Acessibilidade / Reportar erro

A agressividade infantil no DSM: os diagnósticos e os seus efeitos subjetivos1 1 Esta pesquisa faz parte da tese em andamento intitulada “Os impasses da agressividade na infância: dos discursos sobre a criança ao desejo parental”, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes. Ela foi realizada e defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e ao Centre de Recherches en Psychanalyse, Médecine Société da Université de Paris Cité.

Child aggressiveness in the DSM: the diagnoses and their subjective effect

L’agressivité infantile dans le DSM: les diagnostics et leurs effets subjectifs

Agresividad infantil en el DSM: diagnósticos y sus efectos subjetivos

Resumos

Neste artigo analisamos a forma pela qual a “agressividade infantil” foi incluída nos sistemas de classificação do DSM ao longo de suas sucessivas edições. Primeiramente, identificamos as transformações significativas no uso desse signo clínico. Em seguida discutimos as consequências clínicas e políticas dessas transformações, tanto na formulação de uma psicopatologia própria à infância quanto na definição social dos quadros de normalidade e de desvio em relação à conduta. Observamos, por fim, que a pretensa regulação da infância pela produção de discursos normativos a respeito da agressividade foi acompanhada pelo incremento das vias agressivas como forma privilegiada de expressão do mal-estar e de subjetivação do sofrimento. Nossa hipótese é que tal produção é reforçada pelas exigências neoliberais de performance, ignorando assim as demandas sociais e subjetivas de reconhecimento.

Palavras-chave
Agressividade; criança; DSM; sofrimento


In this article, we analyze how “child aggressiveness” was included in the classification systems of the DSM throughout its successive editions. First, we identified the significant transformations in the use of this clinical sign. Then, we discuss the clinical and political consequences of its transformations, both in the formulation of a psychopathology specific to childhood and regarding the social definition of normality and conduct deviations. Finally, we observed that the alleged regulation of childhood by the production of normative discourses about aggressiveness was followed by the increase of aggressive expressions of discontent and subjectivation of suffering. Our hypothesis is that such production is reinforced by neoliberal demands of performance, thus ignoring social and subjective demands for recognition.

Keywords
Aggressiveness; child; DSM; suffering


Dans cet article, nous analysons la manière dont “l’agressivité infantile” a été intégrée dans les systèmes de classification du DSM tout au long de ses éditions successives. Tout d’abord, les transformations significatives dans l’usage de ce signe clinique. Ensuite, nous discutons les conséquences cliniques et politiques de ces transformations, à la fois dans la formulation d’une psychopathologie propre à l’enfance et dans la définition sociale des cadres de normalité et déviation de la conduite. Nous observons enfin que la prétendue régulation de l’enfance par la production de discours normatifs sur l’agressivité s’est accompagnée de l’accroissement des voies d’agressivité comme formes d’expression du malaise et de subjectivation de la souffrance. Notre hypothèse est qu’une telle production est renforcée par des exigences de performance néolibérales, ignorant ainsi les exigences sociales et subjectives de reconnaissance.

Mots-clés
Agressivité; enfant; DSM; souffrance


En este artículo analizamos la forma en que la “agresividad infantil” fue incluida en los sistemas de clasificación del DSM a lo largo de sus sucesivas ediciones. Primeramente, identificamos los cambios significativos en el uso de ese signo clínico. Luego discutimos las consecuencias clínicas y políticas de estos cambios, tanto en la formulación de una psicopatología propia a la infancia como en la definición social de los cuadros de normalidad y de desviación de la conducta. Observamos, por fin, que la pretendida regulación de la infancia por la producción de discursos normativos respecto a la agresividad estuvo acompañada del aumento de formas agresivas como forma privilegiada de expresión del malestar y de subjetivación del sufrimiento. Nuestra hipótesis es que dicha producción se ve reforzada por las demandas neoliberales de performance, ignoran así las demandas sociales y subjetivas de reconocimiento.

Palabras clave
Agresividad; niño; DSM; sufrimiento


Introdução

A “agressividade infantil” é um significante presente nos discursos sociais da atualidade, sobretudo no universo “psi”. Nas últimas décadas, desde pelo menos o ano 2000, constatamos, após uma busca por palavras (“agressividade” e “infância”) na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia (BVS-Psi Brasil), um aumento expressivo do interesse de pesquisadores deste campo no estudo daquilo que se denominou “comportamento agressivo infantil” (Callegaro & Ruschel, 2011Callegaro, J. B., & Ruschel, D. B. (2011). Uso de instrumentos psicológicos de avaliação do comportamento agressivo infantil: análise da produção científica brasileira. Avaliação Psicológica, 10(2), 193-203. Recuperado de: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=335027286010.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=3...
; Lins et al., 2012Lins, T., Alvarenga, P., Paixão, C., Almeida, E., & Costa, H. (2012. Problemas externalizantes e agressividade infantil: uma revisão de estudos brasileiros. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 57-75. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000300005>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
). Além disso, esses estudos apontam que no contexto clínico há um predomínio de queixas relativas aos ditos comportamentos agressivos na infância (Lins et al., 2012Lins, T., Alvarenga, P., Paixão, C., Almeida, E., & Costa, H. (2012. Problemas externalizantes e agressividade infantil: uma revisão de estudos brasileiros. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 57-75. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000300005>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Pine & Cohen, 2012Pine, D. S., & Cohen, E. (2012). Therapeutics of Aggression in Children. Pediatr-Drugs, 1(3), 183-196. https://doi.org/10.2165/00128072-199901030-00003. (Trabalho original publicado em 1999).
https://doi.org/10.2165/00128072-1999010...
; Teixeira, Couto & Delgado, 2017Teixeira, M. R., Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. C. (2017). Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Ciência & Saúde Coletiva, 22(6), 1933-1942. https://doi.org/10.1590/1413-81232017226.06892016.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017226...
), seja na psicologia, na psiquiatria ou em centros de saúde interdisciplinares.

Todavia, a redução da noção de agressividade da criança ao registro do comportamento indica que a clínica contemporânea é atravessada por um processo que Joel Birman (2014)Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYc...
nomeou de “psiquiatrização do mal-estar”, a qual se fundou, segundo o psicanalista, “nos discursos da neurobiologia e da psicofarmacologia, por um lado, e na expansão da psicologia cognitiva, pelo outro” (p. 32). Além disso, Birman aponta que a ênfase colocada no registro do comportamento foi “o que promoveu a conjunção destes diferentes discursos teóricos” em uma leitura “da subjetividade, na qual esta foi esvaziada do registro do sujeito” (p. 33). A especificidade pela qual os registros da linguagem e do código, bem como suas relações com a história, que caracterizavam a condição de singularidade do sujeito foi substituída em função de um “imperativo biológico”. Assim, vemos como a noção de agressividade passou a ser analisada como um mero comportamento, um signo de um transtorno.

Nesse cenário, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), como instrumento oficial de diagnósticos psiquiátricos dos Estados Unidos, tem ocupado um lugar hegemônico na classificação diagnóstica no Brasil e no mundo, influenciando a Classificação Mundial de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Esta última passou a apresentar, desde 1980, suas categorias de doença mental de modo muito semelhante ao manual americano.

