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Considerações sobre a comunicação do diagnóstico de câncer infantil: posição da criança, lugar dos pais, efeitos do discurso médico e possibilidades de intervenção do discurso do psicanalista*1 *1 O presente artigo foi baseado no trabalho de conclusão de residência intitulado “Desafios na comunicação do diagnóstico de câncer infantil: uma leitura psicanalítica”, apresentado à Universidade Federal de São Paulo no ano de 2020.

Considerations on communicating the diagnosis of childhood cancer: the child‘s position, the parent‘s place, effects of the medical discourse, and the intervention possibilities of the discourse of the psychoanalyst

Considérations à propos de la communication de la diagnose de cancer de l’enfant: la position de l’enfant, la place des parents, les effets du discours médical et le possibilités d’intervention du discours de l’analyste

Consideraciones sobre la comunicación del diagnóstico de cáncer infantil: posición del niño, el lugar de los padres, los efectos del discurso médico y las posibilidades de intervención del discurso del analista

Resumos

O presente trabalho tem como objetivo investigar o processo de comunicação do diagnóstico de câncer infantil, levando em consideração a posição da criança, o lugar dos pais, os efeitos do discurso médico e as possibilidades de intervenção do discurso do analista. A partir da discussão de três casos clínicos, percebeu-se que a escuta analítica pôde auxiliar a equipe diante do conflito bioético cada vez mais presente na oncopediatria: deve a criança saber a verdade ou deve ser ela protegida da verdade? O discurso do psicanalista, estando advertido da impossibilidade de tudo dizer a respeito da verdade, consegue de antemão se desvencilhar desses imperativos e operar proporcionando um giro discursivo que produz como efeito a entrada em cena do saber singular do sujeito- -criança em detrimento de um saber universitário de ordem protocolar.

Palavras-chave
Comunicação do diagnóstico; oncologia pediátrica; psicanálise; infância; discursos


This paper investigates the process of communicating the diagnosis of childhood cancer considering the child’s position, the parents’ place, the effects of the medical discourse, and the intervention possibilities of the discourse of the psychoanalyst. Based on three clinical cases, the discussion points out how the analytic listening helped the team faced with a bioethical conflict increasingly present in pediatric oncology: should the child know the truth, or should they be protected from it? Being aware of the impossibility of telling the whole truth, the analyst can disentangle themself in advance from these imperatives and provide a discursive turn which highlights the child subject’s singular knowledge in detriment of the formal academic knowledge.

Keywords
Communication of diagnosis; pediatric oncology; psychoanalysis; childhood; discourses


La présente recherche vise à enquêter sur le processus de communication du diagnostic de cancer de l’enfant, tenant compte de la position de l’enfant, de la place des parents, des effets du discours médical et des possibilités d’intervention du discours de l’analyste. À partir de la discussion de trois cas cliniques, il a été possible de percevoir que l’écoute analytique a pu aider l’équipe face au conflit bioéthique de plus en plus présent en oncologie pédiatrique: l’enfant doit-il savoir la vérité ou doit-il être protégé de la vérité? Le discours du psychanalyste, prévenu de l’impossibilité de tout dire la vérité, parvient d’avance à se débarrasser de ces impératifs et à opérer en pourvoyant une tournure discursive qui produit l’effet de mise en scène du savoir singulier du sujet enfant au détriment du savoir de l’université de l’ordre protocolaire.

Mots clés
Communication du diagnostic; oncologie pédiatrique; psychanalyse; l’enfance; discours


Este trabajo tiene como objetivo investigar el proceso de comunicación del diagnóstico de cáncer infantil, teniendo en cuenta la posición del niño, el lugar de los padres, los efectos del discurso médico y las posibilidades de intervención del discurso del analista. A partir de la discusión de tres casos clínicos, se constató que la escucha analítica ha podido ayudar al equipo ante el conflicto bioético cada vez más presente en la oncología pediátrica: ¿El niño debe conocer la verdad o debe estar protegido de la verdad? El discurso del analista, advertido de la imposibilidad de decir toda la verdad, logra de antemano deshacerse de estos imperativos y proporcionar un giro discursivo que produce el efecto de la entrada en escena del saber singular del sujeto infantil en detrimento del saber de la universidad de orden protocolario.

Palabras clave
Comunicación diagnóstica; oncología pediátrica; psicoanálisis; infância; discursos


Introdução

O ato comunicativo pode ser definido como um importante instrumento laboral na assistência à saúde, favorecendo a formação de vínculos e possibilitando a construção de práticas mais horizontalizadas previstas pelo Sistema Único Saúde (SUS). Igualmente, a comunicação é consubstanciada por diretrizes curriculares como uma das competências gerais para os cursos de saúde no Brasil, pois é por meio dela que ocorrem os encontros entre pacientes, familiares e equipe (Coriolano-Marinus et al., 2014Coriolano-Marinus, M. W. de L., Queiroga, B. A. M. de, Ruiz-Moreno, L., & Lima, L. S. de. (2014). Comunicação nas práticas em saúde: revisão integrativa da literatura. Saúde e Sociedade, 23(4), 1356-1369. Recuperado de <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextπd=S0104-12902014000401356>.
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).

Apesar de sua importância, a comunicação de um diagnóstico não é tarefa fácil. Além de embaraços e desencontros comuns a esse ato humano, a comunicação de um diagnóstico oncológico constitui um desafio, uma vez que não é apenas um ato informativo. Não se trata somente de transmitir uma informação de forma clara e objetiva, já que diferentes sujeitos estão implicados na cena, cada um comparecendo com sua divisão subjetiva.

Lacan (1954-55/2010)Lacan, J. (2010). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55)., desde o início de seu ensino, diferenciou o eixo imaginário da fala do eixo simbólico, demonstrando de saída que a compreensão mútua entre dois falantes - eu e outro - é fadada ao insucesso. A chamada relação intersubjetiva revela apenas uma dimensão da complexidade da linguagem, deixando de lado seu principal aspecto: o registro simbólico. Para além do plano imaginário, há um Outro que fundamenta a própria fala, mas que permanece radicalmente incompreensível ao sujeito: “O sujeito não sabe o que diz, e pelas mais válidas razões, porque não sabe o que é” (Lacan, 1954-55/2010Lacan, J. (2010). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55)., p. 331). Desse modo, para a psicanálise o mal-entendido é inerente à comunicação humana, pois desde o momento em que somos falantes a ambiguidade prevalece em relação a qualquer harmonia.

Em pediatria, somam-se a isso questões específicas da infância, que colocam a equipe diante de dúvidas e inseguranças relacionadas não apenas à comunicação com a criança, mas também ao lugar dos pais nesse momento. Frente ao desafio, é comum que o saber médico recorra à guidelines1 1 Guidelines são diretrizes desenvolvidas de modo sistemático por especialistas com o objetivo de orientar os profissionais de medicina e da área da saúde na tomada de decisões em circunstâncias clínicas específicas (Adratt, Lima Junior, & Moro Barra, 2004). de comunicação, na tentativa de padronizar o processo comunicativo.

