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Do riscado à assinatura. Um exemplo de solução sinthomática numa pessoa autista1 1 Como o leitor irá notar, os autores travam um diálogo com Éric Laurent em A batalha do autismo. Ao longo do texto, estabelecem uma distinção entre rayure, griffure e griffe. Na tradução brasileira do livro de Laurent, rayure possui uma única ocorrência, vertida por Claudia Berliner por “riscado”, aqui adotado — em francês se fala, por exemplo, de un disque rayé, “um disco riscado”. Assim, teremos respectivamente: “riscado” (rayure), “arranhão” (griffure) e “grifo” (griffe). Correndo o risco de perder alguns dos jogos e desenvolvimentos etimológicos explorados ao longo do texto, optamos por traduzir griffure por “arranhão” — como se diz de uma pessoa que, não sabendo tocar muito bem, “arranha” umas notas no violão — e griffe por “grifo” — que remete tanto à garra (como a de uma águia) quanto ao instrumento que se usava antigamente para gravar uma marca com valor de assinatura (daí as roupas “de grife”, “de marca”). (N. da T.)

From scratch to signature. An example of symptomatic solution in the cure with an autistic person

De la rayure à la signature. Un exemple de solution sinthomatique chez une personne autiste

Desde la raya hasta la firma. Un ejemplo de solución sintomática en una persona autista

A partir da apresentação do atendimento de um jovem autista no âmbito de um dispositivo que utiliza seu interesse pela música e sons em geral, os autores se esforçam para mostrar como se pode orientar a cura a partir de noções de riscado (testemunho da recusa que a pessoa autista remete ao outro), arranhão (primeira inscrição da descontinuidade operada no real) e assinatura (transformação do arranhão permitindo uma apresentação do sujeito autista no mundo do Outro).

Palavras-chave:
Autismo; música; psicanálise; assinatura


Resumos

From the presentation of the care of a young autistic patient within the framework of a device using his interest in music and sounds in general, the authors endeavor to show how one can orient the cure from notions of scratch (witness of the refusal that person with autism sends back to the other), graze (first inscription of the discontinuity operated in the chaos) and signature (transformation of the scratch allowing a presentation of the autistic subject in the world of Other)

Key words:
Autism; music; psychoanalysis; signature

À partir de la présentation de la prise en charge d’un jeune patient autiste dans le cadre d’un dispositif qui utilise son intérêt pour la musique et les sons en général, les auteurs s’attachent à montrer comment on peut guider la cure à partir des notions de rayure (témoignage du refus que l’autiste remet à l’autre), d’égratignure (première inscription de la discontinuité opérée dans le réel) et de signature (transformation de l’égratignure permettant une présentation du sujet autiste dans le monde de l’Autre).

Mots clés:
Autisme; musique; psychanalyse; signature


A partir de la presentación de la atención a un joven autista en el marco de un dispositivo que utiliza su interés por la música y los sonidos en general, los autores pretenden mostrar cómo se puede orientar la cura desde nociones de la raya (testigo de la negativa que el autista devuelve al otro), rasguño (primera inscripción de la discontinuidad operada en lo real) y firma (transformación del rasguño que permite una presentación del sujeto autista en el mundo del Otro).

Palabras clave:
Autismo; música; psicoanálisis; firma


O trabalho clínico junto a pessoas autistas exige de nós uma clínica o mais perto possível do real. Recorrer ao último ensino de Lacan é, portanto, indispensável para o trabalho comprometido com esses pacientes. Ao final de seu ensino, sustentando-se nos escritos de James Joyce, Lacan irá esclarecer qual é a dimensão e função da letra: fazer litoral. É por meio de sua escrita — o mais perto da letra como fratura do significante — que Joyce irá fazer um nome para si, solução sinthomática que fará suplência à foraclusão psicótica do Nome-do-pai. À falta de um corpo, ele construirá para si um ego. Esse avanço teórico é uma reviravolta conceitual cujas consequências são grandes na prática. A clínica do falasser irá substituir a do sujeito, tomando para si um grande desafio: apreender o movimento que se cria do encontro da linguagem com o corpo, ali onde a letra se precipita. Como esse encontro possui valor de rasgo [déchirure] no autismo, a pessoa autista fica à mercê do murmúrio do real, numa relação insuportável com a língua em que o S do sujeito — que não se deixou dividir — só pode ressoar como um “É-se?” [Est-ce?],2 2 No original, os autores utilizam a forma interrogativa Est-ce? que, de forma literal, pode ser traduzida por “será”. Essa, aliás, foi a solução adotada por Paulo Sérgio de Souza Jr. em Autismo e mediação. Aqui, porém, propomos a ênclise “é-se?”, um pouco arcaica, mas que conjuga o verbo “ser” (na terceira pessoa do singular do presente do indicativo), o pronome “se” (que exprime o caráter a um tempo impessoal, reflexivo e apassivado) e a homofonia da letra S, como Sujeito. (N. da T.) interrogação primordial sobre o próprio ser. É se escorando na letra que o sujeito autista poderá, sozinho ou acompanhado, efetuar o trabalho que a põe em circulação. Isso é o que nos ensina o caso de Thomas, um jovem autista de 9 anos de idade.

