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Operação Suposição de Sujeito no contexto de Terapia Semi-Intensiva Neonatal: relato de caso*1 *1 Artigo baseado no trabalho de conclusão de Residência apresentado ao Programa de Pós-graduação, Modalidade Residência Multiprofissional em Neonatologia, da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, em janeiro de 2022.

Subject Assumption Operating in Neonatal Semi-Intensive Care: Case report

Opération d’assomption du sujet en soins semi-intensifs néonatals : rapport de cas

Operación de suposición del sujeto en el contexto de cuidados semiintensivos neonatales: reporte de caso

Resumos

A operação de suposição de sujeito compreende um dos quatro eixos que fundamentam a pesquisa IRDI e consiste em uma antecipação realizada pelo agente da função materna de um sujeito no bebê, que não se encontra ainda constituído. Este trabalho se propõe a apresentar um relato de caso que teve como objetivo investigar como a operação de suposição de sujeito ocorre em um contexto de internação em uma Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal. Para isso, foram realizadas uma entrevista semiestruturada, a aplicação do protocolo IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil) e do instrumento Denver II. Observou-se que a suposição de sujeito pode ocorrer, mas neste caso clínico apresenta dificuldades para se sustentar e operar, já que a relação mãe-bebê possivelmente foi influenciada pela limitação física do bebê, sua internação prolongada e aspectos emocionais da mãe.

Palavras-chave
Desenvolvimento infantil; internação neonatal; relação mãe-bebê; estimulação precoce


Subject assumption operation is one of the four axes that underlie research using Clinical Indicators of Risk for Child Development (IRDI) and consists of an anticipation performed by the maternal agent on the behalf of a not yet constituted subject - the baby. This paper presents a case report that aimed to investigate how the subject assumption operation occurs in a neonatal semi intensive care unit. To do so, a semi-structured interview was conducted followed by application of the IRDI protocol and the Denver II instrument. Results showed that the subject assumption can occur, but, in this clinical case, it was unsustainable and non-operational, since the mother-child relation was possibly influenced by the physical limitation of the baby, their prolonged hospitalization, and emotional aspects of the mother.

Keywords
Child development; Neonatal hospitalization; mother-baby relationship; early stimulation


L’opération d’“assomption sujet” comprend l’un des quatre axes qui sous-tendent la recherche utilisant les indicateurs cliniques de risque pour le développement de l’enfant (IRDI) et consiste en une anticipation effectuée par l’agent maternel pour le compte d’un sujet qui n’est pas encore constitué. Cet article présente un rapport de cas qui visait à étudier comment cette opération se déroule dans une unité de soins semi-intensifs néonatals. Pour ce faire, un entretien semi-directif a été mené, suivi de l’application du protocole IRDI et de l’instrument Denver II. Les résultats ont montré que l’hypothèse du sujet peut se produire, mais, dans ce cas clinique, elle était insoutenable et non opérationnelle, puisque la relation mère-enfant était probablement influencée par la limitation physique du bébé, son hospitalisation prolongée et les aspects émotionnels de la mère.

Mots-clés
Développement de l’enfant; Hospitalisation néonatale; relation mère-bébé; stimulation précoce


La operación de la suposición del sujeto es uno de los cuatro ejes que sostienen el estudio con indicadores clínicos de riesgo para el desarrollo infantil (IRDI) y consiste en una anticipación realizada por el agente de la función materna de un sujeto en el bebé, que todavía no se encuentra constituido. Este trabajo propone presentar el reporte de caso con el objetivo de investigar cómo la operación de suposición de sujeto ocurre en el contexto de hospitalización en una Unidad de Cuidados Semiintensivos Neonatal. Para eso, se realizaron una entrevista semiestruturada, la aplicación del protocolo IRDI y el instrumento Denver II. Se ha notado que la suposición de sujeto puede ocurrir, pero todavía en este caso clínico se muestran dificultades para que se sustente y opere, una vez que la relación madre-bebé posiblemente fue influenciada por limitaciones físicas del bebé, su hospitalización prolongada y aspectos emocionales de la madre.

Palabras clave
Desarrollo infantil; hospitalización neonatal; relación madre-bebé; estimulación temprana


Introdução

O presente estudo originou-se da prática clínica do psicólogo residente em Unidade de Terapia Intensiva e Semi-Intensiva Neonatal, local possível para observação do nascimento do sujeito psíquico e da construção do vínculo mãe-bebê. A partir da necessidade de oferecer uma escuta especializada às mães dos bebês internados e da possibilidade de criar um projeto direcionado especificamente para a Unidade Semi-Intensiva, surgiu o interesse por pesquisar a importância do vínculo mãe-bebê para a constituição psíquica e para o desenvolvimento desse bebê na situação de internação semi-intensiva neonatal, que se caracteriza por um período maior de permanência, pela frequência de intervenções - muitas vezes, invasivas - e pela condição crônica do paciente bebê.

Tem-se como objetivo investigar, através de um relato de caso, o exercício da operação de suposição de sujeito através da observação das relações de um bebê internado na Unidade de Tratamento Semi- -Intensiva de uma Maternidade-Escola Municipal de São Paulo com seus cuidadores, especialmente com sua mãe - ou com o agente que realiza a função materna. A suposição de sujeito, um dos eixos teóricos que fundamentam os indicadores IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil), consiste em “uma antecipação, realizada pela mãe ou cuidador, da presença de um sujeito psíquico no bebê, que ainda não se encontra, porém, constituído” (Kupfer, Jerusalinsky & Bernardino, 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. Disponível em <http://www.fundamentalpsychopathology.org.br/wp-content/uploads/2019/10/valor_preditivo_de_indicadores_clinicos_de_risco_para_o_desenvolvimento_infantil.pdf>.
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, p. 53).

Pretende-se ainda verificar como opera a Suposição de Sujeito, caso esteja presente, no contexto da Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal. Tal verificação será feita através da leitura e da aplicação da primeira e da segunda faixas etárias dos indicadores IRDI e da compreensão de quais significações a mãe constrói sobre o bebê nesse contexto de internação, considerando a patologia que ele apresenta.

