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Segurança alimentar e nutricional: a produção do conhecimento com ênfase nos aspectos da cultura

Feeding and nutritional security: the construction of knowledge with emphasis on cultural aspects

Resumos

Este ensaio sobre segurança alimentar e nutricional tem como objetivos enfatizar a importância dos aspectos culturais para avaliar políticas de alimentação e nutrição, e contribuir com o debate nos centros de ensino interessados em pesquisas sobre o tema. A estrutura desse objeto envolve diversas disciplinas, inclusive as que se referem ao direito e à cultura. Fez-se a revisão da bibliografia pertinente para contextualizar a problemática da segurança alimentar e nutricional nas esferas macro e micro social. Também, foram analisados documentos oficiais e realizadas reflexões a partir de estudos antropológicos e exemplos de situações interligadas ao assunto, na expectativa de sedimentar algumas noções conceituais que contemplem aspectos da cultura, para enriquecer a avaliação de políticas sociais sobre segurança alimentar e nutricional. Destacou-se a abordagem antropológica para desvendar os significados da fome crônica, um dos efeitos mais perversos da insegurança alimentar. Concluiu-se que a compreensão dos aspectos culturais cria uma nova perspectiva analítica para estudos da eficácia da segurança alimentar e nutricional, para além do campo explicativo e normativo do modelo biomédico.

cultura; políticas sociais de alimentação; segurança alimentar e nutricional


This essay on food safety stresses the importance of cultural aspects in assessing food and nutrition policies. It thus intends to contribute to topic discussions in educational centers interested in research on this issue. Such an objective involves various disciplines, including those concerned with law and culture. A bibliographical review was carried out in order to contextualize food and nutritional safety problems within the macro and micro-social spheres. Anthropological studies, the analysis of official documents and sample situations related to the subject were considered in an attempt to strengthen concepts comprising cultural aspects in order to improve the evaluation of social policies on nutritional and food safety. The anthropological approach is emphasized for an understanding of the diverse meanings of chronic hunger, one of the most perverse effects of food and nutritional insecurity. It was concluded that a better understanding of cultural factors brings forth a new analytical perspective for the study and evaluation of the efficacy of food and nutritional safety, beyond the explanatory and normative scope of the biomedical model.

culture; social food policies; food security


ENSAIO ESSAY

Segurança alimentar e nutricional: a produção do conhecimento com ênfase nos aspectos da cultura

Feeding and nutritional security: the construction of knowledge with emphasis on cultural aspects

Maria do Carmo Soares de FreitasI; Paulo Gilvane Lopes PenaII,* * Correspondência para/ Correspondece to: P.G.L. PENA. E-mail: < plpena@uol.com.br>.

IUniversidade Federal da Bahia, Escola de Nutrição, Departamento Ciência da Nutrição. Salvador, BA. Brasil

IIUniversidade Federal da Bahia, Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva. Av. Reitor Miguel Calmon, s/n., Vale do Canela, 40420-069, Salvador, BA. Brasil

RESUMO

Este ensaio sobre segurança alimentar e nutricional tem como objetivos enfatizar a importância dos aspectos culturais para avaliar políticas de alimentação e nutrição, e contribuir com o debate nos centros de ensino interessados em pesquisas sobre o tema. A estrutura desse objeto envolve diversas disciplinas, inclusive as que se referem ao direito e à cultura. Fez-se a revisão da bibliografia pertinente para contextualizar a problemática da segurança alimentar e nutricional nas esferas macro e micro social. Também, foram analisados documentos oficiais e realizadas reflexões a partir de estudos antropológicos e exemplos de situações interligadas ao assunto, na expectativa de sedimentar algumas noções conceituais que contemplem aspectos da cultura, para enriquecer a avaliação de políticas sociais sobre segurança alimentar e nutricional. Destacou-se a abordagem antropológica para desvendar os significados da fome crônica, um dos efeitos mais perversos da insegurança alimentar. Concluiu-se que a compreensão dos aspectos culturais cria uma nova perspectiva analítica para estudos da eficácia da segurança alimentar e nutricional, para além do campo explicativo e normativo do modelo biomédico.

Termos de indexação: cultura; políticas sociais de alimentação; segurança alimentar e nutricional.

ABSTRACT

This essay on food safety stresses the importance of cultural aspects in assessing food and nutrition policies. It thus intends to contribute to topic discussions in educational centers interested in research on this issue. Such an objective involves various disciplines, including those concerned with law and culture. A bibliographical review was carried out in order to contextualize food and nutritional safety problems within the macro and micro-social spheres. Anthropological studies, the analysis of official documents and sample situations related to the subject were considered in an attempt to strengthen concepts comprising cultural aspects in order to improve the evaluation of social policies on nutritional and food safety. The anthropological approach is emphasized for an understanding of the diverse meanings of chronic hunger, one of the most perverse effects of food and nutritional insecurity. It was concluded that a better understanding of cultural factors brings forth a new analytical perspective for the study and evaluation of the efficacy of food and nutritional safety, beyond the explanatory and normative scope of the biomedical model.

Indexing terms: culture; social food policies; food security.

INTRODUÇÃO

Segurança alimentar e nutricional (SAN) significa "garantia de condições de acesso aos alimentos básicos, seguros e de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais"1. Este enunciado alude práticas alimentares saudáveis e a existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana2. O conceito de SAN envolve, portanto, a qualidade dos alimentos, as condições ambientais para a produção, o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população.