Como se via regularmente — mesmo constantemente — à mercê de uma forte agitação, esse jovem rapaz encontrou de imediato na música um efeito tranquilizador que poderíamos considerar terapêutico. No entanto, a experiência clínica que iremos descrever nos mostra que não podemos reduzir apenas a seu efeito tranquilizador o trabalho efetuado a partir das produções sonoras. Um para-além foi convocado, levando Thomas a constituir uma Outra cena. Para além das questões de “terapêutica”, nosso trabalho permitiu, segundo a fórmula de Lacan, “melhorar a posição do sujeito” (Lacan, 2005, p. 67Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).3 3 Na versão brasileira do seminário em questão, encontramos “É certo que nossa justificação, assim como nosso dever, é melhorar a situação do sujeito”. Os autores aqui, porém, se referem a “une amélioration de la position du sujet”. (N. da T.; tradução modificada) De receptor invadido pelo caos do real, Thomas se tornou, pouco a pouco, um emissor, instaurando um primeiro arranhão [griffure] naquilo que, até então, não passava de uma barafunda. Esse arranhão não deve só ser entendido como a introdução de um “furo num mundo real no qual não falta nada” (Laurent, 2014, p. 122Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar.), de uma descontinuidade, mas também — e sobretudo — no sentido de uma “marca” [marque] capaz de, em certas condições, testemunhar de alguma forma a subscrição a um Outro. Esse arranhão [griffure] poderá, com efeito, por contiguidade e colocação em circulação, tornar-se “grifo” [griffe], assinatura a partir da qual o sujeito autista poderá se apresentar no mundo do Outro. Nossa hipótese é que ao fazer um nome para si observado na psicose corresponderia, no autismo, a necessidade de bricolar uma assinatura.

Thomas

Ele foi uma criança tranquila nos primeiros meses de sua vida. Aos 3 anos de idade, porém, diversas tentativas de escolarização se mostraram impossíveis, pois Thomas manifestava problemas importantes de comportamento. Assim, o tratamento em um lugar especializado se revelou necessários a partir dos 4 anos.

Thomas não fala, mas é capaz de se comunicar tomando a mão dos adultos para lhes indicar o objeto que deseja pegar. Na maior parte do tempo, contudo, uma forma de violência se apodera do menino. Sua inclusão em um grupo se mostrou, em diversas ocasiões, impossível, levando à sua exclusão das instituições que então o acolhiam. Na instituição na qual intervimos, o mesmo se passa: Thomas quebra objetos com frequência, bate diariamente na equipe de cuidadores e nos outros pacientes, puxando os cabelos e arranhando [griffant]. Thomas parece bastante angustiado e emite longos gritos agudos. A única coisa que o tranquiliza nesses momentos extremamente difíceis é escutar música. Thomas, então, suspende seus gritos e agitação, e se aproxima da fonte do som a ponto de grudar seu corpo nela. Nesses momentos, Thomas parece experimentar a existência de seu invólucro corporal. Nossa hipótese é a de que as vibrações sonoras emitidas pelos alto-falantes massageiam o corpo, fazendo-o consistir, permitindo a Thomas vivenciar um corpo unificado e pacificado. Estaríamos, aqui, no registro daquilo que Anzieu (1988)Anzieu, D. (1988). O Eu pele. Casa do Psicólogo. chamou de Eu-pele. Essa massagem sonora lhe permite provar dos limites do corpo. Nossa questão, então, era a seguinte: a música poderia ser pensada — para além de seus efeitos tranquilizantes que, por si mesmos, já eram bastante valiosos — numa dimensão estruturante, subjetivante? Para dizê-lo de outra forma, quais são os fatores que nos permitiriam trabalhar a relação de Thomas com o sonoro, fazendo disso um esboço de sua relação com o Outro?

Até então, Thomas nunca tinha se beneficiado de um processo terapêutico: sua agitação e violência malograram sistematicamente todas as tentativas. Diante de seu interesse pela música — e frente às crescentes dificuldades da equipe de cuidadores —, tentamos iniciar um trabalho tomando por apoio o sonoro, elemento com o qual Thomas desenvolveu uma afinidade particular. Assim, nós nos encontramos com Thomas, sozinho, durante dois anos, a uma frequência de três sessões por semana, cada uma com duração de meia-hora, 45 minutos. Numa sala reservada a esse uso, um instrumentário composto de percussões rítmicas (maracas, pandeiro, tambor basco, claves...) e melódicas (metalofone, serrote musical...) permitiu a Thomas encontrar o sonoro, e em seguida a música, usando o analista que o acompanhava como mediador.

Podemos discernir três tempos no cerne do percurso de Thomas. Sua escuta, de início, foi passiva — Thomas não parecia interessado pelas proposições que eventualmente lhe fazíamos e reagia a elas se retirando —; em seguida, tornou-se ativa no sentido de uma colocação em movimento do corpo pela música — Thomas, então, se pôs a balançar ao ritmo de nossas produções —; e, por fim, participativa, não apenas por sua implicação enquanto compositor, mas também pelo advento criacionista de uma expressão linguageira fonética. Esses dois últimos movimentos eram concomitantes e testemunhavam uma abertura possível ao Outro. Debrucemo-nos sobre esse desdobramento.