Conflitos de ordem bioética também atravessam o tema, e em oncologia pediátrica a questão cada vez mais presente é a seguinte: deve a criança saber a verdade ou deve ser ela protegida da verdade? Do ponto de vista da psicanálise de orientação lacaniana, a verdade não pode ser toda dita pela linguagem, pois sua origem se encontra no próprio fato de que a verdade do sujeito fala, de modo evanescente, via manifestações do inconsciente: “Eu, a verdade, falo...” (Lacan, 1966/1998aLacan, J. (1998a). A ciência e a verdade. In Escritos. (pp. 869-892). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)., p. 881).

Além da preocupação com a comunicação com a criança, equipes e centros de pesquisa em saúde estão às voltas com sua participação em tratamentos. A discussão é norteada, sobretudo, pela noção de autonomia bioética, que pressupõe a assinatura cada vez mais precoce do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (Bou-Habib & Olsaretti, 2015Bou-Habib P., & Olsaretti S. (2015). Autonomy and Children’s Well-Being. In A Bagattini, & C. Macleod (eds) The Nature of Children’s Well-Being. Children’s Well-Being: Indicators and Research (Vol. 9). Springer, Dordrecht.; Grootens-Wiegers et al., 2017Grootens-Wiegers, P., Hein, I. M., van den Broek, J. M., & Vries, M. C. (2017). Medical decision-making in children and adolescents: developmental and neuroscientific aspects. BMC Pediatr 17, 120. Recuperado de <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28482854/>.
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; Hubbard & Greenblum, 2019Hubbard, R., & Greenblum, J. (2019). Parental decision making: The best interest principle, child autonomy, and reasonableness. HEC Forum, 31. Recuperado de <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30826966/>.
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; Katz et al., 2016Katz, A. L., Webb, S. A., & AAP COMMITTEE ON BIOETHICS (2016). Informed consent in decision-making in pediatric practice. Pediatrics, 138(2):e20161485. Recuperado de <https://pediatrics.aappublications.org/content/138/2/e20161485>.
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; Havenga & Temane, 2016Havenga, Y., & Temane, M. A. (2016). Consent by children: considerations when assessing maturity and mental capacity. South African Family Practice, 58, supl., S43-S46. Recuperado de <https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/20786190.2014.977058?nee=>.
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
). Os estudos citados apontam para importantes questionamentos na tomada de decisões em pediatria, mas encontram seus limites devido ao fato de a discussão ser orientada de forma mais tecnicista do que conceitual, posto que não faz referência a uma teoria que considere a constituição subjetiva.

No centro do conflito, há um debate em âmbito internacional sobre os direitos de autonomia versus a proteção de uma criança desde o final da década de 1970. Essa discussão é orientada por duas lógicas antagônicas: uma mais liberal, que pressupõe a liberdade de escolha da criança como extensão dos direitos individuais; e outra mais comunitária, que busca assegurar o direito à infância por meio de medidas protetivas. O tensionamento entre o direito à autonomia e o direito à proteção mostra que o próprio estabelecimento de uma idade que defina infância é motivo de divergência, pois para o alcance do estatuto abstrato e universal necessário à lógica jurídica, há um esvaziamento de aspectos importantes, como diferenças culturais, desigualdades sociais e particularidades subjetivas (Arantes, 2016Arantes, E. M. M. (2016). Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações. In E. P. Brandão (Org.), Atualidades em Psicologia Jurídica (pp. 53-96). NAU.).

A falta de consenso sobre o que é ser criança reflete que a infância, tal como se conhece hoje, nem sempre existiu. Ela é produto de uma construção histórica, política e social, cujo início se deu no advento da Modernidade. Segundo Ariès (1981)Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. Zahar., até o final da Idade Média não havia distinção entre os espaços ocupados por crianças e por adultos. Esse cenário se alterou radicalmente com a transição do modo de produção feudal para o capitalista, modificando também o lugar da família na sociedade. Com a eleição da família burguesa como núcleo essencial do novo modelo econômico, a criança passou a ser considerada o homem do amanhã, tornando-se objeto de técnicas disciplinares, inicialmente amparadas na Igreja e, posteriormente, no saber científico.

Para investigar os efeitos dos saberes sobre a infância, mais especificamente nos tempos atuais no campo da saúde, será utilizada como referencial teórico a teoria dos discursos elaborada por Jacques Lacan em O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise (1969/1992Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969).), cuja menção tem o objetivo de abordar a produção do significante “criança” nas discursividades.

Os discursos

A partir de uma leitura dos três impossíveis freudianos - governar, educar e psicanalisar -, Lacan (1969/1992)Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969). acrescenta um quarto - fazer desejar - e afirma a existência de quatro discursos que sustentam o laço social. Os discursos são referidos a um impossível, pois o ingresso humano na linguagem resulta em uma perda, fazendo com que todo laço comporte um mal-estar, próprio da entrada do homem na cultura. Nesse sentido, os discursos situam-se como um aparelhamento de gozo, uma tentativa de contorno do real, e são estruturados a partir de quatro elementos: significante mestre (S1), saber (S2), sujeito barrado ($) e mais-de-gozar (a), que se distribuem em quatro lugares: agente, outro, verdade e produto. Conforme esses quatro elementos giram, forma-se uma nova estrutura discursiva, com as seguintes possibilidades:2 2 Lacan (1969/1992) ainda desenvolverá a ideia de um quinto discurso, o do capitalista, o qual, mais adiante, será formalizado sob a forma de um matema (Lacan, 1972/2017). Todavia, o discurso do capitalista não será abordado no presente trabalho, em razão de ultrapassar nosso escopo de pesquisa.

Discurso do mestre (governar)

S 1 S S 2 a

Discurso da histérica (fazer desejar)

S a S 1 S 2

Discurso do analista (analisar)

a S 2 S S 1

Discurso universitário (educar)

S 2 S 1 a S

O discurso do mestre tem como agente uma autoridade autojustificada, o S1, “que o mestre faz agir sobre o outro, tomado enquanto saber, para conseguir uma produção determinada de mais-de-gozar” (Jorge, 2002Jorge, M. A. C. (2002). Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In D. Rinaldi & M. A. C. Jorge (Orgs.), Saber, Verdade e Gozo: leituras de O Seminário, livro 17 de Jacques Lacan (pp. 17-32). Rios Ambiciosos., p. 29). O S1, no lugar de agente, também aponta que a entrada do sujeito no simbólico se encontra subordinada ao imperativo do significante. O matema do discurso do mestre, portanto, é o ponto de partida pelo qual se chega a outros discursos, evidenciando a constituição do sujeito como ser de linguagem. Já o discurso universitário, alicerce da ciência moderna, tem como agente um saber universal que trabalha para a manutenção de uma ordem discursiva já estabelecida, colocando o outro no lugar de objeto e produzindo “um sujeito bem pensante, um sujeito conforme o saber que o produziu” (Jorge, 2002Jorge, M. A. C. (2002). Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In D. Rinaldi & M. A. C. Jorge (Orgs.), Saber, Verdade e Gozo: leituras de O Seminário, livro 17 de Jacques Lacan (pp. 17-32). Rios Ambiciosos., p. 31). Por sua vez, o discurso da histérica é agenciado pelo que está recalcado no discurso do mestre: o sujeito dividido, que se dirige ao outro a partir de uma demanda sempre insatisfeita. Por último, o discurso do analista, “o único que dá lugar de sujeito ao outro - o sujeito está na posição do outro e o psicanalista é mero objeto a” (Alberti, 2000Alberti, S. (2000). A última flor da medicina. In S. Alberti, & L. Elia (Orgs.), Clínica e pesquisa em psicanálise (pp. 37-56). Marca d’Água., p. 46), o que significa que o analista sustenta uma posição opaca para que o sujeito produza os significantes-mestres de sua própria história.