O contexto de internação em uma Unidade de Tratamento Intensivo e Semi-Intensivo Neonatal se configura como situação de sofrimento e potencialmente traumática para aqueles que sustentam as funções parentais, e é muito comum que, nessa situação, tais funções se encontrem fragilizadas. O risco de um bebê vir a óbito, uma internação prolongada, uma grave patologia ou mesmo quadros sindrômicos e crônicos podem, muitas vezes, ter como efeito um sentimento de destituição do saber parental, o que, por sua vez, pode ter efeitos no processo de constituição psíquica e no desenvolvimento do bebê.

Levando em consideração que a constituição psíquica tem suas primeiras inscrições produzidas a partir das experiências ocorridas na primeiríssima infância e sendo decisivos, portanto, o cuidado, o olhar, a escuta e a atenção para esse período do desenvolvimento, é imprescindível que os profissionais que atuam ou que estejam juntos ao bebê permaneçam atentos à relação que esse estabelece com o cuidador principal. Dessa forma, como coloca Jerusalinsky (2007)Jerusalinsky, A. N. (2007). Psicanálise e desenvolvimento infantil (4ª ed.). Artes e Ofícios., caso algo não esteja bem do ponto de vista psíquico, é possível realizar intervenções ou encaminhamentos em um momento muito inicial da vida, enquanto há tempo hábil para mudar os rumos do desenvolvimento do bebê.

A partir de uma leitura psicanalítica acerca da constituição do sujeito, a realização de detecção do sofrimento psíquico da dupla bebê/cuidador e de possíveis dificuldades de vinculação dessa díade, pode se configurar como um trabalho de prevenção de problemas no desenvolvimento e no processo de constituição de um bebê como sujeito. Para isto, Jerusalinsky (2000)Jerusalinsky, J. (2000). Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal. Estilos da Clínica, 5(8), 49-63. Disponível em <https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v5i8p49-6>.
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propõe que uma intervenção possível

[...] aponta para o resgate, dentro desse tempo de internação, do “tempo subjetivo” de elaboração do pai e da mãe (enquanto funções) quanto à inscrição do RN [recém-nascido] no discurso parental, que permanentemente cai e fica silenciada em função da iminência do risco de vida. (p. 51)

O agente materno, ou cuidador principal, deverá sustentar algumas operações relativas à função materna, que possibilitarão a instalação de um sujeito psíquico no bebê. Para Freud (1926/2014)Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In Obras completas: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). (Paulo César de Souz, Trad., Vol. 17). Companhia das Letras., o bebê humano nasce marcado por um estado de desamparo primordial. O bebê ao nascer se encontra em um estado de dependência total de um adulto, na maioria das vezes a mãe, que será responsável por satisfazer suas necessidades (sede, fome) e empreender as ações indispensáveis à sua sobrevivência e desenvolvimento. São os cuidadores primários, portanto, que, de acordo com Jerusalinsky e Melo (2020)Jerusalinsky, J., & Melo, M. S. (2020). Quando algo não vai bem com o bebê: detecção e intervenções estruturantes em estimulação precoce. Ágalma., funcionarão como intermediários na inauguração do contato entre o bebê e o mundo e os semelhantes.

Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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assinala que a constituição psíquica é que vai marcar e sistematizar as funções orgânicas, anatômicas, musculares e neurofisiológicas do bebê ou da criança pequena, a partir do laço que estabelece com outro humano. Por isso, entra em jogo, na apreensão dos indicadores, o sistema de relação entre mãe e filho, o que nos leva a ter indicadores que dizem respeito ao bebê e outros que se relacionam à mãe ou ao cuidador, compondo, no conjunto, uma leitura da constituição do vínculo mãe-bebê.

Tais operações supracitadas são apresentadas na pesquisa IRDI, que delimitou 31 indicadores clínicos capazes de predizer risco para o desenvolvimento infantil. De acordo com Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. Disponível em <http://www.fundamentalpsychopathology.org.br/wp-content/uploads/2019/10/valor_preditivo_de_indicadores_clinicos_de_risco_para_o_desenvolvimento_infantil.pdf>.
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os indicadores IRDI foram construídos a partir de quatro eixos teóricos: suposição de sujeito (SS), estabelecimento da demanda (ED), alternância presença/ausência (PA) e função paterna (FP), e são apreendidos por meio da observação direta da relação do cuidador com o bebê ou por meio de inquérito. O pressuposto que norteia os indicadores é o de que as bases da saúde mental se estabelecem nos primeiros anos de vida e são dependentes das relações corporais, afetivas e simbólicas que se estabelecem entre o bebê e sua mãe (ou substituto).

Essa afirmação coaduna com a proposição de Freud (1926/2014)Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In Obras completas: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). (Paulo César de Souz, Trad., Vol. 17). Companhia das Letras. de que o bebê, ao nascer, não possui a maturidade psíquica e orgânica necessária para sua sobrevivência, sendo imprescindível uma relação com o outro para a estruturação psíquica do bebê. Sobre tal questão, Laplanche e Pontalis (2001)Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da psicanálise (4ª ed). Martins Fontes. destacam que “o estado de desamparo em correlação com a total dependência do bebê com relação à mãe influencia assim de forma decisiva a estruturação do psiquismo, destinado a constituir-se inteiramente na relação com outrem” (p. 112).

Quanto ao exercício da função materna no puerpério, Winnicott (1987)Winnicott, D. W. (1987). Los bebés y sus madres (2ª ed.). Paidós. afirma:

A mãe, que talvez esteja fisicamente esgotada, e talvez incontinente, e que depende da atenção especializada do médico e da enfermeira em muitos e diversos aspectos, ao mesmo tempo é a única pessoa que pode apresentar adequadamente o mundo ao bebê de um modo que tenha sentido para este. Sabe como fazê-lo, não por tê-lo aprendido nem por sua inteligência, mas simplesmente porque é a mãe. (p. 106)

Se quando tudo corre bem, a passagem de um bebê e sua mãe pelo hospital se restringe a poucos dias; no entanto, ao se tratar de um neonato que exige cuidados intensivos, por um período prolongado, o entorno do bebê será a UTI neonatal. Em tal circunstância, diversos profissionais estão a cargo do recém-nascido, pois seu estado de gravidade e os frágeis momentos de estabilidade do seu quadro orgânico exigem vários olhares atentos às suas diferentes funções vitais. Dá-se aqui a diferença existente entre os cuidados espontâneos que uma mãe dedica ao seu bebê a partir de sua “preocupação materna primária” (Winnicott, 1956/2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Imago. (Trabalho original publicado em 1956)., p. 401) e os cuidados relativos a um neonato em sala de UTI. Não diferente dos médicos, a mãe também está atenta às funções vitais do bebê. Contudo, seus cuidados também se direcionam à articulação entre cada uma das manifestações espontâneas dele e uma significação simbólica, permitindo, assim, uma significação à vida do bebê. A partir da inscrição de tal tecido simbólico, se estabelece para o recém-nascido a possibilidade de vir a reconhecer-se, situar-se, assim como poder vir a situar os outros e os diversos eventos de sua vida. A instituição hospital, sobretudo as prolongadas internações em UTI, caracterizam-se pela produção de efeitos muitas vezes desorganizadores dessa possibilidade.