Neste ensaio pretende-se mostrar a importância dos significados culturais sobre a SAN da população brasileira e, com isto, contribuir para o debate nos centros de ensino interessados em pesquisar o tema e avaliar políticas de alimentação e nutrição. Para sistematizar a SAN, este objeto amplo e transversal dos vários campos de saberes, considera-se o contexto socioeconômico e, em particular, a ação do Estado, na tentativa de estabelecer alguns limites e avanços sobre as políticas no campo da segurança alimentar e nutricional, abordadas ao longo do texto.

Com a persistência da política econômica ortodoxa3 ocorreram mudanças significativas do papel do Estado brasileiro. Essencialmente, registrou-se a redução das ações sociais das instituições públicas e se constituiu uma espécie de vazio de proteção social para a população, como observou Freitas4 ao realizar a etnografia da fome em um bairro popular na cidade de Salvador. A insuficiência das políticas sociais nas periferias urbanas e em regiões pobres da área rural dificulta o acesso aos direitos sociais e converte as questões políticas em questões técnicas com escassez de recursos em saneamento, saúde, educação, habitação e alimentação. Essa perda do sentido protecionista do Estado estabelece crises de racionalidade por parte de governos locais. Ou seja, os princípios de responsabilidade pública transitam para o privado, estimulando formas de compromissos com o lucro e os parceiros diversos. Entre esses compromissos, afirmaram-se ações de natureza puramente caritativa em relação aos famintos, cuja explicação emerge do contexto macroeconômico, a partir dos anos 90 do século XX, com as reformas de Estado e seus efeitos nas políticas sociais5.

Tanto no Brasil como em outros países, as reformas de ajustes estruturais discutidas no Programa das Nações Unidas, para assegurar um desenvolvimento na esfera da política global, têm oferecido impactos sociais negativos3. Particularmente no caso brasileiro, essas medidas prescreveram privatizações de setores importantes desde 1997, com o fim das barreiras comerciais, e também trouxeram políticas recessivas e arrocho salarial que afetaram a qualidade de vida da maioria da população. Ou melhor, as prescrições do reajuste estrutural (sintetizadas no documento Country Assistance Strategy, 1997, formulado e acordado exclusivamente com o Poder Executivo e o Banco Mundial) vêm consolidar a estabilização macroeconômica, deixando à margem questões sociais3.

As estatísticas internacionais mostraram, desde os anos 90 do século XX, que o sistema financeiro obteve grande lucratividade, ao lado do crescimento da pobreza. Para isso, o Estado contempla mecanismos de proteção para os projetos empresariais internacionais, enquanto se verifica deterioração da qualidade de vida em setores médios e populares, fazendo emergir maior pobreza urbana, violência e deterioração dos serviços sociais. Como resultante, houve redução do investimento nas áreas sociais e persistência da alta concentração de renda e pobreza e, com isto, o fortalecimento da ampliação do apartheid social6.

Esse modelo de desenvolvimento econômico se apóia na modernização conservadora que, por sua vez, se constitui na matriz pouco favorável à construção da cidadania e da eqüidade social. Com isso, entre tantos exemplos, a área rural, mesmo em espaços caracterizados como modernos, mantém a concentração fundiária, amplia a automação agrícola e expulsa o pequeno agricultor, que terá no espaço urbano a única chance de sobreviver. Os interesses do grande capital agro-industrial se concentram na produção agrícola para a exportação, assinalando a tendência de subordinação do setor rural ao modelo agro-exportador provocando, entre outras conseqüências, a falta de diversificação na produção de alimentos básicos para a população7.

Nos estudos econômicos e sociais há uma variedade de indicadores, critérios e metodologias para identificar a pobreza. Em geral, a noção de pobreza se encontra vinculada aos conceitos de necessidade, estimativa de vida e insuficiência de recursos8. Para Henriques9, pobreza significa situação de carência em que os indivíduos têm dificuldades em manter um padrão mínimo de vida. O autor diferencia linha de pobreza e linha de indigência. A primeira considera os gastos com alimentação como parte dos demais itens necessários à sobrevivência: vestuário, habitação e transporte. Indigência se refere somente à despesa da cesta básica alimentar. Ao estudar a evolução da indigência e da pobreza no Brasil, o referido autor9, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), informa o aumento do número de pobres entre 1977, com 44 milhões de pessoas, e 1999, com 53 milhões. Destes, 55,0% encontram-se abaixo da linha de pobreza. Dados semelhantes foram divulgados pela Fundação Getúlio Vargas10, que estimou em 50 milhões (29,3% da população) o número de pessoas que viviam na linha de indigência em 1999, em situação equivalente a uma renda mensal per capita inferior à capacidade de consumo diário de calorias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde.

Dados atuais mostram que houve melhora dos indicadores, quando a proporção de pessoas com renda inferior à linha de pobreza passou de 27,26% em 2003, para 25,08% em 200410. Entretanto, persiste a desigualdade social. Barros et al.11, ao criticarem o conceito de PIB per capita na análise da concentração de renda, utilizaram como um dos indicadores da desigualdade social, a razão entre rendas médias dos 10,00% mais ricos e dos 40,00% mais pobres. Concluíram que a renda média dos mais ricos corresponde a 28 vezes a renda média dos mais pobres. Afirma ainda Henriques9 que apenas 1,00% da sociedade concentra uma renda maior que a apropriada por 50,00% dos mais pobres. Esse quadro de desigualdade indica a necessidade de combinar SAN com os processos de políticas sociais fundados no princípio da equidade social2.