Com base na teoria lacaniana dos discursos, Prates Pacheco (2012)Prates Pacheco, A. L. (2012). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Annablume. realiza uma análise da construção moderna do sentimento de infância, na qual considera o significante “criança” um efeito discursivo produzido pelo discurso universitário e agenciado pelo discurso do mestre, cuja consequência é a produção de um saber unívoco sobre a infância:

Para o bem ou para o mal, o discurso universitário cria a criança no lugar de objeto, deixando o sujeito no lugar de algo que será produzido pelo saber. […] Ora, mais além do saber colocado na criança, o aparecimento do significante “Criança” - com suas múltiplas significações - é rapidamente absorvido pelo discurso do mestre, que passa a agenciar, a partir de então, um saber sobre a “Criança”. A consequência mais explícita de tal agenciamento é o aparecimento de uma série de disciplinas e especialidades cujo objeto é “A Criança”: a pedagogia, a pediatria, a pedopsiquiatria. (Prates Pacheco, 2012Prates Pacheco, A. L. (2012). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Annablume., p. 279)

A teoria dos discursos também é apontada por Alberti (2000)Alberti, S. (2000). A última flor da medicina. In S. Alberti, & L. Elia (Orgs.), Clínica e pesquisa em psicanálise (pp. 37-56). Marca d’Água. como um referencial teórico fundamental aos psicanalistas inseridos nos dispositivos de saúde, pois possibilita uma leitura dos conflitos institucionais, uma vez que o hospital é um campo de entrecruzamentos discursivos. “O legado de Lacan permite uma análise da estrutura da instituição, do lugar que os diferentes sujeitos ocupam nessa estrutura e das forças que dirigem o funcionamento dessa estrutura” (p. 39).

Em sua tese A ordem médica, Clavreul (1983)Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Brasiliense. mostra que o discurso médico, guiado pelo imperativo da objetividade científica, funda-se na separação do homem de sua doença, ato que também exclui a subjetividade do médico. Em virtude de um duplo anonimato, o autor considera que não existe relação médico-doente, mas sim relação instituição médica-doença. O discurso médico, sustentado por um ordenamento que considera somente aquilo que pode ser inscrito em seu próprio discurso, abole tudo o que não é legível por sua metodologia:

No essencial, ele [o discurso médico] é discurso do mestre, no estabelecimento do diagnóstico e do prognóstico, na pesquisa, na sua constante posição de conquista em relação ao desconhecido da doença. Ele é também discurso universitário, quando, a partir do saber constituído da medicina, oferece a terapêutica como um benefício que restitui ao doente. (p. 175)

Moura (2013)Moura, M. T. (2013). Psicanálise e medicina: uma clínica do sempre no limite terapêutico. In M. M. D. Moura (Org.), Oncologia: clínica de limites terapêuticos? (pp. 400-409). Artesã. acrescenta que o discurso médico, alinhado a uma ideologia contemporânea que busca tamponar os limites do próprio saber, tem edificado práticas hospitalares orientadas por protocolos e estatísticas, eliminando de vez o sujeito da cena institucional. A psicanalista pondera que, embora os avanços tecnológicos e científicos apresentem incontestáveis benefícios, há uma ideologia subjacente que sustenta a inexistência do impossível: trata-se da clínica sem limites. No entanto, o que é excluído se impõe de alguma forma, “já que o que ele nega na teoria retorna na prática” (Moretto, 2001Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo., p. 64). É comum, então, que o saber protocolar3 3 O saber protocolar em questão trata-se de guidelines de comunicação, que confrontam com a irrupção do sujeito do inconsciente frente aos enigmas impostos pela experiência do adoecimento. a respeito da comunicação falhe, e a equipe, angustiada, demande do psicanalista inserido nos serviços de saúde um saber sobre como agir frente a uma criança e a seus pais.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, do tipo exploratória, com método psicanalítico. Segundo Freud (1912/2010b)Freud, S. (2010b). Recomendações ao médico que pratica a psicanálise. In Obras completas - Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia, Artigos sobre técnica e outros textos (P. C. Souza, Trad., Vol. 10, pp. 147 162). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912)., “um dos méritos que a psicanálise reivindica para si é o fato de nela coincidirem pesquisa e tratamento” (p. 153).

O presente artigo é fruto do trabalho de conclusão de um curso de Residência Multiprofissional em Saúde desenvolvido junto a uma Univer-sidade Federal, na área Psicologia, no campo de atuação da Oncologia Pediátrica, realizada no período de 1/3/2018 a 28/2/2020. O projeto de pesquisa desse trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade. Foram convidadas a participar três crianças que estavam no momento de entrada na instituição para investigação diagnóstica, e seus respectivos pais. O critério de inclusão foi o tempo de entrada na instituição, privilegiando crianças que estavam iniciando o momento diagnóstico.

A pesquisa foi realizada a partir de uma rotina existente no serviço em questão, sendo ela composta por participações da analista em consultas médicas iniciais, seguidas por atendimentos individuais com a criança e os pais, a depender do caso. Há um ambulatório na instituição nomeado como “sala de casos novos”, para o qual são encaminhados pacientes em investigação diagnóstica. O fato de o hospital contar com programas de Residência Médica e Multiprofissional criou condições favoráveis para a realização do estudo, uma vez que é característico desse modelo de pós-graduação o treinamento e a pesquisa em campo.

Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: 1) diário de campo para devido registro das participações nas consultas médicas e 2) entrevistas com as crianças e seus respectivos pais. O diário de campo é apontado por Silva (2013)Silva, D. Q. (2013). A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico. Estudos de Psicanálise, (39), 37-45. Recuperado de <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000100004&lng=pt&tlng=pt>.
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como um instrumento possível para a pesquisa em psicanálise, tendo em vista que nele podem ser registrados aspectos importantes, como olhares, silêncios, gestos e expressões que, muitas vezes, revelam algo do sujeito do inconsciente. Já o uso de entrevistas, é radicalmente diferente de sua concepção tradicional, cuja base são critérios objetivos e atemporais. Dentro da modalidade de escuta e pesquisa psicanalítica, as entrevistas buscam acessar verdades subjetivas e contextuais (Silva, 2013Silva, D. Q. (2013). A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico. Estudos de Psicanálise, (39), 37-45. Recuperado de <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000100004&lng=pt&tlng=pt>.
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).

