nettleton, 2018, p. 36Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução. Escuta.)

Estabelecendo um diálogo entre a concepção winnicottiana a respeito da marcha da criança na direção da vida e a descrição de Nettleton sobre a exploração criativa dos objetos, podemos afirmar que a marcha (progressão) natural do bebê é, ao mesmo tempo, movimento para a vida e para os objetos. Movimentos indissociáveis. Este é o significado de progressão que queremos aqui acentuar.

Muitas das divagações do bebê a que Winnicott se refere na citação acima podem ser explorações do objeto tal como Nettleton descreve. As divagações podem ser estados de imersão nos objetos em estado de self simples, como se o bebê estivesse continuamente vivenciando momentos estéticos. Essa afirmação é corroborada por Marion Milner (1952/1987)Milner, M. (1987). O papel da ilusão na formação dos símbolos. In A loucura suprimida do homem são (pp. 89-117). Imago. (Trabalho original publicado em 1952)., que afirma que o momento estético, momento de suspensão do tempo e das fronteiras sujeito-objeto, é uma experiência corriqueira da infância. Em suas palavras, “a arte fornece um método, durante a vida adulta, para reproduzir estados de mente que fazem parte da experiência diária de uma infância sadia” (p. 103).

Podemos afirmar, então, que quando o bebê se entrega ao objeto em estado de self simples ele está progredindo na direção da vida. Por derivação, podemos conjeturar que um movimento semelhante acontece na entrega do indivíduo a um objeto estético na vida posterior, tal como nas experiências de Rhodes. Os momentos estéticos que ele vivenciava o sustentaram, não permitindo que ele sucumbisse, sob pressão da violência que sofria, à regressão absoluta da pulsão de morte e fortaleceram seus laços com a vida. Esta é uma afirmação também corroborada por Chirban (2000)Chirban, S. (2000). Oneness experience: looking through multiple lenses. Journal of Applied Psychoanalytic Studies, 2(3), 247-264, que argumenta que o afrouxamento das fronteiras do self numa experiência de unidade com o outro (em suma, o momento estético, o terceiro estágio da experiência do self, como descreve Bollas), resulta, após a experiência, em um self mais integrado e aprimorado por uma vitalidade aumentada. Como compreender essa afirmação? O que significa fortalecer os laços com a vida?

Em seu texto “A localização da experiência cultural”, Winnicott (1971/1975)Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971). refere que embora os psicanalistas tenham se debruçado sobre a definição de saúde, entendendo-a como ausência de defesas rígidas, pouco se fez no sentido de compreender uma questão mais básica, isto é, o problema de saber o que é vida, independente de saúde ou doença.

Para Winnicott, essa resposta não pode ser encontrada na experiência instintual; não é a satisfação instintual que fará o indivíduo sentir que a vida vale a pena ser vivida, de modo que afirma que o analista pode curar o paciente (cura entendida como diminuição das defesas) sem nunca saber o que é que permite que o paciente continue vivendo. A ausência de doença, ele afirma, é saúde, não vida.

Boraks (2008)Boraks (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanal. 42(1), 112-123. segue o questionamento winnicottiano sobre o que é estar vivo, definindo “estar vivo”, como uma capacidade. Ela destaca que, para Winnicott, o sentir-se vivo se assenta, inicialmente, no corpo. O corpo é o lugar privilegiado a partir do qual podemos alçar voo na direção de todas as outras experiências. É o lugar onde iniciamos a vida “a partir do que nos é conhecido, do que é nosso e do que vivemos primeiramente de modo sensorial” (p. 113). O destino dessa vitalidade inicial, assentada no corpo, depende da presença de um ambiente capaz de acolher o bebê nos estados excitados e sustentá-lo nos momentos tranquilos. É dos cuidados maternos, destaca Boraks, emergindo da vitalidade emocional e corporal (não intrusiva) da mãe, que o corpo do bebê poderá emergir como sede do estar vivo. A capacidade de estar vivo depende, portanto, da presença do outro. É a sustentação do outro que possibilitará a oscilação entre estados excitados e tranquilos sem que o sujeito tema despedaçar-se.