Assim sendo, neste artigo, propomos analisar a forma pela qual a clínica da “agressividade infantil” foi ao longo dos anos concebida na formação e no desenvolvimento do DSM, enquanto instrumento diagnóstico em psiquiatria, apontando as continuidades e descontinuidades dessa noção em suas sucessivas edições. Com essa análise, pretendemos compreender quando e como o discurso a respeito do “comportamento agressivo da criança” se tornou relevante para a psiquiatria, qual o seu lugar político nos procedimentos de normalização das condutas e, ainda, de que forma as vicissitudes desse discurso incidem nas subjetividades contemporâneas.

A agressividade da criança nos dois primeiros DSMs: da reação de adaptação ao transtorno do comportamento

O DSM foi publicado pela primeira vez em 1952, pela Associação de Psiquiatria Americana, em um contexto de pós-guerra. A participação expressiva dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial provocara, nesse país, condições psicopatológicas totalmente novas, e, por conseguinte, constituiu-se uma falta de padronização nos documentos psiquiátricos. Dessa maneira, esse Manual visava padronizar os diagnósticos, abarcando tanto as características clínicas inéditas como as que já haviam sido descritas anteriormente (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC.).

Como foi discutido por muitos autores e como é possível observar, essa primeira edição apresentava uma marca significativa da psicanálise e da psiquiatria dinâmica em sua classificação diagnóstica (Dunker, 2014Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Minard, 2013Minard, M. (2013). Les deux premiers DSM. In Le DSM-ROI. La psychiatrie américaine et la fabrique des diagnostics (pp.141-166). Érès.; Caponi, 2019Caponi, S. (2019). Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença. LiberArs.; Roudinesco, 2000Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Zahar.). Estavam presentes, por exemplo, noções como as de neurose e de psicose, tributárias da teoria freudiana, e a noção de reação, tributária da teoria de Adolf Meyer.

Adolf Meyer (1866-1950),2 2 Adolf Meyer foi um médico suíço, aluno de Forel, como Bleuer, que emigrou para os Estados Unidos e atuou como professor de psiquiatria no Hospital Johns Hopkins entre os anos de 1910 e 1941. que havia sido presidente da Associação de Psiquiatria Americana (APA) em 1927, ainda exercia forte influência na psiquiatria dos Estados Unidos. Ouvinte das conferências de Freud em 1909 na Clark University e um dos fundadores da Associação de Psicanálise Americana (Bercherie, 1983/2001Bercherie, P. (2001). A clínica psiquiátrica da criança. In O. Cirino, Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura (pp. 129-144). Autêntica. (Trabalho original publicado em 1983).), Meyer apresentava uma abordagem que integrava elementos da psicanálise, sem rejeitar, no entanto, as teorias biologistas (Caponi, 2012Caponi, S. (2012). Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Editora Fiocruz.; Minard, 2013Minard, M. (2013). Les deux premiers DSM. In Le DSM-ROI. La psychiatrie américaine et la fabrique des diagnostics (pp.141-166). Érès.). Além disso, ele objetava a linha psiquiátrica de Kraepelin (1856-1926) (Dunker, 2014Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
) e, ao contrário do principal representante da psiquiatria moderna, considerava de maneira significativa a história de vida dos pacientes no quadro diagnóstico. Os transtornos psíquicos seriam, em sua concepção, reações a certas interações do indivíduo com a sociedade, à desorganização de hábitos, a situações de estresse, entre outros (Minard, 2013Minard, M. (2013). Les deux premiers DSM. In Le DSM-ROI. La psychiatrie américaine et la fabrique des diagnostics (pp.141-166). Érès.).

Dessa forma, sob influência das ideias de Meyer, de 1952 até pelo menos 1968, a classificação diagnóstica no DSM tinha a psicanálise como uma referência discursiva importante, considerando aquilo que o paciente tinha a dizer sobre sua história e seus aspectos relacionais, em vez de, como pretendia Kraepelin, privilegiar os fatores hereditários de origem orgânica na formação da doença.

Por outro lado, a incidência da psicanálise no projeto de classificação do DSM deve ser entendida no interior do quadro mais geral de recepção de um dispositivo que, apropriando-se de seu discurso, submete-o à função específica do diagnóstico. Não por acaso são as noções de personalidade, de estrutura e a perspectiva do psicodinamismo que tiveram maior incidência nessa assimilação (Dunker, 2014Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
), pois seria a partir delas que se tornaria possível vincular dinâmicas descritivas de processos metapsicológicos a uma psicopatologia dos transtornos mentais.

No que diz respeito à nossa pesquisa sobre a inscrição do problema da agressividade da criança no DSM, constatamos que, nessa primeira edição, a categoria de infância aparecia de forma discreta e bem diferente da atual. De fato, as únicas menções de diagnósticos próprios à infância (childhood) e à primeira infância (infancy) estavam ligadas à “reação esquizofrênica de tipo infantil” (childhood) ou à “reação de adaptação da infância”, definida como uma reação transitória em consequência da interação com o ambiente, ou de um “conflito emocional interno” (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC.). Além disso, a infância aparecia como um componente da história de vida do adulto com transtorno, ou seja, aparecia retrospectivamente nas funções de etiologia ou de determinação histórica da doença.

Quanto às “reações de adaptação da infância”, embora o Manual postulasse que as suas manifestações sintomáticas eram mistas, eram três as manifestações predominantes: as chamadas “perturbações de hábito”, tendo como exemplo os acessos de raiva (tantrums); as “perturbações de conduta”, tendo a destrutividade como possibilidade; ou os “traços neuróticos”, sendo a agitação uma probabilidade.

Os significantes “agressividade” (aggressiveness) e “agressivo” (aggressive) apesar de não aparecerem de maneira direta nessa zona destinada às reações transitórias da infância, apareciam treze vezes no DSM-I e estavam relacionados à ideia de pertencimento a dois “Transtornos de personalidade” (“Personalidade passivo-agressiva” e “Personalidade esquizoide”), que poderiam se manifestar desde a infância; e às características dos “Transtornos psiconeuróticos”. Com relação a este último transtorno, o Manual descrevia que a ansiedade seria a sua principal característica, sendo “produzida por uma ameaça de dentro da personalidade, por exemplo, por emoções reprimidas sobrecarregadas, incluindo impulsos agressivos como hostilidade e ressen-timento” (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC., pp. 31-32; tradução nossa).

Notamos, portanto, que mesmo que já se configurasse determinado modo de organização do discurso psiquiátrico ligado à ideia de transtorno, a ideia de reação tinha prioridade. Ou seja, aquilo que se caracterizava como destrutividade, agitação ou acesso de raiva nas reações pertencentes à infância eram “reações sintomáticas transitórias das crianças a alguma situação imediata ou conflito emocional interno” (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC., p. 41).

Assim, aquilo que mais tarde seria relacionado ao comportamento agressivo da criança era entendido aqui como manifestação sintomática, classificada como uma perturbação, dentro do quadro da reação. O sintoma poderia ser transitório e era ligado à vida subjetiva da criança, seja frente a uma situação atual, seja frente a um conflito interno.

Além disso, a noção de transtornos psiconeuróticos considerava que impulsos agressivos poderiam ser reprimidos, produzindo uma ansiedade que caracterizaria a psiconeurose. Observamos como a ideia de conflito psíquico estava presente, e a agressividade era mais um impulso produtor de sofrimento do que signo clínico de um transtorno específico. E, mesmo no caso da personalidade passivo-agressiva, era a ideia de “reação persistente à frustração acompanhada de irritabilidade e acessos de raiva” (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC., p. 37) que era considerada como critério. Poderíamos dizer, desse modo, que uma dimensão subjetiva era sustentada nos diagnósticos.