Seguindo a Resolução CNS 196/96 que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos, a participação nesse estudo esteve vinculada às assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, após a apresentação dos objetivos e da garantia de sigilo. Aos participantes foi assegurado que poderiam desistir da participação a qualquer momento, sem prejuízos no tratamento médico. Por questões éticas, todos os casos serão apresentados com nomes fictícios.

Resultados e discussão

O caso Bernardo: o imperativo da autonomia em questão

Bernardo é um paciente com 11 anos de idade, que chega ao hospital acompanhado pela mãe, e logo na consulta inicial recebe o diagnóstico de meduloblastoma. Apesar de ser um tumor cerebral agressivo, o meduloblastoma é um diagnóstico oncológico comum nessa faixa etária, apresentando melhoras de prognóstico nas últimas décadas e um número considerável de sobrevida livre da doença em cinco anos (Reis Filho et al., 2000Reis Filho, J. S., Gasparetto, E. L., Faoro, L. N., Araújo, J. C., & Torres, L. F. B. (2000). Meduloblastomas: achados clínicos, epidemiológicos e anátomo-patológicos de 28 casos. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 58(1), 76-80. Recuperado de <https://www.scielo.br/j/anp/a/66NBKmBN8qxKqjR4DBRwzSq/?lang=pt#:~:text=Relatamos%20os%20achados%20cl%C3%ADnicos%2C%20epidemiol%C3%B3gicos,%25)%20e%20v%C3%B4mitos%20(64%25)>.
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).

A equipe, possivelmente amparada pelo saber em virtude do bom prognóstico, realiza a comunicação diagnóstica sem grandes embaraços, dando ênfase às possibilidades terapêuticas. Tal manejo nos remete às observações de Clavreul (1983)Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Brasiliense., que equipara o ato de diagnosticar a um ato de maestria, posto que inaugura algo novo na linguagem e assegura o domínio do desconhecido da doença. Considera-se que, nesse caso, os médicos puderam conduzir a comunicação agenciados por uma autoridade no assunto, o que possivelmente viabilizou uma transferência de saber da mãe com a instituição logo de partida.

Bernardo, por sua vez, mostra-se pouco comunicativo durante a consulta médica, o que não se coloca como uma questão para a mãe, que o nomeia como “reservado”. Já os médicos, incomodados com o silêncio, convocam a criança para fazer perguntas sob a justificativa de deixá-la mais confortável. A equipe insiste, mas, apesar do convite, Bernardo elege a mãe como figura mediadora, decodificadora e transmissora do saber médico.

Nesse caso, entende-se que a equipe possa ter se orientado por guidelines de comunicação que, cada vez mais, se articulam ao conceito de autonomia. É comum que os médicos, sustentados pelo discurso hegemônico sobre a infância, conduzam a comunicação sem levar em conta a posição da criança e o lugar dos cuidadores, como mostram diversos estudos do campo pediátrico (Bou-Habib & Olsaretti, 2015Bou-Habib P., & Olsaretti S. (2015). Autonomy and Children’s Well-Being. In A Bagattini, & C. Macleod (eds) The Nature of Children’s Well-Being. Children’s Well-Being: Indicators and Research (Vol. 9). Springer, Dordrecht.; Grootens-Wiegers et al., 2017Grootens-Wiegers, P., Hein, I. M., van den Broek, J. M., & Vries, M. C. (2017). Medical decision-making in children and adolescents: developmental and neuroscientific aspects. BMC Pediatr 17, 120. Recuperado de <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28482854/>.
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; Hubbard & Greenblum, 2019Hubbard, R., & Greenblum, J. (2019). Parental decision making: The best interest principle, child autonomy, and reasonableness. HEC Forum, 31. Recuperado de <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30826966/>.
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; Katz et al., 2016Katz, A. L., Webb, S. A., & AAP COMMITTEE ON BIOETHICS (2016). Informed consent in decision-making in pediatric practice. Pediatrics, 138(2):e20161485. Recuperado de <https://pediatrics.aappublications.org/content/138/2/e20161485>.
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; Havenga & Temane, 2016Havenga, Y., & Temane, M. A. (2016). Consent by children: considerations when assessing maturity and mental capacity. South African Family Practice, 58, supl., S43-S46. Recuperado de <https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/20786190.2014.977058?nee=>.
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).

De acordo com a análise de Birman (2010)Birman, J. (2010). Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In J. F. Filho (Org.), Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade (pp. 27- 48). FGV., o culto à autonomia é um desdobramento do discurso contemporâneo centrado no indivíduo, que estende os imperativos do mercado ao espaço social, produzindo novas modalidades de subjetivação. Nessa modalidade discursiva, a noção de indivíduo é equiparada a uma pequena empresa, pensada em termos de autogestão e potência, o que exclui qualquer possibilidade de existência da alteridade. A autonomia torna-se, então, o principal valor para o indivíduo atingir o ideal liberal de felicidade prometido.

O primeiro atendimento feito pela analista ocorreu logo em seguida, com a mãe e a criança. Nesse espaço, diferentemente da consulta médica, Bernardo toma a palavra e conta seu interesse em estudar o cérebro e tornar-se médico, assim como o avô. A mãe não entende, uma vez que o filho nem chegou a conhecê-lo, pois faleceu antes de Bernardo nascer. O protagonismo de Bernardo também aparece em seus desenhos, realizados em atendimento somente com a criança por sua própria escolha. Bernardo conta à analista a história de Leon, personagem que sai da casa dos pais em busca de um outro lar e torna-se médico-cirurgião, mas que chega atrasado ao hospital:

Figura 1

“Leon morava em uma casa com plantações de tomates quando era criança, mas precisou ir embora. Depois que Leon saiu de casa, ele foi até a cidade de carro em busca de outro lar. Aí Leon foi às compras pela primeira vez e voltou para a sua primeira casa para visitar os pais. Então, Leon se tornou médico-cirurgião, mas chegou atrasado ao hospital.”

De forma avessa à ideia de um indivíduo autônomo, fundado em si mesmo, a descoberta freudiana do inconsciente retira o sujeito do centro do psiquismo ao pressupor a constituição subjetiva a partir da alteridade. O inconsciente nada mais é do que o discurso do Outro, o que significa que o sujeito do inconsciente é determinado por significantes que marcam seus desejos, suas fantasias, seus ideais. O Outro é grandioso por ser o discurso do inconsciente, lugar onde o sujeito é mais pensado do que pensa, colocando questões sobre sua história, sua existência (Quinet, 2012Quinet, A. (2012). Os Outros em Lacan. Zahar.).