Durante o primeiro mês, Thomas irá adotar uma atitude sobretudo passiva: encolhido num canto da sala, ele se balança, muitas vezes de acordo com os ritmos e melodias propostos, mas sem manifestar interesse particular pelos sons produzidos. Sempre que tentamos solicitá-lo mais diretamente, ele toma os instrumentos e os lança em nossa direção. É aquilo que chamaremos aqui, junto com Laurent (2014)Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar., de riscado [rayure], indicando aquilo que se precipita da relação do autista com a dimensão da letra, testemunho da recusa que o autista remete ao outro. Voltaremos a isso. Nesse momento do processo, o instrumento é utilizado por Thomas como barreira entre ele e nós, maneira de se proteger de nossa intenção, a seu ver, insuportável. O autista, nós sabemos, tem enormes dificuldades de suportar as demandas que lhe são endereçadas maneira muito direta. Estas fazem surgir “o peso real do sujeito” (Lacan, 1958-59/2016, p. 415Lacan, J. (2016). O seminário. Livro 6. O desejo e sua interpretação. Zahar. (Trabalho original publicado em 1958-59).)4 4 “Comumente, o sujeito produz a voz. Digo mais, a função da voz sempre faz intervir no discurso o peso do sujeito, seu peso real” (Lacan, 1958-59/2016, p. 415). em todo ato de enunciação. Decidimos, assim, produzir sons sem endereçá-los a ele, sem solicitá-lo. É somente a partir desse momento que, pouco a pouco, ele presta atenção ao que fazemos, voltando-se a nós, lançando olhares furtivos em nossa direção e solicitando que repetíssemos os sons de novo. Aqui, Thomas começa a entrar em relação com o instrumento, utilizando-nos como mediador. Ainda que se recuse a pegar o instrumento, ele agora se levanta para mudar de lugar, deambulando e se balançando ao ritmo de nossas improvisações. Dessa forma, mesmo se recusando a misturar aos grupos terapêuticos que lhe são propostos, Thomas vai investir nossos encontros, solicitando-nos com frequência para ir à sala. Se ele aceita com dificuldade o fim de nossas sessões, um alívio surge na instituição: Thomas ataca menos seu entorno. Continuam, porém, os gritos agudos que ele solta pela instituição e ao longo das sessões.

É somente no fim do primeiro ano que ele aceitará participar aos poucos de uma primeira produção musical, inscrevendo-se nos ritmos que lhe propúnhamos via instrumentos de percussão (pandeiro, maracas...). Num primeiro momento, ele se recusará utilizar os instrumentos melódicos (metalofone, serrote musical): a importante ressonância a eles associados é insuportável para Thomas. Ele desenvolve uma utilização bem particular dos instrumentos: ele bate muito forte no instrumento usando nossa mão como baqueta. Ele se apropria dessa parte de nosso corpo para produzir sons, não utilizando o instrumento sem essa mediação. Ele introduz, assim, uma primeira forma de descontinuidade: o ritmo produzido inscreve uma sucessão articulada de sons entre silêncios. Em paralelo, notamos que os gritos desaparecem, primeiro na sessão e, depois, fora dela. Tudo se passa como se a produção rítmica permitisse uma prefiguração do descontínuo ali onde o grito havia, até aquele momento, apresentado apenas um contínuo. Trata-se de um ponto de báscula. Ao usar o utensílio “mão” do analista para bater no instrumento, Thomas produz um ato: ele opera uma primeira descontinuidade no caos sonoro que parecia ser o seu próprio, hipótese que construímos a partir dos gritos incessantes com os quais ele invadia a instituição. Propomos chamar essa operação de arranhão [griffure], outra forma de precipitação da letra.

No final do segundo ano, Thomas poderá utilizar os instrumentos melódicos: num primeiro tempo, fazendo-os soar a partir de nossa mão — o que acaba por abafar toda ressonância — e, em seguida, utilizando uma baqueta, o que permite ao som se desenvolver. Um segundo momento de báscula intervém mais tarde. Enquanto improvisamos uma melodia a partir de duas notas do serrote musical — instrumento que gera um fenômeno de ressonância bastante marcada e de duração bem longa, caso não seja interrompida —, Thomas esboça uma melodia vocal de duas notas em torno dos sons “O” e “A”, que constituem seu nome: primeira colocação em forma significante, tentativa de inscrição no campo do Outro que se apoia no arranhão [griffure] anteriormente operado e que o eleva ao estatuto de assinatura, de grifo [griffe].5 5 A oposição “O/A” aqui encontrada deve ser diferenciada da destacada por Freud na brincadeira de seu neto. Se a vocalização estudada pelo pai da psicanálise indicava o tratamento da perda do objeto em sua relação com a linguagem, no caso de Thomas trata-se de um grifo [griffe]. Isto é, uma inscrição subjetiva manifestando de forma clara, ao outro e ao mundo, uma presença, mas sem que o acesso ao simbólico seja plenamente efetivo. Assistimos aqui à introdução de um embrião de fala que arranca Thomas do mundo pleno e silencioso do gozo. Nossa produção de uma batida sonora foi, para Thomas, um suporte sobre o qual ele tomou apoio para esboçar um ato de fala: uma batida de dois fonemas ali onde antes havia apenas gritos e urros. Enquanto, até então, Thomas se mantinha à distância dos efeitos de ressonância provocados por um engajamento subjetivo da voz (Orrado & Vives, 2021Orrado, I., & Vives, J.-M. (2021). Autismo e mediação – Bricolar uma solução para cada um. Aller.),6 6 Nossa hipótese é a de que a aproximação extrema que ele fazia dos alto-falantes não visava colocar o corpo em ressonância, mas sim experimentar, a partir da vibração, o invólucro do corpo. Sua relação era mais de massagem que de ressonância. dessa vez ele pode se apoiar e apoderar desse ponto limitado de gozo proposto pela música (Vives, 2020Vives, J.-M. (2020). A voz no divã – Uma leitura psicanalítica sobre ópera, musica sacra e eletrônica. Aller.), de modo a produzir um enunciado.

Em seguida, se algumas frases apareceram, elas foram produzidas em ecolalia; Thomas, porém, pôde se servir da língua para enunciar algumas palavras que lhe eram próprias, palavras portadoras de uma mensagem. Também é importante notar que sua relação com o mundo foi profundamente modificada. Sua relação com os outros e consigo mesmo melhorou, seus gritos desapareceram pouco a pouco, seu sofrimento diminuiu consideravelmente. O Outro, encontrando estatuto de cidadania, produz a existência distintiva dos outros. Do lado dos cuidadores, essa experiência também conduziu a mudança das representações que faziam e a uma humanização da relação que podiam travar com Thomas. A despeito da pouca — senão ausente — expressão verbal do menino, a equipe pôde se colocar à escuta de seu ritmo próprio e singular.