Dezesseis anos depois da primeira edição, em 1968, a segunda edição do DSM foi publicada. Com o avanço da globalização, a importância de uma instituição mundial reguladora da saúde ficara em evidência, culminando assim na criação da OMS em 1948 (Minard, 2013Minard, M. (2013). Les deux premiers DSM. In Le DSM-ROI. La psychiatrie américaine et la fabrique des diagnostics (pp.141-166). Érès.). Foi, entretanto, somente a partir do DSM-II que os Estados Unidos começaram a contribuir, de fato, com a então CID-8, publicada por essa organização. Nessa edição, portanto, havia uma referência significativa aos diagnósticos do modelo internacional e uma tentativa de aproximar o campo da psiquiatria à medicina internacional (ibid.).

Observa-se, também, os primeiros traços de uma especificidade diagnóstica da infância, bem como da possibilidade de um “comportamento agressivo infantil”. Apesar de a terminologia psicanalítica ainda estar presente e de ainda se considerar a noção de reação, a segunda edição do Manual formulava, pela primeira vez, a categoria de “Transtornos de comportamento na infância e na adolescência” (APA, 1968American Psychiatric Association (1968). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-II. (2. ed). Washington, DC., pp. 49-51). O diagnóstico desses transtornos, com efeito, situava-os numa zona intermediária quanto à “estabilidade”, uma vez que seriam mais estáveis que as “Perturbações situacionais transitórias” - onde ainda se inscrevia a “reação de adaptação da infância” -, e menos estáveis que a Psicose, a Neurose ou o “Transtorno de personalidade”.

Na descrição dessa zona diagnóstica, a “agressividade” aparecia como um de seus sete signos clínicos, todos eles relacionados de maneira específica com a fase de vida da infância ou da adolescência. Além de signo, ela ganhava um nome próprio: “reação não socializada agressiva da infância (ou adolescência)”,3 3 A criança (ou o adolescente) que apresenta esse transtorno intermediário é “caracterizada por desobediência hostil ou dissimulada, brigas, agressividade física e verbal, vingança e destrutividade” (DSM-II, 1968, p. 50). introduzindo a agressividade física ou verbal no domínio social da desobediência e da confrontação das normas. Assim, a reação agressiva constituía-se como um tipo de transtorno de comportamento e não mais como uma reação transitória, tal como descrita no DSM-I. Essa mudança aparentemente sutil indica uma nova orientação do Manual em direção ao domínio do comportamento, deixando doravante a subjetividade em segundo plano.

Desse modo, no DSM-II, as características das “reações de adaptação da infância” do DSM-I, tais como a destrutividade e os acessos de raiva passaram a caracterizar a “reação não socializada agressiva da infância (ou adolescência)”; a agitação, um aspecto da “reação hipercinética da infância”. Assim, a destrutividade, os acessos de raiva e a agitação das crianças definiam agora transtornos de comportamento e não mais “perturbações situacionais transitórias”.

No entanto, apesar de o DSM-II apresentar ainda referências discursivas da psicanálise, é interessante notar a inclusão da especificidade diagnóstica dos transtornos da infância e da adolescência e seu vínculo com a ideia de comportamento. No campo da infância e da adolescência, preconizava-se, assim, a redução da subjetividade ao registro do comportamento, marcando o início de um modo de diagnosticar que, como veremos, passará a ser hegemônico a partir de 1980.

A virada diagnóstica do DSM: o comportamento agressivo

Em 1980, observamos a elaboração, na terceira edição do DSM, de uma seção específica diagnóstica dedicada à infância. O DSM-III apresentaria, agora, 64 páginas de diagnósticos descritivos destinados a essa seção, então denominada “Transtornos que têm as primeiras evidências na primeira infância, infância ou adolescência” (APA, 1980American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III. (3. ed). Washington, DC., pp. 35-99). Força-tarefa do Manual, um comitê de 13 integrantes era responsável especificamente por essa seção que, com outras 12 seções e seus respectivos comitês, construiu 265 categorias diagnósticas, ao longo de suas 494 páginas. Assim, o Manual quadruplicou de tamanho.

Muitos autores enfatizam o estabelecimento, no DSM-III, de uma verdadeira virada da prática diagnóstica em psiquiatria e psicopatologia, na medida em que, com o intuito de construir um sistema classificatório operacional e pretensamente “ateórico”, através de diagnósticos descritivos e nominativos, o projeto do Manual romperia tanto com a psiquiatria clássica, isto é, da escola francesa ou alemã, quanto com a psicodinâmica, orientada por uma espécie de cruzamento entre a psicopatologia e a psicanálise (Caponi, 2016Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, M. Verdi. Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). LiberArs.; Dunker, 2014Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Guarido, 2007Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29833110>.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=2...
; Roudinesco, 2000Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Zahar.).

Com efeito, foi a partir do DSM-III que um grupo de psiquiatras “neokraepelianos” se tornou predominante no discurso psiquiátrico americano, provocando um forte impacto na maneira pela qual eram pensados, diagnosticados e tratados os sofrimentos psíquicos (Caponi, 2012Caponi, S. (2012). Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Editora Fiocruz.). Esse novo modelo rompia com a linha biopsicossocial proposta pelos seguidores de Meyer e reatualizava um modelo diagnóstico do século XIX que buscava a etiologia das doenças em fatores exclusivamente biológicos. Se antes a doença era a resultante de uma lesão cerebral ou de uma herança biológica familiar, de agora em diante os estudos genéticos e de desequilíbrio dos neurotransmissores constituíam o horizonte de explicação etiológica das doenças mentais4 4 O DSM-III introduziu uma modificação importante na compreensão da noção de “doença” e mais particularmente de “doença mental” na psiquiatria. O abandono da “nova psiquiatria” meyeriana do início do século permitiu a redução da experiência de sofrimento vivido pelo sujeito a uma categoria médica. Conforme a expressão de Octavio Domont de Serpa Jr. (2006), a compreensão da doença mental (mental illness) como “mental disease” ou ainda como “mental disorder” seria enfim responsável por constituir uma “psicopatologia sem pathos”. (ibid.).

Entretanto, a correlação entre “doença mental” e “fatores biológicos” permanecia sempre inconclusiva, seja na psiquiatria de Kraepelin ou na dos neokraepelianos (ibid.). O que restava, assim, era o conjunto dos signos indicativos da doença, já que nesse modelo qualquer aspecto da singularidade do sujeito, de sua história, de seu contexto social era rejeitado.

Com efeito, dirigido pelo psiquiatra Robert Spitzer, o DSM-III buscou aproximar, ainda mais que no DSM-II, o sistema de classificação americano da nomenclatura empregada pela Organização Mundial de Saúde no projeto da CID. O objetivo era o de responder às necessidades de padronização internacional dos termos utilizados em psiquiatria, bem como à demanda crescente feita pela indústria farmacêutica por critérios diagnósticos mais precisos e definidos.

