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A multiplicidade de efeitos da repetição: da estruturação ao sintoma*1 *1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado da autora - Falas ecolálicas: uma discussão sobre a multiplicidade de seus efeitos -, desenvolvida no grupo de pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, da pós-graduação em Linguística e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, com bolsa do CNPq.

Repetition and its multiplicity of effects: from structurating element to symptom

La répétition et la multiplicité des ses effets: de la structure au symptôme

La multiplicidad de los efectos de la repetición: de la estructuración al síntoma

Resumos

Abordarei, neste artigo, as repetições de fala sintomáticas e sua relação com a estruturação subjetiva do sujeito. Com base nos princípios do interacionismo brasileiro e da clínica de linguagem, numa visada pela psicanálise, serão discutidos os princípios da repetição enquanto estruturante do sujeito na aquisição de linguagem e como esse fenômeno passa a ser sintoma - lido como ecolalia na clínica de linguagem. Com base nessas teorias, discute-se a incorporação de fragmentos da fala de outros sujeitos como mecanismo de entrada da criança na linguagem como algo estrutural, e por isso mesmo também tem a face de aprisionar o falante, dizendo assim de uma estruturação subjetiva que foge à lógica da chamada “normalidade”.

Palavras-chave:
Repetição; fala sintomática; linguagem; estruturação subjetiva


This article discusses the symptomatic speech repetitions and their relation to the subjective structuring of the individual. Based on the principles of Brazilian Interactionism and the language clinic, towards a psychoanalytical perspective, the text discusses the principles of repetition as structuring elements of the subject during language acquisition and how this phenomenon becomes a symptom - called echolalia by the language clinic. Based on these theories, the incorporation of speech fragments produced by others is seen as a structuring element for language acquisition during childhood, and thus may imprison the speaker - resulting in a subjective structuring that escapes the so-called ‘normality.’

Keywords
Repetition; symptomatic speech; language; subjective structuring


Cet article traite des répétitions symptomatiques de la parole et de leur relation avec la structuration subjective du sujet. En se basant sur les principes de l’interactionnisme brésilien et de la clinique du langage, vers une perspective psychanalytique, le text discute les principes de la répétition comme facteur structurant du sujet pendant l’acquisition du langage et comment ce phénomène devient un symptôme, appelé écholalie par la clinique du langage. Sur la base de ces théories, l’incorporation de fragments de discours produits par d’autres sujets est considérée comme quelque chose de structurant dans l’entrée de l’enfant dans le langage, et peut ainsi emprisonner le locuteur - ce qui entraîne une structuration subjective qui échappe à la soi-disant “normalité”.

Mots-clés:
Répétition; discours symptomatique; langue; structuration subjective


En este artículo abordaré las repeticiones sintomáticas del habla y su relación con la estructuración subjetiva del sujeto. Con base en los principios del interaccionismo brasileño y de la clínica del lenguaje, desde la perspectiva del psicoanálisis, se discutirán los principios de la repetición como factor estructurante del sujeto en la adquisición del lenguaje y cómo ese fenómeno se convierte en síntoma, y se entiende como ecolalia en la clínica del lenguaje. Con base en estas teorías, se discute la incorporación de fragmentos del habla de otros sujetos como un mecanismo para la entrada del niño en el lenguaje como algo estructural y que aprisiona al hablante, lo que nos muestra una estructuración subjetiva que se escapa de la lógica de la llamada “normalidad”.

Palabras clave
Repetición; habla sintomática; lenguaje; estructuración subjetiva


Introdução

Na clínica de linguagem é comum aparecer fala de pacientes que se caracterizam pela repetição da fala do outro. Muitas vezes trata-se da reprodução de propagandas ou programas de TV; outras são repetição de fragmentos da fala da mãe ou da fala do terapeuta ou qualquer outra pessoa que esteve próximo a eles. Essas falas também chamam a atenção pela aparente indiferença dessas crianças (o mais comum na clínica de linguagem) à fala do outro; sendo assim, torna-se difícil incidir sobre esses enunciados cristalizados e sem mobilidade. Foi desse modo que essas falas - denominadas pela literatura médica e fonoaudiológica como falas ecolálicas - tornaram-se objeto de estudo de minha dissertação de mestrado, e desdobrou-se neste artigo.