Retornemos aos primeiros tempos, antes do início do tratamento de Thomas. Frente às solicitações do clínico, a menino se colocava na defensiva. Os instrumentos presentes na sala eram, então, utilizados como objetos que Thomas interpunha entre ele e o clínico, lançando-os na direção deste. Esses comportamentos ecoavam o que era observado mais amplamente na instituição. Thomas batia, puxava os cabelos, arranhava ou então gritava. Esses gestos, que poderíamos qualificar como violentos, se abatiam sobre os que se aproximavam demais dele. A propósito desse tipo de comportamento, Éric Laurent nos convida a ler nele um signo que é letra, não uma mensagem endereçada ao Outro. O autor acrescenta: “esse signo revela o trauma sobre o corpo” (Laurent, 2014, p. 128Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar.). O encontro da língua com o corpo é operado sob a forma de rasgo. Com seu comportamento, Thomas não busca dizer coisa alguma. Tampouco se trataria apenas da instauração de uma barragem que estabeleceria um interior e um exterior. Seus gestos testemunham sua relação com a língua. “O autista lida com um Outro profundamente presente e ameaçador e, por isso, seu modo de relação com a letra o leva a livrar-se dele pelo riscado [rayure] incessante” (Laurent, 2014, pp. 122-123Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar.). O termo “riscado” nos interessa em especial aqui pois se inscreve em continuidade com o que propomos destacar como específico do autista: riscado – arranhão – grifo (assinatura) [rayure – griffure – griffe (signature)]. O riscado, como forma de precipitação da letra, indicaria a recusa que o autista remete ao outro.

A letra em Lacan

O conceito de letra conheceu grande desenvolvimento no ensino de Lacan. Para precisar suas implicações, temos que distinguir dois momentos essenciais: em 1955, o de “O seminário sobre ‘A carta roubada’” (Lacan, 1955/1998aLacan, J. (1998a). O seminário sobre “A carta roubada”. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).), que virá completar em 1957 “A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud” (Lacan, 1957/1998bLacan, J. (1998b). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) e, quase 15 anos depois em 1971, o de “Lituraterra” (Lacan, 2003Lacan, J. (2003). Liturattera. In Outros Escritos. Zahar.), que dela propõe uma nova compreensão.

No primeiro texto, retomando o conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, Lacan destaca a função lógica da carta/letra: esta parece seguir um percurso ao sabor do acaso, mas não é nada disso. Ela é uma carta/letra endereçada que sempre chega ao destino. A expressão “roubada” precisa ser entendida como “à espera de ser revelada”. É seguindo essa linha de pensamento que, dois anos mais tarde, em “A instância da letra no inconsciente...”, Lacan esclarece que a letra inevitavelmente produz “seus efeitos de verdade” (Lacan, 1957/1998b, p. 513Lacan, J. (1998b). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).). A instância da letra é, assim, relacionada ao inconsciente e reduzida ao significante da verdade recalcada. Ela é o testemunho de “l’une-bévue”,7 7 Calembur lacaniano, de difícil tradução, que permite entreouvir une bévue, “um deslize”, e Unbewusst, “inconsciente” em alemão. Ao longo dos anos 1976-1977, Lacan profere seu Seminário 24 cujo título é, mesmo em francês, de difícil compreensão: L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Lacan afirma introduzir aí algo de “mais longínquo que o inconsciente”. Alain Didier-Weill representa essa ideia em sua obra publicada pela Aubier em 2010: Um mistério mais longínquo que o inconsciente. da “rateada” [ratage] — a letra só é identificável por seus efeitos — e da sobredeterminação — ela sempre chega a seu destino — que são próprias do funcionamento do inconsciente.

Com “Lituraterra”, assistimos a um salto conceitual: a letra se faz escritura do gozo e passa, então, a se distinguir radicalmente do significante. Verdadeiro “litoral” (Lacan, 2003, p. 18Lacan, J. (2003). Liturattera. In Outros Escritos. Zahar.), ela desenha “a borda do furo no saber” (p. 18). Tomando a caligrafia como apoio, Lacan precisa que a letra é “rasura de traço algum que seja anterior” (p. 18). Essa definição é, como é frequente em Lacan, contraintuitiva, senão enigmática. A rasura [rature], em linguagem corrente, remete a um movimento que visa barrar algo já inscrito. É o que, aliás, aparece na etimologia do termo: o antigo verbo francês rater significava “apagar” no século XIV. Rater é um derivado do latim raptus, rapto, remoção. Temos aqui o nível da letra em suas relações com o inconsciente e suas formações que procedem do apagamento.8 8 Em “A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud”, Lacan toma apoio nos desenvolvimentos de Freud sobre o sonho para evidenciar a letra que é, então, “suporte material”. A proposição de Lacan, “rasura de traço algum que seja anterior”, parece ir ao encontro dessa compreensão da letra.

Como podemos entendê-la? A rasura, para Lacan, não seria o apagamento, mas emergência que vem fazer traço da Bejahung originária. This e Thèves (1982, p. 41)Thèves, P., & This, B. (1982). Die Verneinung, La dénégation: Traduction nouvelle et commentaires. Le Coq-Héron, 8., em Traduction et commentaire du texte de Freud “Die Verneinung” (“A denegação”) (1925), propõem a seguinte compreensão das coisas: “Bejahen é responder afirmativamente, é dizer ‘sim’ (ja) a uma afirmação anterior emitida pelo outro. Ele fala e eu digo sim; confirmo, portanto [...]. Etimologicamente, affirmer [afirmar], em francês, quer dizer ‘tornar sólido’ (firmus), enquanto infirmer [infirmar, refutar] é tornar ‘infirmo’”. Afirmar é tornar algo consistente, “firme”, de que a rasura seria testemunho. A letra se situa, portanto, no ponto mais íntimo de encontro do corpo com a língua. Com efeito, em “Lituraterra”, Lacan (2003)Lacan, J. (2003). Liturattera. In Outros Escritos. Zahar. esclarece que é da ruptura do significante que a letra se “precipita” do “que era matéria em suspensão” (p. 22).