Para a psicanálise, a criança constitui-se sujeito na relação com seus cuidadores, figuras que, além de realizarem um suporte concreto capaz de acolher suas necessidades, exercem uma função simbólica responsável por sua inserção na linguagem, a qual antecede seu próprio nascimento. Nessa direção, Lacan (1969/2003a)Lacan, J. (2003a). Nota sobre a criança. In Outros Escritos (pp. 369-370). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969). considera a família responsável por uma irredutível transmissão que, muito além do campo da necessidade, constitui o sujeito a partir de um desejo não anônimo. Essa transmissão “exige, logicamente, a presença do Outro enquanto lugar de endereçamento da mensagem. Não há inconsciente sem outro; ou, na máxima lacaniana: o inconsciente é o discurso do Outro” (Prates Pacheco, 2012Prates Pacheco, A. L. (2012). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Annablume., p. 144). No entanto, o que se transmite simbolicamente não captura a criança de forma passiva, muito pelo contrário, exige dela uma resposta, que é sempre singular.

Curiosamente, a partir de uma referência de seu avô, Bernardo conta uma história cujo personagem possui o controle do tempo, elemento muitas vezes desencadeador de angústia nos pacientes em tratamento oncológico, o que dá pistas de sua posição subjetiva. O sujeito do inconsciente, apesar de assujeitado ao Outro, não é escravo, pois “desse Outro ele deve separar-se, parir-se, engendrar-se, criar-se, enfim” (Prates Pacheco, 2012Prates Pacheco, A. L. (2012). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Annablume., p. 149).

Desde o início, Bernardo brinca de inverter a demanda no contexto hospitalar. No momento da comunicação diagnóstica, são os médicos que solicitam sua fala. Já em seu desenho, Bernardo traz algo da cena hospitalar, mas a partir da posição de médico que é esperado, e não de doente que espera.

Com base nesse recorte clínico, considera-se que Bernardo pôde se ancorar em um saber não anônimo e protocolar, um saber de sua autoria no tocante ao que pôde recortar e escrever da relação com o Outro. Em uma direção contrária ao imperativo da autonomia, que, por meio de técnicas anônimas, ejeta a criança de sua história, lançando-a também em um anoni- mato, a escuta do analista é capaz de auxiliar a equipe na identificação da posição subjetiva da criança, o que pode ter efeitos no modo como ela lida com o tratamento oncológico.

Uma das tarefas do psicanalista no hospital é, justamente, transmitir a vertente clínica para a instituição, considerando que há um saber do sujeito posto de lado em virtude da rotina protocolar e padronizada (Pereira & Costa, 2018Pereira, L. R., & Costa, A. M. M. da. (2018). Os impasses e possibilidades da clínica psicanalítica em uma instituição oncológica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21(2), 331-345. Recuperado de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142018000200331&lng=en&nrm=iso>.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). No caso de Bernardo, a escolha pela mãe como mediadora do discurso médico pôde ser transmitida à equipe, sem que isso implicasse uma inscrição psicopatológica da criança por contrariar as guidelines de comunicação orientadas pelo imperativo da autonomia. Como aponta Baio (2001)Baio, V. (2001). Joe, el niño de la cuerdecilla: El trabajo del equipo y de los padres. In Ministero Affari Esteri. Ambasciata d‘Italia (Ed.), Desarrollos Actuales en la Investigación del Autismo y Psicosis Infantil en el Área Mediterránea (pp. 42--54). Madrid., para que a posição subjetiva da criança apareça, é preciso ofertar um lugar que possibilite a ela construir e articular um saber singular.

O caso Beatriz: enlaces e desenlaces entre a angústia da mãe e o sintoma da criança

Beatriz é uma paciente com nove anos de idade, que chega ao hospital de cadeira de rodas, impossibilitada de andar e dependente da mãe para atividades cotidianas, como se alimentar e tomar banho. Ela vem encaminhada por outros dispositivos de saúde com suspeita de tumor ósseo. Beatriz estava em investigação diagnóstica há quatro meses e já havia realizado diversas biópsias, todas com resultados inconclusivos. No primeiro atendimento com a mãe, fica evidente o impacto da experiência de perda dos movimentos e a busca incessante por um diagnóstico que possa nomear o severo adoecimento de Beatriz.

Nesse caso, a falta de diagnóstico suscita muita angústia, situação relativamente comum em um hospital de alta complexidade. Frente ao desamparo, a mãe faz um apelo: pede um nome, mesmo que seja câncer, pois, assim, há um tratamento, uma direção. De acordo com Clavreul (1983)Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Brasiliense., é comum que, em situações como essa, o sujeito direcione seu apelo ao médico, figura que ocupa o lugar de representante do saber, capaz de nomear e apaziguar o sofrimento advindo da doença. Pela via do diagnóstico, o autor afirma que o doente entra no discurso médico, ato análogo à entrada da criança na língua materna, que possui um saber sobre o que antes era puro não senso.

A mãe, angustiada com as constantes intervenções médicas no corpo de Beatriz, atribui à menina o medo de ficar parecida com um zumbi, “todo furado”. Diante dessa fala, que remete a algo da criança, a analista questiona: “E como é um zumbi?”. “Cheio de cortes assim”, Beatriz responde, enquanto aponta para as cicatrizes deixadas pelas biópsias. Com base nessa vinheta, é importante interrogar em que medida há um enlace entre a angústia da mãe e a fantasia de ser zumbi compartilhada também por Beatriz no atendimento.

No tratamento psicanalítico de crianças, Faria (2016)Faria, M. R. (2016). Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. Toro. alerta que a exclusão da escuta dos pais impossibilita a escuta do que está alienado no sintoma da criança. A autora faz uma importante diferença entre sintoma na criança e sintoma da criança. O primeiro refere-se ao discurso dos pais; e o segundo, ao da própria criança, quando esta é capaz de formular uma demanda de análise. É imprescindível que o analista se atente ao discurso dos pais para que não inicie uma análise da criança em nome da restituição de um lugar idealizado pelo narcisismo parental, mas que também não negligencie o espaço de escuta da criança diante das angústias e demandas dos cuidadores.

Ainda sobre o lugar dos pais, Faria (2016)Faria, M. R. (2016). Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. Toro. sustenta que, desde os primórdios da clínica psicanalítica com crianças, sua presença exige manejo, visto que no setting tradicional são eles que trazem a criança para o atendimento. Vale lembrar que o caso princeps de psicanálise com crianças, o do pequeno Hans, foi conduzido por meio do pai do menino. Impulsionado pela descoberta da sexualidade infantil, Freud (1909/2015a)Freud, S. (2015a). Análise da fobia de um garoto de cinco anos: “o pequeno Hans”. In O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (Coleção Obras completas, P. C. Souza, trad., Vol. 8, pp. 123-284). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909). acreditava que a autoridade paterna, articulada com a de um médico, bastaria naquele momento. No entanto, Hans mostrou-se cada vez mais interessado em partilhar suas questões para que o pai as comunicasse a Freud, a quem ele chamava de professor, evidenciando uma possível transferência e possibilitando a abertura do campo psicanalítico com crianças.