Carece ressaltar que trata-se de falas, em outras palavras, trata-se de língua. E sobre isso,

Trata-se de um saber que se quer resposta ao mistério da significação. Como as palavras, ou melhor, os signos designam aquilo que significam? Ou, como estão ligados ao que significam, isto é, a algo que lhes é tão heterogêneo? É esse mistério que põe em cena razão e linguagem como um outro mistério. Em que medida a linguagem reflete os modos de raciocinar, as operações da razão ou os configura? Tais indagações, sem dúvida, podem ser remetidas a outra: o que significa significar, “saber uma língua”? Aí, está um saber sobre a linguagem e sobre a língua que coloca em questão o próprio “saber a língua/uma língua”, isto é, faz dele um mistério. (De Lemos, 1991De Lemos, C. G. (1991). Saber a língua e saber da língua. Aula magna proferida no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem), 5-10., p. 7)

Dessa forma não estou, neste artigo, isenta de pensar a língua enquanto objeto. A incorporação de fragmentos da fala do Outro pela criança é, conforme a literatura em aquisição de linguagem (De Lemos, 1982De Lemos, C. G. (1982). Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, 3, 97-125., 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69., 2006De Lemos, C. G. (2006). Sobre o paralelismo, sua extensão e a diversidade de seus feitos. In M F. Lier-DeVitto, & L. Arantes, Aquisição, patologias e clínicas da linguagem (pp. 97-108). Educ/Fapesp.), porta de entrada da criança na linguagem, mas esse mesmo acontecimento pode insistir e aprisionar a criança num dizer sem sentido e que não produz efeito de comunicação, motivo pelo qual muitas delas chegam à clínica fonoaudiológica de linguagem. Como disse, repetir o Outro pode marcar a entrada na fala, mas pode representar, como se vê na clínica, aprisionamento.

Entendendo essa problemática, para encaminhar uma discussão sobre a repetição, será necessário colocar em pauta alguns pontos:

1) Como o campo da aquisição da linguagem, especialmente a proposta de De Lemos (1982De Lemos, C. G. (1982). Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, 3, 97-125., 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69., 2006De Lemos, C. G. (2006). Sobre o paralelismo, sua extensão e a diversidade de seus feitos. In M F. Lier-DeVitto, & L. Arantes, Aquisição, patologias e clínicas da linguagem (pp. 97-108). Educ/Fapesp.) - tendo em vista que é a abordagem interacionista quem discute o conceito - aborda o tema; 2) Qual a relação entre repetição e estruturação subjetiva, tendo em vista que este é o ponto que toca a questão patológica?; 3) Como a repetição é abordada na psicanálise e de que modo ela permite refletir sobre o sintoma de linguagem na clínica fonoaudiológica.

Repetição na aquisição de linguagem

A discussão feita no interacionismo brasileiro, ou melhor, sobre o que se pode ler da repetição nessa proposta, incluiu uma reflexão sobre a linguagem e sobre o sujeito, de modo que a articulação entre língua, fala e falante não poderia deixar de comparecer. Essa articulação põe em evidência que a insistência da fala do outro na fala da criança, mesmo que indicativa da patologia, mostra uma relação do falante com a língua (Lier-DeVitto, 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas”. In M. F. Lier-DeVitto, & L. Arantes. Aquisição, patologias e clínica de linguagem (pp. 183-200). Educ/Fapesp.). Não é possível conceber um falante, mesmo que marcado pelo sintoma de linguagem, fora da linguagem, fora da língua.

No processo de especularidade, termo proposto no interacionismo brasileiro (De Lemos, 1982De Lemos, C. G. (1982). Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, 3, 97-125.), podia-se ler uma modalidade de repetição, que se distingue da noção de imitação e/ou reprodução.

A ideia de imitação recíproca, ao ressaltar a face reversível da imitação, atestada nos dados de aquisição, permitia considerá-la “processo constitutivo” - e não de aprendizagem -, pois colocava em cena uma criança que tem sua fala refletida na do outro, no espelho, e não um aprendiz (frente a um modelo) dotado de capacidade analítica para eleger o que imitar da fala de seu interlocutor (Arantes, 2001Arantes, L. (2001). As múltiplas faces da especularidade. Letras de Hoje, 36(3), 253-259., p. 254; grifo da autora).

Fala-se em repetição, pois há diferença no mesmo; ao ser concebida como reflexo da fala do outro assume-se que há no “mesmo” a diferença; não se trata de reprodução - esta sim diz da insistência do mesmo.

Se a especularidade assinala um processo em que a palavra da criança não é da criança, que ela empresta a voz à fala do outro, pode-se depreender que esse conceito exclui a ideia de sujeito psicológico, de sujeito fonte de seu dizer. “[...] a especularidade [coloca] em causa o sujeito porque revela sua alienação como dimensão constitutiva, que estaria na base de todas as transformações simbólicas que sua fala opera” (Lemos, 1994Lemos, M. T. G. de. (1994). A língua que me falta: uma análise dos estudos em aquisição de linguagem. Tese de Doutorado em Linguística. Programa de Pós-Graduação em Linguística - Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas, SP. Campinas., p. 144; grifo da autora)

Porém, se a especularidade parecia dar conta do modo de entrada da criança na linguagem, ela, assim como os demais processos, cunhados no tempo inicial do projeto interacionista brasileiro (De Lemos, 1982De Lemos, C. G. (1982). Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, 3, 97-125.) não permitia explicar as mudanças que passavam a operar na fala da criança. O erro, as produções faltosas, exigiam mais. Foi a introdução de uma teoria de linguagem e de um conceito de sujeito que ressignificou o conceito de especularidade.