Exercer a função materna em uma situação de internação do bebê, no entanto, não é tão simples, tanto porque o neonato em risco necessita de cuidados médicos que, por vezes, extrapolam o conhecimento materno, quanto porque a mãe se depara com um bebê cuja produção difere da conduta espontânea esperada em bebês sem patologia e nascidos a termo. Tais condições podem causar rupturas no exercício da função materna, dado que a mãe fica deslocada da posição de “saber fazer ali” com o seu bebê.

Para Jerusalinsky (2000)Jerusalinsky, J. (2000). Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal. Estilos da Clínica, 5(8), 49-63. Disponível em <https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v5i8p49-6>.
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, a intervenção que realizamos na sustentação da função materna visa que a mãe possa começar a armar leituras quanto à produção de seu filho, pondo em ato esse saber nos cuidados dirigidos a ele. Por isso, a intervenção que executamos desde a clínica de estimulação precoce - através de uma leitura psicanalítica acerca da constituição do sujeito - visa sustentar o armado de uma leitura da mãe quanto à produção do seu bebê que lhe permita realizar de um modo peculiar o exercício de sua função. É somente a partir desse exercício que ela poderá reconhecer as características que a patologia apresentada impõe e oferecer, nesse contexto, situações de prazer e contenção ao seu bebê.

Portanto, como coloca Jerusalinsky (2000)Jerusalinsky, J. (2000). Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal. Estilos da Clínica, 5(8), 49-63. Disponível em <https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v5i8p49-6>.
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:

A especificidade de nossa intervenção com bebês não se reduz a escutar os pais e a intervir nas representações do bebê que comparecem desde suas falas. Tampouco se trata de realizar uma espécie de “estimulação anônima” do bebê. Trata-se de uma intervenção na qual sustentamos em cena a realização de uma nova oferta parental reposicionada a partir da releitura da produção do bebê, ou seja, intervimos em relação a como este discurso se põe em ato com o bebê e lemos no bebê os efeitos disso. (p. 57)

Método

Para esta investigação foi utilizado o método de relato de caso, realizando um estudo sobre a operação da suposição de sujeito em uma Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal. Os instrumentos foram aplicados em setembro e em outubro de 2021. Os participantes são uma dupla mãe-bebê, cujo bebê encontra-se internado na Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal. O recrutamento foi realizado por conveniência em uma maternidade pública localizada na Zona Norte da cidade de São Paulo, referência para atendimentos obstétricos e neonatais de alta complexidade. Os critérios de exclusão foram participantes não brasileiras, usuárias de substâncias psicoati- vas, comprometidas mental ou cognitivamente.

A mãe foi convidada a participar da pesquisa de forma voluntária e manifestou concordância mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após obter informações detalhadas sobre os procedimentos da pesquisa.

A coleta de dados foi realizada em três etapas: inicialmente por meio de entrevista semiestruturada, a fim de coletar dados de identificação e realizar a leitura dos aspectos subjetivos em relação à gestação e à internação do bebê, seguida de aplicação do teste Denver II para fazer leitura de aspectos do desenvolvimento e, posteriormente, realizou-se uma observação da interação mãe-bebê através da aplicação da primeira e segunda faixas etárias (0 a quatro meses e quatro a oito meses) do Protocolo IRDI - Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil.

Em relação ao Teste de Triagem Denver II, ele contempla a análise do desenvolvimento global infantil de crianças de zero a seis anos de idade e não possui valor prognóstico, mas direciona através dos resultados os cuidados com o bebê ou a com a criança (Silva et al., 2011Silva, N. D. S. H., Filho, F. L., Gama, M. E. A., Lamy, Z. C., Pinheiro, A. L., & Silva, D. N. (2011). Instrumentos de Avaliação do Desenvolvimento Infantil de Récem--Nascidos Prematuros. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 21(1), 85-98. https://doi.org/10.7322/jhgd.19998.
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). É composto por 125 itens distribuídos em quatro eixos discriminados do desenvolvimento neuropsicomotor: motricidade ampla, motricidade fina-adaptativa, pessoal-social e linguagem (Silva et al., 2011Silva, N. D. S. H., Filho, F. L., Gama, M. E. A., Lamy, Z. C., Pinheiro, A. L., & Silva, D. N. (2011). Instrumentos de Avaliação do Desenvolvimento Infantil de Récem--Nascidos Prematuros. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 21(1), 85-98. https://doi.org/10.7322/jhgd.19998.
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). Pede-se que a criança realize os itens, além de solicitar os relatos dos pais ou responsáveis. Os itens são classificados como: adequado, cautela e atraso, permitindo duas classificações globais, que são normais (quando não há atrasos) e suspeitas (quando há dois ou mais atrasos e/ou cautelas).

Quanto ao método de relato de caso, este tem sido uma estratégia comum de investigação em Psicologia, Sociologia, Ciências Políticas, Negócios, Serviço Social e planejamento a fim de compreender fenômenos sociais complexos (Yin, 1984). Com esse procedimento se supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno estudado a partir da exploração intensa de um único caso ou do aprofundamento do fenômeno estudado. Para autores como Becker (1994)Becker, H. S. (1994). Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais (2ª ed.). Hucitec. e Goldenberg (1997)Goldenberg, M. (1997). A arte de pesquisar. Record., o estudo de caso como modalidade de pesquisa é entendido como uma metodologia ou como a escolha de um objeto de estudo definido pelo interesse em casos individuais. Visa a investigação de um caso específico, bem delimitado, contextualizado em tempo e lugar para que se possa realizar uma busca circunstanciada de informações.