Ainda no atendimento inicial, a mãe relata bastante impacto com o que via no hospital, principalmente em relação às crianças que não andavam, ou seja, pacientes que vivenciavam a mesma situação que a de sua filha, sem, no entanto, conseguir falar diretamente sobre a condição de Beatriz. Apesar dos relatos de dor e falta de mobilidade, a mãe diz que “Beatriz está escapulindo”, em uma referência às tentativas da filha para caminhar sozinha, comportamento que ela não faz objeções. Considerando a escuta do caso, bem como o lugar que uma criança pode ocupar na estrutura familiar,4 4 “A criança ocupa este lugar que Freud nomeia ‘sua majestade o bebê’, expressão que não apenas define o lugar fálico da criança para seus pais, mas que lembra também que o narcisismo de ambos está em jogo quando se trata da criança” (Faria, 2016, p. 50). questionou-se em que medida a perda dos movimentos das pernas pode ter proporcionado uma quebra nos significantes do ideal, dificultando a mãe olhar para a filha adoecida.

Uma criança com um diagnóstico grave, como o de câncer, pode experimentar uma ruptura no tecido construído em relação a seu lugar no desejo do Outro, ficando desalojada de um referencial. Na falta de um saber prévio sobre si, o sujeito não cessa de endereçar ao Outro uma demanda a esse respeito, “Che vuoi?” (que quer você?) (Lacan, 1960/1998bLacan, J. (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960)., p. 829). Questionou-se se Beatriz, por meio da fantasia de ser zumbi, busca articular algo da experiência de seu adoecimento. O zumbi, além de oferecer uma identificação que possibilita uma nomeação aos cortes no corpo, também articula os significantes morto-vivo: “A fantasia, assim, constitui-se como referência do sujeito lá onde não há referência - já que a linguagem não tem referência na realidade” (Prates Pacheco, 2012Prates Pacheco, A. L. (2012). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Annablume., p. 254). A fantasia opera como um véu, visto que constitui para cada sujeito “sua janela para o real” (Lacan, 1967/2003cLacan, J. (2003c). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 248-264). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1967)., p. 259).

No momento do atendimento com a criança, Beatriz convida a mãe para participar, convite este entendido como um possível pedido de ajuda em relação à angústia materna. Ambas trazem questões relacionadas ao significante “perna”, membro que é objeto de investigação médica. Nesse atendimento, Beatriz desenha atividades que a doença não lhe permite mais realizar, como nadar, passear e andar. “Eu queria muito andar” é parte da história contada por ela sobre uma de suas produções:

Figura 2

“Foi quando eu estava em Minas com minha mãe e meu irmão, aí a gente ficou na casa do meu tio. Ele tinha cavalo e eu queria muito andar. Aí a gente andou.”

Entende-se que, por meio de seus desenhos e falas, Beatriz pôde trazer importantes questionamentos sobre as modificações em seu corpo, bem como indagar sua relação consigo e com o Outro em decorrência de uma doença ainda desconhecida. Considerações a esse respeito são feitas em “O escritor e a fantasia”, obra na qual Freud equipara o brincar infantil à criação poética, uma vez que a brincadeira possibilita à criança a subjetivação de situações difíceis: “Talvez possamos dizer que toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um mundo próprio, ou, mais exatamente, arranja as coisas de seu mundo numa nova ordem, do seu agrado” (Freud, 1909/2015bFreud, S. (2015b). O escritor e a fantasia. In O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (Coleção Obras completas, P. C. Souza, trad., Vol. 8, pp. 325-338). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909)., p. 327).

É curioso que, apesar dos atendimentos conjuntos, a mãe diz acreditar que Beatriz não esteja compreendendo a gravidade de sua situação: “Ah, às vezes eu penso que ela não sabe. Ela não se deu conta da situação, da gravidade”. A psicanalista Raimbault (1979)Raimbault, G. (1979). A criança e a morte: crianças doentes falam da morte. Problemas da clínica do luto. Francisco Alves Editora., ao relatar sua experiência de atendimento de crianças gravemente enfermas, afirma que, ao longo dos anos de sua prática, testemunhou muitas crianças sendo estimuladas à ignorância e ao esquecimento dos acontecimentos que vivenciavam durante a hospitalização. Existe um silêncio oficial em relação aos dizeres de uma criança doente, o que, segundo a autora, acontece em virtude de uma criança adoecida romper com o ideal contemporâneo de infância como um período de felicidade e inocência.

Ao fazer valer a palavra de uma criança no contexto hospitalar, o analista possibilita que o corpo não seja apenas o lugar onde a doença se instaura, mas, sobretudo, o suporte da singularidade (Moretto, 2019Moretto, M. L. T. (2019). Abordagem psicanalítica do sofrimento nas instituições de saúde. Zagodoni.). Por isso, o brincar na clínica psicanalítica é “coisa séria”, jamais um recurso distrativo, pois auxilia na escuta e na direção do tratamento. Vale enfatizar que o brincar pelo brincar, como forma de distração diante de um acontecimento difícil, pode ter como efeito uma desautorização ainda maior da situação que a criança está vivenciando. Diante da complexidade da discussão acerca da comunicação do diagnóstico oncológico na infância, cabe ao analista uma posição ética, que se diferencie do desejo de cuidar e educar, para que, assim, não se inicie uma escuta da criança em nome da restituição de seu lugar idealizado na fantasia parental.

O caso Bruno: a função do apelo diante da experiência do desamparo

Bruno é um paciente com nove anos de idade, que chega ao hospital acompanhado pela mãe para investigação diagnóstica após ser atendido em outros dispositivos de saúde sem resultado satisfatório. No momento da consulta médica, os médicos questionam entre eles as condutas dos serviços anteriores na presença da mãe e da criança, denunciando a gravidade da situação por meio de olhares de tensão com base nos exames realizados. Os achados de imagem indicam um glioblastoma multiforme, considerado o mais agressivo tumor cerebral com sobrevida geral de menos de 15 meses. Há diversas hipóteses científicas sobre sua etiologia, todas com resultados inconclusivos (Gonçalves, 2016Gonçalves, S. L. (2016). Glioblastoma Multiforme Cerebelar: Relato de caso e revisão de literatura. JBNC - Jornal Brasileiro de Neurocirurgia, 27(3), 244-248. Recuperado de <https://www.abnc.org.br/jbnc_det.php?edcod=97>.
https://www.abnc.org.br/jbnc_det.php?edc...
).

Ainda na consulta inicial, os oncologistas solicitam a presença da equipe de neurocirurgia, que convoca a mãe, separadamente, para comunicar a necessidade de uma cirurgia em caráter de urgência. Embora a retirada da mãe da sala possa ter sido um manejo com a intenção de proteger a criança, observa-se o efeito contrário, uma vez que Bruno se mostra assustado e recuado no restante do atendimento.