Em Letras do sintoma, Porge (20108)Porge, E. (2010). Lettres du symptôme – Versions de l’identification. Érès. observa: “A letra procede de uma ausência primordial de traço, impossível de representar, de onde ela surge como rasura. Algo como o S barrado” (p. 58). Ora, não há sujeito dividido no autismo. O sujeito autista do qual falamos aqui não é o sujeito que emerge das formações do inconsciente — tal como o apresenta o primeiro ensino de Lacan. Ele se deduz do encontro da linguagem e do corpo onde a letra se precipita. A clínica em jogo no autismo é a do falasser — seguramente, é sobre a dimensão do real que precisamos situar como impossível. Real que a construção defensiva da psiquê tenta, em vão, circunscrever e que, enquanto tal, assombra a linguagem, ameaçando franqueá-la sob a forma de injunções superegoicas ensurdecedoras nos neuróticos, de alucinações no psicótico ou de um murmúrio do real quase sem possibilidade de tratamento no autista. Este último tem, portanto, uma relação insuportável com a língua na qual o S do sujeito pode apenas ressoar com um “É-se?” [Est-ce?], interrogação primordial sobre o próprio ser.

Com efeito, o encontra da linguagem com o corpo, tendo assumido um valor de rasgo, deixa o sujeito autista à mercê de um Outro onipotente, senão voraz. Se o autista pode aceitar comunicar, mas não falar, é por medo de convocar a cólera dos deuses, mais exatamente, o gozo do Outro. Esse outro não o interrogaria sobre seu desejo como no caso da neurose — Che vuoi? —, nem acerca do que ele é, como na psicose — “Que forma de objeto sou para o Outro?” ou, mais precisamente, “sob que forma ele irá gozar de mim?”. Muito pelo contrário, cortando-se do Outro, ele é levado a interrogar-se sobre seu próprio ser. “É-se?” [Est-ce?], questão abissal para o autista, remete às entranhas do falasser, ali onde ele é Um por conta própria, cortado do Outro. O material clínico levantado do encontro com Thomas nos permite, tomando apoio na dimensão da letra, colocar em lógica o percurso de um Um por conta própria até um contato possível com o Outro. Com efeito, pudemos observar que o menino se mostrou primeiro defensivo, passivo, e, depois, convocado pela música, testemunho de sua abertura ao Outro ou, para dizer com Rosine e Robert Lefort (1980)Lefort R., & R. (1980). Naissance de l’Autre. Seuil., testemunho de um “nascimento do Outro”.

Do riscado ao arranhão

Conforme já explicitamos, juntamente com Éric Laurent (2014)Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar., propomos considerar os gestos de Thomas (bater, arranhar, puxar os cabelos...) como um signo relevante do registro da letra. A relação do autista com a letra o leva a operar um “riscado incessante” [rayure incessante] para se livrar do Outro que não cessa de invadi-lo. O riscado se manifestaria, então, como iteração de gozo — a imagem de um disco riscado [rayé], travado em uma ranhura [rainure], nos fornece uma imagem eloquente do que se trata. Se continuarmos a seguir a proposição de Éric Laurent (2014)Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar., a letra pode salientar diferentes registros que teríamos que saber agarrar segundo as afinidades da criança: “como escrita, como número, como fixação da fala, como imagem descontínua, como música” (p. 123). É certamente muito interessante que o autor faça aparecer nessa lista a música que foi, de início, o pretexto e, em seguida, o cerne de nossos encontros com Thomas, música que parece ter lhe permitido ultrapassar o ponto de parada iterativo no qual ele se encontrava fixado até então.

A posição do analista — e, portanto, a tomada em consideração das modalidades transferenciais no autismo — foi claramente um elemento-chave no processo. Apercebendo-se de que sua presença era vivenciada por Thomas como um excesso, o analista decidiu se voltar aos instrumentos para tocar e brincar [jouer] com eles, liberando assim a criança de um cara a cara que lhe era insustentável. É então que Thomas começa a se interessar por certos instrumentos, mas também pela relação do analista com o instrumento. Ele escolhe os instrumentos de percussão e, usando a mão do analista como baqueta, bate neles. É uma etapa essencial, momento onde situamos o que chamamos de arranhão [griffure], o que nos exige diferenciar três elementos que caracterizam esse tempo lógico: as características dos instrumentos escolhidos, a função ocupada pelo clínico e o ato de bater.

Os instrumentos que Thomas investiu são pequenas percussões rítmicas (maracas, pandeiro, tambor basco, claves...). Eles apresentam a característica de produzir sons cuja duração é relativamente breve, ainda mais por, depois de bater no instrumento, ele manter a mão do analista apoiada sobre o mesmo, o que impede qualquer fenômeno de vibração, abafando o som logo depois de produzido. Contrariamente a instrumentos como o metalofone ou mesmo o serrote musical — que Thomas não utiliza durante esse período —, os tambores e as claves emitem um som curto e produzem uma vibração que desaparece rapidamente, senão imediatamente, dadas as condições nas quais os utiliza.

Nessa sequência, a função ocupada pelo analista é paradigmática do trabalho que pode ser efetuado pelo autista. Se seguirmos precisamente a clínica, podemos observar que não é o som que serve de mediador entre a criança e o terapeuta, mas é o terapeuta, utilizado como utensílio, que permite mediatizar a relação de Thomas com o som e, portanto, com o Outro, com a língua. Quando o clínico se faz dócil ao sujeito autista, ele se torna objeto de mediação, maneira de convocar a dimensão do duplo num trabalho terapêutico.