Em os “Processos metafóricos y metonímicos como mecanismos de câmbio”, De Lemos (1992)De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135. afasta-se da ideia de interação como uma relação dual (criança-outro). Como assinalam Lier-DeVitto e Carvalho (2008)Lier-DeVitto, M. F., & G. M. M. Carvalho. (2008). O interacionismo: uma teorização sobre a aquição da linguagem. In I. Finger, & R. M. de Quadros. Teorias de aquisição da linguagem (pp. 115-146). Editora da UFSC., quando se aponta para um terceiro que está implicado no espelho, o que se observa é uma estrutura triádica: criança, outro e espelho. Esse terceiro, o espelho, é a língua que, em sua alteridade, leva à produção de uma combinatória singular.

Em vez de processos dialógicos e uma perspectiva desenvolvimentista, ganhou espaço uma visada estrutural e a ideia de que o que está em causa na passagem de infans a falante é uma mudança de posição na relação entre sujeito, língua e Outro.

Em síntese, na primeira posição: cabe ao outro, o intérprete, dar à fala da criança o estatuto comunicativo, é ele quem atribui forma e sentido, por isso ela dele depende ficando alienada à fala do outro. A criança repete o outro, empresta voz ao outro e presentifica cenas vividas. Repetição que pode ser imediata ou diferida, mas há, nos dois casos, retorno da fala do outro (De Lemos, 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69.).

Na segunda posição, em que a língua é o polo dominante, o jogo entre semelhança e diferença se faz presente. Se, por um lado, o retorno da fala do outro se faz presente, por outro, os erros passam a fazer presença e nem sempre a fala do outro é reconhecível, dado que os movimentos da língua, os movimentos metafóricos e metonímicos, produzem enunciados bizarros e inesperados (De Lemos, 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69.).

Há que se falar também na presença do paralelismo e da repetição de parte da estrutura que a criança retoma em sua fala. Foi a partir do trabalho de Lier-DeVitto (1998)Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp. que Lemos pôde dar destaque ao paralelismo na segunda posição.

No paralelismo, aparecem os segmentos cristalizados que vêm da fala do outro e, também, os erros, as hesitações que trazem o jogo entre o semelhante da repetição e o diferente instituído pelo movimento da língua que perturbam o sentido. “Erros e re-estruturações parecem deixar ver o funcionamento da língua que, ao por em relação elementos concretos da linguagem, desrespeita sua historicidade, burla a sintaxe e perturba o sentido” (Lier-DeVitto, 1998Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp., p. 166).

O paralelismo corresponde a estruturas que se reestruturam, ou seja, ocorre diferenças, substituições dentro dos próprios eixos estruturais (metafórico e metonímico). Em outras palavras, o paralelismo corresponde a elementos numa estrutura “em que jogam o mesmo e o diferente” (Lier-DeVitto, 1998Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp., p. 148).

Por fim, na terceira posição, a criança pode escutar-se, a fala do outro é certo, ainda marca sua fala, mas já não é possível reconhecê-la, é como se a criança tivesse agora autonomia. Na realidade, ainda que não audível, a voz do outro nunca se apaga, mas seus rastros ficam cada vez mais distantes (De Lemos, 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69.).

O ponto central é que a repetição que abre as portas para a entrada na fala, que responde pela estruturação da fala da criança, pode também, no caso das patologias, aprisionar o falante em um eco que não lhe permite circular na linguagem.

Repetição na clínica de linguagem

A face dita patológica, da repetição, chamadas na clínica médica e fonoaudiológica de ecolalias e estereotipias - levantam problemas quanto à natureza “constitutiva”, “estruturante” da repetição.

O fenômeno em causa - a repetição, presente em algumas falas de pacientes, distingue-se da repetição em aquisição de linguagem, como já comentado, pois não introduz o novo, trazendo à cena, assim, a dimensão do sintoma. O efeito de patologia que essas falas produzem diz de um fracasso na estruturação subjetiva. Entende-se que sintoma tem relação com repetição - sintoma é “Repetição de um corpo que não pensa absolutamente, faz. [Trata-se de uma] repetição ‘sem finalidade [direção] e sem ocultação’” (Lier-DeVitto, 2003Lier-DeVitto, M. F. (2003). Patologias da linguagem: subversão posta em ato. In N. V. Araújo, CorpoLinguagem: gestos e afetos (pp. 233-245). Mercado de Letras., p. 242).