Assim, a capacidade de estar vivo, para Winnicott, inclui a capacidade de alternância entre estados de ser. Inclui a capacidade de desintegrar-se e retornar à integração. Inclui mesmo a capacidade de abandonar momentaneamente o impulso fundamental para existir: “Pode-se dizer, assim, que estar vivo é ter e manter a esperança de recuperar a integração quando sentimos que a perdemos” (Boraks, 2008, p. 121Boraks (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanal. 42(1), 112-123.). A autora prossegue:

Mais especificamente e dependendo do grau de integração alcançado, a capacidade de estar vivo liga-se à possibilidade de manter opostos em jogo, de transformar em fonte de inspiração os nossos horrores, nossas confusões e nossos conflitos, além de criar com eles um jogo que permita um novo lugar frente a nós mesmos e ao mundo. (p. 121; itálico nosso)

Parece-nos que o que James Rhodes realiza é exatamente transformar em inspiração seus horrores, confusões e conflitos. Seu primeiro disco, por exemplo, carrega um título absolutamente autobiográfico: Razor blades, Little Pills e Big Pianos (Lâminas de barbear, pequenos comprimidos e grandes pianos). O próprio livro é fruto de uma inspiração desse tipo, além de um programa de TV na Channel 4, James Rhodes: Notes from the inside, no qual o pianista foi a um hospital psiquiátrico conversar com os internos e tocar uma música específica para cada paciente.

É forçoso nos questionarmos, no entanto, se Rhodes teve a presença do ambiente compreensivo que Boraks assinala, e se foi então esse ambiente que permitiu a transformação do horror em inspiração. Em sua autobiografia encontramos pouquíssimas referências à sua família nos seus primeiros anos. Ele comenta, entretanto, que antes dos abusos se iniciarem ele era uma criança reservada, mas que já gostava de música, dança e tinha uma imaginação bem fértil, estando “livre de muitas bobagens com as quais os adultos parecem viver sobrecarregados” (Rhodes, 2014/2017, p. 12Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. (Trabalho original publicado em 2014).), o que talvez nos dê alguma indicação de um ambiente razoavelmente acolhedor. Por outro lado, em um boletim de ocorrência policial escrito em 2010, Chere Hunter, a diretora da escola fundamental de Rhodes, diz que ele implorou mais de uma vez para não ser mandado ao ginásio (para as aulas extracurriculares de boxe, nas quais o abuso acontecia). Ela alega ter conversado com a mãe do menino sobre isso, que comentou que havia percebido que o filho tinha se tornado mais arredio em casa, que não estava sendo “ele mesmo”. Apesar disso, Chere pontua que não se recorda de os pais terem cancelado a atividade. De fato, mais adiante, Rhodes conta que os abusos pararam apenas aos 11 anos de idade, quando ele mudou de escola. A própria diretora diz que embora pensasse que algum tipo de castigo físico estivesse sendo aplicado, jamais imaginou que fosse algo de caráter sexual.

Não temos intenção de agir como juízes dos pais de Rhodes ou da diretora, o que evidentemente não é o nosso papel. Queremos apenas indicar que onde houve uma falha do ambiente em protegê-lo, a música o acudiu. É claro que a música não pode substituir o cuidado parental, muito menos apagar a violência que Rhodes sofreu, e a prova cabal disso é a tempestade emocional com a qual ele conviveu (e talvez ainda conviva) durante toda a vida. Contudo, como já indicamos algumas páginas acima, a música serviu-lhe de sustentação para que ele não caísse em abismos de morte sem fim. A partir disso retornemos à questão sobre os laços com a vida, expandindo-a agora para além da presença parental, inserindo a experiência cultural (tal como a relação com a música).

Winnicott (1971/1975)Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971). afirma que o espaço potencial, espaço existente entre as áreas subjetivas e objetivas da experiência, pode ou não tornar-se uma área vital da vida psíquica do indivíduo. Podemos dizer, desse modo, que o espaço potencial é o lugar onde a vida acontece. É o lugar de criação, do brincar, em que o indivíduo passa da pura existência para o viver propriamente. O lugar da exploração criativa dos objetos, a saber, da marcha em direção à vida:

(...) para o bebê (se a mãe puder proporcionar as condições corretas), todo e qualquer pormenor de sua vida constitui exemplo do viver criativo. Todo objeto é um objeto “descoberto”. Dada a oportunidade, o bebê começa a viver criativamente e a utilizar objetos reais para neles e com eles ser criativo. Se o bebê não receber essa oportunidade, então não existirá área em que possa brincar, ou ter experiência cultural, disso decorrendo que não existirão vínculos com a herança cultural, nem contribuição para o fundo cultural. (p. 161; itálicos nosso)

Algumas conclusões podem ser depreendidas dessa citação de Winnicott. Em primeiro lugar, se tudo corre bem, os objetos encontrados adquirem sentidos pessoais, o que significa dizer que “estar vivo” passa a fazer sentido. O sentido de estar vivo, portanto, é encontrado com os objetos, entre os objetos, na movimentação psíquica entre as imersões nos objetos (em estado de self simples) e o retorno produtivo, isto é, enquanto self complexo (Bollas, 1992/1998Bollas, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter. (Trabalho original publicado em 1992).). Em segundo lugar, é preciso destacar a relação entre o sentido de estar vivo e a experiência cultural. É utilizando a herança cultural que cada um pode viver criativamente.