Nós chamamos de arranhão [griffure] esse momento em que Thomas, utilizando a mão do analista como se fosse uma baqueta, bate nas percussões e produz intencionalmente sons breves. Por meio desse ato, ele pode agarrar/ arranhar [griffer] um continuum sonoro. É importante observar que, durante esse tempo, Thomas irá evitar cuidadosamente deixar que se desenvolva qualquer vibração e, portanto, guardará distância de todo fenômeno de ressonância que pudesse afetar excessivamente seu corpo. Com efeito, ao manter a mão do analista sobre o instrumento, ele abafa o som. Assistimos, então, a uma sucessão de sons breves e surdos que não são rasura [rature] no sentido que Lacan a definiu, mas sim um arranhão [griffure]. Essa é nossa proposição.

Agora, portanto, devemos chegar a um acordo quanto ao sentido que atribuímos ao termo arranhão [griffure]. Para começar, não se trata de um arranhão que machuca, aquele que o autista inflige a si mesmo ou aos outros nos momentos em que o Outro está presente demais; nesse caso, estaria mais para o riscado. De sua parte, o arranhão de que falamos não seria apenas um “furo num mundo real no qual não falta nada” (Laurent, 2014, p. 122Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica. Zahar.) mas também uma “marca” [marque] que dá testemunho da abertura de um espaço de “negociações com o Outro” (p. 120). A etimologia de “arranhar” [griffer] remete a um empréstimo do alto alemão grif (“ato de pegar” [saisir]), do verbo grifan (“pegar” [saisir]). O arranhão é um riscado [rayure] articulado ao nascimento do Outro. Ele atestaria a tentativa de construir uma relação com o real: uma afirmação primordial que não seria transformada pela confirmação.

Como compreender esse processo? Se, como afirma Lacan (1958/1998c, p. 564)Lacan, J. (1998c). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)., é “ao significante que se refere a Bejahung primordial”, podemos apresentá-la como a incorporação (Freud, em seu texto sobre a Verneinung, apresenta esse processo sob a forma da oralidade) do primeiro corpo de significantes que permitem o nascimento do Outro. Essa incorporação assume, no autismo, a roupagem da recusa. Correlativamente, a face negativa que acompanha essa Bejahung — a Ausstossung, como constituição do fora real jamais reencontrável — é inexistente. Dessa forma, se, como afirma Rabinovitch (2001, p. 31)Rabinovitch, S. (2001). A foraclusão: presos do lado de fora. Zahar., a Ausstossung, “separando o Outro, tesouro dos significantes, e a Coisa, gozo para sempre perdido, faz do Outro um lugar esvaziado de gozo e exilado do real”, poderíamos entender que a Coisa, no caso do autismo, de modo algum está exilada. Essa não repartição do Outro e a Coisa terá as consequências clínicas que já conhecemos. A afirmação (Bejahung) que Thomas opera ao bater com a mão do analista nas percussões lhe abre possibilidades que permitirão ao processo analítico se desenvolver. O arranhão seria, assim, uma solução encontrada pelo autista para abrir uma via de inscrição no campo do Outro: um agarramento que abre à emergência de um sinal que poderá se tornar grifo [griffe], assinatura. Não se trata, com isso, de um acesso ao simbólico e à metáfora, mas de um apoio na dimensão da letra para bricolar uma assinatura.

Nesse sentido, pela etimologia do termo arranhão [griffure], uma ocorrência que resulta da ideia de pegar (1798) nos interessa em especial: o grifo/ garra [griffe] designa “um instrumento que serve para fazer uma impressão que imita assinatura”. Por extensão e metonímia, na linguagem corrente, o grifo se tornará assinatura, como se pode falar da/o grife/grifo de um grande costureiro. Nós observamos clinicamente essa assinatura no momento que Thomas vocaliza o “O” e o “A”. Essa batida significante se situaria no prolongamento (e não na confirmação) do movimento de Bejahung então operado. A oposição fonemática “O”/“A” contém a potencialidade de uma língua estruturalmente estabelecida a partir de oposições. A letra, como o que se escreve por “pareamentos diferenciais” (Lacan, 1957/1998b, p. 504Lacan, J. (1998b). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).) de linguagem, faz borda, autorizando uma relação com o Outro que inclua o sujeito autista. A produção fonemática seria, aqui, o que propomos chamar de assinatura

sonora: uma aliança entre o arranhão primordial e a colocação em jogo — mínima — de um objeto pulsional (nesse caso, a voz). É importante observar que é a partir desse momento que Thomas aceita deixar se desenvolver a vibração dos instrumentos e utilizar o serrote musical, bem como o metalofone, nos quais os fenômenos de ressonância são extremamente marcados. A assinatura sonora que marca, para Thomas, a passagem da utilização das vibrações (escuta ou produção de sons abafados que produzem um efeito de massagem no corpo) à colocação em ressonância do corpo em um diálogo com o Outro.

Um movimento clínico se desenha, então, do riscado à assinatura, passando pelo arranhão. Observamos esse movimento muito claramente em Antoine Ouellette, compositor canadense diagnosticado como autista aos 47 anos de idade.