Deve-se assinalar que o processo de investigação das características singulares de um caso não prescinde do rigor metodológico. Isso significa dizer que, mesmo que o estudo de caso não procure realizar generalizações, os parâmetros adotados para se realizar a pesquisa devem estar articulados a referenciais teóricos e a procedimentos que possibilitem explicações causais (ou de tendências clínicas, no caso de investigações de referencial psicanalítico) dessas situações singulares. Para este trabalho, a utilização do relato de caso também se justifica porque, para além do intuito de se estudar a singularidade do caso escolhido, trata-se de uma experiência inicial nesse tipo de atendimento no contexto da internação semi-intensiva, o que corrobora a proposição de Vandenbroucke (1999, apud Kienle & Kiene, 2011Kienle, G. S., & Kiene, H. (2011). Como escrever um relato de caso. Arte Médica Ampliada, 31(2), 34-7. Disponível em <http://www.abmanacional.com.br/arquivo/aae76d6a6616e9828db3f643ee49a0a323efed20-31-2-relato-de-caso.pdf>.
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), segundo a qual o relato de caso e as séries de casos são o meio de eleição para se descobrir algo novo, encontrar novas ideias para possibilitar um progresso intelectual e mostrar novos problemas e soluções.

Portanto, tomando o contexto de internação semi-intensiva, deve-se pontuar o que colocam Jerusalinsky e Melo (2020)Jerusalinsky, J., & Melo, M. S. (2020). Quando algo não vai bem com o bebê: detecção e intervenções estruturantes em estimulação precoce. Ágalma.:

[...] nunca um caso clínico é igual a outro, pois em cada caso será uma janela pulsional peculiar que se abrirá imprevisivelmente diante da pequena chave significante pela qual se franqueia a passagem e se acende a fagulha do desejo do bebê. (p. 31)

Cabe ao clínico, portanto, realizar uma leitura particular, operando no ato criativo resultado da transferência entre o próprio profissional, o bebê e seus pais/cuidadores.

Resultados

Os participantes são uma dupla mãe bebê, cujo bebê estava internado na Unidade de Terapia Semi-Intensiva neonatal, elegível de acordo com os critérios de inclusão do estudo. A participante tem 21 anos e seu bebê nasceu com idade gestacional de 37 semanas, caracterizando um parto a termo.

Primeira etapa - Entrevista semiestruturada

No momento da entrevista, o bebê encontrava-se com cinco meses de idade e de internação. As perguntas disparadoras realizadas na entrevista foram:

Como foi sua gestação?

Qual o motivo da internação do seu bebê?

Você tem notícias sobre o quadro clínico do seu bebê?

Como tem sido a experiência na UTI neonatal?

Como você está se sentindo como mãe do bebê?

Em sua opinião, quais as principais necessidades do seu bebê?

Quais as suas principais preocupações como mãe?

Como você imaginava que seu bebê seria?

O que tem sido mais difícil para você neste momento?

A partir das respostas da participante, serão apresentadas vinhetas que virão a ser articuladas às observações realizadas por meio dos instrumentos.

Foi a primeira gestação da participante, que foi informada de que esperava uma menina. O momento da gestação foi descrito como “tranquilo”, o que se transformou com o nascimento do bebê.

“Quando nasceu veio a surpresa que era menino e a osteogênese, aí a confusão começou.”

Relata que o bebê foi direto para a Unidade Neonatal, não o tendo visto, já que precisou de oxigênio. Sabe que a internação se deu devido à osteogênese e à necessidade de ajuda para respirar. Em relação ao diagnóstico principal, ela o define como “ossos frágeis”, o que, desde o nascimento, se tornou um impedimento para o contato físico entre eles, tendo, em cinco meses de internação, pegado seu bebê no colo apenas três vezes.

“Fiquei uma semana sem relar nele, não conseguia, eu achava que era triscar nele e ele ia se quebrar todo, aí foi bem aos poucos.”

Ainda que o bebê tenha realizado um exame para verificar a condição genética - com resultado normal -, a paciente se diz ansiosa pelo exame específico da osteogênese que está em processo. Ela admite estar em dúvida sobre o diagnóstico, oscilando entre acreditar ou não, já que a única fratura do bebê foi no momento do nascimento. Aposta nesse resultado como transformador do tratamento, possibilitando, se negativo, uma maior manipulação do bebê.

“Eu acho que vai ser um choque de realidade, pra ter aquela certeza, não consigo viver na dúvida. Eu estou muito presa, eu acho que minha saída é esse exame, independente se der negativo ou positivo. Se der negativo vai mudar o tratamento e se der positivo eu não sei, eu acho que também tem algumas coisas que fazem, ter uma fisioterapia própria pra isso.”

O bebê está entubado desde o nascimento, tendo sido oferecida a possibilidade de realizar uma traqueostomia. Com a informação de ser um procedimento perigoso, a mãe ficou em dúvida sobre aceitar ou não, o que lhe provocou medo e sentimento de culpa.

“Fico em dúvida se eu autorizo ou não autorizo porque se acontecer alguma coisa eu vou me culpar pra sempre.”

Refere não se sentir mãe do bebê, atribuindo ao hospital e à equipe o papel principal de cuidado, fato esse que parece afetar o exercício da função materna.

“É como se tivesse um bloqueio. Parece que eu tenho um filho, mas ao mesmo tempo eu não tenho. Parece que eu sou um parente distante que vem visitar. Parece que ele é meu, mas não é meu.”

Em relação às necessidades do bebê, cita inicialmente o cuidado e a atenção quando receber alta hospitalar, visto que acredita que o bebê ainda se considera um recém-nascido. Cita cuidados de ordem orgânica, como fisioterapia e incentivo ao intelectual. No contexto atual de internação, surgem questões sobre impotência, explicitando a dicotomia entre as necessidades médicas e maternas, e refere ambivalências.

Agora to sem o que fazer porque não tem… é conversar, eu oro com ele, eu canto, mas não tem muito o que fazer. Agora ele precisa de carinho, amor.”

“Eu consigo cuidar dele. Eu sinto que ele é a minha força, a minha força está nele. Eu levanto por ele, eu continuo por ele.”

Novamente, expressa a ambivalência: afirma que está sem ter o que fazer, garantindo posteriormente que consegue cuidar do filho.