No DSM-III, nos então denominados “Transtornos que têm as primeiras evidências na primeira infância, infância ou adolescência”, o significante “agressivo” aparecia 36 vezes,5 5 Uma busca por palavra na totalidade do Manual sugere 16 vezes ocorrências de “agressivo” e suas variantes (“aggressive” e “aggressiveness”) no DSM-II, contra 108 vezes (“aggressive”, “agressiveness”, “agressivity” e “aggression”) no DSM-III. o que já indica, à primeira vista, um aumento significativo de seu uso em relação à edição precedente. Contudo, além desse índice quantitativo, é importante nos perguntarmos: de que maneira esse significante foi ali inscrito?

Quanto aos diagnósticos que apresentavam a marca da agressividade, observamos que a “reação não socializada agressiva da infância (ou adolescência)”, tal como descrita no DSM-II, assim como os quadros de “reação de fuga” e de “reação delinquente”, transformaram-se no DSM-III em “Transtorno de conduta” (APA, 1980American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III. (3. ed). Washington, DC., pp. 45-50). Esse transtorno, com efeito, foi dividido em subtipos específicos, os quais “são baseados na presença ou ausência de vínculos sociais adequados e na presença ou ausência de um padrão de comportamento antissocial agressivo” (APA, 1980American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III. (3. ed). Washington, DC., p. 45; grifo nosso). Seria, portanto, a partir da adequação da conduta a uma dada situação ou da presença ou ausência daquilo que se identifica como agressividade na socialização da criança que se definiria a manifestação do “Transtorno de conduta”.

Em paralelo, a agressividade da criança apareceu igualmente de maneira relevante no quadro diagnóstico denominado “Transtorno de oposição”, que se caracterizava como uma forma mais branda do “Transtorno de conduta”. Nesse caso, a criança apresentaria “um padrão de desobediência, negativismo, provocação e oposição às figuras de autoridade” sem, no entanto, violar regras e normas sociais, como uma criança com “Transtorno de conduta” violaria.

Ademais, o comportamento agressivo aparecia nessa seção como uma possibilidade para crianças e adolescentes com o então denominado “Transtorno esquizoide”, e como sendo um comportamento comum àqueles diagnosticados com “Retardamento mental”.

Notamos que além da estratégia de multiplicação dos transtornos e da importância que o comportamento agressivo assume em uma variedade de diagnósticos da infância, no DSM-III o dito “comportamento agressivo” passará a funcionar de maneira capilarizada, isto é, segundo um modo de operação que vai, aos poucos, ganhando espaço, revelando-se presente nos interstícios entre um diagnóstico e outro.

Por exemplo, é comum um paciente com “Transtorno de conduta” apresentar também “dificuldade de atenção”, fazendo com que o “Transtorno de déficit de atenção” seja comumente acrescentado ao diagnóstico. Outro exemplo pode ser verificado em relação ao “curso” do transtorno, o grau mais grave tenderia a configurar o diagnóstico de “Transtorno de personalidade antissocial”, sobretudo se for do tipo “não social” e “agressivo”; a agressividade, nesse caso, adquiria a função de agravamento do transtorno, na medida em que, integrada à noção de personalidade, apresentava um grau de deterioramento das formas de socialização. O mesmo ocorreria no caso do “Transtorno de oposição”, diagnóstico que se apresentava como geralmente crônico e associado, na vida adulta, com um “Transtorno de personalidade passivo-agressiva”, este último caracterizado desde o DSM-I (APA, 1952American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I. (1. ed). Washington, DC., pp. 36-37), ou seja, a agressividade da criança passou a se formular nos termos do risco futuro de um “Transtorno de personalidade”.

Ainda nesse sentido, a dimensão capilar do significante “agressividade” fica bastante evidente no “Apêndice A” do DSM-III, onde para auxiliar os clínicos na hipótese diagnóstica eram propostas algumas “árvores de decisão”. No caso do “diagnóstico diferencial do comportamento antissocial, agressivo, desafiante ou opositivo” (APA, 1980American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III. (3. ed). Washington, DC., p. 345), por exemplo, se o paciente apresentasse pelo menos um dos comportamentos listados, utilizava-se a árvore para definir o diagnóstico adequado por meio de perguntas orientadoras; nesse sentido, mesmo se todas as respostas fossem negativas, ainda assim se chegava ao diagnóstico de “Transtorno da criança, do adolescente ou do adulto de comportamento antissocial agressivo”. Assim, a dita “agressividade”, manifesta por princípio em todo diagnóstico de comportamento antissocial, era utilizada para fins diagnósticos de qualquer uma das nove possibilidades da árvore.

Observa-se esse mesmo procedimento quando, no início dessa seção, na descrição dos “Transtornos que têm primeiras evidências na primeira infância, infância ou adolescência”, propõe-se que:

As crianças geralmente têm problemas no desenvolvimento que não são incluídos nas categorias específicas de diagnóstico do DSM-III, como atividade sexual precoce e comportamento agressivo. Nesses casos, pode ser utilizado um diagnóstico de Transtorno mental não especificado. (APA, 1980American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III. (3. ed). Washington, DC., p. 36, grifo nosso)

Ora, mesmo que a criança não apresente sinais e sintomas incluídos nos critérios diagnósticos dos “Transtornos que têm primeiras evidências na primeira infância, infância ou adolescência”, se manifesta “comportamento agressivo”, ela pode ser concebida como portadora de “Transtorno mental não especificado”.

Nessa mesma direção, o DSM-III indicava por códigos certas condições que não eram consideradas transtornos mentais, mas que mereciam “atenção ou tratamento” pelo clínico. O “comportamento agressivo”, com efeito, constituía-se como uma dessas condições.

Observa-se assim como, no projeto diagnóstico da terceira edição do DSM, foi realizado por diferentes vias um mapeamento considerável das formas de manifestação do “comportamento agressivo da criança”. O signo da “agressividade” passou a determinar várias hipóteses diagnósticas, inclusive aquelas não previstas no Manual, e que se tornavam objeto de investigação. Como supõe Elizabeth Roudinesco (2000)Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Zahar., desde essa edição, o DSM caminhou “no sentido de um abandono radical da síntese efetuada pela psiquiatria dinâmica. Calcado no esquema signo-diagnóstico-tratamento, ele acabou eliminando de suas classificações a própria subjetividade” (p. 16).

É interessante notar, nesse sentido, que foi precisamente no momento em que a psicanálise saiu de cena desse sistema diagnóstico e que a psicopatologia infantil ganhou corpo, centrada num modelo que exclui a subjetividade, que o significante “comportamento agressivo” foi veementemente incluído. Dessa maneira, a redução da agressividade ao domínio do comportamento eliminou qualquer escuta possível da subjetividade. A pretensa objetividade do DSM-III, com o projeto de sistematização cada vez mais capilar e específico da doença mental, não resultou na inclusão respectiva da subjetividade como elemento indispensável da hipótese diagnóstica. A expressão do sofrimento psíquico na clínica como resposta subjetiva a um modo de configuração do estado de coisas não seria mais compatível com a identificação dos signos da doença, o estabelecimento do diagnóstico e a delimitação das formas de tratamento.

Do DSM-IV ao DSM-5: criança agressiva e risco

Mas afinal, que continuidades diagnósticas a virada provocada pelo DSM-III, com o mapeamento do comportamento agressivo da criança, provocou nas edições subsequentes? O comportamento agressivo da criança continuou sendo um signo para os mesmos diagnósticos? Que outras estratégias de mapeamento a quarta e a quinta edição apresentaram?