Antoine Ouellette, as “melodias em ecos”

Para Ouellette (Orrado e Vives, 2021, pp. 144-151Orrado, I., & Vives, J.-M. (2021). Autismo e mediação – Bricolar uma solução para cada um. Aller.), frente à violência da língua, uma resposta se precipitou: criar música. Quando criança, suas dificuldades se condensaram em um sintoma de palilalia, igualmente observável na escuta iterativa que fazia de certas faixas musicais, o que poderíamos aproximar da dimensão da letra como riscado, tal como desenvolvemos. Tomando apoio nos dois pontos de interesse que manifestou desde sua infância — a música e o canto dos pássaros —, Antoine Ouellette efetuará um verdadeiro tratamento de sua relação com o real, um arranhão que ele elevará à dignidade de assinatura para encontrar uma possível relação com o mundo.

Ouellette (2011)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. explica o motivo de suas escutas musicais iterativas: “Se eu escutava música de maneira tão atenta, era para entender com ela era construída a fim de poder, também de minha parte, compô-la” (p. 119). Ele irá, então, escrever composições absolutamente únicas, que não respeitam um enquadramento rítmico estrito. Sua música é uma transcrição do que ele tem na cabeça: “o canto dos pássaros deslizou para minha música, ora de maneira estilizada [...], ora de maneira realista” (Ouelette, 2008, p 11Ouellette, A. (2008). Le chant des oyseaulx. Comment la musique des oiseaux devient musique humaine. Triptyque.). Essa escrita musical vai transformar sua palilalia em solução. O primeiro tempo de criação — contemplação — consiste em “tocar incansavelmente essa ideia [a que se repete em sua cabeça], pressionando o pedal de sustentação do piano” (Ouellette, 2011, p. 296Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque.). Em seguida, ele deixa a ideia declinar em todo tipo de variação: “repito de novo, longamente, as variações que me agradam. Tomo nota por escrito da ideia e das variantes” (p. 297). Dessa forma, desvios são introduzidos no carrossel desvairado que até então o aspirava.

A obra escrita lhe permite passar do caos à harmonia. Com efeito, Ouellette (2011)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. considera o autismo não um transtorno de desenvolvimento, mas como um desenvolvimento de tipo caótico: “Não me refiro aqui à simples desordem, e menos ainda à desorganização, mas sim ao caos da teoria do caos e das matemáticas fractais” (p. 185). Se a evolução de um sistema caótico é imprevisível, ele não obstante chega a um equilíbrio a partir de mecanismos de repetição e reiteração presentes nas matemáticas fractais por meio de um atrator chamado atrator de Lorenz ou, ainda, atrator estranho. Ouellette (2011, p. 299)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. propõe, então, a seguinte analogia: o atrator estranho se assemelha incrivelmente aos interesses particulares dos autistas, eles também atratores com muita frequência estranhos. Por conseguinte, a afinidade do autista poderia ser considerada como relativa à dimensão da letra, primeiro arranhão que ele opera no caos do mundo do Outro. Será necessário, então, todo um trajeto para que esse arranhão primordial possa advir em assinatura.

Em sua obra, Ouellette (2011)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. busca transformar comportamentos e palavra em eco por meio da música em todo tipo de forma: “Adoro fazer ressoar mil vibrações com poucos sons. Ademais, eu me dei conta de que a nota mi, quando repetida, era com frequência carregada de angústia, como um sino nervoso” (p. 299). Uma miríade de variações em torno de um elemento que se repete. Temos aí a magnífica demonstração de um tratamento do gozo. Enquanto a palilalia reitera infinitamente o elemento marcado por um gozo em excesso, Antoine Ouellette faz entrar esse elemento Um nos efeitos de ressonância, construindo assim uma arapuca para o gozo. Como observa Maleval (2017)Maleval, J.-C. (2017). O autista e sua voz. Blucher., “a música estetiza o gozo obsceno da voz” (p. 286). Além disso, no entanto, poderíamos acrescentar, nesse caso específico, que a música permite que a letra se precipite em assinatura. Dessa forma, na obra de Antoine Ouellette (2011)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. do caos ao equilíbrio, uma harmonia se libera:

Eu constato a presença marcada de uma harmonia precisa em minhas obras. Esse acordo que sobrepõe o maior [...] e o menor [...]. Essa harmonia pode ser perfeitamente equilibrada, serena, flutuante, como que sem gravidade: as forças dissociativas (maior e menor) são harmonizadas. Ademais, porém, ela se carrega de tensão e cria dissonâncias apoiadas: as forças dissociativas se fazem sentir, o equilíbrio interior é ameaçado ou rompido [...]. Minha música me indica que essa harmonização nunca está de todo ganha. (p. 299)

Essa harmonia não pode ser entendida no sentido corrente do termo. Ouellette (2011, p. 298)Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger. Triptyque. a qualifica de “melodias em eco”, as quais constituem sua “assinatura sonora”. Contrariamente a Joyce (Lacan, 2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-76).), Ouellette não quer fazer um nome para si — a execução pública de suas obras o interessa menos pelas reações do público do que pelo que ele mesmo escuta —, mas, antes, busca uma assinatura sonora que só pode ser bricolada a partir do registro particular da letra.

Conclusão: do arranhão ao grifo

O conjunto do trabalho aqui apresentado demonstra que, para o autista, o desafio é poder bricolar uma assinatura que lhe permita abrir um espaço de negociação e, em seguida, de diálogo como o Outro. Tal escrita permite uma apresentação do sujeito autista no mundo do Outro, uma solução sinthomática que se precipita desde a dimensão da letra.

Se para Antoine Ouellette, como para Thomas, a instância da letra se precipitava, de início, como riscado [rayure], o trabalho com instrumentos de música — para um, feito só; para o outro, como o apoio do analista — permitiu um ato de arranhão [griffure] no caos circundante, uma marca aposta sobre o excesso invasivo de presença. Esse arranhão, em seguida, entrou num circuito, advindo então como assinatura, com a aparição da oposição fonemática “O”/“A”, no caso de Thomas, e da harmonia das “melodias em ecos”, no de Antoine Ouellette. Assinar [signer] para não se deixar intimar [assigner] pelo “peso real do sujeito” lhes permitiu a passagem da iteração de um gozo à sua colocação em circulação. Tomando apoio no litoral singular definido pelo registro da letra, que assume aqui a forma de grifo, não de rasura, um espaço de negociações com o Outro e depois de diálogo foi, dessa forma, criado.