Para tratar das repetições sintomáticas partirei de uma discussão iniciada por Arantes (2001)Arantes, L. (2001). As múltiplas faces da especularidade. Letras de Hoje, 36(3), 253-259. e também por Oliveira (2001)Oliveira, M. T. (2001). Ecolalia: Quem fala nesta voz? Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP.. A repetição sintomática, ainda que, como na repetição estruturante, se trate de incorporação da fala do outro, trata-se de uma incorporação que impede o diálogo e que tem fim em si mesma, uma fala que ocupa um corpo, mas que não o legitima. Pode-se pensar numa fala que se movimenta por conta própria, que captura o sujeito, mas que nesse ato o amarra, paralisa. Nas falas sintomáticas se pode reconhecer as cadeias da língua, mas essas não se desdobram, não ganham extensão, não produzem significação. Ainda que a fala das crianças, abordadas nos estudos citados pudessem reproduzir falas inteiras sejam as de comerciais ou as da própria terapeuta, essas não ganhavam circulação.

Nesses trabalhos foi possível destacar ainda que o uso de ecolalia como rótulo para a fala de crianças que estão no campo das psicopatologias, recobre a heterogeneidade que diz de um modo peculiar de presença do sujeito na língua, questão relevante para pensarmos na clínica e na direção do tratamento.

Assim, acompanho que,

As manifestações da fala no autismo evidenciam produções de ecolalia, mutismo ou verborragia; encontram-se marcadas pelos significantes fora de uma ordem de sentido e estão impregnadas de um excesso pulsional traduzido em sons, balbucios e gritos. No entanto, em função da singularidade de cada criança, apresentará variações que impedem generalizações e fará que cada uma delas demonstre na direção do tratamento a maneira como foram afetadas no campo da linguagem. (Aragão, 2011Aragão, L. O. C. de (2011). O autismo e a pulsão invocante. Dissertação de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, RJ., p. 14)

Pode-se entender, então, que o encontro com a clínica de linguagem pode assegurar a posição de que a fala, ainda que sintomática, traz a marca da “presença singular, única, de um sujeito na linguagem - que sua diferença é de qualidade, uma qualidade que não pode ser inferida do que se supõe ou se pressupõe como normalidade” (Arantes, 2006Arantes, L. (2006). Impasses na distinção entre produções desviantes sintomáticas e não sintomáticas. In M. F. Liee-Devitto, & L. Arantes, Aquisição, patologias e clínica de linguagem (pp. 219-225). Educ/Fapesp., p. 225).

Não é de se estranhar que a face patológica da repetição leva a pensar na problemática da natureza constitutiva desses sujeitos - natureza do processo de estruturação, que nestes sujeitos da clínica, diz de um fracasso.

Essa repetição - fala do outro, em seu estatuto patológico - permite dizer de uma outra repetição: sintoma. Assim, têm-se uma repetição que diferentemente da aquisição de linguagem não é estrutural, é uma repetição que insiste e não passa a outra coisa, e aproveitando-nos da palavra, é repetição também porque é sintoma.

Como se pôde ler, na aquisição de linguagem proposto no interacionismo brasileiro (De Lemos, 1992De Lemos, C. G. (1992). Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1), 121-135., 2002aDe Lemos, C. G. (2002a). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In E. Orlandi (Org.), Cadernos de Estudos Linguísticos: História das ideias linguísticas, 42, 41-69., 2006De Lemos, C. G. (2006). Sobre o paralelismo, sua extensão e a diversidade de seus feitos. In M F. Lier-DeVitto, & L. Arantes, Aquisição, patologias e clínicas da linguagem (pp. 97-108). Educ/Fapesp.) o infans é capturado pela lingua- gem, ou seja, a linguagem se inscreve no sujeito, sem que este possa escolher ou não estar na linguagem. Assim, não poder-se-ia supor um princípio oposto na patologia de linguagem. Não se trata de definir as duas posições como sendo idênticas; trata-se de que a inscrição da língua não se faz por outro caminho, embora produza efeitos diferentes na aquisição e nas chamadas patologias.

Sendo o Outro o que permite a entrada do infans a partir da marcação de um significante - inaugural: abertura na cadeia significante, pensamos que por meio desse ponto possamos tecer alguns comentários sobre a estruturação subjetiva no caso de crianças que insistem em falar fragmentos da fala do outro, na cristalização desses fragmentos. Assim, tecerei alguns comentários sobre holófrase, repetição em psicanálise.

Repetição na psicanálise

A partir de outro material de Arantes (2011)Arantes, L. (2011). Falas ecolálicas e hesitações/reformulações. XVI Congreso de la Associación de Linguística y Filologia de la America Latina, Alcala de Henares. Acta del XVI Congreso Internacional de la ALFAL, 3855-3860., pode-se aprofundar um tema que se articula à discussão apresentada: a holófrase, tema que pode permitir a necessária discussão sobre o sujeito.

A holófrase é um conceito que circula tanto no campo da aquisição de linguagem quanto no da psicanálise. No primeiro caso, o termo nomeia o estágio inicial da aquisição de linguagem em que a criança usa apenas um vocábulo para se comunicar - “a palavra isolada, fragmento da fala do outro maternante [é tomada] como equivalente a uma unidade de significação plena” (De Lemos, 2002bDe Lemos, C. G. (2002b). Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do Lepsi, Psicanálise-Infância-Educação, Anais do III Colóquio do Lepsi, 45-52., p. 5).