Considera-se que, nesse caso, o apelo dos médicos a uma hierarquia possivelmente teve como tentativa contornar a existência de um não saber sobre a cura do tumor. Clavreul (1983)Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Brasiliense. pondera que, para além de questões técnicas, existe uma hierarquia em medicina que não pode ser abolida, posto que é própria à sua estrutura discursiva. Tal hierarquia marca determinada relação com o saber que assegura o domínio sobre o desconhecido da doença. Há sempre um médico, uma especialidade, um estudo a que se possa recorrer, sendo cada médico apenas um representante do saber, que está sempre suposto em outra especialidade.

No momento em que os neurocirurgiões retornam com a mãe para a sala, os médicos iniciam um extenso debate técnico, esquecendo-se completamente da presença da família. A mãe, então, passa a dirigir à analista um olhar aflito, em silêncio - interpretado como um olhar de apelo. A analista, ao escutar o endereçamento, realiza uma intervenção por meio de uma pergunta dirigida à mãe, restituindo-lhe um lugar na consulta. Esse ato produziu um efeito de corte nos excessos do discurso médico e a inauguração de uma nova cadeia de significantes. A partir disso a equipe, então, pôde se dirigir à mãe e à criança de forma mais acolhedora.

É comum que, para fazer valer sua ordem, o discurso médico não considere o impossível que todo discurso comporta, correndo o risco de cair na impotência diante da comunicação de um diagnóstico difícil. Moura (2013)Moura, M. T. (2013). Psicanálise e medicina: uma clínica do sempre no limite terapêutico. In M. M. D. Moura (Org.), Oncologia: clínica de limites terapêuticos? (pp. 400-409). Artesã. afirma que, em situações de doenças graves, os limites do conhecimento científico confrontam o discurso médico com o saber não todo, o que pode desvelar o desamparo estrutural frente à constatação da morte. Para Freud (1916/2010a)Freud, S. (2010a). A transitoriedade. In Obras completas - Introdução ao narcisismo, ensaios e metapsicologia e outros textos (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 247-252). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916)., existe uma impossibilidade humana de lidar diretamente com a finitude: é preciso um recuo psíquico, um recobrimento simbólico diante dessa modalidade de angústia. Lacan, por sua vez, enfatiza que “nem o sol, nem a morte, possam ser olhados de frente” (Lacan, 1955-56/2002Lacan, J. (2002). O seminário. Livro 3. As psicoses. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-56)., p. 361).

Ratti e Estevão (2015)Ratti, F. C., & Estêvão, I. R. (2015). Instituição e o ato do psicanalista em sua extimidade. Opção Lacaniana Online, 2015(18), 1-12. Recuperado de <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_18/Instituicao_e_o_ato_do_psicanalista_em_sua_extimidade.pdf>.
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mostram que o conceito de ato situa o trabalho do psicanalista nas instituições para além da interpretação de sentidos. O analista vale-se de uma posição de objeto a, que é um lugar de extimidade: ao mesmo tempo em que está dentro da equipe, está fora discursivamente por não se localizar a partir do discurso médico. Esse lugar êxtimo é apontado pelos autores como recurso para o manejo institucional, possibilitando a criação de algo novo, de modo que o laço social não sofra uma total ruptura: “Através do ato, o praticante da psicanálise pode se incluir no jogo; ele participa e introduz algo novo, desvia a pulsão, redireciona a discussão” (p. 6).

No primeiro atendimento com a psicanalista, que ocorreu logo após a consulta médica, a mãe, angustiada, recorre ao discurso religioso em busca de um saber capaz de recobrir o alto risco de perder seu filho. Bruno, ao se dar conta da angústia da mãe, faz um apelo: chora e deita em seu colo. Imediatamente, a mãe o acalenta, ato que acalma ambos naquele momento. Em virtude do nível de angústia da mãe, a analista considerou necessário outro atendimento, apenas com ela.

Nesse atendimento, a mãe relata, por meio do deslizamento do significante, os efeitos da palavra câncer e conta sobre a perda repentina de sua mãe pelo mesmo diagnóstico, sinalizando para a impossibilidade psíquica de acompanhar de perto o tratamento da criança, pois a atual situação a remetia a uma outra cena, a da perda de sua mãe, que aconteceu em sua entrada na adolescência.

Diferentemente de abordagens psicológicas, que partem do pressuposto de que é possível dizer tudo, o psicanalista toma o discurso do sujeito “justamente, pelos furos, e não pela clareza de comunicação. […] Ele parte do pressuposto do impossível de dizer o real” (Caldas, 2015Caldas, H. (2015). Trauma e linguagem: acorda. Opção Lacaniana Online, 2015(16), 1-14. Recuperado de <http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_16/Trauma_e_linguagem_acorda.pdf>.
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, p. 5). Nesse caso, considera-se que a comunicação diagnóstica teve como efeito a colocação da mãe em um nível de angústia, tornando insustentáveis suas vindas ao hospital, bem como sua relação com a equipe médica no restante do tratamento. O manejo da analista, então, orientou-se em uma direção de testemunho, um terceiro capaz de escutar o insuportável, apostando na instituição de um campo simbólico: “É preciso destacar que o trabalho analítico dá lugar a recordações sem lugar, mas também constata e preserva um não lugar em relação ao sentido” (p. 6).

No dia seguinte, Bruno é internado para a neurocirurgia e passa a ter o pai como principal acompanhante. Em virtude disso, a escuta da criança é realizada na própria enfermaria. Apesar da possibilidade de um atendimento individual, Bruno convida o pai para participar. Desde então, o pai torna-se a figura mediadora entre a criança e a instituição, apontado por ela como “aquele que sabe”.

Em um desenho da criança, a posição de desamparo novamente aparece, mas, dessa vez, por meio de um ato falho, que faz com que Bruno se assuste ao perceber que desenhou uma cama de bebê dentro de uma igreja:

Figura 3

“Meu pai de terno, minha mãe com o vestido azul. Você lembra? O vestido azul que ela estava ontem”. Pausa. “Nossa! Fiz uma cama… não sei por que fiz uma cama!”. “E de quem é a cama?”, a analista pergunta. “Do bebê”, ele responde.

No contexto do caso e refletindo a respeito dos efeitos da comunicação diagnóstica, é possível ler tal manifestação como um apelo dirigido ao Outro, que se iniciou com a criança deitando-se no colo da mãe e prosseguiu no atendimento juntamente com o pai, no qual Bruno não cessou de endereçar um saber a ele. Também é possível ampliar a análise e elevar a produção da criança ao estatuto de um apelo à instituição, assim como à analista, na posição de alguém que se mostrou interessada em escutá-lo.

Freud (1895/1977)Freud, S. (1977). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 1, pp. 381-456). Imago. (Trabalho original publicado em 1895)., em seu “Projeto para uma psicologia científica” introduz pela primeira vez em suas publicações a noção de que há um desamparo constitutivo ao ser humano, partindo do pressuposto de que o recém-nascido, em virtude de sua prematuridade, depende fundamentalmente do próximo [Nebenmensh] para sobreviver. Para a teoria psicanalítica, a contrapartida da condição inicial de desamparo é a alteridade, o que eleva a relação com o próximo [Nebenmensh] a um nível fundante na constituição subjetiva.