Em 1994, com a publicação do DSM-IV, a estratégia objetiva e ateórica se manteve. O número de vezes que aparece o termo “agressivo” e suas variantes “agressão” (aggression), “agressivamente” (aggressively) ou “agressividade” (aggressiveness) permaneceu praticamente constante em relação ao DSM-III, aumentando de 108 para 110 vezes. Entretanto, observamos que, na seção específica dedicada à infância, esse índice diminuiu de 36 para 18 vezes. Isso aconteceu pois, conforme nos aponta Sandra Caponi (2016)Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, M. Verdi. Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). LiberArs., nos 14 anos que separam a terceira da quarta edição do DSM, a especificidade do grupo destinado ao diagnóstico de transtornos mentais na infância começou a se apagar.

Assim, a quarta edição do Manual manteve uma seção destinada à infância, no entanto, ela modificou um detalhe importante em relação à sua designação. Essa seção passou a ser designada por “Transtornos geralmente diagnosticados na primeira infância, infância ou adolescência” (APA, 1994American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-IV. (4. ed). Washington, DC., p. 35; grifo nosso). Tais transtornos, com efeito, não eram mais tratados no DSM-IV como pertencendo exclusivamente às crianças ou adolescentes, isto é, fazendo parte dessas faixas etárias, mas eram mais comumente diagnosticados na infância ou na adolescência. Esses mesmos transtornos podiam ser diagnosticados depois, na idade adulta, ou ainda outros diagnósticos, fora dessa seção específica, podiam ser usados para uma criança. Essa mudança não representaria, portanto, uma diminuição da psiquiatrização da infância; antes, ao contrário, essa se consolidaria ainda mais, uma vez que agora as crianças podiam apresentar quadros diagnósticos semelhantes aos dos adultos, aumentando o raio de suas possibilidades diagnósticas.

No que diz respeito à agressividade, os diagnósticos em que o “comportamento agressivo” teriam uma função predominante passariam a ser situados na zona de “Déficit de atenção e Transtornos de comportamento disruptivos”, assumindo assim, a forma de “Transtorno do déficit de atenção e/ou hiperatividade” (TDAH), “Transtorno de conduta” (TC) ou “Transtorno de oposição e desafio” (TOD),6 6 Essas siglas TDAH, TOD, TC, entre outras, são, atualmente encontradas nos variados discursos sociais, incluindo o discurso médico-psiquiátrico. este último caraterizado pela adição do significante “desafiador” (defiant) em sua nomenclatura. Nesse quadro, o TC, principal diagnóstico do DSM-III com a marca da agressividade da criança, deixou de considerar os subtipos anteriormente descritos como agressivos e/ou antissociais. Esses subtipos passaram a ter relação com o início dos sintomas, a saber: “tipo com início na infância” e “tipo com início na adolescência”. Vale notar que o “tipo com início na infância” geralmente apresentava comportamento agressivo, tendo igualmente maior probabilidade de desenvolver uma personalidade antissocial, o que significa que, em relação a esse transtorno, sua identificação no período da infância representava um maior risco, um pior prognóstico.

Na descrição do TC, o DSM-IV relata que o indivíduo:

pode ter pouca empatia e pouca preocupação com os sentimentos, desejos e bem-estar dos outros. Especialmente em situações ambíguas, os indivíduos agressivos com esse transtorno frequentemente interpretam mal as intenções dos outros como mais hostis e ameaçadoras do que é o caso e respondem com agressividade que eles consideram razoável e justificada. (APA, 1994American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-IV. (4. ed). Washington, DC., p. 87; tradução livre)

Assim, o “indivíduo agressivo com transtorno de conduta” tinha como marca uma impossibilidade de leitura frente às intenções dos outros e frente à sua própria conduta, que é caracterizada como tendo sido desmesurada, mas considerada razoável por esse indivíduo. Entretanto, isso não era visto como reação ou defesa de um sujeito diante de determinada situação como outrora, mas como uma característica do indivíduo ou de sua personalidade. O termo “agressivo” aí se apresentava como algo que o indivíduo é. Ao que tudo indica, começava se desenhar cada vez mais no Manual a ideia de uma “criança agressiva” que seria, também, um adulto agressivo. O indivíduo começava a ser visto não mais como tendo um sintoma, ou um transtorno, mas sendo esse transtorno.

Outrossim, iniciou-se no DSM-IV uma pesquisa intergeracional em relação ao diagnóstico, tratando-se de determinar “fatores etiológicos e padrão familiar” relativos ao transtorno. Isto é, baseando-se em estudos que sugeriam uma articulação entre a prevalência de transtornos mentais em crianças e a presença de signos indicativos de psicopatologia nos pais e outros antecedentes, identificava-se a necessidade de o clínico atentar para fatores familiares de comorbidade. Ora, é como se no interior de uma mesma categoria diagnóstica atribuída a um indivíduo em particular, seja ele adulto ou criança, fosse possível identificar traços de sua transmissibilidade a partir de condições intergeracionais determinantes.

Assim, a possibilidade do diagnóstico de transtorno mental seria variada e poderia indicar influência tanto genética quanto ambiental. No caso da criança, ela adquiria por diversas vias um potencial de risco. Uma criança diagnosticada com transtorno poderia ter seu transtorno agravado até a condição de transtorno de personalidade, e poderia ainda, no caso de ter filhos, quando adulto, reproduzir um indivíduo igualmente “transtornado”. A criança agressiva tornava-se cada vez mais uma criança perigosa (Caponi, 2019Caponi, S. (2019). Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença. LiberArs.), não apenas por aquilo que ela podia causar ao outro no aqui-e-agora, mas pelas linhas de força infinitas de continuidade e de transmissão desse risco.

Vale dizer que essa busca genealógica da incidência de dado transtorno mental não tinha por consequência identificar fatores eventualmente traumáticos na história de vida dos sujeitos. Ao contrário, não era tanto a história individual e sua relação com o meio aquilo que importava na etiologia da doença, mas fatores biológicos e estatísticos, determinando assim a formação de uma patologia que desconhece a subjetividade. Pois se a dimensão do sujeito pode ser entendida pela possibilidade de elaboração de sua própria história a partir de um processo de simbolização e de reconhecimento do desejo (Lacan, 1953/1966bLacan, J. (1966b). Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. In Écrits (pp. 237-322). Seuil. (Trabalho original publicado em 1953)., p. 302), tratava-se, portanto, no projeto do DSM, de promover um esvaziamento do sujeito em relação ao diagnóstico, operando por procedimentos que recusam sua participação nos processos de adoecimento.

Ademais, no DSM-IV, o “comportamento agressivo” nos “Transtornos geralmente diagnosticados na infância” aparecia também como sendo uma das características do “Retardamento mental”, do “Transtorno de autismo” e do “Transtorno alimentar da infância e primeira infância”. E ao longo do Manual, além da alta incidência em transtornos provocados por uso de substâncias, outro diagnóstico chama a atenção quanto à forte presença desse significante, o “Transtorno explosivo intermitente” (TEI). Esse transtorno caracterizava-se pela presença de episódios de agressividade desproporcional devido a uma falta de controle pelo indivíduo de seus impulsos agressivos, sem, no entanto, ser proposital.