De Lemos (2002b)De Lemos, C. G. (2002b). Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do Lepsi, Psicanálise-Infância-Educação, Anais do III Colóquio do Lepsi, 45-52., a partir de uma afirmação de Lacan, em que ele interroga se há ordem na aquisição de linguagem, questiona se os fragmentos iniciais que retornam na fala da criança, os restos metonímicos da fala da mãe seriam “ponta do significante que abre a possibilidade para a rede dos significantes” (p. 5). Para responder a isso, toma como exemplo exatamente as crianças que sucumbem na trajetória da aquisição de linguagem. Ela parte de um trabalho de Vorcaro (1999)Vorcaro, Â. (1999). Da holófrase e seus destinos. In Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social (pp.19-58). Companhia de Freud. em que o conceito de holófrase é radicalmente distinto daquele que circula nos estudos sobre aquisição da linguagem.

Vorcaro (1999)Vorcaro, Â. (1999). Da holófrase e seus destinos. In Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social (pp.19-58). Companhia de Freud. trabalha a holófrase a partir de Lacan e diz:

A solidificação do primeiro casal de significantes impede que um significante possa vir no lugar de outro, já que eles ocupam o mesmo lugar. O primeiro casal de significantes é aquele que determina a divisão e é também aquele do momento de alienação (em que, se o sujeito aparece como sentido, ele se manifesta como desaparição). O primeiro significante, aquele do traço unário (S1), representa o sujeito ao ser introduzido no campo do Outro, por um outro significante, (S2), sob o qual o sujeito é representado e desaparece na afânise, significante que faz entrar em jogo o sujeito como falta. (p. 9)

Falar em holófrase, porém, é assumir um sujeito que não pôde ser barrado, dividido pela relação significante, ou seja, pela relação posta entre S1 e S2.

Diz-se, então, “A lógica da alienação ao campo da linguagem, e seu resto, a separação que permite a função da fala, mostra, na holófrase, que as operações de alienação e de separação podem ser disjuntas, já que a separação pode, aí, não ter incidido” (Vorcaro, 1999Vorcaro, Â. (1999). Da holófrase e seus destinos. In Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social (pp.19-58). Companhia de Freud., p. 6).

Sobre a solidificação do primeiro casal de significantes, Lemos (2002b) faz uma importante distinção entre segmentos que podem ser ditos holofrásicos e o fenômeno da fragmentação que se dá a ver, especialmente, nos monólogos da criança. O fenômeno da fragmentação possui um caráter distinto da fragmentação que holofraseia. No primeiro caso, vê-se uma movimentação na cadeia; há operação dos eixos metonímicos - retornos da fala da mãe - que inaugura um possível de abertura à cadeia significante. Assim, faz presença a operação do processo metafórico - os fragmentos passam a convocar outros fragmentos.

Já quando da fragmentação sucede a solidificação significante, ou seja, quando passa a haver coincidência, quando não há intervalo entre significantes; noutros termos, quando o deslocamento metonímico não abre para a cadeia significante, suspende-se a função do significante. A suspensão dessa função, que permite que um significante possa ocupar o lugar de outro, parece indicar a presença da holófrase.

Do que se lê no trabalho de De Lemos (2002b)De Lemos, C. G. (2002b). Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do Lepsi, Psicanálise-Infância-Educação, Anais do III Colóquio do Lepsi, 45-52., ainda que não se possa assimilar diretamente a solidificação entre S1 e S2 a uma cadeia da fala concreta, como indica a autora, é possível, ainda assim, marcar uma distinção com o fenômeno da fragmentação. Para falar da aquisição recorreu-se ao trabalho de Lier-DeVitto (1998)Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp. sobre os monólogos da criança, falas solitárias, marcadas por restos da fala do outro que retornam de modo fragmentado, mas por efeito do Outro, e indicam a pressão exercida pela língua, pelo grande Outro sobre a fala; o que deveria estar em ausência é posto em presença à revelia da criança.

O “esburacamento da cadeia significante” diz da presença de intervalos, daquilo que permite um jogo de montar e remontar, que passa a outra coisa; que movimenta as cadeias. Há nesse esburacamento das cadeias da língua dispersão e suspensão de sentido e que aponta para a relação necessária entre falta, perda e causa do desejo (Rabinovich, 2000Rabinovich, D. (2000). O desejo do psicanalista: liberdade e determinação na psicanálise. Companhia de Freud.).

Para Lier-DeVitto (1998)Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp. o paralelismo tem função coesiva, produz efeito constitutivo do texto, ele é “repetição com diferença, que o movimenta, impulsiona e amplia a fala da criança - criando distância da fala do outro.” (Lier-DeVitto & Arantes, 2015Lier-DeVitto, M. F., & L. Arantes (2015). Repetição e diferença na fala da criança: diferença é singularidade? Revista Prolíngua, 10(1), 190-198., p. 192). Mas há repetições que aprisionam, prossegue ela, “repetições mortíferas que tendem à reprodução: nelas, a fala e o falante cristalizam-se num efeito patológico” (p. 192).