A precariedade das condições sociais no Brasil é conseqüência do modelo econômico, que aumenta a densidade de capital com menor geração de empregos. Com isso, há um excedente de força de trabalho que não tem chance de participar na divisão da renda nacional. Não há dúvidas de que a sobrevivência com o baixo poder aquisitivo agrava a fome e a miséria, tanto no setor urbano como no rural. Sobre isso, os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar12 mostram que prevalece o uso de grande parte da renda familiar com alimentação, representando 25,12% do orçamento doméstico em 1999, com aumento para 27,49% em 2003.

As concepções de programas com estratégias focais, como modelo de assistência compensatória das políticas sociais reduzidas nos programas do Estado, influenciam a atual concepção institucional da SAN. Também, se estabelecem organizações não governamentais que desenvolvem ações para a população sem assistência, conseqüentes da racionalidade do Estado mínimo13 e se reproduzem situações de insegurança não somente alimentar, mas generalizada, para as populações das periferias carentes de serviços sociais14.

A continuidade da política macroeconômica não resolve a problemática da desigualdade social, não zera a fome, não efetiva os direitos sociais e nem mesmo possibilita a construção de um projeto com sustentabilidade socioambiental para a sociedade brasileira.

Essas questões macroeconômicas e sociais repercutem no cotidiano da alimentação e da nutrição dos indivíduos. Segundo alguns teóricos da sociologia e da antropologia15,16, o caminho para a análise de uma problemática se dá a partir da adoção de recursos teóricos que iluminem a explicação de determinado assunto. A compreensão dos aspectos culturais sobre SAN no mundo cotidiano, para além do campo explicativo e normativo do modelo econômico, possibilita uma análise mais próxima da realidade dos programas sociais.

Desse modo, fez-se uma revisão da bibliografia para contextualizar a problemática da SAN. Analisaram-se documentos oficiais e estudos em economia, sociologia, direito, antropologia, além da consulta aos registros de experiências interligadas ao assunto, para sedimentar noções conceituais que contemplem aspectos da cultura. Enfatizou-se a abordagem antropológica para compreensão dos significados da fome crônica, um dos efeitos mais perversos da insegurança alimentar. Das políticas sociais destacaram-se os Programas Saúde da Família, Alimentação do Trabalhador e Alimentação do Escolar.

Para a necessidade de refletir a alimentação e a nutrição, enquanto questões do cotidiano, utilizou-se a abordagem interpretativa na perspectiva fenomenológica17. O cotidiano é a cena aproximada dos saberes e práticas, reveladores de sistemas simbólicos16 permanentemente inscritos em unidades domésticas e, no mundo do trabalho, por exemplo. É no mundo cotidiano que se manifestam os valores socioculturais da alimentação e da nutrição, em representações e significados de carência ou de excesso de alimentos. Esse domínio qualitativo possibilita não somente a produção do conhecimento, enfatizando a importância dos significados da SAN, mas, sobretudo, abre perspectivas para a melhor eficácia das políticas sociais.

Abordagem cultural para a implementação de políticas sociais e de segurança alimentar

Adotou-se o conceito de cultura, conforme Geertz16, ou seja: um sistema de símbolos e significados formado por relações internas, de um modo particular de pensar o mundo, pois é na cena do cotidiano, em cada contexto específico, com símbolos significativos, que se inscreve um texto para a interpretação da cultura. Nesse sentido, para o conhecimento dos aspectos culturais sobre a SAN torna-se necessário compreender os significados desse objeto a partir das ações que o envolvem em distintos espaços das relações sociais. Os assuntos do cotidiano refletem níveis internos de vivências em que a situação de insegurança alimentar e nutricional possui diversos significados. Os aspectos da cultura poderão ser conhecidos na observância da dinâmica de uma intersubjetividade capaz de mostrar as diferentes percepções emergentes sobre o tema em seus contextos situacionais18. Em outras palavras, compreender a SAN requer uma correspondência entre os níveis macro e microssociais para o entendimento de significações desse processo.

A exemplo, no campo microssocial da pobreza, segundo estudo de Freitas4, há uma imagem nítida da desesperança por parte da população, que concebe o alimento como condição provisória em sua realidade. Esta autora considera que a população descuidada de serviços oficiais de saúde e educação, apoia-se em tradições e crenças para garantir um mínimo de respostas aos seus processos mórbidos, sendo a fome crônica interpretada pelos famintos como a ausência de qualquer expectativa de viver. A complexidade da análise está na interpretação do problema da fome, em contextos específicos e no nível semântico, como um tabu lingüístico que envolve vários significados.

Outro exemplo refere-se aos elementos representacionais da alimentação por trabalhadores rurais sem-terra. Observou-se que a produção dos sentidos da SAN para esta população é revelada por símbolos significativos sobre o alimento do corpo e o desejo inseparável de viver na terra19. Esses significados são componentes da dimensão cultural em relação ao sujeito inserido na produção do alimento.

Da experiência narrada por atores sociais sobre fome, alimentação e saúde pôde-se obter noções representacionais e significados sobre a expressão segurança alimentar. Também, o cuidado com a qualidade da comida está relacionado ao que faz bem ou mal para a saúde e são enunciados culturais cujo entendimento requer a compreensão de variados elementos para a sobrevivência, como crenças, hábitos e tantas outras capacidades adquiridas20, que funcionam como referências para a interpretação das coisas do mundo18. Nessa perspectiva, há valores particularizados por contextos socioculturais que devem ser conhecidos e analisados para contribuir com redefinições de políticas de saúde ou avaliar a interferência destas nos setores populares.