Foi, no entanto, em 2013 apenas, no DSM-5,7 7 No DSM-5 observa-se, igualmente, a inclusão da categoria diagnóstica “Transtorno disruptivo da desregulação de humor” que vai ter como principal característica as explosões de raiva da criança (manifestada pela agressão). A palavra “anger”, que é comumente traduzida como “raiva” nas versões brasileiras, e não aparecia nenhuma vez no DSM-I e II, apareceu 29 vezes no DSM-III, 59 vezes no DSM-IV, e, por fim, 106 vezes no DSM-5. que o TEI, ainda pouco caracterizado no DSM-IV, articulou-se com o TOD e o TC nos agora chamados “Transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta”. A partir de então, o TDAH, que pertencia ao mesmo grupo do TOD e do TC desde o DSM-III, passou a se localizar na seção dos transtornos de neurodesenvolvimento, junto a outros transtornos antes localizados na seção daqueles diagnosticados na infância ou na adolescência.

Além disso, a especificidade de uma zona diagnóstica infantil, já em dissolução na quarta edição do Manual, adquiriu no DSM-5 seu formato definitivo, quando se instituiu para o diagnóstico uma linha de continuidade patológica entre a infância, a adolescência e a vida adulta numa perspectiva de desenvolvimento (APA, 2013American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. (5. ed). Washington, DC.). Assim, não existiria mais, no DSM-5, uma seção específica para os transtornos da infância ou adolescência, o que consolidaria, de certa forma, a “dissolução das fronteiras entre adultos e crianças” já iniciada no DSM-IV. Esse fato, contudo, estaria longe de ser uma boa notícia àqueles que almejavam o fim dos rótulos psiquiátricos na infância. Em contrapartida, o DSM-5 “inaugura, a partir dos postulados defendidos pela psiquiatria do desenvolvimento, um processo pelo qual todo e qualquer transtorno mental deverá ser diagnosticado nos primeiros anos de vida” (Caponi, 2019Caponi, S. (2019). Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença. LiberArs., p. 180). Dessa forma, a criança passou a ter ainda mais visibilidade na psiquiatria, visto que pôde ser, muito mais do que antes, etiquetada, classificada, tornando-se, portanto, alvo de medidas de controle e profilaxia. Como nos lembra Angela Vorcaro (2011)Vorcaro, A. (2011) O efeito bumerangue da classificação psicopatológica da infância. In A. Jerusalinsky, & S. Fendrik (Orgs.), O livro negro da psicopatologia contemporânea (pp. 219-229). Via Lettera., desde pelo menos a modernidade, a criança tornou-se depositária de idealizações, já que a partir daí “a importância do que a criança é define-se pelos signos que permitem supor o que a criança será” (p. 220).

Na ocasião de seu curso de 1974-1975, intitulado Os anormais, Foucault (2001Foucault, M. (2001). Les anormaux. Cours au Collège de France (1974-1975). EHESS, Gallimard, Seuil., p. 138) apontou que o projeto normativo moderno consistiu, sobretudo, na criação de corpos dóceis. E, mesmo que aquilo que ele denominou de poder disciplinar já atuasse na psiquiatria desde o século XVIII, seria na segunda metade do século XIX que nasceria a figura do anormal como indivíduo psiquiatrizável. Nesse contexto, podemos considerar que a “criança agressiva” tal como apresentada no DSM corresponderia a uma criança indócil, uma criança não normalizada e que resiste, portanto, à normalização.

Além disso, supomos que a escolha do “comportamento agressivo” como signo de risco faz parte de uma estratégia da psiquiatria, descrita por Foucault (2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. Cours au Collège de France (1977-1978). (Eduardo Brandão, Trad.). Martins Fontes., pp. 156-160), como estratégia de governamentalidade securitária. Nessa última, a psiquiatria atuaria “em defesa da sociedade”, e isso tomando o domínio da infância como objeto privilegiado de identificação dos riscos e de possibilidade da generalização da psiquiatria.

Desse modo, a estratégia de segurança adotada pelo DSM, principalmente a partir de 1980, visaria impedir a expansão de corpos indóceis. No DSM, observamos uma psiquiatria para os normais, onde qualquer forma de desvio que escapa a esse projeto normativo dos corpos dóceis passa a ser categorizada pela via do diagnóstico. O que Foucault nos leva a notar é que o diagnóstico do indivíduo dito anormal não teria como base a doença, o patológico, com um signo de morbidade, mas aquilo que normalmente não deveria ocorrer, aquilo que representaria um estado de desequilíbrio. Enfim, vasculhando a infância, a psiquiatria teria se tornado uma “espécie de instância de controle geral das condutas, de juiz titular (...) dos comportamentos em geral” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). Les anormaux. Cours au Collège de France (1974-1975). EHESS, Gallimard, Seuil., p. 216).

Na análise desse dispositivo classificatório, vemos como a criança foi insistentemente incluída nos processos de psiquiatrização. À criança foi traçado um destino que depende do olhar atento do clínico, sobretudo em relação à identificação de sinais de risco que ela possa vir a apresentar. Quanto à criança considerada agressiva, o DSM tratou de mapeá-la, chegando ao ápice quando considerou o comportamento agressivo uma característica central para um grupo de transtornos. Das 146 vezes que aparece a palavra agressivo (aggressive) e suas variantes no DSM-5, 71 vezes ela pertence ao grupo denominado “Transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta”. Seria, portanto, no domínio do comportamento que o problema da criança agressiva se consolidaria no DSM, possibilitando ao clínico regulá-lo na sua especificidade, desde a infância até a vida adulta.

Ora, se considerarmos a proposição de Christian Dunker (2014)Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, em sua análise do DSM, de que “há uma espécie de política envolvida nos processos que tornam uma dada forma de sofrer mais visível e mais bem reconhecida em uma dada época do que em outras” (p. 80), podemos nos perguntar: O que a visibilidade da criança e, sobretudo e mais precisamente, do comportamento agressivo da criança a partir do DSM-III pode nos indicar a respeito de uma política de classificação diagnóstica, veiculada e sustentada por meio desse Manual? Ou, para dizer de outro modo, que lugar político pode ter a dita “agressividade infantil” identificada pelo DSM, uma vez que a partir de sua terceira edição essa modalidade diagnóstica, que não pode deixar de ser identificada na clínica como uma forma de sofrimento, adquire um espaço tão importante na determinação dos transtornos mentais da infância?

O lugar político da agressividade infantil no DSM

Como vimos, à medida que a subjetividade vai sendo apagada das edições do DSM aparece uma multiplicidade de transtornos que têm o comportamento agressivo como signo clínico. No entanto, tal esvaziamento antes de contribuir para o melhor discernimento daquilo que vem a caracterizar a “agressividade”, como signo presente na infância ou na adolescência de transtornos com incidência na vida adulta, ou, ainda, enquanto fator diagnóstico intergeracional, corrobora para o apagamento da escuta das demandas subjetivas na clínica, visto o desinteresse que se tem em relação à sua participação na formação da doença. Ou seja, a identificação da presença ou da ausência da “agressividade” e a forma pela qual essa constatação é incluída num determinado sistema de classificação diagnóstica não acolhem a demanda do sujeito de se fazer reconhecer na especificidade de seu desejo, nem solicitam a implicação desse sujeito num eventual projeto terapêutico.