Ainda que o bebê esteja hospitalizado, é possível observar que a mãe não deixou de antecipar nele um sujeito portador de força e vitalidade, e apostar na comunicação com ele.

“Ele é uma criança bem amorosa, pelo olhar dele, bem expressivo, entende bem. Não consegue se mexer, mas os olhinhos falam tudo. Teve uma vez que ele estava sedado e eu falei que se ele tivesse cansado e quisesse descansar ele podia ir, ele pegou e me deu um sorriso, e ali eu tive certeza de que tudo o que eu falo pra ele, ele entende.”

A internação do bebê provocou a separação precoce entre mãe e filho, além de promover tensão e medo constantes de que o bebê tenha uma piora do quadro clínico.

“Ir para casa é ruim, sensação péssima de estar indo e deixando seu filho sem saber o dia de amanhã.”

Em relação à rede de apoio, a participante conta principalmente com seu marido e irmã. Até recentemente, tinha em sua mãe outro elo importante, mas ela faleceu alguns dias antes da entrevista, tornando esse momento ainda mais sensível e adicionando outro luto à maternagem.

É muito difícil porque minha mãe era a pessoa que ficava mais ansiosa por notícias dele, ela que me acalmava. Estou vivendo um dia de cada vez.”

Segunda etapa - Denver II

A aplicação do Denver II foi realizada quando o bebê estava com seis meses e seis dias de vida, durante a passagem de leite via sonda de gastronomia, o que pode ter influenciado para seu estado sonolento e menos responsivo. Foram avaliados 39 itens, sendo seis do eixo pessoal-social, 11 do eixo motor-fino-adaptativo, 12 do eixo linguagem e dez do eixo motor grosso. Desses, apenas três itens obtiveram uma pontuação positiva, passando apenas em “segue além da linha média” e “segue até a linha média”, do eixo motor-fino-adaptativo, e em “reage ao sino”, do eixo linguagem.

A segunda aplicação foi realizada dois dias depois da primeira, dessa vez com a presença da mãe, que acrescentou algumas informações. Ainda assim, não se observou mudança nas respostas do bebê e, consequentemente, no teste.

Em relação ao eixo pessoal-social, composto, para a faixa etária em questão, de seis itens, cinco deles podem ser considerados atrasos no desenvolvimento, enquanto o item “come sozinho” não pôde ser aplicado, devido ao fato de o bebê se alimentar via sonda gastronômica.

O eixo motor-fino-adaptativo, no qual analisaram-se 11 itens, quatro deles podem ser considerados falhas, cinco deles podem ser considerados atrasos no desenvolvimento, e dois deles foram realizados pelo bebê.

O eixo linguagem, com 12 itens, obteve apenas uma realização, no item “reage ao sino”. Os outros 11 itens foram classificados ou como atraso no desenvolvimento, ou como cautela, ou como falha. Com exceção do item pontuado, todos os outros envolveram emissão de sons, o que é comprometido pela intubação prolongada do bebê.

Já no eixo motor-grosso, de dez itens analisados todos obtiveram o resultado de falha, sendo nove deles considerados um atraso no desenvolvimento. O bebê analisado não apresenta controle cervical, o que pode ser justificado tanto pela questão orgânica quanto pela falta de estímulos.

Terceira etapa - IRDI

Em relação aos resultados da aplicação do protocolo IRDI, foi realizada uma aplicação em situação de hospitalização do bebê em Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal, quando estava no quinto mês de internação, com idade de cinco meses e 22 dias. Um dos limites encontrados pela pesquisa foi o comportamento da mãe, que durante a aplicação se mostrou inibida nas interações com o filho. É importante assinalar que o bebê realiza pouca procura durante as observações, tanto pela mãe quanto pelos outros cuidadores.

Foram utilizadas a primeira e segunda faixas etárias de aplicação do Protocolo IRDI (0 a quatro meses incompletos e quatro a oito meses incompletos) e observaram-se os seguintes indicadores:

Quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer.

A mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês).

A criança reage ao manhês.

A mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação.

Há troca de olhares entre a mãe e a criança.

A criança começa a diferenciar o dia da noite.

A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades.

A criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar sua resposta.

A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases.

A criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa está se dirigindo a ela.

A criança procura ativamente o olhar da mãe.

A mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe esforços.

A criança pede ajuda de outra pessoa sem ficar passiva.

Apresentam-se a seguir os resultados de cada indicador.

O primeiro indicador - Quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer - está presente. A participante referiu que o bebê não chora ou grita, mas resmunga e modifica sua expressão facial, ao que considera saber o que ele quer na maioria das vezes.

O segundo indicador - A mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês) - também foi observado, junto com o terceiro indicador - A criança reage ao manhês. Por meio do inquérito, averiguou-se que essa reação se dá, para a mãe, com o olhar do bebê sendo fixado e com um sorriso.

O quarto indicador - A mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação - não foi verificado, assim como o quinto indicador - Há troca de olhares entre a mãe e a criança. As ausências dos indicadores podem estar relacionadas à inibição materna, conforme descrito anteriormente.

O sexto indicador - A criança começa a diferenciar o dia da noite -, de acordo com inquérito realizado, teve resposta positiva, inclusive pela equipe de enfermagem responsável pelo bebê no dia da aplicação.

O sétimo indicador - A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades - já foi verificado por alguns profissionais e pela própria mãe, mas não foi possível observar durante a aplicação.

Os indicadores de número oito - A criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar sua resposta -, de número 12 - A mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe esforços - e de número 13 - A criança pede ajuda de outra pessoa sem ficar passiva - não foram possíveis de verificar.

Por fim, os indicadores de números nove, dez e 11 - A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases; A criança reage quando a mãe ou outra pessoa está se dirigindo a ela; e A criança procura ativamente o olhar da mãe - não foram observados durante a aplicação, mas obtiveram respostas positivas pela mãe através do inquérito, que considera, principalmente, o olhar do bebê como reação e comunicação.

Discussão

Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, ao discutir os fundamentos teórico-clínicos dos indicadores IRDI, propõe que as manifestações da criança possuem caráter polimorfo. Isto é, as manifestações motoras, por exemplo, possuem caráter neuro-maturativo, fisiológico, cognitivo, adaptativo, emocional e psíquico, permitindo uma leitura plural dos sintomas psicofuncionais do bebê.