Dessa maneira, a SAN está presente no cotidiano enquanto fenômeno social da alimentação humana, transpassando as muitas disciplinas e campos de saberes. A transdisciplinaridade não é um produto acabado, mas, antes, um processo dinâmico que conjuga e religa saberes e leituras em campos específicos e contextualizados para uma compreensão total21.

SAN não significa apenas a disponibilidade do alimento, mas, sobretudo, a permanência de acesso ao alimento de qualidade, ou seja, a segurança da relação que o indivíduo e o coletivo têm com o alimento, construída na complexidade das relações sociais17,22. Ou ainda, a noção de segurança socioeconômica, vinculada à qualidade sanitária do alimento e ao respeito ao meio ambiente, gera significados capazes de traduzir a estabilidade ou a segurança com o alimento. Com isso, estabelece-se o elo transdisciplinar do conceito de segurança alimentar e nutricional, que transita nas esferas biológica, econômica, social, ambiental e cultural. No campo da cultura, o sentido do termo segurança, em analogia ao acesso aos alimentos, é expresso pelos sujeitos em seu mundo cotidiano.

O conceito de segurança alimentar e nutricional no Brasil remete à necessidade do entendimento de questões estruturais, em que a desigualdade social conduz ao significante essencial do termo em relação ao acesso ao alimento. Expressões como qualidade de alimentos, satisfação psicofisiológica, alimentação saudável, nutrientes básicos e transição nutricional, estão associadas à SAN e podem conformar relações inter e transdisciplinares sobre o tema, para a compreensão do fenômeno. Contrariamente, insegurança, precariedade, incerteza, exclusão e rejeição social, sofrimento e vergonha de viver com fome são expressões do mesmo campo semântico para significar faltas sociais que fazem oposição à segurança de comer e viver com qualidade.

Como uma expressão que se movimenta em várias áreas do conhecimento, a SAN pode representar proposições para situações específicas e conjugadas às necessidades biológicas e sociais dos indivíduos.

Sobre direitos e políticas sociais

A segurança para se alimentar com qualidade e em quantidade suficientes é um direito social a ser assegurado pelo Estado, ou seja, um direito do cidadão em não sentir medo de viver sob a ameaça de fome. Ter acesso e cultivar hábitos alimentares saudáveis são qualidades do universo microssocial que conformam dimensões macroeconômicas e políticas, e vice-versa.

Ainda que haja variações em cada contexto social, existe um conjunto de mediações para a ordenação do espaço econômico, político e para a vida doméstica. Na linguagem do Direito Social, essas mediações são responsabilidades estatais, que representam assistência e previdência social, jurídica, monetária e serviços gerais, em que a gratuidade reflete a proteção dos indivíduos pelo Estado. O modelo de Estado Social (que inspirou, no Brasil, a Constituição de 1988) se configura como a inscrição da modernidade, que varia de acordo com a história de cada lugar e depende do contexto de lutas sociais por condições de trabalho e de vida, para assegurar aos trabalhadores e suas famílias maior ou menor nível de capacidade para obter saúde, desenvolvimento cultural, físico, psíquico2. Nesse âmbito, a SAN deve ser vista como um conjunto de direitos e políticas sociais contidas na noção de seguridade social inscrita no Artigo 194 da Constituição do Brasil23. A criação desse direito é a legitimação da prevenção de ameaças à sociedade. Desse modo, no campo semântico, a palavra segurança faz relação com outros termos, como: contrato social, proteção, garantia de uma política social redistributiva de renda e resoluta dos conflitos sociais na esfera institucional24.

Direito, Estado e Social são campos inseparáveis e significantes da segurança alimentar. Os direitos à alimentação e à segurança alimentar tornam-se sinônimos e são elementares dos direitos humanos, estreitamente relacionados a outros, como educação, saúde, moradia. São esses direitos que versam sobre a necessidade de implementação de políticas sociais por parte do Estado. A SAN é um tema do direito fundamental, uma vez que, sem esse recurso, o cidadão não tem oportunidade de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Para assegurar esse direito, as ações do Estado poderiam assistir e monitorar a produção de alimentos, o uso sustentável dos recursos naturais, a vigilância nutricional da população, o acesso físico e econômico aos alimentos, incluindo-se a erradicação da pobreza. Entretanto, a despeito do compromisso internacional do governo brasileiro, ou mesmo da Constituição vigente, não há sanções pela inadimplência do Estado.

São essas algumas reflexões que poderiam dar visibilidade à recorrência do uso de mecanismos de vigilância dos direitos humanos para a redução das desigualdades sociais, em particular no terreno da alimentação e da nutrição.

Os discursos das Conferências Nacionais de SAN1,25 enfatizam a regularidade de mercado com estoques, a comercialização de alimentos em qualidade adequada e em quantidades suficientes e alimentos economicamente acessíveis à população, o que significa um planejamento estratégico para o abastecimento com política de preços justos. É, então, da responsabilidade pública do Estado agenciar, na esfera institucional, os princípios securitários no âmbito do social. Esse assunto remete à criação do Programa Especial para Segurança Alimentar (Special Programme for Food Security), aprovado de forma unânime no Conselho da Food and Agriculture Organization, em junho de 1994, quando se discutiu a construção da segurança alimentar no mundo26. Em seguida, em 1996, a Cúpula Mundial da Alimentação entende a SAN como um direito fundamental2,14.