A partir do conceito de holófrase no campo da psicanálise pode-se fazer algumas aproximações importantes: é possível articular as falas ecolálicas à holófrase, dado que Lacan ao falar da solidificação entre S1 e S2 autoriza um paralelo dessa natureza, pois ele afirma, como indicou De Lemos (2002b)De Lemos, C. G. (2002b). Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do Lepsi, Psicanálise-Infância-Educação, Anais do III Colóquio do Lepsi, 45-52., que “é certamente algo da mesma ordem do que se trata na psicose. Essa solidez, esse apanhar a cadeia significante primitiva em massa é o que proíbe a abertura dialética” (p. 5), isto é, ainda que a holófrase não seja diretamente assimilável às cadeias da fala, dado que diz de uma posição estrutural, ela parece poder responder pelas falas ecolálicas. Essas falas que dizem de repetição se distinguem da repetição estrutural que se vê no paralelismo.

A discussão sobre repetição na psicanálise não fica apenas em holófrase, na verdade, inicia em Lacan (1956/1998Lacan, J. (1998). O seminário sobre “A Carta Roubada”. In Escritos (pp. 11-66). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956)., 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).) a partir de Freud (1920/1996bFreud, S. (1996b). Além do princípio de prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII, pp. 11-75). Imago. (Trabalho original publicado em 1920).; 1914/1996aFreud, S. (1996a). Recordar, repetir e elaborar. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII, pp. 159-172). Imago. (Trabalho original publicado em 1914).), quando aquele apresenta a repetição como busca - encontro com o real, encontro que não se concretiza, ou encontro faltoso. Lacan parte de dois conceitos de Aristóteles - a Tiquê e o Autômaton - para abordar a repetição e estabelecer sua relação com o real. Por autômaton, entende-se o que se move por conta própria, ou indica uma lógica de ação. Para Lacan, autômaton se coloca como o que se desenrola da cadeia significante, sendo a estrutura que insiste.

Tiquê, por sua vez indica um além do Autômaton, um mais-além-do-princípio-do-prazer. Ele é o encontro com o real; Tiquê indica um “encontro falho”, entende-se como encontro com o real. O real tem seu percurso justamente na repetição, que por se haver num “encontro falho”, nunca “retorna” igual. Tiquê encontra-se para além de autômaton, diria, causa uma fenda, um espaço, que vacila o que é autômaton. Em Lacan (1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., 1956/1998Lacan, J. (1998). O seminário sobre “A Carta Roubada”. In Escritos (pp. 11-66). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956).) evidenciam-se duas marcas: o real - tiquê - e o simbólico - autômaton. O que se dá a ver como retorno, como insistência, está relacionado à rede de significantes, logo, relaciona-se com autômaton e o que é inassimilável, ou encontro faltoso, diz de relação com tiquê (Harari, 1990Harari, R. (1990). Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Papirus.). Trata-se, então, no caso das neuroses, de um encontro faltoso que produz no sujeito uma esquize, uma divisão, e que funda a repetição.

No sentido de esclarecer o duplo registro da repetição (como Tiquê e como autômaton), Balbi (2012)Balbi, L. (2012). Repetição e psicose. Letra freudiana, XI(10/11/12), 95-98. faz referência ao jogo do Fort-da - brincadeira descrita por Freud, em que a criança joga e recolhe o carretel, dando cadência ao jogo da presença e da ausência do objeto, marcando o movimento pela alternância de sílabas distintivas (Fort-da) - como paradigmático da simbolização primordial do sujeito. A pesquisadora assinala que, segundo Lacan, o que ocorre não é simplesmente o exercício da alternância significante, pois há́ um objeto em jogo.

A repetição enquanto atividade que escapa ao domínio do princípio do prazer, isto é, que escapa ao simbólico se dá a ver nessa cena; não se trata apenas de trazer a mãe para si “É a repetição da saída da mãe como causa de uma divisão do sujeito - superada pelo jogo alternativo, fort-da [...].” (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 63, apud Balbi, 2012Balbi, L. (2012). Repetição e psicose. Letra freudiana, XI(10/11/12), 95-98., p. 96). O que se repete

[...] é a perda do objeto, experiência do que é inassimilável para o sujeito, mas que é passível de ser simbolizada pela alternância significante. Este nível de simbolização primordial, na estrutura neurótica, coloca-se como matriz das operações de alienação e separação, já́ que o objeto em jogo antecipa a função do objeto a. (Balbi, 2012Balbi, L. (2012). Repetição e psicose. Letra freudiana, XI(10/11/12), 95-98., p. 96)

Vê-se assim que, numa trajetória sem acidentes, a repetição é decorrência das operações de alienação e separação; já quando há percalços no tempo da estruturação subjetiva a situação é bastante distinta.