Como resume Marie-Jean Sauret (2017)Sauret, M.-J. (2017). La bataille politique de l’enfant. Érès.: “a resposta dada pela ciência à criança (‘você é isso ou aquilo’, ‘você tem isso ou aquilo’) não comporta nenhum desejo” (p. 56). Trata-se, portanto, da redução do sujeito a determinações genéticas e ambientais que não reconhecem demandas subjetivas, de modo que, inversamente, essas últimas só podem se manifestar sob a forma de signos de transtornos mentais. Desse modo, a criança, quando passou a ser diagnosticada diante de seus desvios, anomalias e comportamentos, com referência a um desenvolvimento normativo (Foucault, 1974-1975/2001), deixou de ser considerada na sua dimensão subjetiva.

Ora, conforme aponta Sandra Caponi (2016)Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, M. Verdi. Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). LiberArs.: “se os impulsos agressivos antes tolerados, se as condutas indesejadas que faziam parte do universo infantil, ingressaram ao campo da psiquiatria, isso ocorreu porque esses comportamentos se descreveram como indicadores de riscos para doenças mentais graves na vida adulta” (p. 32). De fato, foi a partir do momento em que a psiquiatria investiu a criança como fase específica da vida individual que paralelamente ela pôde identificar na vida adulta formas patológicas de manutenção da infância (Foucault, 1974-1975/2001, pp. 212-218).

Outrossim, uma vez que a definição de uma continuidade entre a infância e a vida adulta permitiria a participação da psiquiatria no momento de formação da doença, isto é, quando do aparecimento de seus signos mais incipientes, Joel Birman (2014)Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYc...
assinala uma correlação significativa entre a psiquiatrização das individualidades, e por conseguinte da infância, e a tentativa de dar conta do mal-estar na atualidade provocado pelos imperativos de performance, participantes dos modos de subjetivação neoliberal.

Com efeito, com a constituição do neoliberalismo não apenas como modalidade de gestão da economia pelo Estado, mas como forma de racionalidade governamental, no domínio da subjetividade foi possível entrever paralelamente a formação de um homo œconomicus em relação ao qual cada sujeito, entendido como empresário de si mesmo, seria regulado em função de práticas do mercado (Foucault, 1978-1079/2004Foucault, M. (2004). Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Gallimard, Seuil., pp. 231-232, 236). Essas novas formas de subjetivação, por assim dizer, e de determinação das estruturas políticas pela economia inaugurariam aquilo que Pierre Bourdieu (2000Bourdieu, P. (2000). Les structures sociales de l’économie. Seuil., pp. 319-321) chamou de “antropologia econômica”. Considerando esse panorama, Castel (2011Castel, R. (2011). La gestion des risques: de l’antipsychiatrie à l’après-psychanalyse. Minuit., pp. 142-147) pôde enunciar a constituição histórica de uma sociedade pós-psicanalítica marcada pela “gestão de riscos”, isto é, pela existência de formas de subjetivação caracterizadas pela submissão do acaso e da imprevisibilidade à ordem do cálculo, e isso em nome da produtividade e da rentabilidade da economia.

É nesse contexto e como tentativa de dar conta das exigências de performance que a psiquiatrização da agressividade na infância permite uma forma de regulação do mal-estar, como identificou Birman (2014)Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYc...
, impedindo que suas formas de subjetivação se manifestem pelas vias da agressividade e da violência. No entanto, como indicou Foucault (1973-1974/2003Foucault, M. (2003). Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France (1973--1974). Gallimard, Seuil., p. 56), o aparecimento de uma série de dispositivos disciplinares suplementares (a escola, o exército, a fábrica, a prisão, a polícia) sempre teve por objetivo recuperar os indivíduos indisciplinados, inscrevendo-os novamente nesses mesmos dispositivos. Seriam, enfim, tais indivíduos, sem se deixar se assujeitar a essas instituições, que se tornariam objeto do poder psiquiátrico como forma de disciplina e de investimento biopolítico. Pois, se por um lado, seria possível observar um movimento perpétuo das instituições em submeter todo e qualquer desvio à ordem da norma, e isso com o objetivo de, em resposta ao mal-estar, evitar a manifestação da agressividade, por outro, haveria sempre um “a mais” das subjetividades que permaneceria irredutível à normalização das condutas. Não seria precisamente essa experiência de excesso ou de transbordamento que, em articulação com a linguagem, caracterizaria o sujeito do inconsciente como avesso a toda normalidade? (Laufer, 2015Laufer, L. (2015). Une psychanalyse foucauldienne est-elle possible? Nouvelle revue de psychosociologie, 20(2), 233-247. https://doi.org/10.3917/nrp.020.0233
https://doi.org/10.3917/nrp.020.0233...
, p. 237). Como indicou Canguilhem (1975Canguilhem, G. (1975). Le normal et le pathologique. PUF., pp. 120-121), “anomalia”, nesse sentido, não significaria a presença imediata de um quadro patológico, mas a “existência de outras normas possíveis inerentes à variabilidade da vida”.

Nos termos de Birman (2014)Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYc...
, enfim, o processo de psiquiatrização corresponderia a uma forma de regulação do mal-estar que visaria “impedir que este seja transformado em agressividade e em violência pelos sujeitos, na medida em que as instâncias institucionais de poder não reconhecem a legitimidade das demandas políticas daqueles segmentos sociais, destituídos que foram de quase tudo” (p. 32). Essa produção discursiva em torno da agressividade ocorreria cada vez mais cedo na história dos indivíduos e, ao mesmo tempo que evitaria a agressividade como forma de expressão de um sujeito face ao não reconhecimento de sua demanda (Lacan, 1948/1966aLacan, J. (1966a). L’agressivité en psychanalyse. In Écrits (pp. 101-123). Seuil. (Trabalho original publicado em 1948)., p. 121), transformaria a ideia da criança agressiva em um signo de risco de transtornos variados e, sobretudo, da personalidade antissocial.

Considerações finais

Se analisarmos, assim, as transformações no tratamento da agressividade da criança no DSM, veremos que, de início, não obstante o discurso psiquiátrico classificatório, ainda existia a possibilidade de pensá-la na ordem da subjetividade, pois sob a forma de uma “reação de adaptação transitória”, ela se apresentava como consequência da interação com o outro ou como um conflito psíquico.

Em seguida, a ideia de transtorno ficou em primeiro plano, mesmo que o Manual apresentasse, ainda, a ideia de reação. Nesse caso, mais especificamente, a “reação não socializada agressiva da infância” tinha aí características mais estáveis, internalizadas e resistentes ao tratamento do que as “perturbações transitórias”, caracterizadas anteriormente pela raiva, destrutividade e agitação. Assim, considerava-se que os transtornos da infância, por sua fluidez, não poderiam ser neuroses, psicoses ou transtornos de personalidade, mas sim transtornos do comportamento.

Por fim, veremos a partir de 1980 ocorrer uma mudança radical na forma de tratamento das psicopatologias. A noção de agressividade da criança apresentou-se de forma capilarizada ao longo do Manual e condensou-se, finalmente, no DSM-5 nos chamados “Transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta”. A partir daí a agressividade foi, cada vez mais, considerada uma característica tanto da criança quanto do adulto, e encontrou na “criança agressiva” o signo de risco de formação de um indivíduo perigoso.