A política estratégica para a SAN está condicionada ao acesso universal ao alimento e às políticas sociais de assistência à população. Políticas que cumpram a função redistributiva no âmbito dos direitos sociais. Entretanto, neste ensaio o entendimento é que no contexto de economias liberais, os programas atuais que envolvem segurança alimentar estão ajustados às variações do mercado e à redução de políticas sociais, o que restringe a possibilidade de conseguir resultados positivos. Portanto, os projetos em SAN, mesmo os transitórios, de caráter assistencialista, como campanhas fundadas na tradição da caridade, mantêm-se flexíveis às políticas econômicas. Na lógica da vulnerabilidade das políticas, nesse contexto de incertezas econômicas, os programas sociais não são prioridades e assumem a função paliativa de redução de tensões sociais.

Um outro aspecto diz respeito ao Sistema Único de Saúde e à dificuldade dos técnicos manterem a correspondência entre ações básicas de saúde e os diversos conteúdos sobre a SAN do indivíduo e de sua comunidade. Cita-se, como exemplo, o Programa Saúde da Família27, que, em geral, funciona centrado em práticas com ações básicas de saúde, inclusive as educativas, sem a observância dos aspectos culturais sobre a comensalidade (como e o que se come) e a nutrição. Isso porque o modelo biomédico, ao ocupar uma posição hegemônica, não consegue dar conta dos temas específicos da cultura que envolvem a nutrição (hábitos, crenças, etc.), necessários à combinação de ações básicas de saúde27.

Em relação ao direito à alimentação do trabalhador, o Ministério do Trabalho e Emprego desenvolve o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), que atende, em média, oito milhões de pessoas em todo o País. Esse direito, entretanto, não vem sendo assegurado a todos os trabalhadores, pois não atende ao mercado informal, que se constitui de categorias de trabalhadores com grandes necessidades de atendimento nutricional. Do ponto de vista da nutrição, constatou-se a prevalência da pré-obesidade e obesidade dos trabalhadores do mercado formal assistidos pelo programa28. Isso sugeriu a necessidade de repensar a estratégia nutricional do PAT, não apenas no que concerne ao seu objetivo de combate à fome do trabalhador, mas também a outros problemas nutricionais, como a obesidade. Na esfera político-institucional, constatou-se a deficiência de estudos sobre a eficácia desse programa, que deveria ser um objeto da SAN para os trabalhadores.

O Programa de Alimentação do Trabalhador se transformou em gigantesco projeto mercadológico de intermediação financeira do comércio de alimentos e da produção de moeda paralela (tickets), distanciando-se dos propósitos iniciais, que se referiam à melhoria do estado nutricional do trabalhador28. Ao entender que o trabalhador é um cidadão com direito à alimentação saudável, considera-se necessário reorientar o PAT como uma das prioridades das políticas sociais do governo. Assim, é importante avaliar ações do PAT em todos os seus aspectos e incluir a erradicação da fome no mundo do trabalho. Nesses termos, é necessário reconduzir o PAT à nova dimensão conceitual e institucional, transformando-o em um programa de SAN do trabalhador, integrado à concepção maior, em termos de segurança social.

Sobre a interface entre ética e SAN, lembra-se a importância do controle social, que envolve os programas sociais de saúde e alimentação e os conselhos, que devem ser participativos e atuantes para a melhoria da qualidade de vida, educação, saúde e nutrição. Por exemplo, o Conselho de Alimentação Escolar tem como objetivo garantir a permanência da alimentação nas escolas públicas; mas, em alguns lugares, funciona como extensão do poder político local sobre a população29. O que deveria ser representativo da população se mantém como mais um instrumento do uso privado da "coisa pública" e o formalismo das relações sociais do Conselho de Alimentação Escolar legitima essa hegemonia política.

Nesses processos de construção de hegemonia política, o controle social é quase sempre exercido pelo ator político do poder executivo, cujas ações deveriam ser controladas pela população. Sobre esses e outros dilemas do Programa de Alimentação do Escolar, entende-se que se tornam quase sempre duvidosas as finalidades dessas ações para a segurança alimentar dos escolares, uma vez que faltam estudos sobre a influência do poder local e os movimentos sociais comprometidos com a melhoria da SAN .

Essas disposições contrárias à ética e à cidadania são inseridas como estratégias políticas, em que saúde e nutrição nem sempre são prioridades práticas de políticas locais. Os significados sobre o cuidado da alimentação se confundem e são delimitados por estilos cognitivos particulares, caracterizados pela ausência de uma organização social capaz de qualificar o programa social de alimentação e nutrição e redefinir, em primeira instância, critérios para a SAN. Uma revisão sobre os procedimentos que envolvem o Programa de Alimentação do Escolar, junto aos diferentes atores sociais que atuam nesse campo, poderia mostrar as interrelações que caracterizam as qualidades socioculturais e políticas que influenciam a execução desse programa.

A seguir discutem-se alguns aspectos da SAN, relevantes na esfera cultural.

Sobre aleitamento materno

As normas sanitárias que tratam de ações de saúde e nutrição em relação à mulher produzem efeitos negativos sobre a identidade feminina, na medida em que identificam a mulher como um instrumento responsável e mediador do cuidado alimentar da família e não como sujeito dessa ação, que possui representações e valores em geral desafiantes para a saúde pública, a exemplo do desmame precoce.

Como sujeito, a mulher quer significar o ato de aleitar e assegurar sua identidade social. Mas essa acepção nem sempre é considerada no campo técnico-científico, que desconhece a condição intersubjetiva das mulheres e suas revelações, tradições, crenças e saberes que influenciam os significados da amamentação. É no dia-a-dia das mulheres, em seus espaços domésticos, que são produzidos símbolos e representações de sua condição de aleitar em conexão com suas realidades.