A partir disso, a discussão do caso em questão vem no sentido de compreender como as possibilidades de antecipar um sujeito ainda não instalado podem influenciar os aspectos do desenvolvimento e vice-versa. Ou ainda, como isso não ocorre, tanto por conta das limitações inerentes ao bebê que apresenta alguma patologia quanto por conta das dificuldades no desenvolvimento do vínculo mãe-bebê. Para facilitar a discussão, nomeamos a díade como Rosa e Junior.

Rosa, 21 anos, casada, refere ter sido essa a sua primeira gestação, que, apesar de não ter sido planejada, foi muito desejada. Relata ter sido uma gestação tranquila, tendo realizado quatro consultas de pré-natal, que apontavam um bebê do sexo feminino e sem patologias.

Se pensarmos a maternidade como uma crise vital e evolutiva, mesmo num contexto de normalidade, ocorrem ou precisam ocorrer diversos lutos (Santos, 2005 citado por Gomes & Piccinini, 2010Gomes, A. G., & Piccinini, C. A. (2010). Malformação no bebê e maternidade: aspectos teóricos e clínicos. Psicologia Clínica, 22(1), 15-38. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pc/a/Jy6FkYfz6F33SCV4wq8t95t/?format=pdf⟨=pt >.
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). Entre esses, podem-se citar as perdas inerentes à condição de mãe, como, por exemplo, deixar o lugar de autonomia para ter agora um ser dependente de si ou, ainda, deixar a posição de filha para assumir a de mãe. Aquilo a que se renuncia para estar no lugar de mãe, ainda que temporariamente, pode provocar sentimentos ambivalentes. Mesmo quando o bebê não apresenta qualquer problema de saúde, o confronto do filho imaginário com o filho real já pode, por si só, gerar sentimentos de perda, já que, durante a gestação, e por vezes muito antes, construiu-se imaginariamente um bebê (Gomes & Piccinini, 2010Gomes, A. G., & Piccinini, C. A. (2010). Malformação no bebê e maternidade: aspectos teóricos e clínicos. Psicologia Clínica, 22(1), 15-38. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pc/a/Jy6FkYfz6F33SCV4wq8t95t/?format=pdf⟨=pt >.
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).

Na situação de malformação, exacerba-se a distância entre o que se imaginou e desejou para o filho e o que a realidade mostra. Rosa define tal momento como “confusão”. A descoberta, tanto do sexo masculino quanto do diagnóstico de osteogênese explicitou a distância entre o bebê imaginado e o bebê real, e pode afetar o processo de maternagem e o investimento no desenvolvimento e na estruturação de um sujeito.

O discurso de Rosa sobre Junior, especialmente no que diz respeito à dificuldade de tomar o filho como seu, demonstra que, para ela, a maternagem está fragilizada. De acordo com Jerusalinsky (2000)Jerusalinsky, J. (2000). Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal. Estilos da Clínica, 5(8), 49-63. Disponível em <https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v5i8p49-6>.
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, a função materna, que se exerce desde um saber inconsciente, pode ser afetada na situação de internação do recém-nascido com risco de vida. Se, por um lado, um bebê de risco necessita de cuidados médicos que não estão na alçada de cuidados maternos e que ela desconhece (o que já pode impossibilitá-la de exercer seu saber inconsciente em relação ao bebê), soma-se o fato de que, ao levar em consideração um recém-nascido prematuro ou com patologias orgânicas, a mãe se depara com um bebê cuja produção difere da conduta espontânea esperada em bebês sem patologias. Essa diferença de produção pode impossibilitar uma mãe de armar leituras em relação ao bebê. Ainda que Rosa cante e ore com Junior, considera não ter o que fazer e se sente bloqueada em relação a ele. Tal impossibilidade é ilustrada quando Rosa afirma parecer ter um filho, ao mesmo tempo em que parece não ter. Ao que tudo indica, ela ainda não conseguiu constituir um saber sobre o bebê.

A maternidade constitui uma função não garantida por questões biológicas, mas fruto da construção de um laço afetivo entre mãe e filho, que é construído desde a gestação e após o nascimento desse. A hospitalização do bebê provoca uma separação precoce e por vezes prolongada entre a díade, o que impossibilita a mãe de cuidar do filho (Jerusalinsky, 2000Jerusalinsky, J. (2000). Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal. Estilos da Clínica, 5(8), 49-63. Disponível em <https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v5i8p49-6>.
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). As dúvidas acerca da condição e da própria sobrevivência de Junior podem empobrecer o investimento libidinal e o desejo de Rosa, o que, consequentemente, ameaça a operação de suposição de sujeito no bebê.

Ainda assim, Rosa considera conseguir cuidar de Junior, colocando-o, por vezes, no lugar de seu filho, além de conseguir ver o bebê como um alguém portador de vitalidade, capaz de torná-la mais forte, antecipando um sujeito, apesar de seus comprometimentos orgânicos. Seu discurso e suas ações explicitam sua posição ambivalente entre se apropriar do bebê como seu e, ao mesmo tempo, se destituir do lugar materno colocando-o como filho do hospital, dos médicos e das enfermeiras. Essa ambiguidade pode se dar devido à incerteza do próprio diagnóstico, já que o resultado parece contribuir para a composição da rede de significações dirigidas ao bebê. Isso fica visível no discurso de Rosa, que deposita no diagnóstico uma saída. Ainda que ela esteja focando no direcionamento do tratamento orgânico ao apostar no diagnóstico, é possível estender essa aposta também para a construção do lugar simbólico atribuído a Junior, já que esse oferece a possibilidade de um empréstimo de significação. Por outro lado, pode ser um risco de constituir Junior como um “bebê dos ossos frágeis”, entregando aos médicos e à equipe o saber sobre esse bebê, novamente destituindo a mãe do seu papel.