  • 1
    Como o leitor irá notar, os autores travam um diálogo com Éric Laurent em A batalha do autismo. Ao longo do texto, estabelecem uma distinção entre rayure, griffure e griffe. Na tradução brasileira do livro de Laurent, rayure possui uma única ocorrência, vertida por Claudia Berliner por “riscado”, aqui adotado — em francês se fala, por exemplo, de un disque rayé, “um disco riscado”. Assim, teremos respectivamente: “riscado” (rayure), “arranhão” (griffure) e “grifo” (griffe). Correndo o risco de perder alguns dos jogos e desenvolvimentos etimológicos explorados ao longo do texto, optamos por traduzir griffure por “arranhão” — como se diz de uma pessoa que, não sabendo tocar muito bem, “arranha” umas notas no violão — e griffe por “grifo” — que remete tanto à garra (como a de uma águia) quanto ao instrumento que se usava antigamente para gravar uma marca com valor de assinatura (daí as roupas “de grife”, “de marca”). (N. da T.)
  • 2
    No original, os autores utilizam a forma interrogativa Est-ce? que, de forma literal, pode ser traduzida por “será”. Essa, aliás, foi a solução adotada por Paulo Sérgio de Souza Jr. em Autismo e mediação. Aqui, porém, propomos a ênclise “é-se?”, um pouco arcaica, mas que conjuga o verbo “ser” (na terceira pessoa do singular do presente do indicativo), o pronome “se” (que exprime o caráter a um tempo impessoal, reflexivo e apassivado) e a homofonia da letra S, como Sujeito. (N. da T.)
  • 3
    Na versão brasileira do seminário em questão, encontramos “É certo que nossa justificação, assim como nosso dever, é melhorar a situação do sujeito”. Os autores aqui, porém, se referem a “une amélioration de la position du sujet”. (N. da T.; tradução modificada)
  • 4
    “Comumente, o sujeito produz a voz. Digo mais, a função da voz sempre faz intervir no discurso o peso do sujeito, seu peso real” (Lacan, 1958-59/2016, p. 415Lacan, J. (2016). O seminário. Livro 6. O desejo e sua interpretação. Zahar. (Trabalho original publicado em 1958-59).).
  • 5
    A oposição “O/A” aqui encontrada deve ser diferenciada da destacada por Freud na brincadeira de seu neto. Se a vocalização estudada pelo pai da psicanálise indicava o tratamento da perda do objeto em sua relação com a linguagem, no caso de Thomas trata-se de um grifo [griffe]. Isto é, uma inscrição subjetiva manifestando de forma clara, ao outro e ao mundo, uma presença, mas sem que o acesso ao simbólico seja plenamente efetivo.
  • 6
    Nossa hipótese é a de que a aproximação extrema que ele fazia dos alto-falantes não visava colocar o corpo em ressonância, mas sim experimentar, a partir da vibração, o invólucro do corpo. Sua relação era mais de massagem que de ressonância.
  • 7
    Calembur lacaniano, de difícil tradução, que permite entreouvir une bévue, “um deslize”, e Unbewusst, “inconsciente” em alemão. Ao longo dos anos 1976-1977, Lacan profere seu Seminário 24 cujo título é, mesmo em francês, de difícil compreensão: L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Lacan afirma introduzir aí algo de “mais longínquo que o inconsciente”. Alain Didier-Weill representa essa ideia em sua obra publicada pela Aubier em 2010: Um mistério mais longínquo que o inconsciente.
  • 8
    Em “A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud”, Lacan toma apoio nos desenvolvimentos de Freud sobre o sonho para evidenciar a letra que é, então, “suporte material”.

Referências

  • Anzieu, D. (1988). O Eu pele Casa do Psicólogo.
  • Didier-Weill, A. (2010). Un mystère plus lointain que l’inconscient Aubier.
  • Laurent, E. (2014). A batalha do autismo – Da clinica à politica Zahar.
  • Lacan, J. (1998a). O seminário sobre “A carta roubada”. In Escritos Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).
  • Lacan, J. (1998b). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).
  • Lacan, J. (1998c). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).
  • Lacan, J. (2003). Liturattera. In Outros Escritos Zahar.
  • Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).
  • Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-76).
  • Lacan, J. (2016). O seminário. Livro 6. O desejo e sua interpretação Zahar. (Trabalho original publicado em 1958-59).
  • Lefort R., & R. (1980). Naissance de l’Autre Seuil.
  • Maleval, J.-C. (2017). O autista e sua voz. Blucher.
  • Orrado, I., & Vives, J.-M. (2021). Autismo e mediação – Bricolar uma solução para cada um Aller.
  • Ouellette, A. (2008). Le chant des oyseaulx. Comment la musique des oiseaux devient musique humaine Triptyque.
  • Ouellette, A. (2011). Musique autiste. Vivre et composer avec le synfrome d’Asperger Triptyque.
  • Porge, E. (2010). Lettres du symptôme – Versions de l’identification Érès.
  • Rabinovitch, S. (2001). A foraclusão: presos do lado de fora Zahar.
  • Thèves, P., & This, B. (1982). Die Verneinung, La dénégation: Traduction nouvelle et commentaires. Le Coq-Héron, 8.
  • Vives, J.-M. (2020). A voz no divã – Uma leitura psicanalítica sobre ópera, musica sacra e eletrônica Aller.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2022
  • Aceito
    17 Maio 2023
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