O modelo biomédico, distante da realidade cultural, reproduz a subordinação dos grupos sociais assistidos e prescreve orientações dissociadas dos hábitos. Nessas condições, a mulher das camadas populares assiste emudecida à orientação de um profissional de saúde, mesmo discordando de seu discurso normativo. A experiência de cuidar da alimentação da criança conforma saberes que precisam ser conhecidos, para tornar possíveis ações de saúde mais próximas à identidade dessas mulheres, em particular, as mulheres que vivem em condições de incertezas sociais30,31.

Sobre religiosidade

Na diversidade alimentar regional, a tendência é manter tradições e incorporar novos valores, para resignificar as inscrições simbólicas dos alimentos por vários grupos sociais. Diferentes associações entre alimento, corpo e religião sustentam conceitos litúrgicos sobre os valores atribuídos ao termo saudável. Alguns estudos sobre essa temática revelam a importância em compreender o comportamento alimentar e sua associação com a religiosidade32.

Em geral, as normas sanitárias consideram a alimentação-saudável como uma prevenção dos problemas de saúde, ou mesmo como designo da segurança para a saúde. Essas normas, por manterem uma gramática fechada e institucional, deixam de notificar valores que consignam características semânticas análogas ao saudável, particular em cada religião.

É possível que, no discurso dos sujeitos imbuídos de valores religiosos, a expressão "alimento saudável" se inscreva como uma representação do divino ou da purificação do corpo e da alma. A SAN poderá ser interpretada como um valor em que os sentidos de permanência da alimentação, ou de alimento seguro, não esgotam a necessidade corporal, mas também contribuem para uma necessidade da alma.

A falta de uma correspondência entre conteúdos técnico-científicos e a compreensão dos sistemas de valores culturais exige cuidados ao tratar do tema da alimentação saudável. Em geral, no discurso institucional e técnico-científico, no lugar do termo saudável - ordeiro e limpo33 - combinam-se outras expressões inflexíveis, inspiradas em regras que simbolizam o equilíbrio de nutrientes, em que predomina a hierarquia desses valores bioquímicos para assegurar as necessidades do corpo. Tratam-se, pois, de princípios disciplinares dos receituários normativos ou do discurso institucional, que fazem analogia com conceitos de pureza e pecado, poluído e limpo, leve e pesado, entre outras representações sociais implícitas em concepções religiosas. Para a investigação dessas questões seria relevante circunscrever com profundidade e realismo o significado do saudável, atribuído como um acontecimento com fortes traços culturais sobre a alimentação.

No cenário brasileiro, a observância dos códigos culturais regionais a serem informados no campo empírico, hipoteticamente, seria reveladora de uma dietética religiosa ou étnica que faz referência às necessidades do indivíduo na sua realidade. As diferentes abordagens sobre a alimentação não devem se restringir ao campo da saúde oficial, mas, antes, aos sincretismos, aos valores afetivos e outras associações que ainda não se conhece suficientemente.

Sobre a fome

A fome crônica não é definida apenas em parâmetros clínicos. É um fenômeno que possui elementos socioeconômicos e culturais, cuja elucidação é necessária para as políticas de SAN4.

Ainda que estudos epidemiológicos apresentem redução da desnutrição no Brasil34, os sistemas de valores, a temporalidade e o espaço onde vivem as camadas populares são significativos de seus processos corpóreos em suas realidades. Desse modo, mesmo que a desnutrição e a morte tenham menores taxas que no passado, paradoxalmente, a condição de fome persiste pela desigualdade social e conseqüente pobreza absoluta.

Uma das estratégias de sobrevivência tem sido a mudança relativa nos hábitos alimentares, em que os mais pobres se alimentam com mais carboidratos e gorduras que no passado recente. Quanto a esse aspecto, a alimentação à base de farinhas e gorduras propicia um aumento do peso corporal, o que não significa redução da fome crônica4.

Conforme referido anteriormente, nas condições de pobreza absoluta, o indivíduo vive sem qualquer segurança, em meio às muitas carências materiais impostas em seus espaços sociais. Assim, verifica-se que quem vive sem qualquer segurança de se alimentar produz sentidos que se apóiam numa cultura de fome4. A incerteza de comer ocupa lugares e corpos socialmente definidos. Nessas condições, os famintos podem ser também obesos. Essa concepção transgride o modelo reducionista biomédico na sua versão clínica, e compreende a fome enquanto expressão biológica e sociocultural.

Sobre o uso da abordagem qualitativa para avaliar o Programa Fome Zero

O programa Fome Zero veicula oficialmente, pela mídia, mensagens de cunho caritativo. O cartaz diz sobre um "Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome", ao lado de um prato vazio sobre a bandeira brasileira35. A mensagem polissêmica reduz a problemática da fome, em relação aos objetivos de atenuação da pobreza, que silenciam diversas associações com a realidade socioeconômica e política (desemprego, baixos salários), e aborda o fenômeno como uma questão fisiológica que afeta o momento do indivíduo. A ênfase no biológico descaracteriza a fome enquanto um problema social e histórico36. Entretanto, esse plano de combate à fome pode transformar-se em um acontecimento social, se houver, de fato, reforma agrária e melhor distribuição de renda para a população.

A limitação dessa campanha está no processo interativo do Estado para zerar a fome e a exclusão social de milhões de brasileiros. Mas, sem zerar os processos políticos determinantes da produção da pobreza e da fome, o programa Fome Zero será um mero reprodutor discursivo de sentidos contraditórios desse processo político-econômico gerador de desigualdade social e fome.