Inicialmente, o grito do bebê é apenas uma expressão de um desprazer orgânico, sem qualquer endereçamento. A mãe, ou aquele que se ocupa dos cuidados da criança, é quem dá um sentido ao mal-estar, transformando o grito em apelo a partir da suposição de que o bebê quer algo dela. A mãe transforma as necessidades do bebê em palavras, o que faz com que essa troca muito precoce não seja somente pela via da satisfação biológica, mas, sobretudo, por um circuito de interpretações que envolvem ambos em um laço tecido pela linguagem (Faria, 2016Faria, M. R. (2016). Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. Toro.): “Desde a origem, a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão, e perece por palavras” (Lacan, 1956-57/1995Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-57)., p. 192).

Lacan, ao longo de seu ensino, estabeleceu importante diferença conceitual entre o outro, pertencente ao registro imaginário (Lacan, 1938/2003bLacan, J. (2003b). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros Escritos (pp. 29-90). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1938).), e o Outro, referido ao campo simbólico (1956-57/1995Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-57).). O Outro, grafado com inicial maiúscula, diz respeito a uma ordem radicalmente anterior ao sujeito, ao mesmo tempo que o funda. No campo simbólico, portanto, sujeito e Outro se articulam dialeticamente, à medida que “o Outro é o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito” (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 200).

Santos e Fortes (2011)Santos, N. D. T. G. dos, & Fortes, I. (2011). Desamparo e alteridade: o sujeito e a dupla face do outro. Psicologia USP, 22(4), 747-770. Recuperado de <https://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/42150/45823>.
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enfatizam que, embora o estado de desamparo tenha origem no mais essencial da condição humana, ele não é um período passageiro ou superável, posto que estrutura o aparelho psíquico elaborado por Freud. As autoras correlacionam o desamparo às situações de vulnerabilidade, pois em situações-limites o sujeito se vê impossibilitado de encontrar uma solução para a questão que o aflige, endereçando ao Outro um apelo.

Considera-se que Bruno, ao fazer apelo ao pai - endereçamento que este teve condições de responder -, pôde, de alguma forma, se abrigar simbolicamente da situação. O pai realizou uma função fundamental para a criança até seu falecimento, conseguindo sustentar, por meio de seu discurso e de sua presença, uma função de tela protetora diante de um Real avassalador. Também é interessante pontuar que, em meio à impotência na qual ficaram os médicos e a mãe - impotência a que eles responderam travando uma verdadeira guerra entre o saber científico e o religioso -, Bruno pôde tomar uma posição, elegendo o pai como “aquele que sabe”; e o pai, mesmo em meio a uma batalha de “gigantes”, conseguiu sustentar um saber singular que cumpriu a função de “véu” para o filho.

Esse caso é bastante elucidativo para refletir sobre os efeitos do mo- mento diagnóstico na modalidade de transferência que será estabelecida entre família e equipe médica, visto que, logo de partida, houve uma quebra na comunicação com a mãe, cuja persistência se deu até o fim. O psicanalista, ao sustentar uma escuta que vai além do plano imaginário - “médico bom, mãe ruim” -, é capaz de auxiliar a equipe diante de situações-limite como essa, realizando um giro discursivo da impotência à impossibilidade.

Alberti (2000)Alberti, S. (2000). A última flor da medicina. In S. Alberti, & L. Elia (Orgs.), Clínica e pesquisa em psicanálise (pp. 37-56). Marca d’Água. afirma que o discurso do analista, orientado por uma outra relação com o saber, autoriza e sustenta aquilo que não se inscreve no discurso médico, tornando sua entrada no hospital frutífera também à medicina, pois, historicamente, a psicanálise é onde a medicina pode se refugiar quando se depara com aquilo que não pode tratar.

Considerações finais

A partir da discussão dos casos clínicos, percebeu-se que a escuta analítica pôde auxiliar a equipe diante do conflito bioético cada vez mais presente na oncopediatria: deve a criança saber a verdade ou deve ser ela protegida da verdade? O discurso do psicanalista, ao estar advertido da impossibilidade de tudo dizer a respeito da verdade, consegue de antemão se desvencilhar desses imperativos e operar proporcionando um giro discursivo que produz como efeito a entrada em cena do saber singular do sujeito criança em detrimento de um saber universitário de ordem protocolar. Tomando o discurso como fonte de mal-estar, mas também de tratamento, o discurso do analista traz para a cena aquilo que o discurso médico busca excluir: um saber sobre a verdade do sujeito. Desse modo, além da vertente clínica como modalidade de tratamento para o mal-estar subjetivo, a atuação da psicanalista também priorizou a vertente institucional, dando notícias à equipe sobre a posição da criança, bem como mediando os efeitos do discurso médico quando este, em vez de apaziguar a angústia frente ao Real, acabou desvelando o desamparo diante de um prognóstico desfavorável desde a chegada da criança ao hospital.

  • *1
    O presente artigo foi baseado no trabalho de conclusão de residência intitulado “Desafios na comunicação do diagnóstico de câncer infantil: uma leitura psicanalítica”, apresentado à Universidade Federal de São Paulo no ano de 2020.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio. / This work received no funding.
  • 1
    Guidelines são diretrizes desenvolvidas de modo sistemático por especialistas com o objetivo de orientar os profissionais de medicina e da área da saúde na tomada de decisões em circunstâncias clínicas específicas (Adratt, Lima Junior, & Moro Barra, 2004Adratt, E., Lima Junior, L. M., & Moro Barra, C. M. C. (2004). Guidelines: Fundamentos teóricos e evolução tecnológica dentro da medicina. IX Congresso Brasileiro de Informática em Saúde. Ribeirão Preto: Anais do IX CBIS - IX Congresso Brasileiro de Informática em Saúde.).
  • 2
    Lacan (1969/1992)Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969). ainda desenvolverá a ideia de um quinto discurso, o do capitalista, o qual, mais adiante, será formalizado sob a forma de um matema (Lacan, 1972/2017Lacan, J. (2017). Do discurso psicanalítico: Conferência de Lacan em Milão em 12 de maio de 1972. In Lacan em pdf. Recuperado de <http://lacanempdf.blogspot.com/2017/07/do-discurso-psicanalitico-conferencia.html>.
    http://lacanempdf.blogspot.com/2017/07/d...
    ). Todavia, o discurso do capitalista não será abordado no presente trabalho, em razão de ultrapassar nosso escopo de pesquisa.
  • 3
    O saber protocolar em questão trata-se de guidelines de comunicação, que confrontam com a irrupção do sujeito do inconsciente frente aos enigmas impostos pela experiência do adoecimento.
  • 4
    “A criança ocupa este lugar que Freud nomeia ‘sua majestade o bebê’, expressão que não apenas define o lugar fálico da criança para seus pais, mas que lembra também que o narcisismo de ambos está em jogo quando se trata da criança” (Faria, 2016Faria, M. R. (2016). Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. Toro., p. 50).

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2022
  • Revisado
    03 Out 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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