Além da ambivalência que permeia o lugar do bebê de provocar força e destituição na mãe e de um bebê que, ao mesmo tempo, está e não está no lugar de filho, o processo de maternagem de Rosa vem sendo atravessado pelo luto, não só do bebê imaginário e perfeito, mas pela morte de sua mãe. Após a realização da entrevista, que lhe possibilitou um espaço de escuta para que ela chorasse a perda materna, Rosa se fez menos presente no hospital. Essa ausência influencia o comportamento do bebê, que esteve menos ativo, fato que também é observado pela equipe. Mathelin (1999)Mathelin, C. (1999). O sorriso da Gioconda: clínica psicanalítica com os bebês prematuros. Companhia de Freud. traduz essa correlação quando pontua que “a mãe ‘fabrica’ seu bebê ao mesmo tempo que permite ao bebê fabricar sua mãe” (p. 26).

Sobre a aplicação do teste de triagem Denver II, assinala-se que, ainda que o teste não possua valor prognóstico, ele direciona, pelos resultados, os cuidados com o bebê ou a criança (Silva et al., 2011Silva, N. D. S. H., Filho, F. L., Gama, M. E. A., Lamy, Z. C., Pinheiro, A. L., & Silva, D. N. (2011). Instrumentos de Avaliação do Desenvolvimento Infantil de Récem--Nascidos Prematuros. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 21(1), 85-98. https://doi.org/10.7322/jhgd.19998.
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). Como dito anteriormente, Junior obteve pontuação positiva em apenas três dos 39 itens analisados no teste de triagem. As limitações orgânicas do bebê parecem ter influência direta nessa pontuação, mas não se pode descartar a possibilidade de a falta de estimulação também colaborar para o resultado.

Junior é um bebê que quase não se movimenta, mas se comunica com o olhar, tentando se expressar com Rosa. A comunicação lida pela mãe, que é um aspecto do desenvolvimento, não só da estruturação subjetiva (linguagem), não se observa quando a mãe não está perto, o que dá notícias sobre as leituras simbólicas.

Em relação à aplicação do instrumento IRDI, conforme mencionado, foram aplicadas a primeira e segunda faixas etárias do instrumento (0 a quatro meses incompletos e quatro a oito meses incompletos). É válido pontuar, como coloca Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, que as operações fundantes do psiquismo se enlaçam como um tecido, o que leva os eixos a surgir simultaneamente e um determinar, retroativamente, o outro.

Ainda segundo Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, os dois primeiros indicadores apontam somente ao eixo Suposição de Sujeito e devem ser apreendidos a partir da posição do outro materno. São eles: 1. Quando a criança chora ou grita a mãe sabe o que ela quer; 2. A mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês). O primeiro indicador diz respeito ao momento em que a mãe atribui sentido ao choro ou grito da criança. Além disso, fala sobre a necessidade de que um outro sustente na relação com o bebê a temporalidade do desejo, do vir a ser: ele é bebê de e para alguém. A mãe sabe sobre o seu filho (Pesaro, 2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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). Reconhece-se nesse indicador também a concepção de Winnicott (1956/2000)Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Imago. (Trabalho original publicado em 1956). da preocupação materna primária, já que se refere à capacidade da mãe de dedicar-se ao seu bebê e aos seus cuidados, em função do que ela enxerga como necessidade dele.

Quando Rosa afirma que Junior resmunga e modifica sua expressão facial, ao que considera saber o que ele quer na maioria das vezes, ela dá notícias sobre a leitura de suas manifestações, e não apenas as observa ou as descreve, mas realiza interpretações das produções do bebê - corroborando com as impressões de Rosa nas respostas de Junior no teste Denver II.

O segundo indicador é aquele que explicita o que a psicanálise considera, para Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, o que humaniza a criança: o circuito do prazer e do desejo, já que a prosódia da voz materna tem uma dimensão irresistível ou invocante para o bebê, e vai determinar a alienação desse no Outro (Laznik, 2004Laznik, M. C. (2004). Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional: quando a alienação faz falta. In A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito (pp. 49-68). Ágalma.). A presença do manhês de Rosa direcionado a Junior também assinala a presença de uma suposição de sujeito. A reação dele a esse manhês, no indicador 3. A criança reage ao manhês, ao fixar o olhar na mãe e responder com um sorriso, comunica a presença do eixo estabelecimento de demanda. Nesse eixo, para Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. Disponível em <http://www.fundamentalpsychopathology.org.br/wp-content/uploads/2019/10/valor_preditivo_de_indicadores_clinicos_de_risco_para_o_desenvolvimento_infantil.pdf>.
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estão reunidas as primeiras reações involuntárias que o bebê apresenta ao nascer, e que serão reconhecidas pela mãe como um pedido que a criança dirige a ela. Entende-se que a reação do bebê ao manhês implica um duplo movimento: de um lado, o bebê é fisgado pela prosódia da voz materna - que deve sentir prazer no contato com a criança -, mas, de outro, o bebê já se coloca no lugar do objeto que provoca o prazer que o outro transmite sentir na prosódia (Pesaro, 2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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).

Ainda sobre o estabelecimento da demanda, com exceção dos indicadores: 8. A criança solicita à mãe e faz um intervalo para aguardar sua resposta e 12. A mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe esforços, que não foram possíveis de serem verificados, todos obtiveram uma resposta positiva através da fala de Rosa, o que sinaliza a possibilidade de uma leitura de construção de demanda por parte de Junior, e corrobora com a hipótese de instalação de um sujeito.

Ao confirmar que Junior utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades (indicador 7), Rosa coloca em ato as inscrições simbólicas, além de apontar para a emergência do sujeito, já que, de acordo com Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, quando os pais podem reconhecer no filho os seus gostos e preferências, esclarece-se que eles estão em frente a um outro diferente. Ao reagir quando a mãe ou outra pessoa está se dirigindo a ele (indicador 10), Junior dá indícios de que sua sexualidade está sendo construída, já que, nesse movimento, solicita não somente o objeto que pode satisfazer sua necessidade, mas o outro, porque ele também se tornou fonte de prazer (Pesaro, 2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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).

O outro eixo analisado para pensar a relação entre Rosa e Junior foi o alternância presença-ausência, que caracteriza as ações maternas que a tornam alternadamente presente e ausente. Ou seja, o retorno rotineiro e regular da mãe em relação aos cuidados com o bebê proporciona à criança o sentimento de coesão, de continuidade e de uma existência segura (Pesaro, 2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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). Os indicadores 4. A mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação; 8. A criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar sua resposta; e 12. A mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço, não foram observados, o que pode ter se dado por conta da inibição de Rosa durante a aplicação, ainda que não seja possível garantir. Essa inibição presente no comportamento materno pode estar relacionada às dificuldades que Rosa apresenta para se apropriar do lugar de mãe. Ademais, é possível levantar a hipótese de que a ausência de Rosa, já falada anteriormente, tenha impactado na ausência dos indicadores.