Assim, acompanho a interrogação:

[...] se tomamos a repetição como decorrência destas duas operações que têm como efeito, o retomo significante (“autômaton”) e o encontro do real (“tiquê”), como caracterizar então o retorno das vozes [no caso das ecolalias]sempre ao mesmo lugar? (Balbi, 2012Balbi, L. (2012). Repetição e psicose. Letra freudiana, XI(10/11/12), 95-98., p. 96)

Para a pesquisadora, o retorno das vozes ao mesmo lugar não pode ser caracterizado como uma rememoração ou retorno significante no sentido de autômaton, dado que autômaton se faz no tecido simbólico e supõe intervalos entre os significantes. Aqui, como indiquei com a holófrase, tem-se a solidificação da primeira dupla significante, não o espaço onde o sujeito possa vir a aparecer. Assim, o que retorna, retorna fora do simbólico e podemos interrogar com Balbi se podemos pensar as formações psicopatológicas como índices de um retorno no real. Mas esta é uma questão para outro tempo.

O que leva as crianças com falas ditas ecolálicas a permanecerem numa posição em que a fala pode ter caráter nefasto?

Pode-se dizer que repetição sintomática, como mostram os segmentos discutidos por Oliveira (2001)Oliveira, M. T. (2001). Ecolalia: Quem fala nesta voz? Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. e Arantes (2001Arantes, L. (2001). As múltiplas faces da especularidade. Letras de Hoje, 36(3), 253-259., 2011Arantes, L. (2011). Falas ecolálicas e hesitações/reformulações. XVI Congreso de la Associación de Linguística y Filologia de la America Latina, Alcala de Henares. Acta del XVI Congreso Internacional de la ALFAL, 3855-3860.), ainda que, como na repetição estruturante, esteja em causa a incorporação da fala do outro, trata-se de uma incorporação que impede o diálogo e que tem fim em si mesmo, uma fala que ocupa um corpo, mas que não o legitima. Pode-se pensar numa fala que se movimenta por conta própria, que se captura o sujeito e o amarra, paralisa. Ali se podem reconhecer as cadeias da língua, que após o encontro com alguns textos da psicanálise, chego mesmo a interrogar se são de fato cadeias significantes, dado que elas não se desdobram, não ganham extensão, não produzem significação. Ainda que as crianças possam reproduzir falas inteiras, sejam as de comerciais, ou as da própria terapeuta, essas não ganham circulação.

Do que se viu até aqui, têm-se que a repetição na psicanálise tem um papel fundamental na estruturação subjetiva, mas a face da repetição que se presentifica na fala dos pacientes que frequentam a clínica de linguagem, são, segundo expressão da própria clínica - repetições mortíferas que tendem a reprodução, e que apontam para uma falha nas operações de alienação/separação, que faz com que esse retorno nem sequer possa ser entendido como repetição propriamente dita. Vale assinalar, entretanto, que compartilho a afirmação de Soler que as crianças, marcadas na clínica, mesmo que não falem ou falem apenas a fala do outro, elas são sujeitos, pois são faladas pelo outro e por que falamos com elas: “há no Outro significantes que as representam” (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Jorge Zahar., p. 67).

A suposição de sujeito por meio dos significantes do Outro é a primeira emergência de qualquer sujeito, entretanto, “esbarramos no fato de que essa primeira emergência do sujeito como puro efeito do Outro não ultrapassa esse limiar para tornar-se um agente que fala, movido pela pulsão” (Vorcaro & Lucero, 2010Vorcaro, Â., & Lucero, A. (2010). Entre o real, simbólico e imaginário: leituras do autismo. Psicol. Argum., 28(61), 147-157., p. 154).

A repetição, como pude indicar via psicanálise, é atividade que escapa ao domínio do princípio do prazer, com o exemplo do jogo do carretel apresentado por Freud e revistado por Lacan (1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., 1956/1998Lacan, J. (1998). O seminário sobre “A Carta Roubada”. In Escritos (pp. 11-66). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956).), pois a criança repete o desaparecimento da mãe, causa da divisão do sujeito, que pode vir a ser superada pelo jogo de alternância - Fort-da. Em outras palavras, trata-se da perda do objeto, experiência inassimilável pelo sujeito, mas que pode ser simbolizada pela alternância significante, que, como foi visto, é matriz da operação de alienação e separação. Assim, destaco que a repetição é, nas crianças que não fracassam, resultado das operações de alienação e separação; há assim como entender a passagem da reposição de fragmentos da fala do outro para o tempo em que os movimentos da língua predominam.