Dessa maneira, a inclusão da agressividade infantil como psicopatologia no caso das hipóteses diagnósticas presentes na evolução do DSM parece se constituir como uma tentativa de produzir na clínica um corpo dócil e performático que, evitando a escuta da subjetividade, relança aquilo que fora esvaziado desse lugar para um campo político de resistência. A insistência desse “a mais” das subjetividades, no entanto, não se deixa incluir totalmente nas formas disciplinares de governamentalidade e nas exigências performáticas do neoliberalismo. O que aparece como “agressividade” na clínica e que se manifesta como signo de uma psicopatologia, para além de compor junto com outros signos um conjunto característico de uma “doença mental” entendida como transtorno estatístico ou disfunção biológica, é, na realidade, o resultado da ausência de vias de reconhecimento daquilo que do desejo manifesta a singularidade dos sujeitos. Promover a possibilidade de acolher essa forma de subjetivação do mal-estar, sem reduzi-la à sua “psiquiatrização”, como observou Birman (2014Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYc...
, pp. 32-33), torna-se um aspecto político fundamental da clínica, se quisermos reinserir na escuta uma dimensão de resistência do sujeito naquilo que em sua história e, por meio de seus sintomas, aparece com uma estrutura de linguagem e uma dialética do desejo (Lacan, 1960/1966cLacan, J. (1966c). Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In Écrits (pp. 793-828). Seuil. (Trabalho original publicado em 1960)., pp. 804-805).

  • 2
    Adolf Meyer foi um médico suíço, aluno de Forel, como Bleuer, que emigrou para os Estados Unidos e atuou como professor de psiquiatria no Hospital Johns Hopkins entre os anos de 1910 e 1941.
  • 3
    A criança (ou o adolescente) que apresenta esse transtorno intermediário é “caracterizada por desobediência hostil ou dissimulada, brigas, agressividade física e verbal, vingança e destrutividade” (DSM-II, 1968, p. 50).
  • 4
    O DSM-III introduziu uma modificação importante na compreensão da noção de “doença” e mais particularmente de “doença mental” na psiquiatria. O abandono da “nova psiquiatria” meyeriana do início do século permitiu a redução da experiência de sofrimento vivido pelo sujeito a uma categoria médica. Conforme a expressão de Octavio Domont de Serpa Jr. (2006Serpa Júnior, O. D. (2006). Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da psicopatologia. In J. F. Silva Filho (Org.), Psicopatologia hoje (pp. 11-62). Contra Capa.), a compreensão da doença mental (mental illness) como “mental disease” ou ainda como “mental disorder” seria enfim responsável por constituir uma “psicopatologia sem pathos”.
  • 5
    Uma busca por palavra na totalidade do Manual sugere 16 vezes ocorrências de “agressivo” e suas variantes (“aggressive” e “aggressiveness”) no DSM-II, contra 108 vezes (“aggressive”, “agressiveness”, “agressivity” e “aggression”) no DSM-III.
  • 6
    Essas siglas TDAH, TOD, TC, entre outras, são, atualmente encontradas nos variados discursos sociais, incluindo o discurso médico-psiquiátrico.
  • 7
    No DSM-5 observa-se, igualmente, a inclusão da categoria diagnóstica “Transtorno disruptivo da desregulação de humor” que vai ter como principal característica as explosões de raiva da criança (manifestada pela agressão). A palavra “anger”, que é comumente traduzida como “raiva” nas versões brasileiras, e não aparecia nenhuma vez no DSM-I e II, apareceu 29 vezes no DSM-III, 59 vezes no DSM-IV, e, por fim, 106 vezes no DSM-5.

Referências

  • American Psychiatric Association (1952). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-I (1. ed). Washington, DC.
  • American Psychiatric Association (1968). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-II (2. ed). Washington, DC.
  • American Psychiatric Association (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-III (3. ed). Washington, DC.
  • American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-IV (4. ed). Washington, DC.
  • American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5 (5. ed). Washington, DC.
  • Bercherie, P. (2001). A clínica psiquiátrica da criança. In O. Cirino, Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura (pp. 129-144). Autêntica. (Trabalho original publicado em 1983).
  • Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(esp), 23-37. Recuperado de: <https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt>.
    » https://www.scielo.br/j/agora/a/qWsWyrYcT7fn8mTGbg7qJLS/?lang=pt
  • Bourdieu, P. (2000). Les structures sociales de l’économie Seuil.
  • Callegaro, J. B., & Ruschel, D. B. (2011). Uso de instrumentos psicológicos de avaliação do comportamento agressivo infantil: análise da produção científica brasileira. Avaliação Psicológica, 10(2), 193-203. Recuperado de: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=335027286010
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=335027286010
  • Canguilhem, G. (1975). Le normal et le pathologique. PUF.
  • Caponi, S. (2012). Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada Editora Fiocruz.
  • Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, M. Verdi. Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). LiberArs.
  • Caponi, S. (2019). Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença LiberArs.
  • Castel, R. (2011). La gestion des risques: de l’antipsychiatrie à l’après-psychanalyse Minuit.
  • Dunker, C. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47 (87), 79-107. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv>.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=ptv
  • Foucault, M. (2001). Les anormaux. Cours au Collège de France (1974-1975). EHESS, Gallimard, Seuil.
  • Foucault, M. (2003). Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France (1973--1974). Gallimard, Seuil.
  • Foucault, M. (2004). Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Gallimard, Seuil.
  • Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. Cours au Collège de France (1977-1978). (Eduardo Brandão, Trad.). Martins Fontes.
  • Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161. Recuperado de: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29833110>.
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29833110
  • Lacan, J. (1966a). L’agressivité en psychanalyse. In Écrits (pp. 101-123). Seuil. (Trabalho original publicado em 1948).
  • Lacan, J. (1966b). Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. In Écrits (pp. 237-322). Seuil. (Trabalho original publicado em 1953).
  • Lacan, J. (1966c). Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In Écrits (pp. 793-828). Seuil. (Trabalho original publicado em 1960).
  • Laufer, L. (2015). Une psychanalyse foucauldienne est-elle possible? Nouvelle revue de psychosociologie, 20(2), 233-247. https://doi.org/10.3917/nrp.020.0233
    » https://doi.org/10.3917/nrp.020.0233
  • Lins, T., Alvarenga, P., Paixão, C., Almeida, E., & Costa, H. (2012. Problemas externalizantes e agressividade infantil: uma revisão de estudos brasileiros. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 57-75. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000300005>.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000300005
  • Minard, M. (2013). Les deux premiers DSM. In Le DSM-ROI. La psychiatrie américaine et la fabrique des diagnostics (pp.141-166). Érès.
  • Pine, D. S., & Cohen, E. (2012). Therapeutics of Aggression in Children. Pediatr-Drugs, 1(3), 183-196. https://doi.org/10.2165/00128072-199901030-00003 (Trabalho original publicado em 1999).
    » https://doi.org/10.2165/00128072-199901030-00003
  • Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Zahar.
  • Sauret, M.-J. (2017). La bataille politique de l’enfant Érès.
  • Serpa Júnior, O. D. (2006). Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da psicopatologia. In J. F. Silva Filho (Org.), Psicopatologia hoje (pp. 11-62). Contra Capa.
  • Teixeira, M. R., Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. C. (2017). Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Ciência & Saúde Coletiva, 22(6), 1933-1942. https://doi.org/10.1590/1413-81232017226.06892016
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232017226.06892016
  • Vorcaro, A. (2011) O efeito bumerangue da classificação psicopatológica da infância. In A. Jerusalinsky, & S. Fendrik (Orgs.), O livro negro da psicopatologia contemporânea (pp. 219-229). Via Lettera.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2021
  • Revisado
    20 Abr 2022
  • Aceito
    08 Mar 2023
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com