No exercício de avaliação dessa campanha, deparou-se com a necessidade de um modelo qualitativo de investigação, para entender os processos da condição faminta. Nesse entendimento seria possível conhecer o interior das estruturas, o sistema de símbolos que prescrevem interconexões entre diversos elementos socioculturais e biológicos, e obter uma análise mais próxima do impacto desse programa de governo sobre a realidade da população carente. Essa dimensão de análise poderia reorientar a construção de políticas sociais de maior impacto, caso fossem considerados os diversos aspectos socioculturais.

Questões relevantes para abordagem cultural da SAN

A compreensão dos aspectos culturais sobre alimentação e nutrição se constitui em um campo teórico que pode influenciar o olhar dos profissionais de saúde e nutrição. A exemplo, no estudo sobre a problemática da fome4, observou-se que as condições materiais precárias atingem as referências mais profundas do ser humano. A vida em carência não pode ser qualificada ou quantificada de modo simples e sem o conhecimento de significados e associações dos conteúdos humanos que envolvem explicações sobre o provisório alimentar, o incerto, o inseguro, a morte iminente.

O sofrimento de quem vive nas condições extremas da pobreza é determinante de como a pessoa consegue se manter e suportar as condições adversas, com as quais se depara ao não ter o suficiente para comer. Nesse confronto entre a realidade externa e a subjetividade da fome, o sujeito agencia e interpreta sua fome em seu cotidiano4. A percepção dos sentidos de quem não tem garantia de se alimentar com qualidade e quantidade suficientes, anuncia sensações ou sentimentos vivenciados pelo corpo condicionado e debilitado pelas condições de seu mundo de miséria. Com essa percepção, além da sensação fisiológica de fome, o sujeito, no seu habitual, expressa outras sensações. Por isso, o sofrimento desse sujeito não se esgota ao comer três vezes ao dia. O indivíduo quer obter a segurança de comer num tempo da automação do seu cotidiano, sem que se permita perceber carente de sua comida em seu próprio corpo e em seu imaginário. Para ele, SAN é mudança do habitual de fome. A mudança das sensações habituais e a inscrição de novas, sobretudo, em novos contextos socioeconômicos de qualidade de vida, emprego e outros que impliquem a sua inclusão social. SAN significa autonomia para o acesso ao alimento uma, duas, três ou mais vezes por dia e em qualquer dia da sua existência. Essa autonomia se inscreve como o direito social da liberdade de viver sem fome.

Nesse entendimento, a produção de novas sensações se tornaria real quando intersubjetivada ao lado dos que têm semelhantes realidades. Ou seja, as mudanças do habitual de fome necessitam estar também no plano coletivo, com as muitas histórias individuais em interação. A passagem do sentido de fome para o sentido de SAN tem a ver com ganhos sociais, redistribuição de renda, empregos, políticas sociais, de modo a possibilitar a população carente perder a sensação de medo e vergonha pela insegurança social.

O alimento seguro ou saudável para o consumo está relacionado à produção, ao abastecimento, à higiene. Nesses termos, de fato, o consumidor necessita conhecer os riscos para a saúde em toda a cadeia alimentar, como os produtos químicos acrescidos aos alimentos, entre outros processos comerciais, para uma escolha reflexiva de seu consumo. No cotidiano do indivíduo que vive sem acesso permanente a qualquer alimento, a qualidade do cardápio não reflete uma importância tão significativa para ele.

No território do cotidiano, são construídos conceitos sobre os modos de compreender as necessidades do corpo37. Essas referências são fundamentais para entender a saúde e a segurança alimentar no campo sociocultural, como inscrições que revelam denominações sobre as condições que transcendem o corpóreo e o campo da subjetividade50.

A comensalidade, um campo da SAN, é constituída de processos complexos que envolvem valores culturais e afetivos particularizados em contextos históricos e socioeconômicos32. A ausência de compreensão sobre esse assunto alude políticas sociais minimizadoras dos elementos culturais que trazem à superfície crenças sobre corporeidade e comida, hábitos alimentares, conceitos higiênicos sobre alimentos, naturalização dos efeitos da fome4 sobre a população, por exemplo.

Os aspectos socioculturais da alimentação são recorrentes do caráter interdisciplinar da SAN. Nessa perspectiva, este tema central é coerente com a relação entre indivíduo, coletividade, alimento e ambiente, na formulação e no planejamento de políticas sociais de saúde e nutrição. Investigações sobre alimentação e cultura38 comportam diversidades de abordagens, enfoques que relacionam condutas alimentares sob os domínios da produção e comercialização de alimentos, bem como a incorporação de novas usualidades à luz das modificações do mercado.

Os padrões culturais sobre o comer em diferentes grupos sociais prescrevem concepções sobre alimentação, em que aspectos simbólicos e representacionais fazem parte desse campo de saber32,38.

A produção e a reprodução de crenças alimentares se constituem como fundantes da identidade sociocultural e interagem de muitas maneiras com os valores do mundo moderno, globalizado. Tradições e novos padrões alimentares, centrados na cena urbana modernizante, também afetam a nutrição38. Sobre isso, uma nova orientação pedagógica alimentar pode circunscrever o conceito de alimentação saudável, ou seja, uma educação nutricional - como ação social que versa sobre a saúde - que contemple e interprete os significados das escolhas alimentares dos sujeitos, respeitando suas próprias organizações sociais, as quais, inevitavelmente, produzem e reproduzem valores sobre o corpo e a vida.