Nos exemplos trazidos por Oliveira (2001)Oliveira, M. T. (2001). Ecolalia: Quem fala nesta voz? Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. e Arantes (2001Arantes, L. (2001). As múltiplas faces da especularidade. Letras de Hoje, 36(3), 253-259., 2011Arantes, L. (2011). Falas ecolálicas e hesitações/reformulações. XVI Congreso de la Associación de Linguística y Filologia de la America Latina, Alcala de Henares. Acta del XVI Congreso Internacional de la ALFAL, 3855-3860.) a repetição aparece como reprodução, como cristalização da fala, não convoca o sujeito, não o implica, pois não há falta, não há diferença. Foi percebido, como assinalou De Lemos (2002b)De Lemos, C. G. (2002b). Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do Lepsi, Psicanálise-Infância-Educação, Anais do III Colóquio do Lepsi, 45-52. a partir de Lacan, que é possível pensar nesses acontecimentos a partir do conceito de holófrase, embora esta não diga respeito apenas às cadeias concretas da fala, mas a um acontecimento mais importante e relevante, que diz respeito à solidificação entre o primeiro casal de significantes e que responde por uma posição singular do sujeito na estrutura que decorre de uma falha nas operações de alienação e separação; há alienação, mas não há separação. Há fala, mas não se reconhece o sujeito desse corpo. No fenômeno da fragmentação não há coincidência entre a produção do adulto e da criança, embora haja a identificação entre os fenômenos, porque são fragmentos do outro que retornam na fala da criança.

Há, entretanto, um aspecto que não pode ser negligenciado; ao lado dessas falas que retornam como eco da voz do outro, há momentos em que algo pode vacilar, aparecem as hesitações (Arantes, 2011Arantes, L. (2011). Falas ecolálicas e hesitações/reformulações. XVI Congreso de la Associación de Linguística y Filologia de la America Latina, Alcala de Henares. Acta del XVI Congreso Internacional de la ALFAL, 3855-3860.), os momentos de que algo se distingue, o sujeito faz presença evanescente na cadeia. Daí que não basta descrever a fala dessas crianças presas à voz do outro como ecolálicas, é necessário abrir a escuta para poder tentar apreender o que há de heterogêneo e de singular nos modos de habitar e ser habitado pela linguagem. Fica claro, por este percurso, que é necessário abandonar a generalidade do rótulo “ecolalia” e abrir a escuta para a fala singular de cada caso que se apresenta na clínica.

Considerações finais

Explorei neste artigo, a temática da repetição como um extrato de um trabalho maior, minha dissertação de mestrado. Do percurso empreendido até aqui pode-se afirmar que a incorporação de fragmentos da fala do outro é o mecanismo de entrada da criança na linguagem; destacamos que se trata de um momento decisivo e estrutural. E como contraponto, na patologia, trata-se de um efeito que não faz o sujeito movimentar-se na estrutura - algo bem distinto do paralelismo, cuja repetição com diferença, faz movimentar, apresentar o novo (Lier-DeVitto, 1998Lier-DeVitto, M. F. (1998). Os monólogos da criança: delírios da língua. Educ/Fapesp.). A repetição abre a possibilidade para a entrada da criança na fala, mas também ela pode aprisionar o falante, de modo a remeter-nos à reprodução, à repetição como patologia - cristalização da fala do outro na fala da criança.

Essa cristalização, dita como ecolalia - cristalização da fala do outro na fala da criança - recobre a heterogeneidade do sujeito presente na língua. Estas questões apontam-nos para a natureza constitutiva e estruturante da repetição. Pode-se dizer que algo de fala e falante comparece, mesmo nesta repetição/ecolalia. A questão é que efeito dessa repetição pode ter na estruturação desses sujeitos.

A holófrase foi o conceito que permitiu dar um passo no que concerne à estruturação subjetiva na repetição - como patologia. Na psicanálise, a repetição não é fenômeno, trata-se de um conceito fundamental - na base da estruturação do sujeito, que implica falar de Real, Simbólico e Imaginário, implica a “própria invenção do sujeito”, e que no caso das crianças que cristalizaram a fala do outro na sua fala, atesta para uma falha nesta “invenção do sujeito”.

O fato de pensar em estruturação subjetiva na clínica com crianças que insistem na fala do outro, acaba por remeter a psicanálise ao sujeito do inconsciente como lógica para essa repetição que diz de estrutura. Reconheço que a articulação mais precisa desses termos deve ser feita de forma mais detalhada, tendo em vista que circulam na repetição com diferença - enquanto conceito na psicanálise e que diz do sujeito do inconsciente em contraponto à repetição sem diferença, a holófrase, que se dá a ver (também) pela fala e pelo corpo. Trata-se de uma discussão que o clínico não deve se abster e que precisa levá-lo a uma elaboração teórica que permita retirar consequências para então pensar questões relativas à intervenção clínica - numa clínica de linguagem.

  • *1
    Este artigo é fruto da dissertação de mestrado da autora - Falas ecolálicas: uma discussão sobre a multiplicidade de seus efeitos -, desenvolvida no grupo de pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, da pós-graduação em Linguística e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, com bolsa do CNPq.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. / This work received funding by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2022
  • Revisado
    08 Out 2022
  • Aceito
    18 Nov 2022
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