No mesmo texto, Winnicott (1971/1975)Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971). afirma que “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição” (p. 158). A originalidade no campo cultural advém do uso criativo das obras culturais, que são expressões vivas de transformações produtivas vivenciadas por inúmeras pessoas ao longo do tempo. É assim que a centelha vital (Winnicott, 1957/1979Winnicott, D. (1979). O bebê como organização em marcha. In A criança e seu mundo. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) pode se tornar uma grande lareira, fortalecendo os laços do indivíduo com a vida. Basta um pequeno passo associativo para reconhecermos aqui o uso feito por James Rhodes da música e seus compositores.

Considerações finais

O poeta Charles Bukowski (2007/2015)Bukowski, C. (2015). Um final plausível. In As pessoas parecem flores finalmente. L&PM. (Trabalho original publicado em 20072)., no poema Um final plausível, diz o seguinte:

deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir ou você cansou de ficar bêbado e a erva não funciona mais, e não me refro a passar para o haxixe ou cocaína, eu me refro a um lugar para ir além da morte que está esperando ou do amor que não funciona mais. deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir além de um aparelho de TV ou um flme ou comprar um jornal ou ler um romance. é não ter esse lugar para onde ir que cria as pessoas agora nos hospícios e os suicídio. (p. 175)

Para Rhodes, durante muito tempo esse lugar foi a música. Ele encontra nesse objeto estético um lugar seguro, que é, ao mesmo tempo, inquietante e acolhedor. A música se torna um lugar de vida e uma espécie de lugar de espera suportável,4 4 Agradecemos ao nosso colega Péricles Machado Jr. pela sugestão desta metáfora tão pertinente. um lugar que permite a manutenção de um horizonte aberto no qual se vislumbre a possibilidade do encontro, e que possa se contrapor à repressão dos futuros.

Pensamos que não é excessivo enfatizar novamente que não pretendemos fazer uma ode a um suposto poder milagroso da música e dos momentos estéticos em geral. Queremos apenas indicar que enquanto lugar de espera e promessa de futuro, os momentos estéticos devem ter sido degraus na escadaria pelo qual Rhodes passou (e ainda passa) para chegar a bons encontros humanos, aos quais ele mesmo se refere com muita gratidão.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. / This work received funding by Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
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    Usamos aqui diretamente a palavra estupro, em vez de expressões como abuso ou violência sexual, para tentar preservar a força do próprio relato de Rhodes. O pianista não hesita em escancarar a violência atroz que sofreu. Ele diz, por exemplo: “Fui usado, fodido, quebrado, me fizeram de brinquedo e me estupraram desde os seis anos de idade. Repetidas vezes, durante anos e anos”. (Rhodes, 2014/2017, p. 10Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. (Trabalho original publicado em 2014).).
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    Deixamos de lado, nesta discussão, a regressão enquanto fator terapêutico, dimensão discutida por Winnicott (1954/2000)Winnicott, D. (2000). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In Da pediatria à psicanálise (pp. 374-392). Imago. (Trabalho original publicado em 1954). e Balint (1968/1993)Balint (1993). A falha básica. Artmed. (Trabalho original publicado em 1968).. Ideia que também está presente em Freud, como mostra Balint: “(...) aprendemos com Freud que, clinicamente, a regressão pode ter quatro funções: a) como mecanismo de defesa, b) como fator da patogênese, c) como uma potente forma de resistência e d) como fator essencial da terapia analítica” (p. 118). Para o objetivo deste artigo chamamos atenção apenas para regressão enquanto afastamento da vida, em contraposição à progressão.
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    Agradecemos ao nosso colega Péricles Machado Jr. pela sugestão desta metáfora tão pertinente.

Referências

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  • Winnicott, D. (2005). O medo do colapso. In Explorações psicanalíticas Artmed. (Trabalho original publicado em 1963).
Editor/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2022
  • Aceito
    29 Maio 2022
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