As mudanças na alimentação, observadas, principalmente nas cidades, encontram na comida de rua sua maior expressão. Em geral, a comida de preparo fast, considerada perigosa para a saúde, pelo excesso de gorduras, é também valorizada, por representar liberdade, prazer, modernidade39. As racionalidades sobre os perigos para a saúde estão, aparentemente, dissociadas do prazer de comer. E essa dissociação estrutura e reproduz a conduta da emoção em relação ao alimento, ainda que afete a saúde do corpo40.

Também é relevante a produção de idéias que contemplem a história alimentar em diferentes grupos sociais, para melhor compreensão da realidade, idéias que resguardem o previsível e o nominal como referências culturais necessárias à prevenção da saúde. Seria fundamental conhecer a produção de sentidos do gosto e da estética, como associações que guardam autonomia com a conduta alimentar e a história social, nesses tempos modernos em que se adoece de obesidade ainda mais rapidamente.

O hábito alimentar como parte do habitus20, é compreendido na dimensão do cotidiano, em que a experiência faz parte da identidade cultural do sujeito. A perda dos valores dessa condição habitual é a perda de vista do sujeito sobre a certeza de sobreviver. As construções analíticas das atividades humanas estão no imaginário como condutas da esfera do ambiente material, e são expressas como significantes subjetivos em relação ao modo de pensar o corpo, a vida, a natureza, a comida e o tempo.

Os sujeitos necessitam ser ouvidos no processo de construção da SAN. A escuta assegura a compreensão dos problemas para análises mais aprofundadas desse tema na dimensão da cultura, dos sentidos e dos significados, como parte do método que relaciona objetos do cotidiano e qualidade de vida17. Para tanto, é necessário saber como os sujeitos, imersos em seus coletivos, significam e re-significam suas necessidades, sua comida. No processo interdisciplinar há um emaranhado de conhecimentos produzidos por indivíduos e grupos que se organizam para significar: acesso, sustento, direito, ética de políticas sociais para a SAN.

Os conhecimentos sobre as ações relacionadas à alimentação no universo cotidiano são subtemas para a compreensão da SAN, e podem auxiliar a implementação e o acompanhamento de políticas sociais. A abordagem compreensiva sobre os significados da SAN poderia circunscrever limites e efeitos sobre o cuidado alimentar em escolas, creches públicas, lares públicos da terceira idade, a segurança alimentar do trabalhador. Ou seja, uma abordagem que considere, para a análise das políticas sociais específicas da alimentação e nutrição, os valores culturais expressos por sujeitos sociais sobre esses assuntos.

CONCLUSÃO

No contexto atual, cresce o debate sobre a segurança alimentar e nutricional no Brasil. No conteúdo aqui desenvolvido procurou-se fundamentar a necessidade da inclusão dos aspectos da cultura para analisar políticas sociais que envolvem este tema. Enfatizou-se que a produção do conhecimento sobre SAN deve conceber instrumentos metodológicos que guardem relação com os significados deste objeto nos diversos contextos sociais. Por exemplo, em relação aos que convivem de modo mais grave com a carência alimentar e nutricional, seria fundamental compreender os significados da fome como um fenômeno, não apenas do campo biomédico, mas, sobretudo, sociocultural, ou seja, como aquisição inscrita por sujeitos que vivenciam o problema num dado contexto social. Outro exemplo se refere à emergência da obesidade enquanto problema de saúde pública, cuja compreensão poderia se dar por meio da abordagem sociocultural ou antropológica. Nesse sentido, os significados da segurança alimentar e nutricional apreendidos das experiências dos atores sociais, em cada lugar investigado, seriam analisados a partir da combinação de categorias macro e microssocial que contemplem indicadores sócioeconômicos, culturais e epidemiológicos, para descortinar o complexo de causalidades dos diversos fenômenos implicados na SAN.

Com essa perspectiva, estudos sobre SAN passariam a valorizar expressões dos sujeitos, configurando a abordagem sociocultural como uma estratégia para a efetividade de políticas sociais e para a produção de novos saberes sobre este tema. Essa produção deve ser repensada a partir de práticas atuais, e seguir em direção a novos procedimentos metodológicos que focalizem os aspectos das ciências humanas. Entre estes, citam-se o processo de construção da cidadania como um direito social, e a SAN como parte constitutiva desse direito. Sobre o contexto socioeco-nômico e político, fundamentou-se a necessidade de mudanças que possam viabilizar o papel do Estado para garantir SAN como um direito social, em substituição ao paradigma filantrópico, ainda predominante. Com tais formulações, seria possível fomentar debates que caracterizem a maneira seletiva e desigual de comer, viver e morrer e suscitar caminhos de resolução da problemática alimentar e nutricional do País.

Trata-se, pois, da valorização dos aspectos socioculturais necessários à compreensão dos significados produzidos pela certeza ou incerteza de se alimentar e se nutrir. Conteúdos estes, interligados a outros campos de saberes. Os sujeitos desse processo, ao significarem os problemas e projetos, colocam-se como protagonistas, para assegurar a ética nas políticas sociais na sua dimensão territorializada, microssocial e comunitária. Nesses termos, novos estudos sobre SAN no Brasil, em particular com ênfase nos aspectos da cultura, poderiam ser reorientadores de políticas sociais representativas do compromisso pela cidadania.

Recebido em: 28/2/2005

Versão final reapresentada em: 1/9/2006

Aprovado em: 25/10/2006

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    Correspondência para/
    Correspondece to: P.G.L. PENA.
    E-mail: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      25 Out 2006
    • Recebido
      28 Fev 2005
    • Revisado
      01 Set 2006
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