O fato de Junior já diferenciar o dia da noite (indicador 6), de acordo com a equipe de enfermagem, sinaliza efeitos da instalação da alternância; a regulação do sono indica que o bebê vem realizando, minimamente, uma apropriação cultural. Para Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, a capacidade de adormecer está ligada à capacidade que o bebê tem de se separar do seu Outro na relação, e para que isso ocorra, a representação da presença na ausência deve ser suficientemente elaborada. No entanto, é isto o que não ocorre no caso em questão. A suposição de sujeito, na relação de Rosa com Junior se mostra eventualmente presente, mas as outras operações não parecem articuladas a ela. Rosa faz uma suposição, mas não sustenta. Isto vai de encontro com a proposição do instrumento IRDI de que as operações devem se articular mutuamente para que um sujeito venha a se instalar no bebê.

O indicador 9. A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases, é um desdobramento do manhês, sustentado no eixo suposição do sujeito. Nesse momento, para Pesaro (2010)Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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, com a incidência da demanda e da alternância, inscreve-se relação com o Outro no campo próprio da linguagem e o trabalho de uma apropriação singular desse campo pelo sujeito, o que é corroborado pela procura ativa do olhar de Junior para Rosa (indicador 11). A presença desse indicador sinaliza que o funcionamento pulsional do bebê está articulado com as demandas dos pais e é indicativo de um lugar simbólico para o bebê (Pesaro, 2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil]. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-09112010-114133.
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).

Alguns indicadores que dependem de ações da mãe estão presentes, no entanto, a condição do bebê parece afetá-la. As limitações físicas de Junior, sua internação prolongada e os lutos de Rosa - tanto pela perda de sua própria mãe quanto pela perda bebê ideal, são fatores que vão influenciar a relação em questão, podendo corroborar para que Junior tenha dificuldade de fabricar a mãe.

Considerações finais

O trabalho em questão pode propiciar algumas respostas sobre a operação suposição de sujeito em contexto de internação em Unidade de Terapia Semi-Intensiva Neonatal. A suposição de sujeito, na relação entre Rosa e Junior ocorre, ainda que não se sustente. A mãe considera conseguir cuidar do bebê, o descreve como alguém portador de vitalidade, que se comunica através do olhar e manifesta suas necessidades, além de falar em manhês e obter uma reação por parte do bebê. No entanto, essa suposição é atravessada por uma fragilidade na maternagem, tanto por uma dificuldade de tomar o filho como seu e pela dificuldade de constituir um saber sobre esse bebê real quanto pelo luto pela sua própria mãe.

Nesse relato de caso, os indicadores IRDI e o teste de triagem Denver II se propuseram a mensurar diferentes fenômenos, realizando uma leitura do desenvolvimento. O primeiro procura avaliar a constituição do vínculo e a estruturação subjetiva, e o outro avalia a evolução de aspectos instrumentais, considerando a relação mãe-bebê. Tendo em vista que o desenvolvimento se sustenta em aspectos estruturais e instrumentais, e na articulação entre eles, a leitura oferecida por cada um dos instrumentos é fundamental para a realização do trabalho clínico e pode orientar intervenções junto à dupla mãe-bebê (ou cuidador-bebê) no contexto de internação semi-intensiva. Deve-se ressaltar que os instrumentos utilizados não são diagnósticos, e isto é importante porque não se propõe, neste trabalho, a procura de uma doença, mas indicações de sofrimento e de peculiaridades do bebê, especialmente na relação com o seu cuidador. É neste sentido que se pode pensar em uma proposta de trabalho e direcionar uma intervenção. As informações sobre o processo de estruturação subjetiva e sobre o desenvolvimento, quando integradas à escuta especializada, propiciam ao psicólogo uma orientação para as suas intervenções junto à dupla mãe-bebê no contexto hospitalar. No entanto, neste caso, não foi possível fazer a leitura associada dos instrumentos, e/ou correlações entre eles, o que talvez fosse possível por meio de uma amostra maior, incluindo tratamento estatístico.

Partindo do observado que a operação de suposição de sujeito está presente mesmo nesse contexto de internação semi-intensiva, seria importante pensar qual o seu alcance quando o agente que a efetua não se apropria do exercício da função materna ou se mostra ambivalente diante da condição do bebê. Apesar de Rosa supor um sujeito em Junior, é possível que exista um comprometimento no processo de estruturação subjetiva, já que a hospitalização impacta na relação mãe-bebê, na função materna e, consequentemente, nesse processo de estruturação. É importante pontuar a indissociabilidade das quatro operações constituintes apresentadas no instrumento IRDI, sendo a articulação entre as quatro operações a sustentação da estruturação do sujeito psíquico e não apenas uma operação, isoladamente. Ainda assim, esse possível comprometimento no processo não é um fato passível de confirmação neste momento, visto que a estrutura não está definida na infância. Para tal, seria indicado um acompanhamento da dupla no decorrer do tempo.

É importante pontuar que uma intervenção em Unidade de Terapia Semi--Intensiva Neonatal, a partir de uma escuta especializada, é possível. A partir de uma leitura psicanalítica da estimulação precoce, é fundamental pensar em intervenções direcionadas a auxiliar a mãe (ou substituto) na sustentação do exercício da função materna, já que, como exposto neste trabalho, a principal preocupação nesse contexto não se dá em relação às competências do bebê e às ativações orgânicas, mas sim em compreender as leituras feitas das produções dele pelo agente da função materna.

Por fim, ressalta-se que o exercício da função materna sustenta todo um trabalho de intervenção precoce. Este relato de caso procura explicitar que o desenvolvimento infantil não diz respeito somente à estimulação do órgão ou da função corporal, mas também do sentido que o saber materno confere a cada ação do bebê e, sobretudo, do lugar simbólico atribuído a ele.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio. / This work received no funding.
  • *1
    Artigo baseado no trabalho de conclusão de Residência apresentado ao Programa de Pós-graduação, Modalidade Residência Multiprofissional em Neonatologia, da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, em janeiro de 2022.

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Editora/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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